“Nessa madrugada, Alice Caymmi me
deu um toque em seu Facebook: o novo disco do Tono, intitulado ‘Aquário’,
finalmente entrou no ar para audição no Soundcloud. Pronto. Era tudo que eu
precisava para... não dormir. Que coisa linda, que disco maravilhoso.”
DJ Zé
Pedro
As coisas até que não andam tão mal em termos de música brasileira
ultimamente. Se noutros segmentos o Brasil insiste no atraso, na música uma
galera nova, cheia de referências e de cabeça aberta, vem surpreendendo positivamente
esse que vos fala. Primeiro, a descoberta de Lucas Arruda, que já relatei recentemente
num urgente ÁLBUM FUNDAMENTAL, jovem da soul-samba
dono de uma criatividade e técnica diferenciadas. Agora, recomendado por minha
antenada amiga Luciana Danielli, de Niterói (RJ), conheci a Tono. E que bela surpresa!
A banda é do filho de Gilberto Gil, Bem Gil, violonista/guitarrista de
mão cheia – e, ao que se nota, ótimo compositor também a exemplo do pai –,
conta ainda com a doce voz de Ana Claudia Lomelino, o baixista Bruno Di Lullo – que já
tocou com Gal Costa –, e Rafael Rocha na bateria e programação
eletrônica. Com forte inspiração na turma Maravilha 8 (Moreno Veloso, Berna
Ceppas, Kassim, Domenico, Daniel Carvalho, Pedro Sá e agregados), que vem ditando
a MPB desde o final dos anos 90, a Tono, no entanto, não apenas repete uma
fórmula. Aliás, até repete, mas a faz com personalidade e uma elegância ímpares.
Se for comparar a sonoridade da Tono a um look
de vestuário de moda, caberia muito bem dizer que eles são um “chic despojado”.
No seu terceiro disco da carreira (lançaram “Auge”, em 2009, e “Tono”,
em 2010), “Aquário”, de 2013, a
rapaziada apresenta uma sonoridade que mistura Tropicalismo, Clube da Esquna,
jazz e eletrônica a uma serena psicodelia rock, quase hippie. Alternativo, indie,
experimental, pós-rock: várias acepções podem ser dadas a eles que já foram
classificados de “charme desarrumado” e até de “Indefinível”.
Belíssima, “Murmúrios” abre o disco numa bossa-dub com ares jazzísticos (um tanto Incognito e Stereolab), numa
revisita à atmosfera melancólica de “Gestos”, de Amado Maita (do “gesto” ao
“murmúrio”). A voz de Ana Cláudia é despretensiosa, leve, porém não desnutrida
como a de uma Mallu Magalhães. Sem rebuscamentos, embora afinada e precisa. Os
sons eletrônicos, bem retrô, se mantém o tempo todo junto aos instrumentos
acústicos, interagindo-se, mesclando-se.
As letras, igualmente, bastante bonitas: “Como Vês” (“Como vês o amor vai desbotar/ As cores nas
fotos que ele tocar...”), “Tu Cá, Tu Lá” (“Nem sempre é possível/ Perceber o infinito/ Como algo em que se/
Possa tocar/ Mas talvez acessível/ Seja a busca do profundo/ Precipício
imprevisível que há...”) e “A Cada Segundo” (“A Cada Segundo no mundo/
Dorme-se um sono profundo...”) são exemplos.
Destaque para a versão de “Chora Coração”, de Tom e Vinicius, num
arranjo cadenciado, quebrado e dissonante; a citada “Como vês”, música de
Domenico e Di
Lullo já muito bem gravada por Alice Caymmi e que aqui ganha um arranjo
espacial e delicado, lembrando coisas de Rita Lee nos Mutantes ou o
experimentalismo da obscura banda norte-americana The United States of America;
“Do Futuro”, em que Ana Cláudia encarna uma moderna Nara Leão para entoar um
samba-marcha hi-tech; e “Da
Bahia”, em que o violão encantado do mestre Gil presenteia o grupo com seu
toque, além do backing vocal e da
própria melodia, de sua autoria, que carrega a assinatura do velho
tropicalista.
É muito gostosa a sensação de ouvir a Tono. Parece que se está dentro
d’água, no ritmo das ondas aquáticas e sonoras. Tudo muito audível, bem tocado,
bem equalizado. A produção do craque
Arto Lindsay, há mais de três décadas conectado com a modernidade estética da
MPB, amarra tudo num som pequeno e inteiro. Em termos musicais, lembra, de fato,
a sina aberta pelo Tropicalismo desde Mautner, mas ainda mais fortemente a
sonoridade do revolucionário "Recanto", de Gal (2012), o qual, por sinal, já se
nutria de elementos explorados por Moreno/Kassim/Domenico desde “Máquina de
Escrever Música”, de 2000 (vide a faixa “Assim”, que as semelhanças ficam bem
evidentes). Um aquário de peixes bem alimentados e em evidente fase de
crescimento.
Meu
amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”.
Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse
artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me
ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que
apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPM, Legião Urbana, Titãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam.
Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em
1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um
dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me
dava condições de perceber com clareza as ricas construções
melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional
de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o
mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua
obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas
versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e
“Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era,
evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais
atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular
que se apresentava à minha frente.
E
teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O
Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a
grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o
eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me
fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de
1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal
bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste
filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a
produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no
videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o
antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do
álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração
Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe),
onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz
e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de
leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões
e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente
verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão
discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem
Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu
não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de
diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava
Caetano.
“Fora
da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente
rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit
dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da
frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora
da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o
português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando
vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto.
Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse
de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A
do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje.
Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os
dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa
que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia
do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por
Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão,
Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas
essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao
repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz
a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos
populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental.
Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente
os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O
povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o
eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa
literatura.
O
próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo
destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento
'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente
admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube
restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é,
todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores
nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral
dos trovadores medievais”.
Minhas
emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais
velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional
que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas
arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o
cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível
não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol
me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”,
ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu
cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais
depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e
espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem”
e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os
versos.
Igualmente,
toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região
de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista
celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom,
ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”),
cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos
e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná
Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas);
e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de
cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros
músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de
interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.
Dando
uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela”
carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com
Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça
avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com
sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação,
cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu
piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões
exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas
magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo
vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da
guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de
puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao
dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes
externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da
vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica”
“Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”,
de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme
“São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo
estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak,
nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia”
(1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do
memorável disco "Transa", de 1972.
Se
“Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa
Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem.
Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da
tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente
atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre
vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo
que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe
recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a
tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que
cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final,
depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de
trompete bem jazzístico.
Viro
de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a
versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”,
em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça
extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível
técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida,
“Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante
arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o
ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e,
principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o
compositor japonês mais brasileiro da world music. São os
efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção,
que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.
Tanto
quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a
professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e
com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive
minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O
significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito
parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra.
Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas”
e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim
Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no
caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa”
– ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para
o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz:
“Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/
Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades
e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e
centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado
exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um
fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter
e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou
um sinal” por ser uma “preta correta democrata social,
racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno
(mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes
como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um
erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.
O
clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e
contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima
do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras
parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de
Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa,
carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante
melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são
de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as
árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu,
ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das
águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu
tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas
em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).
Não
deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com
direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das
mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada)
Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas
na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido
sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu
do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma
aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de
libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que
descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida
que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas:
primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal
precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos
depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os
microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch
Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de
corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o
pernambucano mais norte-americano da world music.
Canção
irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria
gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e
suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão
o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para
finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos
por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano
desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de
aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e
em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas
parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô”
é tão representativo que passou a servir como referência para
outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de
repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa
resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como
os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a
musicalização de autores da literatura como tema principal do
projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco)
ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de
“Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii
et Zie”).
Quanto
a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior.
Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no
antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida.
Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade
estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto
Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se
interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver
um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração
do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto,
mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei
pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor
por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.
vídeo de"Fora da Ordem",Caetano Veloso
***************
FAIXAS:
1.
Fora da ordem
2.
Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3.
Itapuã
4.
Boas vindas
5. Ela
ela (Veloso/Arto Lindsay)
6.
Santa Clara, padroeira da televisão
7.
Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8.
Neide Candolina
9. A
terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O
cu do mundo
11,
Lindeza
todas
as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.
Caetano abrindo o show em Porto Alegre (foto: Leocádia Costa)
Um
show de Caetano Veloso, para mim, é mais do que um show: é a
confirmação de todo um paradigma de percepções e ideologias.
Vê-lo no palco é deparar-me com uma série de conceitos e formas
muito pessoais de enxergar a vida, que se confirmam e dialogam com
sua obra grandiosa e impactante. Há exatos 22 anos, com 13 de idade,
já havia tido essa experiência numa apresentação da turnê do
disco “Circuladô”, um dos melhores da carreira de Caetano. À
época, em parceria com Arto Lindsay e Peter Scherer (os Ambitious Lovers), Caê tinha em sua banda Jacques
Morelenbaum, Luiz Brasil, Dadi, Marcelo Costa, Marcos Amma e
Wellington Soares, que davam ao espetáculo, numa sonoridade
cheia e moderna, uma roupagem proto-world music – ao estilo da
forjada por Ruyichi Sakamoto e pelos próprios Ambitious Lovers nos
anos 80.
Pois,
desta vez, nada de sonoridade “rebuscada”, de banda numerosa, de
complexidade timbrística, de pop étnico-modernista. No palco, para
o show do CD "Abraçaço", apenas ele ao violão e a
competentíssima banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarras),
Marcelo Callado (baixo e teclados/efeitos eletrônicos) e Ricardo
Dias Gomes (bateria e percussão). Uma formação simples e com a
secura e objetividade do rock, o suficiente para um show espetacular.
E mais do que isso: tão conectado com a contemporaneidade como
sempre esteve este baiano, um artista fundamental para a formação
de tudo o que há de mais inovador e sintonizado há 50 anos. A maior
prova disso já estava na abertura, com o petardo “A Bossa Nova é
Foda”. Não me venham com o tributo retrô do Daft Punk ao Chic em
“Get Lucky” ou muito menos “Reflektor”, da saudada “nenhuma
novidade” Arcade Fire. A brasileira “A Bossa Nova...” é de
longe a melhor música de 2013. (coisa que muito tupiniquim
vira-latas, que nem no futebol mais vence, jamais se sentiria
merecedor.)
Embora
o público do teatro fosse bem heterogêneo em idade, a abertura rock
‘n’ roll os pegou, se não desavisados, ainda um tanto frios e
aguardando, em sua maioria, os clássicos. Que não tardaram em
aparecer. Num deslocamento temporal de 48 anos, Caetano vai de uma
canção do último trabalho para retrazer uma de seu debut, a
obra-prima “Coração Vagabundo” (de “Domingo”, gravado em
parceria com Gal Costa, em 1966). Além da ligação temática entre
ambas, visto que trazem a bossa nova de João/Tom/Vinícius em seu
cerne (na rock, em palavra; na samba, em forma), estava evidente ali
a versatilidade da banda. Dentro da concepção harmônica proposta
por Caetano, o trio executa com perfeição tanto uma quanto a outra,
visto que “Coração Vagabundo” não ficara agressiva nem perdera
a expressividade melancólica original.
O show
é uma aula de escolha de repertório, composto por obras novas e
antigas e outras bem pescadas. Aliás, comento frequentemente que
artistas como ele, donos de obras extensas, profícuas e
multirreferenciadas como um Gilberto Gil, Chico Buarque, Paul McCartney ou Stevie Wonder, têm o privilégio de poderem exercitar
infinitas variações de set list, valendo-se tanto de músicas
de sua autoria de diversas épocas como também composições de
outros que dialoguem com aquele projeto. Foi assim que Caetano seguiu
o show, intercalando faixas do ótimo "Abraçaço" (sobre o qual
já escrevi aqui no blog), como a excelente faixa-título, o
empolgante samba-reggae “Parabéns” e a “graciliana” “O
Império da Lei”, com aquelas preferidas da galera. Foi o caso da
breve mas emocionante execução de “Alguém Cantando”,
originalmente na voz de seu filho, Moreno Veloso, no álbum “Bicho”,
de 1977, e que só a tinha escutado com Caetano numa cena do filme “O
Mandarim”, do Júlio Bressane, quando o autor a canta à
capella.
Exemplo
perfeito desse encadeamento bem pensado entre os números foi a
trinca iniciada com a épica “Um Comunista”, do novo disco, que
ganha ao vivo ainda mais dramaticidade ao contar, em forma de
“biografia emotiva”, a trajetória do revolucionário baiano
Carlos Marighella pelo olhar de Caetano, conterrâneo e admirador. O
tema e a carga emocional desta desembocam na ainda mais grandiosa
“Triste Bahia”, clássica adaptação do poema de Gregório de
Matos feita por Caetano para seu célebre álbum "Transa", de
1972. O público, claro, delira com essa, tocada com muita
competência pela banda, que consegue repetir/adaptar todas as
variações rítmicas e harmônicas que a complexa melodia suscita.
Pra finalizar o conjunto de três temas, outra nova: “Estou
triste”, a deprimida canção que transportou a tristeza da Bahia
para o Rio de Janeiro (“O lugar mais frio do Rio é o meu
quarto”).
A
festa seguiu para todos os gostos. Num palco onde só se viam
cavaletes com quadros de construtivistas-minimalistas, a bela
iluminação ressaltava o que interessava: a música. A
expressividade do gestual longilíneo de Caetano se adensa no seu
canto absolutamente afinado e bem pronunciado. Vieram, assim, na
sequência, também “Odeio” e “Homem”, ambas de pegada bem
rock e do início da parceria com a banda Cê; a romântica “Quando
o galo cantou”, cuja execução ao vivo pareceu trazer-lhe com mais
vivacidade a beleza da poesia; e a “matadora” “Funk Melódico”,
das melhores e mais conceituais de "Abraçaço", em que Pedro Sá
dá um show na guitarra. Sá, aliás, é, como em todo bom show de
rock, quem sustenta a banda. Isso fica evidente na feliz recuperação
de “De Noite na Cama”, tal qual a versão original que Caetano
compusera para Erasmo Carlos em 1971. Isso se nota ainda mais na
regravação de outra clássica: “Eclipse Oculto”, um pop a la
Blitz, de 1984, que, agora, ganha peso e distorção, dando quase
para “pogueá-la”.
Caê e banda mandando
um Abraçaço para a galera
(foto: Tita Strapazzon)
As
fantásticas “Reconvexo” (imortalizada na voz da irmã Maria Bethânia), com sua poesia forte e altamente pessoal, e a picante
“Você não entende nada” aplacaram de vez o coração de fãs
como eu. Esta última, de tão querida que é na versão do disco
“Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo”, chegou a ser cantada pela
plateia no momento do refrão com os versos de “Cotidiano”, de
Chico, que se intermeia com a de Caetano naquela apresentação de
1972. No palco, Caetano cantava: “Eu quero que você venha
comigo”, e o público replicava: “Todo dia, todo dia”.
Demais.
No
bis, um erro e um acerto. Acerto por que ele abriu com nada mais,
nada menos que “Nine Out of Ten”, outra clássica do "Transa".
O erro? Pegar uma música em inglês, que não são todos que
acompanham, justo para essa volta ao palco, o que esfriou um
pouquinho a animação da saída em alto estilo com “Eu quero...”.
Mas nada demais para um repertório tão lindo e tão significativo,
biográfico em muitos dos casos, pois a música de Caetano conta a
história de muitos momentos da vida de várias gerações. É por se
identificar com isso que digo ser seu show mais do que uma mera
apresentação. Ouvir Caetano, e assim tão proximamente, é um
encontro comigo mesmo através do milagre dos sons. Foi assim em
1992, e agora novamente em 2014. Ali naquele palco, naquela
objetividade e clareza rocker que permeia a proposta desse
show, estavam muito mais do que somente ele e a banda. Estavam vivos
a Rádio Nacional, a herança ibérica, a influência árabe no
Ocidente, o sincretismo, o jazz, a filosofia, a contracultura, o
barroco, o morro. A bossa nova. Tudo numa total harmonia e simbiose –
algo que reflete minha forma de enxergar o mundo.
Depois
de tudo isso, bastava acabar com um número gostoso e pegajoso nos
ouvidos. Foi o que fez Caê ao finalizar o show com “Luz de Tieta”
(e nem aí ele diz SOMENTE isso, pois que tal música recupera Jorge
Amado e o “lirismo documental” de sua geração: Caymmi, Verger,
Caribé...). Show daqueles que se sai com a sensação de terem
valido cada centavo, com Caetano mostrando porque, aos 72 anos,
consegue ser um dos artistas mais inquietos da música mundial. Mesmo
que muito tupiniquim nem ouse admitir isso.
Fui ao brechó solidário em prol de animais abandonados no atelier da artista plástica Vanice Cougo, na Cidade Baixa, a convite de minha tia e parceirona Isaura Reis e da adorável amiga Francine Kras Borges, envolvida na causa. Sabendo de antemão que haveria pouca roupa masculina, interessei-me por saber que estaria à venda, entre outras coisas, CD’s. Para minha boa surpresa, além de alguns CD’s – como o ótimo “05:22:09:12 Off”, do Front 242, que peguei pra mim –, tinha também vinis. Poucos mas bons! O suficiente para vir para casa com uma pilhazinha de bolachões. São velhos conhecidos, mas as aquisições são novas. Eis:
Ambitious Lovers, "Lust"
“Lust”, The Ambitious Lovers (1990) – O segundo e último trabalho da dupla Peter Scherer e do múltiplo “americano-pernambucano” Arto Lindsay. Assim como o primeiro, “Greed” (1988), segue no estilo sofisticado da banda, que foi uma das precursoras fora do país a unir MPB a um som moderno e tecnológico. Destaque para a faixa-título, a linda “Villain”, parceria com Caetano Veloso (com direito a participação dele e de Naná Vascocelos!), e para a versão eletrificada de “Umbabarauma”, de Jorge Ben. Disco bem legal.
"Midnight Express, soundtrack
“Midnight Express Soundtrack”, Giorgio Moroder (1978) - A marcante trilha sonora de um dos melhores trabalhos de Alan Parker. A música desenha a atmosfera de melancolia, solidão e mistério do filme. De tão forte que é, impossível não associar cenas ao tema musical, como a histórica sequência final. Além desta, cenas como da perseguição pelas ruas de Istambul ou a do acesso de fúria do personagem principal na cadeia são fortemente pontuadas pela música de Moroder.
Caetano, "Totalmente Demais"
“Totalmente Demais”, Caetano Veloso (1986) – Pode-se dizer o precursor do modelo “Acústico MTV”. Este bom disco de Caetano, só na voz e violão, traz, como sempre quando se trata do artista, obras-primas. Já inicia com a então inédita na voz dele “Vaca Profana”, um clássico. Ainda tem pérolas como “O Quereres”, “Oba-lá-lá/Bim Bom” e a linda versão de “Todo Amor que Houver nesta Vida”, de Cazuza, cujo aval de Caetano ao então malvisto rock brasileiro àquela época foi marcante.
Sisters of Mercy, "Floodland"
“Floodland”, The Sisters of Mercy (1988) – Segundo dos únicos três álbuns de estúdio desta boa banda gothic-punk britânica. O disco é irregular, porém traz as boas “Lucretia my Reflection”, com baixo matador, “Flood II” e a soturna “Never Land”. Curiosamente, este é o LP que motivou o início de outra boa banda inglesa da época: o The Mission, uma vez que os então integrantes , Wayne Hussey e Craig Adams saíram do Sisters nesta época para formá-la.
Deee-Lite, "Infinity Within"
“Infinity Within”, Deee-Lite (1992) – Depois do ótimo “World Clique” (1990), puxado pelo hit “Groove is in the Heart”, este segundo trabalho do cosmopolita trio (a americana Lady Kier, o DJ russo Dimitri e o telentosíssimo japonês Towa Tei) não repete com tanto sucesso o trabalho de estreia. No entanto, valem bastante “Runaway”, “I.F.O.”, “Electric Shock” e as interessantes participações das bandas Arrested Development e Disposable Heroes of Hiphoprisy.
Enfim, uma tarde de boa ação e boas compras.