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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

John Coltrane - “Blue Train” (1957)

 


"Coltrane pode ter feito álbuns mais importantes, mas nenhum foi tão eficaz quanto este". 
Colin Larkin, criador e editor da Encyclopedia of Popular Music, no livro“All Time Top 1000 Albums”

“Aquela gravação de ‘Blue Train’ era mesmo diferente... dava para ver, havia algo de espiritual”.
Curtis Fuller 

Quando se fala em bandas no jazz, John Coltrane é conhecido pelo quarteto mágico que formou entre 1961 e 1965 ao lado de Elvin Jones, na bateria, Red Garland, piano, e Jimmy Garrison, baixo. Porém, é verdade também que Coltrane nunca deixou de experimentar outros formatos de banda menos enxutos. Compôs, por exemplo, em 1961, para o disco “Olé”, um septeto e para o free jazz avant-garde “Ascension”, de 1965, nada menos que um decateto. A versatilidade para aplicar seu gênio musical, fosse rodeado de menos ou de mais músicos, está, aliás, desde que se tornou um band leader no final dos anos 50. “Blue Train”, seu primeiro e único disco pela cultuada Blue Note e menos de quatro meses depois de sua estreia como líder em outro selo clássico, a Prestige, é fruto da sessão de gravação a 15 de setembro de 1957 com cinco parceiros em estúdio. 

Porém, não se trata apenas de uma mera reunião para mais um mero disco, nem muito menos Trane estava acompanhado de quaisquer músicos. O trompete, sim senhores, estava a cargo do enfant terrible Lee Morgan, então com apenas 19 anos, mas já considerado em toda a Costa Leste norte-americana como um fenômeno do jazz. Além de Morgan, estavam com ele naquele dia no Van Gelder Studios, em New Jersey, só craques: o trombonista Curtis Fuller, maior do seu instrumento à época e sucessor de J.J. Johnson; o já tarimbado pianista Kenny Drew, da escola de Charlie Parker e Johnny Griffin; o jovem baixista Paul Chambers, presença constante a toda turma do be-bop; e o disputado baterista Philly Joe Jones – estes dois últimos, aliás, ex-colegas de Coltrane do famoso primeiro quinteto de Miles Davis. O resultado é um dos maiores clássicos da história do gênero e um dos mais célebres da exitosa, mas curta carreira do artista.

Com uma das aberturas mais emblemáticas da discografia jazz, aquele chorus dos metais marcados pelos dois acordes de piano, a faixa-título é daquelas desbundes provadores de que ali estava pronto, lapidado, já no primeiro projeto solo, o maior nome do jazz: John Coltrane. Como compositor, arranjador e, principalmente, pelo sofisticado e intrincado modo de tocar. Algo único e inédito até então, haja vista que, experimentado nas bandas de Dizzy Gillespie e Earl Bostic, no quinteto de Miles Davis e ex-aluno de Thelonious Monk, Trane unia num só soprar o blues, o spiritual, o be-bop e a vanguarda. Em “Blue Train”, embora um trabalho inicial, já fica notória a forma de tocar de Coltrane num movimento em direção ao que se tornaria seu estilo característico: solos harmônicos e linhas arpejadas em que o tempo muitas vezes está fora ou acima do compasso, estabelecendo sutis conexões com a melodia.

Mas quem não fica para trás são Morgan e Fuller. Convidados de honra para dividirem os sopros com o anfitrião, eles se esmeram em suas participações sempre inspiradas. Caso de “Blue Train”, mas também da gostosa “Moment's Notice”, quando dividem o chorus com Coltrane. Fuller com seu jeito colorido de tocar um instrumento de registro grave. Já Morgan exibe seu virtuosismo possante de viradas criativas, agudos surpreendentes e encadeamentos improváveis. Chambers tira das cordas do baixo através do tanger do arco sons mágicos num solo luminoso. Já o blues ligeiro “Locomotion”, como o nome indica, tem na bateria de Joe Jones o impulso inicial para improvisações de alta habilidade de Coltrane, Morgan e Fuller. Mais uma vez, funciona com perfeição a trinca, com o devido destaque para cada um. Porém, não são somente eles que se sobressaem. Drew é pura elegância, enquanto Jones repete o destaque da abertura num curto, mas marcante improviso.

Diminuindo o ritmo com elegância, a romântica “I'm Old Fashioned”, originalmente da trilha sonora do musical de Fred Astaire “Bonita como Nunca”, de 1942, capta a atmosfera de que Coltrane muito se valeu junto a Miles Davis em suas inseparáveis baladas. Porém, também antecipa o tipo de releitura de standarts do cinema norte-americano que faria a partir de então, culminando na obra-prima “My Favourite Things”, de “A Noviça Rebelde”, o qual versaria em seu álbum homônimo em 1960. A pronúncia lânguida do sax na abertura, articulada com leves salpicos nas teclas, são de arrebatar. Escovinhas na caixa e no prato, um baixo vadio por detrás e um piano machucado dão aquele ar de fim de noite de nightclub

Para terminar, outro clássico, das preferidas dos amantes do jazz e de Coltrane: “Lazy Bird”, brincadeira com a progressão harmônica de “Lady Bird”, do pianista e então recente parceiro Tadd Dameron. A impressionante performance do líder pela metade da faixa quase não deixa perceber que quem a abre com o riff e executa a primeira sessão de improviso não é ele e, sim, Lee Morgan. A inteligência musical de Coltrane é tamanha que, longe de qualquer vaidade, ele percebe que cabia ao trompete esta função dentro do arranjo do tema. E olha que se trata do número de encerramento e para o qual podia, com todas as razões, puxar para si o protagonismo. Mas o que se escuta é, a bem dizer, uma música do repertório de Morgan. Na sequência, Fuller, Coltrane, Drew, Chambers e Jones cada um entra para seu momento, fechando, novamente, com a irreverência vigorosa de Morgan. 

Não por coincidência, "Blue Train" foi um dos trabalhos preferidos pelo próprio Coltrane, que continuaria a promover maravilhas fosse com duos, trios, quartetos, sextetos, octetos... Sua escalada sonora e espiritual ainda revelaria muitos momentos singulares para o desenvolvimento do jazz moderno até seu apogeu criativo naquela que pode ser considerada a trilogia máxima: "Crescent", "A Love Supreme" e "Ascencion". Porém, nada disso seria construído não fossem os trilhos abertos por este "trem azul", a linha de partida para o estilo hipnótico e exultante que o músico seguiria até sua prematura estação final, em 1966. Quase uma metáfora para um artista que passou pelo planeta "blue" na velocidade de um trem, iluminando por onde passava e emanando os sons que simbolizam o supremo.

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FAIXAS:
1. "Blue Train" - 10:43
2. "Moment's Notice" - 9:10
3. "Locomotion" - 7:14
4. "I'm Old Fashioned" (Johnny Mercer, Jerome Kern) - 7:58
3. "Lazy Bird" - 7:00
Todas as composições de autoria de John Coltrane, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues