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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

“Joseph Beuys: Res-pública: Conclamação para uma Alternativa Global” – Museu de Arte Contemporânea – Niterói/RJ









foto: Leocádia Costa
“Não tenho nada a ver com a política: conheço somente a arte”
Joseph Beuys



texto e fotos Leocádia Costa

Joseph Beuys apareceu na minha biografia por quatro vezes num período de 20 anos, e somente agora posso dizer que começo a compreender esse notável cidadão contemporâneo.

Em 1993, o artista plástico Cláudio Ely, nosso Professor de Cerâmica no Atelier Livre da Prefeitura, apareceu animado comentando sobre um ativista cultural alemão numa das nossas discussões sobre política e Arte. Perguntei curiosa qual forma de expressão ele utilizava em sua Arte que tanto lhe impressionava e a resposta foi: “vassouras”. Ele se referia às perfomances realizadas nas ruas por Beuys, aos cartazes fotográficos dessas ações e a própria vassoura que servia de objeto-arte em instalações.  

Em 2009, numa das aulas de História da Arte Contemporânea com a Profª Dra. Glaucis de Moraes, na Feevale, me deparo com o Joseph Beuys novamente, conhecendo aí o registro crítico e totalmente provocativo: “I Like America and a America Likes Me”, onde por três dias ele convive com um coiote selvagem, chegando e saindo de Nova York sem tocar o solo americano com os pés.

Já em 2010, reencontro com Beuys no Santander Cultural Porto Alegre, quando seus trabalhos estão junto a de outros artistas da Mostra Horizonte Expandido, com curadoria dos artistas e pesquisadores André Severo e Maria Helena Bernardes. Esta mostra reuniu 72 obras de 16 artistas que influenciaram radicalmente o nascimento da cena artística contemporânea, e trouxe Beuys para meu círculo de artistas prediletos.

"Capri-Betterie"
foto: Leocádia Costa
Agora em 2013, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói – MAC tive a oportunidade de visitar por algumas horas a exposição “Res-Pública: conclamação para uma alternativa global” com mais de 100 obras coletadas de todas as fases de sua vida. Durante essa mostra individual, que realmente atingiu seu objetivo de perpassar todos os suportes, pude acessar uma impressão mais pessoal sobre sua produção que é, sem dúvida, um legado para às Artes e futuras gerações.

Da mostra destaco os trabalhos: o objeto: “Capri-Batterie”, de 1985; os cartazes “Não conseguiremos sem a rosa”, de 1972, e “Superem finalmente a ditadura dos partidos”, de 1971; o objeto “Encosto para uma pessoa bem esguia do século 20”, de 1972, parte da exposição Arte multiplicada 1965-1980, coleção Ulbricht; o múltiplo “Levantamento das Nádegas”, da exposição “Múltiplos, livros e catálogos da Coleção Sr. Speck”, de 1974, além de uma infinidade de materiais expostos em vitrines que respeitaram a estética alemã original de Beuys. Dentro de cada obra e à medida em que me deslocava pelo ambiente expositivo, avistava frestas do cidadão consciente da sua responsabilidade com o outro.
"Encosto para uma pessoa
bem eguia do século XX"
foto: Leocádia Costa

Beuys é um pensador-artista que deixou mensagens extremamente atuais depois de 27 anos de sua morte sobre meio-ambiente, utilizando com excelência os meios disponíveis da comunicação (cartazes, jornais, rádios e televisões), da política (manifestos, partidos, protestos, grupos de discussão) e das Artes (esculturas, instalações, desenhos, objetos, aquarelas e fotografia) como forma direta de expressão. Sua percepção político-social-sustentável de uma sociedade mais comprometida com o indivíduo e seu lugar dentro desse organismo vivo é um legado a futuras gerações. Envolvido com a democracia direta Beuys consegue interligar política e Arte ressaltando, assim, a importância do Artista no contexto social de qualquer comunidade organizada, fazendo o indivíduo tomar para si o compromisso social através da Arte. 
"Levantamento de Nádegas"

foto:Leocádia Costa


A Escultura Social de Beuys explicada por ele muitas vezes em canais de comunicação inicia-se na ideia de que o ato artístico está baseado na capacidade humana de pensar, refletir e na condição criativa nata do indivíduo. Para ele, a sociedade pode e deve se transformar, através da Arte, porque, segundo ele, “todo o ser humano é artista”. Seguindo o seu pensamento (que encontra eco/resposta em outros movimentos artístico-filosóficos, tais como na Arte-educação), de que todo o indivíduo é artista, não deveriam existir privilégios e, sim, democracia, igualdade e responsabilidade pessoal. 


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fotos Leocádia Costa 


Sempre notei nos filmes de Luís Buñuel, principalmente os da segunda fase francesa (“A Via Láctea”, “O Fantasma da Liberdade”, “O Discreto Charme da Burguesia”) um aspecto imanente que só é possível devido à sua força conceitual. Seus filmes pareciam, estranhamente, filmes de filmes. Dão-lhe a estranha sensação de que, aquilo que está na tela, não é exatamente aquilo, embora o olho insista em enxergar o que não deve ser. Este resultado, produto de uma ação tão profunda quanto interna do filme-obra, aparentemente, não é motivado por nada em específico que aja tão diretamente para que isso ocorra. Mas a sensação está ali. Na verdade, Buñuel conseguia extrair isso da câmera por conta de toda uma atmosfera linguística e linha filosófica que, principalmente nesta fase (sua última), já burilada em linguagem e estética, se evidencia misteriosamente mesmo para um olhar treinado em Cult movies europeus.

Garrafas e pote funcionando como
objetos de arte
foto: Leocádia Costa
Pois que, ao visitar o MAC-Niterói, deparei-me com a obra de um artista plástico moderno (não coincidentemente, contemporâneo de Buñuel) cuja sensação em alguns aspectos é exatamente a mesma. Falo do alemão Joseph Beuys (1921-1986). Considerado o artista plástico alemão mais importante depois da Segunda Guerra Mundial, Beuys parte das oposições razão-intuição e frio-calor, trabalhando de modo a restabelecer a unidade entre cultura, civilização e vida natural, o que revolucionou as ideias tradicionais sobre a escultura, pintura, fotografia, instalação, arte performática, videoarte, entre tantas outras frentes que explorou. Extremamente rica em simbologias, mensagens e discurso, sua obra, na linha evolutiva de Duchamp, é de uma coesão/diluição absurdas conceitualmente falando. Sua obra consegue, de forma íntegra, extrair o que há de arte em, por exemplo, uma vassoura, em uma garrafa, em uma vasilha de leite, em uma fita VHS. O impressionante é que a aura artística nos é facilmente percebida, embora “nada” diga-nos que esses objetos não passam simplesmente de uma vassoura, uma garrafa, uma vasilha ou uma fita magnética.

"Terno de feltro",
matéria-prima não nobre
na tradição da Arte
foto: Leocádia Costa
Ativista social e político, em seu entendimento, todo mundo é inatamente artista e ele servia apenas como uma ferramenta desse ímpeto natural. Assim, sua importante atuação acadêmica na Düsseldorf pós-Guerra, bem como a luta que travava quanto às questões ambientais (pouco valorizadas como hoje, era da tal “sustentabilidade”), fazem com que sua Arte ganhe ares absolutamente modernos – e pioneiros à época. Inovador em técnicas e formatos, valia-se em seu discurso do deboche e da crítica à sociedade de consumo, cuja dominação já se sentia a pessoas perceptivas como ele. Impressionam muito, neste sentido, a simplicidade/complexidade do uso do feltro nas obras (é, isso mesmo: o “feio” tecido que serve comumente como isolante térmico), como o terno talhado neste material nada nobre em termos de tradição da Arte.

Outra ligação direta que é percebida é com a obra de outro contemporâneo seu, mas este bastante próximo: o cineasta e também alemão  Reiner Werner Fassbinder. A transgressão, a crítica e a estética dos dois dialogam muito, principalmente nos elementos gráficos (letras em cores primárias, sem serifa e de corpo denso e agressivo) e nas fotos impressas em off-set de Beuys, cuja coloração, enquadramento e luz lembram muito a fotografia de filmes de Fassbinder como ”Roleta Chinesa”, “Whity” e “O Medo Devora a Alma”.
À esquerda, quadro de Beuys com tipografia característica de diretor Reiner Fassbinder,
e À direita, frame de abertura do filme "Whity", do mesmo cineasta alemão
foto da exposição: Leocádia Costa


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SERVIÇO:
exposição: "Joseph Beuys – Res-Pública: conclamação para uma alternativa global"
onde: Museu de Arte Contemporânea de Niterói - MAC (Mirante da Boa Viagem, s/nº. Niterói, RJ)
até 1º de dezembro de 2013
horário:  terça a domingo, de 10 às 18h
Equipe Curatorial: Silke Thomas; Rafael Raddi e Luiz Guilherme Vergara



sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Exposição “Visões na Coleção Ludwig” – CCBB – Belo Horizonte/MG (Agosto/2014)









Eu me escorando num dos pilares da "Ruína" de Lichtenstein

Numa rápida passagem por Belo Horizonte antes de irmos a Ouro Preto, Leocádia e eu pudemos desfrutar de algumas coisas boas da capital mineira. Conhecemos o mítico bairro Santa Tereza, berço do Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges, Fernando Brant, Wagner Tiso e tantos outros talentos; almoçamos no colorido Mercado Central no tradicional – e concorrido – restaurante Casa Cheia; e ainda conhecemos alguns das obras de Oscar Niemeyer no Complexo da Pampulha: o Museu de Arte, a Casa de Baile e a deslumbrante Igreja São Francisco, embrionárias da arquitetura moderna.

O impactante óleo
"Cabeças Grandes"
de Picasso
Porém, para nossa surpresa e felicidade, fomos recomendados por um francês dono do hostel onde nos hospedamos a visitar uma exposição no CCBB, num lindo prédio art nouveau dos anos 20 (antigo Comando Geral das Forças Revolucionárias, durante a Revolução de 1930), na Praça da Liberdade, centrão da cidade. Até tínhamos ideia de ir a alguma exposição, mas quando ele nos mencionou que, nesta em especial, haveria obras de Andy WarholPablo Picasso e Jean-Michel Basquiat providenciamos logo de incluir em nosso roteiro. A tal mostra é "Visões na Coleção Ludwig", que reúne 70 obras provenientes do acervo do colecionador alemão Peter Ludwig, sediada no Museu Estatal Russo de São Petersburgo, e o Cly Reis já havia comentado aqui quando da passagem da mesma pelo Rio de Janeiro. Com curadoria de Evgenia Petrova e Joseph Kiblitsky, conta com obras-primas da arte pop, do neoexpressionismo alemão, do fotorrealismo e outros movimentos de arte a partir dos anos 1960 até hoje.

Boquiaberto com a obra
coassinada por
Basquiat e Warhol
Fora os já citados, havia artistas que gostamos muito e de significância para nosso universo ideológico, como o norte-americano Roy Lichtenstein, numa gigante serigrafia pop art com clara referência a Dalí e De Chirico; o alemão Joseph Beuys, cuja escultura em bronze de 1949 (“Mulher animal”) traz seu característico toque sarcástico; e o sueco Claes Ondenburg, a quem Leocádia já conhecia me apresentou a obra “Banana-splits e sorvetes de degustação”, pequena instalação em gesso, cerâmica e aço que mina tanto o consumismo quanto as indústrias bélica, alimentícia e do sexo. Com outros, vimos pela primeira vez (Robert Rauschenberg, Anselm Kiefer, Claudio Bravo, Julia Zastava e George Baselitz, por exemplo). Uns interessantes, outros, nem tanto; mas, de um modo geral, bem legal. A começar pela impressionante tela a óleo “Cabeça de criança” (1991), de Gottfried Helnwein, com 6,50m tomados de hiperrealismo, que já nos saltara aos olhos no belo pátio interno do prédio.

Escultura de Beuys,
sempre contundente
No entanto, o que realmente nos impactou foram os mestres. Já na primeira sala após a entrada, deparamo-nos com um enorme Picasso, o óleo sobre tela “Cabeças grandes”, de 1969. Emocionante, de tirar o fôlego. Tivemos certeza de estarmos diante de um feito histórico, o que até agora, de certa forma, ainda não nos recobramos. Afinal, ver um Picasso ao vivo é sempre uma experiência incrível – só havia tido essa oportunidade em apenas duas ocasiões no passado. Pintura que alia a natureza figurativo-geométrica do cubismo a uma tocante liberdade no traço e nas paletas dignas de um artista apaixonado por sua profissão e totalmente maduro (o catalão morreria dali a apenas 4 anos). A sensação de choque seguiu-nos logo ao lado: um Warhol, um retrato do próprio Ludwig, imagem, inclusive, usada na arte oficial da mostra. Uma serigrafia bem a seu estilo, com toques cubistas no corte da figura em linhas geométricas, construindo-a em blocos de cores e implicações psicológicas distintas, além de seu peculiar traço (provavelmente, em giz) pincelando algumas linhas do desenho.

As simbólicas e nefastas taças de sorvete de Ondenburg
Mais adiante, na terceira sala, ainda não refeitos do impacto de ver essas peças, assim mais um Lichtenstein, um Beuys e outros bem interessantes, uma nova maravilha: outro enorme óleo sobre tela, este fruto da parceria entre Basquiat e Warhol, de 1984, ambos já nos seus últimos anos de vida. Numa palavra: impressionante. Toda a violência, inquietação e poesia do neo-expressionismo de Basquiat, expostos sem concessões nas imagens borradas e inconclusas; nos escritos que ora se completam, ora são propositadamente rabiscados; nas figuras cadavéricas e sofridas; na referência ao grafite e à arte urbana; na repetição doentia de elementos e símbolos. Tudo isso, se mistura com naturalidade ao já mencionado traço warhiano: a combinação vermelho-azul da raiz da pop art; o uso de signos da publicidade e do cartoon. Os dois artistas conseguem realizar uma feliz junção de referências, estilos e escolas: o jovem Basquiat, com sua genialidade a serviço de uma desenfreada busca inconsciente; e Warhol, experiente, doente e muito mais vivido que o companheiro e cujas marcas que a vida impusera (boas e ruins) se transportavam para as obras dessa última grande fase de sua carreira.
A modelo Claudia Schiffer
em foto de Gunter Sachs

Visto esses, o resto era só aproveitar. Já estava garantida a visitação. Ainda tivemos a oportunidade de ver a clássica “Cleópatra Claudia Schiffer”, foto publicitário-artística do alemão Gunter Sachs que virou referência nas revistas de moda nos anos 90. Enfim, uma boa indicação que recebemos e que fazemos a quem estiver ou for à gostosa Beagá.









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Visões na Coleção Ludwig
Visitação até 20 de outubro, de quarta a segunda das 9h às 21h
Local: Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte - CCBB
Praça da Liberdade, 450 – Funcionários - Belo Horizonte - MG
Ingresso: gratuito





texto:
fotos:


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Exposição "Jean-Michel Basquiat - Obras da Coleção Mugrabi" - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Rio de Janeiro/RJ



O bom senso jornalístico sugere que se use com muita parcimônia o termo “gênio” para classificar alguém. A explicação é bem lógica, como ironizou certa vez Ariano Suassuna: se for empregar o adjetivo a alguém como Chimbinha – tal como irresponsavelmente o fizeram para com o apenas esforçado guitarrista de brega music brasileiro –, o que resta para um Mozart ou Shakespeare? Raras são as personalidades na humanidade que atingiram esse status e que, por consenso, podem ser tidas de geniais. Caso de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), o artista visual nova-iorquino que, em seus meteóricos 27 anos de vida, edificou uma obra gigantesca em quantidade e simbologias, assemelhando-se, a seu modo, a outros gênios das artes visuais como Michelangelo, Picasso ou Cézanne. Um pouco de sua extensa e marcante obra pude conferir, juntamente com Leocádia Costa e Cly Reis, na exposição de retrospectiva no CCBB do Rio de Janeiro.

Duas coisas me impressionaram sobremaneira na mostra, até pelas lógicas praticamente antagônicas de ambas, mas, justamente, oriundas da mesma natureza: a brutal naturalidade com que Basquiat criava sua arte, quase instintiva e sem travas, e, ao mesmo tempo, uma igualmente brutal força interna, esta, capaz de transformar o natural aparentemente banal em algo grandioso, acima da média. Motivações grandiosas, como a crítica à Igreja ou a condição do negro norte-americano, dividem espaço com temas aparentemente vulgares, como personagens de desenho animado, produtos descartáveis e “rabiscos” infantis “despretensiosos” (“Tiranossaurus”, “A House Build by Frank Lloyd Wright for his Son“), Mas que, de modo feroz, expressam a mais profunda intenção artística. Há, por exemplo, quadros inteiros com apenas o uma frase escrita, como em “A Shadow in his Space”. E é de encher os olhos.

A brutal simplicidade do traço da criança
Basquiat era muitos e ao mesmo tempo uno. Como outros gênios, incorporou as ondas e tensões de sua época e as traduziu em arte. Sua obra personifica o caráter de Nova York nos anos 1970/80, quando a mistura de empolgação e decadência criou um espaço importante de criatividade. Estava tudo no ar: a Guerra Fria, a questão dos negros e dos imigrantes, a cultura pop, as ditaduras sangrentas na África e América, a era Reagen/Tatcher,  o rap enquanto música de protesto e de reelaboração da cultura negra, a publicidade dos anos yuppie, a tradição da arte clássica e o desmonte desta pela arte moderna. Tudo estava em Basquiat, à flor da pele, a cada jato de spray, a cada pincelada, a cada borrão, a cada palavra escrita ou rasurada, a cada ironia ou protesto. A intensidade do traço, compulsão expressiva, a obsessiva reelaboração da ideia – peculiar de uma mente inquieta e criativa –, o uso instintivo da palheta cromática, as camadas ora de tinta, ora de colagens ou mesmo do suporte da tela, bem como os escritos poéticos e multilíngues e as figuras cadavéricas e não menos constrangidas pela vida.

A Mesquita, de 1982, multiplicidade de técnicas
e de signos
Tudo é de um impacto tamanho, que se demora a elaborar internamente.

Estou fazendo isso até agora. Não sei com que grau de maldade, discriminação ou simples ignorância veículos de imprensa noticiaram esta mesma mostra, quando ocorrida em São Paulo, no início do ano, classificando Basquiat como “grafiteiro”. Basta apreciar algumas das 80 quadros, desenhos e gravuras expostos para perceber o quão desrespeitoso se é ao reduzi-lo como se fosse um mero vândalo urbano. A quantidade de técnicas e suportes que se utilizava para montar uma obra eram extremante variados, indo das mais tradicionais, como a pintura a óleo ou acrílica, a outras mais pop e adequadas à sua realidade, como colagem, tinta spray, xerox ou serigrafia. “A Mesquita” (1982), “Coelho Vermelho” (1982) e “Bracco di Ferro” (1983).

Igualmente, impressiona o domínio de Basquiat do desenho. Mesmo sem uma formação tradicional, como se “exige” de artistas visuais para serem aceitos no metiê, Basquiat não apenas suplantou isso pela qualidade como, inovador, adicionou-lhe elementos estéticos e simbólicos ao que se convencionou chamar de neoexpressionismo. Há momentos em que na sua obsessão pela estrutura humana, vista nas repetições de esqueletos e ossos (dos negros como ele, segundo ressaltava o próprio) e nas figurações distorcidas, há traços tão elegantes quanto um Picasso de "As senhoritas de Avignon" ou dos cartazes publicitários de Tholouse-Lautrec, ambas as referências do início do século XX. Mais atual, porém anterior a Basquiat, o alemão Joseph Beuys, de quem comungava do mesmo sarcasmo e olhar crítico, e Andy Wahrol, também uma forte inspiração, tanto que motivou a ambos amigarem-se e a trabalharem juntos na segunda metade dos anos 80, produzindo quadros brilhantes – embora a crítica, ignorante, tenha virado a cara à época. Na sala especialmente reservada a esta fase, podem ser vistas obras em que o talento de um não se sobressai ao do outro, impulsionando-se mutuamente. A serigrafia e o traço elegante de Wahrol – algo que ele não fazia desde os anos 60 – convive com as intervenções espontâneas de Basquiat.

Rosto cujos traços lembram Picasso primitivo
A sensação que se sai de uma exposição tão rica e instigante como esta é que qualquer um pode expressar-se artisticamente – ainda mais a quem, como nós três, têm facilidade no traço .“Por que não nos aventuramos mais na pintura, no desenho?” Saímos nos questionando. Por outro lado, a percepção de que, independente do que fizermos, jamais atingiremos o que um Basquiat produziu, e essa é um sentimento de profunda admiração e gratidão. No caso dele, o fato de ter sido um totem de motivações histórico-sociais, que introjetou e reelaborou as tensões do seu tempo, não explicam na totalidade o porquê da qualidade daquilo que legou. Afinal, para se tornar um ícone não basta apenas a atribuição externa: tem que ser intimamente capaz disso. E Basquiat o foi, mesmo que inconscientemente. Mais do que isso, Basquiat foi aquilo que explica tudo o que se viu: um gênio. Assim mesmo, adjetivo superlativo.

Confira um apanhado de algumas das obras expostas de "Jean-Michel Basquiat - Obras da Coleção Mugrabi":

"Braccio di Ferro", impressionante e sua complexidade

"Elefante Rosa com Caminhão de Bombeiros", de 1984, das melhores

Peça com a assinatura estilística de Basquiat

Frank Lloyd Wright ficaria orgulhoso de seu filho

Foto de uma das intervenções assinadas como SAMO na NY do final dos 70

"Coelho Vermelho", das peças mais impactantes da mostra

A construção fragmentada dos quadrinhos e da televisão em "Old Cars", de 1981

Detalhe de "Old Cars"

Díptico de duas das principais referências de Basquiat, o negro e a músico dos negros

"Cantor", de 1980-85, lápis de cor e crayon sobre papel

Música da Cabeça versão Basquiat

"Moisés Jovem", outro soco tomado de sagacidade e bom-humor

Detalhe de "Quatro Grandes", de 1982, religiosidade, sexo e ídolos

Basquiat e Wahrol, união de talentos dialogando numa linguagem ultramoderna
"Ovos", de 1986, Wahrol, com seu inconfundível traço, voltando a pintar depois de 20 anos por causa do amigo

Precisa mais que isso para ser arte?

"Natchez", profusão e sobreposições que remetem à multitela, profetizando a era do mobile

Detalhe de "Natchez" com os escritos repetidamente obsessivos do artista

"Fifty Nine Cents" (1983), acrílico sobre tema, a influência da publicidade e a ironia ao capitalismo

Cly e eu tentando desvendar a lógica deste "Xadrez" tão fora dos padrões

Convivência da elegância do traço no rosto abaixo e da inquietude logo acima

Ironia metalinguística na era dos fakes: de Basquiat  falsificando a si próprio

As raízes africanas expostas em cores e símbolos na obra do final de carreira

Admiração e espanto de quem vê um Basquiat ao vivo que chega a dar um passo pra trás ("Sem Título", 1981)

As impressionantes cerâmicas desenhadas com caneta de tinta permanente
e
O coração jazzístico de Basquiat
Quem não enxerga aí crítica à Igreja e à condição do negro não entendeu nada

Obra que nos leva a questionar, por que não fazer a própria arte?

Cultura pop, religião, violência, ecologia e capitalismo: caldeirão ideológico

Mais uma vez a influência da publicidade e da sociedade de consumo

Pura genialidade em "Ciclista", de 1984, das mais poéticas da mostra

"Venus 2000 B.C.", de 1982, simplicidade genial que se conecta ao alemão Joseph Beuys

Colagem, spray, óleo, pintura: várias técnicas de Basquiat sobre suas figuras geralmente cadavéricas

Merece até um abraço por tamanho assombro que causa

A referência aos HQs e o universo dos super-heróis  de "Il Flash" (1984) atraiu a criançada presente no CCBB

Absorvendo a paulada desta obra até agora...

Das obras do final da carreira nos fez questionar: onde iria parar a arte Basquiat se vivo?

Os cabelos de Basquiat e meus

texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa

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exposição "Jean-Michel Basquiat:
Obras da Coleção Mugrabi"
local: Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro
endereço:Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
visitação: de quarta a segunda, das 9h às 21 horas.
período: até 7/01/2019
entrada: gratuita