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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Joy Division - "Closer" (1980)

Diálogo Entre Mim e Eu Mesmo Sobre Como Re-Descobri o Joy Division


“Cansados por dentro, agora nossos corações perdidos para sempre/
Não podemos nos recompor do medo ou da ânsia da perseguição/
Estes rituais nos mostraram a porta para nossas caminhadas sem rumo/
Aberta e fechada, e então batida na nossa cara/
Onde estiveram? Onde estiveram?...”
Ian Curtis,
da letra de “Decades”

- Dã, tu que sempre gostou de Joy Division, desde que os descobriu num programa do saudoso Clube do Ouvinte, da Ipanema FM, no início dos anos 90, já percebeu que eles são superinfluentes num monte de coisa?

- Que eles inspiraram o próprio New Order, embora o som seja majoritariamente diferente (um, deprê; o outro, “pra cima”), disso todo mundo sabe. E que tiveram também um papel importante na formação do pós-punk, ao lado do Public Image Ltd.Gang of Four e Pop Group, e do gothic punk, junto com The CureEcho and the BunnymenSiouxsie and the Banshees e outros. Mas tem mais alguma coisa que eu não saiba?

- Tem, tem mais coisa aí, sim. Andei percebendo isso reouvindo-os como sempre fiz desde que os conheci junto contigo, mas, sei lá porque, agora que me dei conta de uma série de outras percepções que nunca tinha atinado. A gente sabe que eles são muito mais do que um grupo do hit clássico “Love Will Tear Us Apart” ou aquela banda pré-história do New Order do vocalista que se matou. Mas afora isso tudo e o que tu citaste, noto hoje mais claramente que o Joy abriu as portas para uma série de influências que seriam sentidas dos anos 80 adiante na música pop em geral.

- Tipo o quê?

- Vejamos o “Closer”, de 1980. Embora minha admiração pelo "Unknown Pleasures" (e a idolatria que o mesmo tem mundo afora), é no segundo e último disco que o Joy Division cristaliza essa confluência de referências. Comecemos pelo exemplo da faixa inicial, “Atrocity Exhibitions”. Numa expressão: rock industrial.

- Quê? Tu... quer dizer, eu... enfim: estás louco? Rock industrial é pesado, sujo, ruidoso, cheio de efeitos eletrônicos. Rock industrial é Ministry, Pigface, Foetus, Alien Sex Fiend, essas coisas!

- E tu já prestou atenção em como é “Atrocity Exhibitions” de fato? Por acaso ela não é, justamente, pesada, suja, ruidosa e cheia de efeitos? Mais do que isso, veja a estrutura dela. Comparando com Ministry, banda exemplo máximo de rock industrial: a linha de bateria é intricada, quase específica dentro da harmonia. Em “Atrocity...”, a combinação caixa-tom tom-bumbo parece separada do chipô que, por sua vez, é separada dos toques no tarol, como se fossem três ilhas de percussão distintas. Fora que, além de não usar pratos, por uma questão de conceito harmônico, a percussão é toda sequencial, podendo tranquilamente se passar por uma programação de ritmo eletrônica combinada com bateria. Não é totalmente as melodias do Martin Atkins pro Ministry, Pigface ou PIL?

- É, neste sentido, tens razão.

- E o riff: muito rock industrial. Linha de baixo pesada em constante levada e guitarra distorcidíssima e corrosiva dando corpo, criando um clima caótico de era pós-industrial. A sacada do Joy, que ainda não tinha todo o aparato eletrônico que o mundo pop iria democratizar poucos anos à frente, foi criar um efeito de sequenciador na própria guitarra. A distorção, de uma clareza sonora incomum para as gravações da época (que não conseguiam dá-la por limitações de estúdio, fora num Hansa ou Abbey Road), parece, propositadamente, sair de uma motosserra ou de uma britadeira. Sobrepõe-se ao restante na medida certa, mas sem abafar os outros sons.

- É verdade!... Muito rock industrial isso, né? Lembra a estrutura melódica do Ministry em, por exemplo, “Breathe” e “Faith Collapsing”, até pelo ritmo meio tribal, pra citar apenas duas. Neste sentido, põe “no chinelo” o Pere Übu, que, embora eu goste, é o que chamam de início desse estilo. Que nada!

- E fora o vocal sempre espetacular do Ian Curtis, naquele timbre grave que transmite seriedade e melancolia, além de ser uma voz que não se consegue precisar a idade. Pode ter 24, como ele tinha, ou 70 anos. É bonita e perturbadora ao mesmo tempo.

- Bá, sempre achei o máximo o vocal do Ian.

- Pois então avancemos em nossa análise. “Isolation” não tem nem o que dizer: é MUITO New Order. E, mais do que isso, o pop dançável que tomaria as pistas anos 80 e adiante. The Cure, que é The Cure, só foi descobrir essa fórmula (riff no baixo, teclados cumprindo a função melódica da guitarra e bateria um misto de acústico e eletrônico) três anos depois, com “The Walk”. O Depeche Mode ainda engatinhava em direção à sua sonoridade própria quando o Joy lançou “Closer”.

- Ah, aí eu concordo contigo. Essa é a música que “inventou” o New Order.

- É, aí tu te enganas, mr. Daniel. Não exatamente.

- Ué? Por quê?

- Mais do que “Isolation”, “Heart and Soul”. Esta, sim, menos lembrada, carrega todos os predicados da linha que o New Order escolheria para seguir depois da morte do Ian. É só prestar atenção: primeiro, bateria/programação que reelabora a ritmação da disco, o que viria a dar depois em toda a cena tecno-house de Erasure, Tecnotronic, OMD da vida. É o mesmíssimo estilo de bateria que o PIL criou, principalmente no "Metal Box", de 1980 (“Swan Lake”, “Bad Baby”) e “This Is What You Want... This Is What You Get”, de 1984 (“This Is Not a Love Song”, “Bad Life”). Depois, o baixo marcado, constante, dub, a la Jah Wobble, remetendo a uma sonoridade eletrônica. David Bowie e Brian Eno já haviam feito isso em “Breaking Glass”, do "Low", de três anos antes – afinal, Bowie é quase sempre pioneiro no que se refere a pop-rock. Mas o Joy reelaborou e deu a forma definitiva daquilo que o próprio New Order assumiria. Basta ver os teclados e sintetizadores, que têm papel essencial na melodia e no arranjo. Mas o principal desta música: a voz do Ian. Mais leve e melodiosa que em qualquer outra que ele cantou em toda sua curta trajetória. É exatamente o estilo vocal que o Bernard Summer se sentiu à vontade em usar quando tomou os microfones – claro, tirando as gravações do defasado “Movement” – que é, parafraseando, um “movement ago”! hahahaha Endenteu, “movement”, “ago”! hahahaha

- Entendi, entendi. Meio sem graça, mas tudo bem.

- Com tu é sem graça, Dã... Tá, só complementando a ideia: o “Movement” é um luto do New Order em que eles ainda não conseguiam se desprender do Joy e da figura do Ian, grande poeta e líder. Por isso, New Order mesmo vale a partir do “Power, Corruption and Lies”, de 1982. Não só o Barney Summer pegou esse estilo de cantar do Ian em “Heart and Soul”, mas de toda a geração da acid house. Os caras do Erasure e Pet Shop Boys cantam exatamente assim até hoje!

- Concordo. Mas “Passover” e “24 Hours”, darks e densas, onde ficam?

- Tem que se entender que o Joy Division tinha o seu estilo já formado desde o “Unknown...”, e a banda, por mais que tenha incutido elementos e texturas eletrônicas, nunca deixou de compor suas canções nos instrumentos-base: baixo-guitarra-bateria . E se tu fores ver, eles próprios no New Order, festeiro e alegre muitas vezes, nunca abandonaram a composição à “moda antiga”, o que talvez seja o grande diferencial por eles estarem anos-luz à frente de outros grupos/artistas do eletro-punk dos anos 80, como o próprio Pet Shop Boys, o Ultravox ou o Durutti Culumn. No New Order, o Joy sempre esteve presente, às vezes até suprimindo ou relegando a segundo plano os teclados da Gilliam Gilbert, como em “Leave me Alone”, “Dream Attack” ou “Love Less”.

- Tá, mas voltando ao “Closer”, então, que mais tu me diz?

- Quanto a essas duas que citei, “Passover” é como uma continuação de “Isolation” com aquela “colagem” entre as faixas: o final de uma tem aquele som que parece estar sendo sugado, enquanto que o início da seguinte traz o mesmo som, só que invertido, dando a impressão de trazê-lo de volta, mas em outra abordagem. É isso que “Passover” é: uma “Isolation” obscura. No lugar do ritmo em tom elevado, tom menor de tristeza. Ambas as letras retratam as dificuldades psicológicas de Ian para com sua criação materna. Enquanto a letra de “Isolation” diz: “Mother I tried please believe me/ I'm doing the best that I can/ I'm ashamed of the things I've been put through/ I'm ashamed of the person I am” (“Mãe, eu tentei, por favor, acredite em mim/ Estou fazendo o melhor que posso/ Me envergonha as coisas que tenho feito/ Me envergonha a pessoa que sou”), “Passover” responde: “Is this the role that you wanted to live/ I was foolish to ask for so much/ Without the protection and infancy's guard/ It all falls apart at the first touch” (“É este o papel que você quis viver?/ Eu fui um tolo por pedir tanto/ Sem a proteção e guarda da infância/ Tudo se despedaça ao primeiro toque”). Até a batida, num compasso mais lento em “Passover”, é igual. Pode perceber. Quanto a “24 Hours”, acho das melhores da banda, com aquela intensidade que explode no refrão num ritmo punk junto da inabalavelmente tristonha voz de Ian, que não se altera da parte mais lenta para esta, mais agitada. E a linha de baixo do Peter Hook?! O que é aquilo? Inteligente, executa arpejos crescentes e decrescentes, que imprime um ar sério e contemplativo pra música. A bateria é outro ponto especial. Como no pós-punk e no industrial, não é óbvia. Aliás, o Stephen Morris dá um show à parte em todo o disco, cumprindo com precisão nas baquetas e na programação rítmica sempre que acionado, e olha que tem cifras difíceis de tocar no “Closer”!

- É verdade. “Colony” é um espetáculo a bateria.

- Pois ia falar justamente desta. Classifico-a como um “blues hermético”. É outra muito rock industrial, estilo que, por sua vez, como fica claro em “Heart and Soul”, é filho do pós-punk. Enquanto no “Unknown...” a veia punk desses ex-Warshaw ainda estava latente (basta ver “Interzone” e “Disorder”, punk-rocks secos), no “Closer” Ian & Cia aperfeiçoam isso. A bateria é sequencial e quebrada, como uma "Tomorrow Never Knows" em tempos fin de siècle, a guitarra solta urros como de “um vento cruel que uiva em nossa demência” e o baixo encaixa-se na batida, formando um ritmo marcial-militar, dando a ideia de prisão de uma opressora colônia para doentes mentais (ou seria a sociedade moderna que ele estava falando?). Nesse mesmo compasso rítmico, “A Means To an End” é outra brilhante do disco.

- E, novamente, uma letra e performance incríveis do Ian Curtis. É fantástico quando ele sai do seu tom contidamente tenso pra esbravejar, desiludido: “I put my trust in you” (“Eu depositei minhas esperanças em você”). Demais.

- Pois é. Agora, pensando pela lógica que expus desde o início, tanto “The Eternal” quanto “Decades” são bem a ponte entre o dark do Joy e o avanço técnico e melódico trazido pelo New Order e sua geração tempo depois. O compasso de “The Eternal” vem de uma bateria eletrônica, que lhe dá um clima de funeral, semelhante a de um coração deprimido que pulsa com sofreguidão. Os sintetizadores, também, mais parecem camadas de neblina cobrindo um cemitério. Elementos “artificiais” para um efeito orgânico. E é muito legal ainda a voz quase desfalecida de Ian, que a canta com profundo sentimento. Aí vem o final do disco com “Decades”!

- Esta é das melhores. “Decades” parece-me ser uma paixão especial por parte dos fãs de Joy Division.

- Concordo. Seguindo a linha de raciocínio, como “The Eternal”, em “Decades” a banda avança na ideia de sofisticar sua sonoridade. Ao invés da secura sem maiores efeitos de mesa de uma “New Down Fades” (também excelente, deixe-se registrado), que também fecha um dos lados de "Unknown..." e tem clima igualmente sombrio e construção melódica que cresce para um final épico e carregado, o riff de “Decades” já sai do próprio teclado. Nela, se adensa a atmosfera litúrgica sentida na faixa anterior, principalmente pelo som de órgão de Igreja. A letra, belíssima, não pode ser mais poética e decadentista.

- Total desesperança desse cara, né? Tava na cara que o suicídio dele se anunciava, e foi acontecer justamente dois meses antes do disco ser lançado, o que o tornou ironicamente póstumo. Mas tu me responde uma coisa: o que um ser em sã consciência faria assistindo “Stroszek”, do Werner Herzog, e ouvindo o "The Idiot" do Iggy Pop, ao mesmo tempo? Ambas as obras excelentes, mas, juntas, é piração total, um coquetel molotov pra um suicida!

- É verdade. Além de toda essa lenda em torno da morte do Ian, aumenta ainda mais a carga mitológica do “Closer” o fato de ter sido gravado sob uma abóbada de estuque especialmente construída esse fim de modo a captar a ressonância de uma capela. Era o Ian já preparando seu jazigo.

- Não sabia disso. Mas é fato que a peculiaridade de não ter indicação dos lados, seja no selo, seja no encarte, gera, conceitualmente, uma relação ao mesmo tempo aleatória e concisa entre as faixas, pois todas “dizem a mesma coisa”.

- Ah, mas mais do que isso, a arte da capa (assinada por Peter Saville), com aquela foto pictórica ritualística, mostra a foto de uma lápide tirada no Cemitério Staglieno, em Gênova, foi concebida antes da morte de Ian Curtis. Sabia disso? Uma infeliz coincidência?

- Sabe-se lá, né? De repente, o cara já tava intuindo, queria deixar seu “testamento musical”, como dizem que Coltrane fez em “A Love Supreme” ou Kurt Cobain teria dado a entender ao tocar a debochada e tristemente autosugestiva “Where Did You Sleep Last Night?” (“Onde Você Dormiu a Noite Passada”), com todas aquelas velas fúnebres no palco, como último número do "MTV Unplugged in New York", canto-do-cisne do Nirvana. Enfim: mitos que se criam em torno de um disco clássico como “Closer”.

- Pois é... pós-punk, gothic-punk, rock industrial, acid house, tecno, dub... puxa, são muitas referências que partiram deles!

- É, Dã: clássicos são reveladores a cada audição até mesmo para fãs de Joy Division como nós, que nunca deixaram seus discos esquecidos na prateleira. É o caso do “Closer”, que escutamos e reescutamos seguidamente. Mas grandes artistas têm disso, né: nos surpreendem mesmo depois de acharmos que os conhecemos bem. Eu pelo menos me surpreendi, e tu, Daniel?

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FAIXAS:
1. "Atrocity Exhibition" - 6:06
2. "Isolation" - 2:53
3. "Passover" - 4:46
4. "Colony" - 3:55
5. "A Means to an End" - 4:07
6. "Heart and Soul" - 5:51
7. "Twenty Four Hours" - 4:26
8. "The Eternal" - 6:07
9. "Decades" - 6:10


vídeo de "Decades" - Joy Divsion


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OUÇA:




sábado, 9 de março de 2024

“Dias Perfeitos” , de Wim Wenders (2023)



INDICADO A
MELHOR FILME INTERNACIONAL


Teria muito para falar de Wim Wenders, de qualquer filme de sua extensa filmografia, de sua carreira, do namoro de seus filmes com a filosofia, das diversas fases e projetos diferentes, das obras-primas. Mas o que talvez dê mais prazer e uma alegria até ingênua é falar sobre a realização de um filme japonês de Wim Wenders. “Dias Perfeitos” é, acima de tudo, uma dessas delícias que cinéfilos admiram: um filme de um cineasta de um país realizado noutro e com total propriedade. Porque, sim, “Dias Perfeitos” é um filme japonês, produzido com verba japonesa, falado em japonês, com atores japoneses e cheio de referências ao cinema japonês. E um baita de um filme.

“Dias Perfeitos” acompanha com extrema delicadeza a história de Hirayama (Koji Yakusho, lindo e atorzaço), um homem de meia idade reflexivo que vive de forma modesta como zelador e limpando banheiros em Tóquio. Sua rotina é revelada ao espectador através da música que ouve, dos livros que lê e da apreciação das árvores, suas três paixões. À medida que os dias Hirayama avançam, encontros inesperados começam a surgir e passam a revelar um passado escondido, que jogam luz sobre os porquês da solidão, da fuga e da busca de sentido na vida moderna.

Wenders assumidamente faz uma homenagem e referencia seus mestres do Oriente: Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e, principalmente, Yasujiro Ozu, sua grande paixão talvez apenas equiparável a Michelangelo Antonioni. É do Ozu de “A Rotina Tem seu Encanto” e “Era uma Vez em Tóquio”, cineasta já perscrutado por Wenders no documentário poético “Tokyo-Ga”, de 1985, que ele extrai o senso contemplativo de “Dias...”. Seja na extensão sem pressa do transcorrer das cenas, seja na posição baixa da câmera em determinadas tomadas, quase ao chão, seja na apreciação natural da ação, aproveitando o som direto e sem “interferência” de trilha sonora.

Tomada quase no chão ao estilo Ozu

Por falar em música, aliás, são elas que ajudam a conduzir o filme. Ou melhor: pontuá-lo. A bela seleção de K7s do personagem, a qual ele ouve no carro pelas ruas e avenidas de Tóquio (Otis Redding, Lou Reed, Nina Simone, Patti Smith, só coisa boa) geralmente indo ou voltando do trabalho, demarcam não apenas a busca dele por “dias perfeitos” como, igualmente, o conduzem a praticamente encontrá-los ao final. Como uma trilha que acompanha momentos da vida e traduz emoções. 

Como em “Paris, Texas”, “O Estado das Coisas” e “Além das Nuvens“, Wenders dá ao “decurso do tempo” (para usar outro título de filme seu) a forma e a estética, que se fundem. Mais uma vez captando com muita pertinência o espírito da terra em que se apropriou, o cineasta atribui aos silêncios (o “ma” da cultura oriental) uma função primordial para transmitir sentimentos de culpa, sofrimento, medo, frustração, angústia e, porque não, também de alegria. Em compensação, os diálogos são extremamente bem aproveitados, precisos como um golpe samurai. Vários são realmente tocantes, como o breve reencontro com a irmã abastada e de vida triste, que vai à sua humilde casa resgatar a filha, fugida de casa e de sua realidade para ter alguns dias de harmonia com o tio que tanto gosta.

Hirayama com a sobrinha: momentos
de contemplação e harmonia
A dialética entre o arcaico e o moderno é, contudo, o centro da trama. Isso faz remeter, mais profundamente analisando, a uma forma de se colocar no mundo. O anacronismo do tipo de música e a mídia que Hirayama tanto apreciava é um símbolo de algo em extinção, mas capaz de gerar uma genuína conexão do ser humano com a arte, embora isso não faça mais tanto sentido num mundo cada vez mais digitalizado e fragmentado. A busca por si próprio no isolamento e na circunspecção faz lembrar filmes em que este foi o refúgio existencial de personagens na procura pelo sentido da vida, casos de “Nascido e Criado”, de Pablo Trapero, “O Turista Acidental”, de Lawrence Kasdan, e o próprio “Paris, Texas”. Porém, assim como nestes exemplo, “Dias...”, em suas propositais repetições de cenas e na progressão emocional do protagonista ao longo da história, vota numa solução humana para as dificuldades. Perfeição não existe.

Embora torça para isso, dificilmente Wenders levará o Oscar de Filme Internacional. Sem o gigante “Anatomia de uma Queda” na disputa, uma vez que a produção francesa ganhadora da Palma de Ouro em Cannes concorre somente ao de Melhor Filme ao lado de favoritos como “Oppenheimer” e “Vidas Passadas”, o caminho para o elogiado longa alemão (mas um tanto superestimado) “A Zona de Interesse” vencer está facilitado. Porém, só o fato de ver no páreo um “Junger Deutscher” como Wenders, um verdadeiro esteta e revolucionário do cinema moderno, é quase que um prêmio adiantado a ele e a toda uma geração. Herzog, Schlöndorff, Fassbinder, Von Trotta, Kluge: estão todos representados com esta indicação. E não só eles, mas também, no caso, Ozu, Kurosawa, Mizogushi, Imamura, Oshima. Porém, talvez nem Wenders dê tanta importância a uma conquista como esta. Afinal, mesmo com o reconhecimento a uma obra de meio século como a dele, a Academia está longe de ser perfeita. Assim como os dias.

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trailer de "Dias Perfeitos", de Wim Wenders



Daniel Rodrigues


terça-feira, 22 de abril de 2014

João Bosco - "Galos de Briga" (1976)




Não é o sucesso, é o contrário: é o sufoco mesmo,
é a vontade de cantar e de falar.
Só que de repente isso não foi possível de acontecer a nível popular,
porque a cada dia as pessoas têm mais medo, não têm defesa,
cada vez sabem menos o que está acontecendo.
Aí você vem e começa a cantar umas coisas
que elas gostariam de dizer e cantar.
A razão do sucesso, então, não é bem ele mesmo.
Talvez a razão dele seja o fracasso de todo mundo.”
João Bosco,
em entrevista de 1976
sobre o disco “Galos de Briga”



Este mês de abril de 2014 não ficará marcado apenas pelas vésperas de Copa do Mundo no Brasil (quando se espera dos cidadãos, sem querer pedir muito, civilidade) ou pelas celebrações de 222 anos pela memória do “patrono cívico” brasileiro, Tiradentes, mas, também, por outra data de importância patriótica menos feliz, porém necessariamente rememorável: os 50 anos do começo da Ditadura Militar, em 1º de abril de 1964. Diante de tantas manifestações contra a realização da Copa, de mais um feriado que não se acessa o verdadeiro motivo da paralisação nacional e de tantas controvérsias em razão dos arquivos ainda velados dos porões da ditadura, o que seria capaz de unir de alguma forma futebol, liberdade civil e política, representando essas três datas distantes cronologicamente, mas próximas em simbologia?

Um disco que une esses três polos como nenhum outro é “Galos de Briga”, terceiro da carreira de João Bosco. Gravado em 1976 pela RCA Victor, este sucesso de público e crítica à época é fruto, curiosamente, de um momento de alta ebulição no Brasil: enquanto Geisel iniciava seu governo anunciando uma “abertura lenta e gradual”, o AI-5 inda vigorava e barbaridades aos direitos humanos ainda ocorriam em todos os cantos do País. A Lei Falcão punha uma mordaça na oposição política; a estilista e mãe de guerrilheiro Zuzu Angel, pedra no sapato dos militares, morria num ainda inexplicado acidente de carro no mesmo fatídico abril; meses antes, o jornalista Vladmir Herzog era assassinado dentro do DOI-CODI. Torturas tomavam os porões do DOPS e pessoas desapareciam sem praticamente ninguém saber. Porém, a resistência se mostrava forte: o rabino Henry Sobel e Dom Evaristo Arns comandam a missa ecumênica em nome de Vlado na Praça da Sé, reunindo milhares de pessoas que, sob o olhar e a mira dos policiais, rezam silenciosamente; Ulysses Guimarães fundava a OPB, Ordem dos Parlamentares do Brasil, associação sem vínculos partidários, religiosos ou sociais que representava a luta pela abertura política; o PCdoB, esfacelado na Guerrilha do Araguaia, voltava a se reorganizar através das lideranças estudantis. O Brasil estava pegando fogo, e a classe artística, obviamente, ansiava por se manifestar, por resistir de alguma forma.

Eis então que, no início dos anos 70, através do meio universitário, se dá o encontro de João Bosco com Aldir Blanc. João, um mineiro que virou carioca, mas que nunca perdeu a vastidão poética de Minas Gerais dentro de si. Aldir Blanc, típico poeta maldito da Rio de Janeiro carnavalesca e vadia, do fervor pelo futebol e pela militância política. A fusão dessas duas forças artísticas foi explosiva, e eles criam com “Galos de Briga” uma obra que é tapa contundente na cara do regime em mensagens inteligentes aos milicos e aos mantenedores do sistema. Com crítica social, combatividade e um posicionamento de esquerda visível, o álbum só podia ter este título, uma vez que, como animais de rinha, eles vão para o enfrentamento com as armas que têm: os sons e a palavra.

Exímio violonista e compositor, amante de Clementina de Jesus, dos mitos da Rádio Nacional, de sambas antigos, de João Gilberto e do populacho das rádios AM, João consegue criar desde boleros emanados dos puteiros do baixo meretrício da Lapa até sambas gingados, passando por ritmos portugueses e marchas da antiga. Isso, aliado à poesia afiada de Aldir. É esse arsenal rítmico e melódico que “Galos de Briga” traz, como uma dupla de atacantes habilidosos que tiram da cartola jogadas inesperadas. O clássico samba "Incompatibilidade de Gênios" dá o pontapé inicial com seu humor ácido, já pontuando a crítica social de um país que persegue e mata seus filhos enquanto, dentro dos lares, a violência e a incompreensão reinam. A referência ao futebol, tanto como paixão do brasileiro como fuga da realidade, já aparece no primeiro verso na rusga entre marido e mulher: “Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar/ Chegou, mudou de estação, começou a cantá...” Na mesma linha, porém ainda mais aguda, “Gol Anulado” usa o futebol de forma metafórica para expressar a mesma incompatibilidade entre amor e o momento político de dureza e opressão, o que, numa sociedade ignorante, machista e inculta, desemboca na válvula de escape, o futebol. É o caso do marido que espanca a mulher por que ela mentia ser vascaína como ele, mas, na verdade, torcia pelo rival Flamengo. “Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar...” E desfecha, reforçando esse simbolismo maléfico que o entretenimento futebol desgraçadamente pode ter: “Eu aprendi que a alegria/ De quem está apaixonado/ É como a falsa euforia/ De um gol anulado”.

De igual potência crítica, “O Cavaleiro e os Moinhos”, das canções imortalizadas na voz de Elis Regina (lançadora de João e Aldir em 1972, ao gravar-lhes o hit “Bala com Bala”), inicia com um provocador ritmo de marcha militar sob os versos: “Arrebentar/ a corrente que envolve o amanhã/ Despertar as espadas/ Varrer as esfinges das encruzilhadas...”. De repente, o clima marcial se transforma numa debochada rumba! E a letra, pontuda como um bico de galo, continua atacando: “Todo esse tempo/ foi igual a dormir num navio/ sem fazer movimento/ mas tecendo o fio da água e do vento/ Eu, baderneiro/ me tornei cavaleiro/ malandramente/ pelos caminhos”. E, exaltando os diversos grupos da guerrilha armada, finaliza referenciando Cervantes: “Meu companheiro/ tá armado até os dentes/ já não há mais moinhos/ como os de antigamente”. Afinal, numa época como aquela, quem era o “louco Quixote” e quem era o “moinho”?

O suingue caribenho reaparece na gostosa “Rumbando”, assim como o bolero nas não menos deliciosas “Latin Lover” (já gravada por Simone um ano antes) e “Miss Suéter”, o antigo certame que destacava as jovens que apresentavam os bustos, digamos, mais avantajados. Aldir penetra no universo brega de forma engraçada e crônica (“Eu conheço uma assim/ Uma dessas mulheres/ Que um homem não esquece/ Ex-atriz de TV/ Hoje é escriturária do INPS/ E que, dia atrás/ Venceu lá no concurso de Miss Suéter...”) e João realiza o sonho de fazer duo com uma de suas divas, Ângela Maria, que executa uma impressionante progressão tonal no riff com sua treinada voz de contralto.

Embora ainda tenha o divertido partido-alto “Feminismo no Estácio“ e o samba-canção “Vida Noturna”, típica fossa-boemia-carioca, o negócio naquele momento era mesmo partir para a briga. Aí é que o jogo engrossa! “Transversal do Tempo”, outra eternizada por Elis (foi título de disco e espetáculo dela, em 1978), que fala sobre pobreza (“As coisas que eu sei de mim/ São pivetes da cidade/ Pedem, insistem e eu/ Me sinto pouco à vontade/ Fechada dentro de um táxi/ Numa transversal do tempo”), exílio (“As coisas que eu sei de mim/ Tentam vencer a distância/ E é como se aguardassem feridas/ Numa ambulância”) e desesperança (“Acho que o amor/ É a ausência de engarrafamento”). Pungente. Igualmente, o fado lusitano que dá título ao álbum, de poesia rebuscada e caráter combativo: “Não o rubrancor da vergonha/ mas os rubros de ataduras/ o rubro das brigas duras/ dos galos de fogo puro/ rubro gengivas de ódio/ antes das manchas do muro”. (Sim, não é coincidência que a imagem das pichações com palavras de ordem contra a ditadura venha à cabeça.)

Mas não para por aí. A raiva de toda a sociedade civil oprimida e sem voz parecia não caber em apenas poucas músicas para João e Aldir. Tinham que falar, exatamente, desta raiva, deste inconformismo. Pois então, toma!: “O Ronco da Cuíca”. Tal samba-enredo, literalmente, enredou a censura que, burra e limitada, embaralhou-se com seus versos circulares e envolventes, que a denunciavam como que dizendo: “vocês até podem parar nossa reação através das força, mas jamais serão capazes de conter nosso desejo pela liberdade”. Uma “Opinião”, de Zé Keti, revisitada. Letra e música geniais, que expande os sentidos e simbologias das palavras (como na personificação do instrumento “cuíca”, dando-lhe vida e politizando-o), uma vez que o próprio termo “fome” tanto pode significar a crítica econômico-social da falta de comida ao povo (talvez tenha sido isso que induzira os milicos ao erro) quanto, num espectro maior, a urgência da democracia.

Pra terminar, o “tiro de misericórdia” (não à toa, título do LP seguinte de João Bosco, de 1977): “O Rancho da Goiabada”, uma marcha-rancho aparentemente festiva mas que, como em poucas obras do cancioneiro brasileiro, denunciam algo que se falava somente nas esquinas e a boca pequena: a situação desumana dos boias-frias – trabalhadores rurais escravos apelidados assim por causa das refeições que levavam em recipientes sem isolamento térmico desde que saíam de casa, de manhã cedo, o que faz com que estas já estejam frias na hora do almoço. Os versos pintam um quadro sócio-profissional perturbador, que contrasta com o ritmo de carnaval da melodia: “Os boias-frias quando tomam umas biritas/ Espantando a tristeza/ Sonham, com bife a cavalo, batata frita/ E a sobremesa/ É goiabada cascão/ com muito queijo...”. E finaliza condenando sem meias-palavras os latifundiários criminosos em suas fantasias de homens poderosos comparando-os aos soberanos egípcios cujo tempo já passou dizendo que, bravamente, os boias-frias: “São pais de santos, paus de arara, são passistas/ São flagelados, são pingentes, balconistas/ Palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados/ Dançando, dormindo de olhos abertos/ À sombra da alegoria/ Dos faraós embalsamados”.

João e Aldir criaram um disco que é o retrato de um país em período de mudanças, as quais só se concretizaram por que artistas corajosos como eles, junto a centenas de opositores ativos – entre estes, vários desaparecidos –, ofereceram resistência, seja em armas ou em ideias. Estes são grandes responsáveis pela democracia que se vive hoje num País capaz de receber, inclusive, uma Copa do Mundo sem a sombra da vigília militar como ocorrera na Argentina em 1978. Afinal, naquele tempo, quem se opunha sabia claramente o porquê de estar fazendo. Não era por 20 centavos: era para viver num país livre.

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Certamente, foi por uma causa nobre como esta que, naquele mesmo 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio Golfinho de Ouro, conferido pelo Governo do Rio de Janeiro, pois queriam que o premiado fosse Cartola, uma vez que consideravam, sem modéstia burra, o trabalho do compositor daquele ano, o histórico LP com “As Rosas não Falam” e “O Mundo é um Moinho”, melhor do que o seu. A dupla recebeu, então, o troféu de Compositores do Ano pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco.
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FAIXAS
1 - Incompatibilidade de Gênios
2 - Gol Anulado
3 - O Cavaleiro e os Moinhos
4 - Rumbando
5 - Vida Noturna
6 - O Ronco da Cuíca
7 - Miss Suéter
8 - Latin Lover
9 - Galos de Briga
10 - Feminismo no Estácio
11 - Transversal do Tempo
12 - O Rancho da Goiabada
todas as músicas são de autoria de João Bosco e Aldir Blanc

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OUÇA O DISCO






segunda-feira, 10 de abril de 2023

Philip Glass – "Koyaanisqatsi - Life Out of Balance - Original Soundtrack Album from the Motion Picture" (1983)

 

Versões da capa da trilha do filme
lançadas entre 1983 e 2009
Ko.yaa.nis.qatsi (da língua Hopi), n. 1. Vida louca. 
2. Vida turbulenta. 
3. A vida se desintegrando. 
4. Vida desequilibrada. 
5. Um estado de vida que exige outra forma de viver.

"'Koyaanisqatsi' permite que você experimente a aceleração e a densidade da sociedade moderna de uma nova maneira. Ele convida você a considerar a benevolência da tecnologia e a noção de progresso no mundo em que vivemos. Um mundo fora de equilíbrio".
Philip Glass


Um dos principais pensadores sobre a relação homem/meio ambiente dos tempos atuais, o cineasta alemão Werner Herzog disse, certa vez, que o engano da humanidade reside na falta de controle desta sobre seu próprio desenvolvimento. A ciência, a tecnologia, os avanços são soltados aos borbotões, numa corrida frenética desenvolvimentista que, a rigor, ninguém sabe onde vai dar. Suspeita-se, contudo, pois a natureza vem há tempos dando seus sinais. Se a Rio 92, há pouco mais de 30 anos ensinou o mundo a adotar a linguagem antes apenas restrita meramente à "ecológica", inserindo no seu vocabulário termos como “sustentabilidade”, “ESG”, “responsabilidade socioambiental” e afins, a agenda sustentável, por outro lado, não avançou tanto assim na prática. Os resultados da COP-27, em 2022, o mais importante e o maior evento já realizado sobre o tema das mudanças climáticas, foram parcos e inconsistentes. A crescente crise de energia, as concentrações recordes de gases de efeito estufa e o aumento de eventos climáticos extremos pelo globo colocam uma interrogação sobre a sociedade: ainda há tempo de reverter este quadro?

O alarme é ainda maior quando se constata que tais indagações urgentes não são de hoje. Há 40 anos uma obra referencial já trazia, com o devido peso e teor denunciativo, a questão do desequilíbrio causado pelo homem à natureza: “Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora de Equilíbrio”. O filme do cineasta norte-americano Godfrey Reggio e produzido por Francis Ford Coppola, tornou-se rapidamente um cult movie desde seu lançamento, em 1982, prenunciando a realização de outros dois longas em formato semelhante, "Powaqqatsi - A Vida em Transformação", de 1988, e "Naqoyqatsi", de 2002, todos dirigidos por Reggio. Todos documentários experimentais forjados com imagens espetaculares sobre as consequências da mão humana sobre o Planeta e cuja trilha sonora é assinada pelo genial compositor Philip Glass. Embora a trilogia mereça total audiência, é o primeiro da série aquele que mudou parâmetros tanto do cinema quanto da música moderna. E não se está falando somente da música de vanguarda ou “erudita”, mas, sim, da música pop. Isso porque a trilha sonora de “Koyaanisqatsi”, lançada em disco um ano depois do filme, passou a servir de referência a publicidade, cinema e demais produtos sonoros e audiovisuais com que se deparam milhões de pessoas todos os dias ao acessarem seus celulares ou ligarem um aparelho de TV.

Entretanto, é a pungência da proposta de “Koyaanisqatsi”, inédita até então em formato e proposta, que a faz uma obra referencial. Meio sinfonia, meio ópera, meio vídeoarte, “Koyaanisqatsi” tem uma narrativa até simples comparado à complexidade de sua trilha sonora e de sua montagem. Os povos originários, com sua sabedoria inata e imaterial, prenunciam que o homem caminha para o próprio cadafalso. A natureza, pujante, apresenta-se em sua majestade quase intocada. Porém, integra inevitavelmente esta mesma natureza uma espécie animal que soube valer-se de artifícios biológicos e etológicos para perpetuar sua sobrevivência e passar a supostamente comandar o rumo da biosfera: um tal de homo sapiens. Este ser é capaz de, por meio de sua interferência negativa sobre a natureza e com a justificativa de progresso da própria espécie, desequilibrar todo o sistema vital. Após uma enganosa escalada desenvolvimentista, a realidade de destruição e desrespeito com a Mãe-Terra cobra o preço e os as profecias ancestrais se concretizam tragicamente.

Uma das versões de poster
do filme de Reggio
Com a ajuda do Polyrock Kurt Munkacsi na produção, Glass desembaraça esta narrativa em brilhantes 13 peças/faixas onde, absolutamente integrado com o corpo imagético do filme, não desaproveita com sua ensemble nem os ruídos de multidão e o momento de créditos finais para musicar. Tudo muito orgânico. A faixa título, um sinistro canto nativo em tom baixo, acompanhado de um órgão igualmente denso, pronuncia apenas o próprio título: “Koyaanisqatsi”. Aqui já começa a genialidade atemporal de Glass, compositor talhado na vanguarda minimalista dos Estados Unidos da geração anos 60, mas que sempre soube conciliar esta visão contemporânea à tradição musical secular. Nesta abertura, ao mesmo tempo em que se escutam aborígenes encavernados, é possível identificar traços do canto gregoriano, criado à época do cristianismo primitivo, a meados do século VII. Já “Organic” acompanha os impactantes planos aéreos de cânions e rios através de sons leves e anunciativos. “Clouds”, porém, adiciona a esta solenidade sons refletidos e longilíneos acordes de clarinete, dando maior tensão e grandiosidade à música. É a natureza em sua imponência. 

Imponência ameaçada, contudo. “Resource”, colada à anterior, quebra de vez a linha sonora e adiciona sons eletrônicos em repetições mecânicas e contínuas. O bicho-homem chegou. A paisagem das montanhas é desfigurada por explosões e máquinas pesadas, que trazem consigo o pretenso progresso. Para isso, Glass engendra sons nervosos e automáticos. O teclado vira sirenes gritantes sustentadas por intensas sessões de cordas. Não é mais a natureza que emite sons: é a consequência da mão humana, com suas máquinas implacáveis e sem alma. A pequena orquestra, fervorosa, corre para dar conta da velocidade da tecnologia simbolizada pelos teclados. Fábricas soltam seus vapores poluidores. Extensos campos são invadidos por estruturas de ferro e metal. Rios são desviados deu seu curso. Uma bomba explode em fogo sob o olhar indefeso de uma árvore...

Todas as maravilhas que o homem cria agora estão à disposição para consumo. Carros, aviões, estradas, arranha-céus. A fantástica “Vessels” aprofunda o conceito denunciativo de “Resource” ao manter a base minimalista, mas adicionando-lhes poderosas vozes. E não mais as vozes dos povos originários do início da obra, mas corais bem mais clássicos, com tons agudos e variações de escala expressando autodevoção e fascínio. É o ser humano, crendo-se Deus e apaixonado pela própria inteligência. E não há mais freio a tamanha adulação: quer-se cada vez mais e mais apressadamente. Dentro da mesma faixa, Glass promove outra quebra brusca de ritmo e passa a empregar uma conjugação do órgão, flautas e as mesmas vozes deslumbradas em células sonoras repetidas em cinco tempos para representar o frenesi do trânsito de automóveis, símbolo da indústria capitalista. Só que o compasso se torna ainda mais frenético, começando a sair do apreensível, justo quando imagens de equipamentos bélicos são mostradas. Nenhuma coincidência.

“Pruitt Igoe” ensaia um adagio que tenta reduzir tanta impulsividade. Porém, já é impossível. A própria música, à medida que avança, vai ganhando corpo e novas formas de tensão, principalmente quando se veem as assombrosas imagens de prédios de arrabalde inteiros sendo implodidos para dar lugar ao mentiroso circo do capital. A confusão da percepção de tempo é trazida com alta sensibilidade em “SloMo People”, onde pessoas ora parecem formigas numa multidão movida em altíssima velocidade, ora estão num igualmente artificial slow-motion, como o título bem sugere. De propósito, elas nunca são enquadradas tal como a realidade é. Sutilmente, Glass impõe um compasso de dois tempos, os quais simbolizam o passo de um caminhar. Passos lentos, aliás, supondo que algo está claramente descompassado. 

O compositor mantém a estrutura dual para iniciar aquele que é o mais chocante tema de “Koyaanisquatsi”: “The Grid”. Agora, perde-se de vez o controle do destino. Usando sua assinatura sônica, os sistemas de ostinatos rítmicos (motivos ou frases musicais sempre repetidos). tal como em "Rubric", das "Glassworks", de um ano antes, Glass põe agora, inversamente ao que fez antes, as flautas e piccolos sobre uma base de sintetizador grave e num ritmo convulsivo. Enquanto isso, na tela, são expostos vídeos super acelerados de carros, fábricas, supermercados, filas, telas. Movimentos tão velozes que formam traços de luzes incompreensíveis ao olho do espectador. São minutos de imagens carregadas, labirínticas, mostrando a loucura da vida cotidiana de uma metrópole. A música, por sua vez, soa vertiginosa e espiral. As vozes reaparecem com as mesmas frases e variações delas para intensificar e ratificar a lógica narrativa. Sufocante, mas genial.

cena do filme com a trilha de "The Grid": a corrida maluca da vida moderna

A breve “Microchip” (em que inteligentemente Reggio traça um comparativo de imagens de satélite das cidades com as de estruturas destas minúsculas peças de silício, as quais compõem a “alma” dos artefatos digitais) funciona como um movimento larghetto, que reequilibra o andamento. Afinal, impossível andar mais rápido do que aquilo. Este breve “knee”, no entanto, é a deixa para que Glass volte àquilo que motivou toda a obra desde o começo: a tal profecia. Criador e criatura, é o homem que tem o bônus e o ônus dos próprios atos. Assim, a música se torna um andante, porém a construção melódica começa a parecer errática. As repetições, antes simétricas, independentemente se num compasso moderado ou ligeiro, agora se tornam quebradas, inconclusas. Como uma máquina que apresentou defeito e passa a funcionar mal. Forma-se uma sucessão de sons em que as repetições denotam a prisão a que o homem se colocou: não é mais possível sair daquele círculo, que vai e volta, sem se resolver. As vozes, então, passam a conviver e a se confundirem: o coral se aproxima agora do cantochão gregoriano e o canto ancestral retraz, convicto, aquilo que já avisava: “Koyaanisquatsi”.

A cena final, um extenso plano sequência de um acidente com um ônibus espacial, profetiza, através de sua crítica ao desenvolvimento a qualquer custo, o famoso acidente com a Challenger em 1986, quando, 73 segundos após o seu lançamento, a espaçonave explodiu em pleno ar, matando todos os sete astronautas tripulantes. Para este derradeiro ato, Glass emudece todos os outros instrumentos e opta por manter apenas o órgão, que agora não tem mais caráter tecnológico, mas sim litúrgico, como uma missa fúnebre. O morto? Claro, o próprio homem. 

Assim como Herzog, o paleontólogo e biólogo evolucionário britânico Henry Gee, editor sênior da revista científica Nature, tem uma visão nada alentadora do que pode acontecer com o planeta. Aliás, no caso de Gee, ainda mais pessimista. Segundo ele, se a humanidade seguir a tendência atual, a espécie humana corre sérios riscos de entrar em extinção ou, pelo menos, ser reduzida a um número bem restrito de indivíduos. A se ver pelo atraso em se tomar medidas efetivas, o prognóstico não pode ser diferente. Isso fica escancarado quando se vê que, quatro décadas atrás, Reggio e Glass já se uniam para lançar este manifesto fílmico-sonoro em que a simbiose entre imagem e música simboliza justamente a necessidade de integração homem-natureza. Um não pode viver sem o outro. Se hoje a ideia de motivos sônicos desta trilha são largamente imitados para inumeráveis produtos audiovisuais, de comerciais de televisão a jogos de videogame, de posts em redes sociais a outras trilhas para cinema, a mensagem ecológica que a obra traz bem que poderia ser copiada também. Visionário, o filme previa com assombrosa clareza uma série de questões hoje em pauta na sociedade moderna. E embora em seu decorrer sejam cantados outros versos (principalmente, no último movimento), “Koyaanisqatsi” se resume basicamente a este termo exótico, mas que traduz o mais óbvio e essencial alerta: se não houver uma radical mudança de comportamento planetária, este “mundo em desequilíbrio” está com dias contados. E o homem também.

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FAIXAS:
1. “Koyaanisqatsi” - 3:27
2. “Organic” - 4:57
3. “Clouds” - 4:38
4. “Resource” - 6:36
5. “Vessels” - 8:13
6. “Pruitt Igoe” - 7:51
7. “Pruitt Igoe Coda” - 1:17
8. “Slo Mo People” - 3:20
9. “The Grid – Introduction” - 3:24
10. “The Grid” - 18:06
11. “Microchip” - 1:47
12. “Prophecies” - 10:34
13. “Translations & Credits” 2:11
Todas as composições de autoria de Philip Glass

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues