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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Tono - "Aquário" (2013)



“Nessa madrugada, Alice Caymmi me deu um toque em seu Facebook: o novo disco do Tono, intitulado ‘Aquário’, finalmente entrou no ar para audição no Soundcloud. Pronto. Era tudo que eu precisava para... não dormir. Que coisa linda, que disco maravilhoso.”
DJ Zé Pedro




As coisas até que não andam tão mal em termos de música brasileira ultimamente. Se noutros segmentos o Brasil insiste no atraso, na música uma galera nova, cheia de referências e de cabeça aberta, vem surpreendendo positivamente esse que vos fala. Primeiro, a descoberta de Lucas Arruda, que já relatei recentemente num urgente ÁLBUM FUNDAMENTAL, jovem da soul-samba dono de uma criatividade e técnica diferenciadas. Agora, recomendado por minha antenada amiga Luciana Danielli, de Niterói (RJ), conheci a Tono. E que bela surpresa!
                         
A banda é do filho de Gilberto Gil, Bem Gil, violonista/guitarrista de mão cheia – e, ao que se nota, ótimo compositor também a exemplo do pai –, conta ainda com a doce voz de Ana Claudia Lomelino, o baixista Bruno Di Lullo – que já tocou com Gal Costa –, e Rafael Rocha na bateria e programação eletrônica. Com forte inspiração na turma Maravilha 8 (Moreno Veloso, Berna Ceppas, Kassim, Domenico, Daniel Carvalho, Pedro Sá e agregados), que vem ditando a MPB desde o final dos anos 90, a Tono, no entanto, não apenas repete uma fórmula. Aliás, até repete, mas a faz com personalidade e uma elegância ímpares. Se for comparar a sonoridade da Tono a um look de vestuário de moda, caberia muito bem dizer que eles são um “chic despojado”.

No seu terceiro disco da carreira (lançaram “Auge”, em 2009, e “Tono”, em 2010), “Aquário”, de 2013, a rapaziada apresenta uma sonoridade que mistura Tropicalismo, Clube da Esquna, jazz e eletrônica a uma serena psicodelia rock, quase hippie. Alternativo, indie, experimental, pós-rock: várias acepções podem ser dadas a eles que já foram classificados de “charme desarrumado” e até de “Indefinível”.

Belíssima, “Murmúrios” abre o disco numa bossa-dub com ares jazzísticos (um tanto Incognito e Stereolab), numa revisita à atmosfera melancólica de “Gestos”, de Amado Maita (do “gesto” ao “murmúrio”). A voz de Ana Cláudia é despretensiosa, leve, porém não desnutrida como a de uma Mallu Magalhães. Sem rebuscamentos, embora afinada e precisa. Os sons eletrônicos, bem retrô, se mantém o tempo todo junto aos instrumentos acústicos, interagindo-se, mesclando-se.  As letras, igualmente, bastante bonitas: “Como Vês” (“Como vês o amor vai desbotar/ As cores nas fotos que ele tocar...”), “Tu Cá, Tu Lá” (“Nem sempre é possível/ Perceber o infinito/ Como algo em que se/ Possa tocar/ Mas talvez acessível/ Seja a busca do profundo/ Precipício imprevisível que há...”) e “A Cada Segundo” (A Cada Segundo no mundo/  Dorme-se um sono profundo...) são exemplos.

Destaque para a versão de “Chora Coração”, de Tom e Vinicius, num arranjo cadenciado, quebrado e dissonante; a citada “Como vês”, música de Domenico e Di Lullo já muito bem gravada por Alice Caymmi e que aqui ganha um arranjo espacial e delicado, lembrando coisas de Rita Lee nos Mutantes ou o experimentalismo da obscura banda norte-americana The United States of America; “Do Futuro”, em que Ana Cláudia encarna uma moderna Nara Leão para entoar um samba-marcha hi-tech; e “Da Bahia”, em que o violão encantado do mestre Gil presenteia o grupo com seu toque, além do backing vocal e da própria melodia, de sua autoria, que carrega a assinatura do velho tropicalista.

É muito gostosa a sensação de ouvir a Tono. Parece que se está dentro d’água, no ritmo das ondas aquáticas e sonoras. Tudo muito audível, bem tocado, bem equalizado.  A produção do craque Arto Lindsay, há mais de três décadas conectado com a modernidade estética da MPB, amarra tudo num som pequeno e inteiro. Em termos musicais, lembra, de fato, a sina aberta pelo Tropicalismo desde Mautner, mas ainda mais fortemente a sonoridade do revolucionário "Recanto", de Gal (2012), o qual, por sinal, já se nutria de elementos explorados por Moreno/Kassim/Domenico desde “Máquina de Escrever Música”, de 2000 (vide a faixa “Assim”, que as semelhanças ficam bem evidentes). Um aquário de peixes bem alimentados e em evidente fase de crescimento.
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FAIXAS:
01. Murmúrios
02. Sonho com Som
03. Como Vês
04. Tu Cá Tu Lá
05. Chora Coração
06. Leve
07. Do Futuro (Dom)
08. UFO
09. Pistas de Luz
10. Da Bahia
11. A Cada Segundo

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OUÇA O DISCO



quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Gal Costa - "Recanto" (2012)



Cantar, Recantar

“Quando eu subo no palco,
com esse som, os músicos, o repertório,
 com tudo que ele representa pra mim e pras pessoas,
é uma emoção muito forte.
É como uma entidade que me toma, me arrebata. É o meu momento e também
é meu encontro com Caetano,
que sempre gera alguma coisa forte, big-bang.
Gal Costa




Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi em vão: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.

As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico e texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!

O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um Nine Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.

Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.

As referências ao período heroico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos, agora é o jovem Kassin (ao lado da banda escolhida por Caetano: Pedro Baby, guitarras, e Domenico, bateria e eletrônicos,) que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com "Lindoneia", do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete, Nara Leão).

À época do lançamento, notou-se certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois até mesmo os que elogiaram, acostumados a criticá-lo sem fundamento, não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).

O fato é que “Recanto” é demais. Certa vez, outro colaborador deste blog, Lúcio Agacê, ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha produzindo se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é alguém que está sempre se renovando. Se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90, isso é plenamente verdade. Mas tropicalista é tropicalista. E se compará-la àqueles seus primeiros idos, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a daquela época - mesmo com quase 40 anos de atraso.

Num ano de 2012 que teve um ótimo Chico Buarque, um surpreendente Criolo e um elogiado Lenine, também houve uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.


"Recanto Escuro" - Gal Costa

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FAIXAS:

1. Recanto Escuro - 3:51
2. Cara do Mundo - 2:52
3. Autotune Autoerótico - 3:40
4. Tudo Dói - 2:41
5. Neguinho - 5:35
6. O Menino - 4:28
7. Madre Deus - 3:35
8. Mansidão - 3:32
9. Sexo e Dinheiro - 3:40
10. Miami Maculelê - 4:06
11. Segunda - 3:49
todas as composições de Caetano Veloso
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Baixe e ouça:



Gal Costa - "Cantar" (1974)


Canto, Recanto

"Gal é uma das grandes
personalidades da nossa história.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso



Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966 – embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto, foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.

Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards MacaléRogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.

Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”, agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de pólen colorido no negror dos anos de chumbo.

O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida. “Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a situação política e moral do país: “Quando a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E finaliza, numa exclamação: “Quando a gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.

Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor de Maracujá”, um soul funkeado ao estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana, vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar lá em cima da escala na última palavra: “Mas da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.

Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas. Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco – por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita uma espécie de beat-box, expediente que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”, dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no exílio.

A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas lunar e flórea do disco como um todo: “O mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do céu”.

Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam retoricamente: “Quem foi que disse que a mulher não voa?” Voa, sim.

Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso, diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta da saudade” mencionado na letra!

“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam. Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela, fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento, “Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está “no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.

"Barato Total" - Gal Costa



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FAIXAS:

1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”, Tom/Vinicius) - 3:13
7. Joia (Veloso) - 3:24
8. Até Quem Sabe (Ênio/Donato) - 3:39
9. O Céu e o Som (Péricles Cavalcanti) - 3:00
10. Lágrimas Negras (Jorge Mautner/Nelson Jacobina) - 3:31
11. Chululu (Mariah Costa) - 0:56
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Ouça:








segunda-feira, 16 de junho de 2014

Exposição Coletiva "Fotogramas" - Paris Cinema Café - Porto Alegre/RS


Os trabalhos de Iris Borges.
Os dois de cima, conciliam objetos femininos e masculinos
do dia-a-dia
“As cascatas
a 24 fotogramas
por segundo”.
verso da canção "Tudo Dói"
do álbum "Recanto", de Gal Costa




Impossível pra mim não lembrar do verso de Caetano Veloso cantando por Gal Costa em “Tudo Dói”, não por temática, mas simplesmente pela palavra que dá título a esta pequena e simpática mostra. É “Fotogramas”, na qual participa minha querida amiga de muitos anos Iris Borges – que, talentosa com as imagens e a manipulação da luz, felizmente vem investindo na fotografia nos últimos anos e com considerável sucesso.

Iris Borges recebendo-nos na
exposição coletiva "Fotogramas"
Mesmo numa rápida passagem, Leocádia Costa e eu conseguimos apreciar os trabalhos dessas, juntamente com Iris, sete fotógrafas (Lucia Helena Reus, Ana Cristina Capeklão, Iara Nunes, Andrea Estevão, Tuane Napora e Karina Koch compõem o time) cujos trabalhos são resultado de experimentos realizados pelos professores Marcelo Amaral e Luísa Kuhl Brasil para a Escola de Fotografia Projeto Contato, tocado pelos professores e, claro, também fotógrafos, Nede Losina e Lucia Simon.

A técnica de fotograma remete a um lado rudimentar da prática fotográfica, pois consiste em colocar um objeto sobre papel fotossensível. Depois, o conjunto objeto/papel é exposto à luz a determinado tempo (segundos), gerando um negativo que delineia as áreas cuja incidência de luz foi bloqueada. Ou seja: bem legal.  Quem quiser conferir, vale a pena dar uma passada no charmoso Paris Cinema Café.



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exposição coletiva “Fotogramas”
visitação: até 7 de julho, das  9h às 22h, de segunda à sexta, e sábados das 12h às 22h
local: Paris Cinema Café
Endereço: Av. Venâncio Aires, 214, Cidade Baixa – Porto Algre/RS
Entrada: gratuita












sexta-feira, 30 de agosto de 2013

“Imprensa Cantada Segunda Edição: Tribunal do Feicebuqui” – Tom Zé (2013) e “Abraçaço” – Caetano Veloso (2012)



Se para todos os tropicalistas a bossa nova foi o motivo propulsor para que seguissem pelo viés da música, o tropicalismo exerceu este poder de forma ainda mais penetrante no universo pop. Jorge Mautner, o pré-tropicalista igualmente influenciado pelos acordes dissonantes de João Gilberto  pelas harmonias engenhosas de Tom Jobim e pela poesia lírica de Vinícius de Morais, um dia afirmou: “não há possibilidade de escapar do tropicalismo”. Esta frase exaltadora, ainda mais vinda de alguém tão ligado ao movimento, poderia soar exagerada. Mas não é. A Tropicália sempre se mostrou uma corrente musical que, inteligentemente, soube se construir aberta, conectada com a pós-modernidade e sem preconceitos, abarcando todas possíveis e imagináveis referências da arte (música, cinema, artes plásticas, literatura, poesia, teatro) e do contexto sociopolítico, fazendo com isso a mais bem elaborada “geleia geral”, o mais bem acabado “lixo lógico” jamais assemelhado no mundo. Um produto tão abrangente e conceitualmente elaborado que, desde o histórico “Tropicália”, de 1968, que une ópera e Luiz Gonzaga, samba-de-roda e poesia concreta, Beatles  banda marcial, tudo-junto-e-misturado, nunca mais a música brasileira deixou de andar conforme seus passos. No exterior, a ação vanguardista do tropicalismo para com o que é produzido por estrangeiros deu-se de forma diferente mas não menos elogiosa: quando não bebem diretamente na música brasileira (Brian EnoTalking HeadsBeck, Suzane Vega, Björk, Jamiroquai, Beastie Boys, a repetem e/ou a referenciam mesmo sem saber que o estão fazendo.


Ao longo dos anos seus três principais compositores, os baianos Gilberto GilCaetano Veloso e Tom Zé,vêm provando isso através de suas obras, sempre um passo à frente do resto de todas as tendências, sejam cults ou populares. Os dois últimos mostram isso novamente em seus mais recentes trabalhos: o CD “Abraçaço” (2012) e o EP “Tribunal do Feicebuqui” (2013), respectivamente. A começar pela semelhança conceitual das capas (adoração ou achincalhamento?), cada um a seu jeito e com pontos em comum, ambos os trabalhos trazem a inovação estilística e a liberdade criativa que não se nota em nenhum outro lugar do planeta com a mesma integridade de proposição. 

Começando pelo de Tom Zé: surgido por um incidente em que o artista, ao autorizar que uma música sua fosse usada para um comercial da Coca-Cola, sofreu, por conta disso, críticas severas pelo Facebook de ditos “fãs“ acusando-o de “vendido ao sistema”, “Tribunal do Feicebuqui”, além do evidente sarcasmo do título, já nasce impregnado com essa tensão. Tensão, porém, que parece ter feito bem a Tom Zé como autor, pois o motivou a se reencontrar com a agudez de sua obra popular, e não uma obra popular marcada pela agudez. Estudado em música erudita pela linha da vanguarda, Tom Zé é, antes de tudo, um filho dos sons populares, das cantigas de cortejo, do samba urbano de Adoniran Barbosa, do canto das lavadeiras, dos trovadores nordestinos e, principalmente, da bossa nova. Porém, como todo músico ligado a avant-garde, vinha, nos últimos tempos, progressivamente, evoluindo para uma música excessivamente hermética em que o percentual de erudito se sobrepunha ao de popular – basta ouvir os dificílimos e chatos “Estudando o Pagode” (2005) e “Danc-Êh-Sá” (2006), excessivamente rebuscados e distantes do ouvinte. Processo igual ao que invariavelmente acontece com músicos desta linhagem, basta ver a obra de Pierre Boulez (do dodecafonismo ao serialismo ao estrtuturalismo figurativo) ou Stockhausen (do atonalismo à eletroacústica à música de influência “esotérica”).

O trabalho atual de Tom Zé, entretanto, parece, por causa da provocação gerada, tê-lo movido a buscar uma resposta inteligível (ou seja, popular) para que sua mensagem fosse compreendida e, bingo: de volta o Tom Zé inovador e ferino da MPB. E, claro, valendo-se da carga erudita e de seu vasto intelecto, que sempre foram muito bem vindos quando não usados para que só meia dúzia de intelectuais entendessem. É o caso de “Zé a Zero”, parceria com Tim Bernardes (“Mas será revolução?/ Pocalipse se pá?/ Quando ligo na TV/ Caio duro no sofá/ Ô rapá, qualé que é?/ A copa aqui co qui calé?/ É coco colá/ Aqui copa coca acolá/ Fazendo propaganda do Tom Zé”), e a brilhante faixa-título, em que se vale das contribuições do rapper Emicida mais Marcelo Segreto, Gustavo Galo e Tatá Aeroplano para compor um arranjo bastante moderno que alia hip-hop, rock, samba, atonalismo e xote com recortes e ferramentas eletrônicas. Nela, a resposta aos críticos vem em forma de puro sarcasmo: “Não ouço mais, eu não gostei do papo/ Pra mim é o príncipe que virou sapo/ Onde já se viu? Refrigerante!/ E agora é a Madalena arrependida com conservantes”. E, então, completa: “Bruxo, descobrimos seu truque/ Defenda-se já/ No tribunal do Feicebuqui/ A súplica:/ Que é que custava morrer de fome só pra fazer música?”

A briga com os internautas parece ter trazido de volta a Tom Zé, inclusive, a coerência com sua própria obra e não apenas uma reapropriação da mesma como um mero arremedo disfarçado de metalinguagem, caso dos últimos CD’s. Isso porque “Tribunal...” é a continuação de outro EP lançado pelo artista em 1999, o “Imprensa Cantada”. Na ocasião, Tom Zé sentiu-se na obrigação cívica de fazer um registro musical para outro incidente: o da inconcebível vaia proferida ao mestre João Gilberto durante um show em São Paulo em que este, indignado, discutiu com a plateia e encerrou a apresentação. A canção era "Vaia de Bêbado Não Vale", e nela está um dos pontos de ligação de todos os tropicalistas e que, inclusive, tem eco no novo CD de Caetano: a devoção à bossa nova: “no dia que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia que a bossa nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito/ Teve que fazer Brasil...”. “Tribunal...” é coerente com este primeiro volume por colocar novamente em questão um assunto do momento em forma de crônica, ligeira e fugaz como a elaboração dada pela própria imprensa. Porém, desta vez, numa plataforma mais moderna da mídia, a internet, mais precisamente, o Facebook, este tribunal e palanque aberto e incontrolável, lembrando, até mesmo, uma outra antiga obra sua: a psicopatológica “Todos os Olhos”, de 1973.

Mas a melhor faixa do novo trabalho de Tom Zé é, justamente, a que melhor responde às descabidas críticas dos detratores, pois a pergunta a que a canção rebate indiretamente é: como Tom Zé teria se tornado “vendido” a uma multinacional se ele mesmo já a tinha, como bom tropicalista (ou seja, coerente com sua ideologia), se apropriado dela? Para além dos engajamentos xiitas, em 1979 (para esclarecimento daqueles que não têm memória ou não se preocupam em tê-la), quando trabalhava para a agência DPZ, de Washington Olivetto, como publicitário, Tom Zé criara para a marca de guaraná Taí, da “bendita” Coca-Cola, um jingle em que, muito “tropicalistamente”, reelabora o clássico cantado por Carmen Miranda (ela, a própria pré-história da Tropicália) para vender o produto. Se falta memória e conhecimento aos críticos, pelo menos pesquisem um pouco antes de achincalhar! Será que esses que criticam sempre acharam que a estocada de “Parque Industrial” era apenas para a direita? A ver por este caso, ingenuamente, talvez sim. A atual versão de "Taí" , além de resgatada com muita pertinência – dando uma resposta melhor do que a própria carta de justificativa publicada por Tom Zé no Facebook explicando que o cachê seria doado à banda de sua cidade-natal, Irará, num ato um tanto descabido de autoculpabilidade, uma vez que não há culpa a se admitir –, traz cores novas ao arranjo que ele mesmo, metalinguisticamente, elaborou em 1992 em “The Hips of Tradition”, mantendo a base da melodia original e os ares de cantiga-de-roda que lhe atribiuíra naquela ocasião, porém, agora, aglutinando outros elementos pop, como rap e rock. Um destes elementos é outro ponto de convergência com “Abraçaço”, de Caetano: a apropriação do funk carioca. Sob uma base vocal que repete o tradicional: “tchum tshack tchum tchum tchum tchum tshack” do ritmo popularesco, Tom Zé reinventa a própria música de forma crítica e tropicalista na melhor acepção do gênero. 

O mesmo funk carioca serve de tema para "Funk Melódico"  de Caetano em seu “Abraçaço”. A música, de abertura quase idêntica a “Taí”, se desenvolve não para uma reelaboração modernista de uma marchinha, como na de Tom Zé, mas, sim, para uma textura eletrificada e até pesada. O expediente, que já havia sido utilizado por Caetano em outra obra recente, a faixa “Miami Maculelê”, a qual escrevera para Gal Costa em seu CD "Recanto" (2011), novamente estreita fronteiras com os ritmos africanos, mas agora de uma forma mais áspera. Se antes eram as danças afro-brasileiras que se aproximavam do repique e da cadência do funk carioca, agora é outro estilo provindo dos negros que ele estabelece paralelo: o rock ‘n’ roll. Sob um riff de guitarra arábico, efeitos de sintetizador e bateria pulsante, “Funk Melódico” é das melhores do disco, terceiro do músico com o grupo Cê, formado por Marcelo Callado, na bateria, Pedro Sá, guitarra, e Ricardo Dias Gomes, baixo. Se não o melhor da trilogia (gosto muito do homônimo à banda, de 2006, e menos do apenas regular “Zii et Ziê”, 2009), é, certamente, o mais coeso para a roupagem roqueira que esta formação imprimiu a suas composições. A guitarra de Sá dá um show, pesada e, num solo técnico e bem sacado, faz as vezes de cuíca. Esta referência não é à toa, pois Caetano constitui na letra uma interessante analogia com o samba de Noel Rosa, “Mulher Indigesta” (“Mulher indigesta você só merece mesmo o céu/ Como está no samba de Noel”), aproximando de uma forma bem original os dois ritmos pop vindos do morro do Rio: o de outrora, o batuque, e o de hoje, o funk.

O CD traz ainda outras joias, como “Um Abraçaço”, reggae-rock de linda letra, ao modo lírico-modernista de Caetano, e onde Sá, exuberante mais uma vez, nos presenteia com um solo rasgado e ruidoso ao estilo de Neil Young ou Kurt Cobain. Outra de destaque é “O Império da Lei”, samba com toque nordestino, que lembra em sua letra a atmosfera dos contos sertanejos de Guimarães Rosa e as canções-estórias de João do Valle, e que também impressiona pela sonoridade forte dos instrumentos de rock executando uma música que, normalmente, seria arranjada para um grupo de pagode, principalmente na combinação do metal da guitarra com o som cheio do tambor da bateria. Ainda, o alegre samba-reggae “Parabéns”, de refrão delicioso e pegajoso (“Tudo mega bom, giga bom, tera bom...”) e a biográfica “Um Comunista”, que relata de forma sensível e épica, num andamento lento e marcial, a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella. Nela, novamente Caetano e Tom Zé se reaproximam. Caetano, ao dizer, com o verbo no passado, que os “os comunistas guardavam um sonho”, conversa com “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, canção em que este último usa sarcasticamente a figura icônica do Papa, novo dentro do circo capitalista da sociedade moderna, para clamar por aquele que pode ser a única salvação em um mundo em que “a diferença entre esquerda e direita/ Já foi muito clara, hoje não é mais”. Numa marchinha que se transforma em rock ao final, Tom Zé ainda punge inteligentemente: “Papa Francisco vem perdoar/ O tipo de pecado que acabaram de inventar/ O povo, querida, com pedras na mão/ voltadas contra o imperialismo pagão”. Ou seja, tanto Caetano quanto Tom Zé expressam em figuras de estilo diferentes (um, pela metáfora; o outro, pela ironia) a mesma percepção desacreditada da atuação ideológica das esquerdas. (Não é difícil remontar a figura de Caetano contra a plateia no festival de 1968 ao lado dos Mutantes bradando: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”...)

Mas é quando o assunto volta a ser bossa nova que as parecenças conceituais entre os dois se tornam ainda mais visíveis. “A Bossa Nova é Foda”, disparado melhor música do álbum e talvez a melhor do ano no Brasil, é não um samba cadenciado, como fielmente Tom Zé o fez em “Vaia...”, mas, sim, um rock com riff minimalista e criativo em que o efeito do pedal wah-wah ressoa dois acordes em alturas diferentes, dando a sensação de movimento. Só mesmo um rock ‘n’ roll para dizer um elogio desta forma! A letra, além do costumeiro desbunde poético e filosófico típicos do Caetano inspirado de uma "O Estrangeiro", “Vaca Profana” ou “Uns”, traz a mesma ideia de Tom Zé de valorização da bossa nova e da pungência de sua assimilação no Brasil e no mundo, em que, como afirma, “lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação”, referindo-se à capacidade de unir diferentes referências musicais e socioantropológicas em um estilo tão sucinto e denso como o fez com maestria de alquimista “o bruxo de Juazeiro”, ou seja, João Gilberto. A semelhança com os versos da primeira “Imprensa Cantada” é direta: “E a Europa, assombrada:/ ‘Que povinho audacioso’/ ‘Que povo civilizado’”

Em “A Bossa Nova é Foda” Caetano ainda expõe outra ideia interessante em que é possível notar-se concordância com Tom Zé, que é o exemplo popular que a bossa nova legou. Quando diz que a velha bossa nova foi capaz de transformar o “mito das raças tristes” em “produtos” pop como os lutadores de MMA, os deuses olimpianos da era contemporânea, está apontando o mesmo que Tom Zé diz em “Vaia...”, de que, então apenas exportador de matéria-prima, “o grau mais baixo da capacidade humana”, “criando a bossa nova em 58/ O Brasil foi protagonista/ De coisa que jamais aconteceu/ Pra toda a humanidade/ Seja na moderna história/ Seja na história da antiguidade.” Tom Zé ratificava a importância social, histórica e antropológica da bossa nova para um país que passava, naquele ano, a exportar, como diz depois a letra, “o grau mais alto da capacidade humana”: a arte. O mesmo entendimento de Caetano.

Tanto “Tribunal...” quanto “Abraçaço” são dois grandes discos que valem a pena ao menos serem ouvidos com atenção e repetição, pois contêm muitas mensagens e percepções de dois artistas que nunca perderam a verve crítica e pensadora das coisas que os rodeiam. Concorde-se com eles ou não, goste-se deles ou não, o fato é que eles são, sim, muito coerentes com suas próprias obras e posturas, e isso é o que, visivelmente, mais indigna os críticos, pois não é por aí que eles podem ser criticados. Eu abertamente os admiro e não brigo com isso. Apenas discordo de Caetano em uma coisa: não é só a bossa nova: também ‘a Tropicália é foda’!


clipe oficial de “A BOSSA NOVA É FODA” - Caetano Veloso:




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FAIXAS “Tribunal do Feicebuqui":

1. Tribunal Do Feicebuqui (Marcelo Segreto/Gustavo Galo/Tatá Aeroplano/Emicida)
2. Zé A Zero(Tom Zé/Marcelo Segreto/Tim Bernardes)
3. Taí (Joubert De Carvalho/Tom Zé/Marcelo Segreto)
4. Papa Francisco Perdoa Tom Zé (Tim Bernardes/Tom Zé)
5. Irará Iralá (Tom Zé)

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FAIXAS “Abraçaco”:

1. A Bossa Nova é Foda
2. Um Abraçaço
3. Estou Triste
4. Império da Lei
5. Quero ser Justo
6. Um Comunista
7. Funk Melódico
8. Vinco
9. Quando o Galo Cantou
10. Parabéns
11. Gayana

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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Gal Costa - "Recanto" (2012)

Canto. Cantar. Recanto. Recantar

Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi à toa: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um 9 Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heróico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos , agora é o jovem Kassim que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com “Lindoneia”, do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete cantar, Nara Leão).
Venho notando certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois os que elogiaram não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).
O fato é que gostei por demais de “Recanto”. Outro dia, em conversa com outro colaborador deste blog, meu primo Lúcio Agacê, ele me ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha conseguindo produzir se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é um cara que está sempre se renovando. Concordo se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90. Mas tropicalista é tropicalista. Se compararmos àqueles primeiros idos dela, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a Gal daquela época - mesmo com 40 anos de atraso.
Num ano de um ótimo Chico Buarque novo, de um surpreendente Criolo e de um elogiado Lenine, 2012 começa também com uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.

vídeo de "Recanto Escuro", Gal Costa



Ouça o disco:
Gal Costa Recanto