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Autorretrato dos anos 40
em ponta-seca
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Mais de uma vez
estive na Fundação Iberê Camargo e nunca escrevi de fato sobre o artista que
lhe dá nome. Isso se torna mais alarmante considerando que, mesmo com exposições
visitantes, as quais geralmente me moveram a ir a este centro cultural, há
sempre uma de Iberê. Variável, mas sempre uma dele. E não apenas lá: antes do
belo prédio da Fundação ser erguido, em 2008, naquele artístico desenho do
arquiteto português Álvaro Siza, vi uma ótima exposição individual de
Iberê Camargo no Museu de Artes do Rio
Grande do Sul (Margs), nos idos de 1999, bem como presenciei obras dele em
outras coletivas em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Referência da arte
moderna no Brasil no século XX, talvez justamente pela complexidade de sua
extensa obra – a qual percorre 50 anos de produção ininterrupta, seja pela via
do figurativo ou abstratismo, pela forma definida ou o mais truculento borrão –
tenha inconscientemente relutado até então de fazê-lo.
Pois, depois de
tanta postergação, nada mais apropriado agora, eu, que admiro Iberê Camargo em
todas as suas fases, falar justo de uma exposição que percorre vários dos
momentos da trajetória do artista. “Diálogos
no Tempo”, com curadoria de Angélica de Moraes, é uma investigação sobre o
DNA do trabalho deste gaúcho de Restinga Seca. Foram colocados lado a lado
trabalhos que estabelecem segmentos de variados períodos de sua produção, que
se desdobraram em infinitas combinações de modo a evidenciarem as
características da contribuição estética deste autor. São vistos, desde os
óleos naturalistas dos anos 40, que muito lembram Van Gogh na coloração
vibrante e na pincelada espaçada, até o fantasmagórico lamaçal de tintas do
figurativismo dos anos 80, época de ápice criativo mas também de rendição ao
negror psicológico e espiritual após a vivência de uma tragédia na vida
pessoal.
Não à toa, de fato,
os anos 80 são o vértice da seleção curatorial, uma vez que trazem, entre as
116 obras expostas – que assombrosamente passam pelas mais diferentes técnicas,
da pintura a gravura em metal, da serigrafia à litografia, do desenho a charges
e estudos –, uma visão bastante próxima do que realmente Iberê era (ou se
tornou). O retorno à figura humana dessa época, após anos de não-figurativismo
iniciados nos anos 50 com os marcantes e simbólicos carretéis, resumem o
aspecto fundamental de toda sua obra: a concisão do traço. Seja na opulenta
textura das camadas de tinta, na obsessiva busca pela reminiscência da cor
sobre o fundo escuro ou na disformia arranjada em meio ao material pastoso,
está lá o traço, o desenho como base.
Isso está presente
desde a entrada da mostra nos autorretratos de períodos e técnicas diferentes:
da ponta-seca ou nanquim (ambas de 1943), passando pelo óleo sobre tela (1942 e
1987) ou pastel oleoso sobre lixa (1985), há o cuidado com a representação da
expressão através da ideia que se forma. Cada quadro transmite cargas de
emoção. Os diversos estudos a grafite, seja treinando a elaboração das formas
de manequins, objetos ou paisagens, ganham uma dimensão especial nesta mostra
uma vez que suas existências enquanto processo são inseridas dentro de um
contexto de “work in progress”,
equiparando-os às telas “finalizadas” em que, invariavelmente, viriam a ajudar
a formar.
A importância dada
ao estudo é ainda mais sentida nos que levam à formação de séries como a
“Desastre”, também dos anos 80, em que o artista gaúcho primeiro experimenta,
seja a grafite, lápis ou mesmo esferográfica, para, aí sim, compor a pastel.
Até mesmo na excelente série de serigrafias, onde se desfaz da densidade da
camada de tinta, a prevalência do traço está ali.
A inquietude
permanente de Iberê o estimulava a, como todo artista de verdade, caminhar na
direção da superação de si mesmo. Aquilo que biograficamente se observa a
título de avanço técnico, em grandes artistas como ele passa a representar,
muitas vezes, a própria subversão de linguagem. O respeito ao traço, assim, por
ora vai sendo desafiado por Iberê, numa maneira também de descolar-se de seu
próprio tempo. Presente, mas cada vez mais metafórico e pessoal. As telas
“Composição” (1980 e 1983), bem como os sem título feitos a giz de cera (1980 e
1982), trazem os mesmos carretéis perscrutados por cerca de 30 anos quase
ausentes em formato, já absorvidos pelo filtro do artista maduro. Por vezes,
lembram um corpo humano; noutros, o cálice bento católico ou o pecaminoso da
luxúria. “Carretéis com figura” (1984) sintetiza essa ideia de profusão entre
imaginário e concretude, entre o anacrônico e a memória.
Tempo e forma de
fato confundem-se em Iberê, inclusive nas alusões. Guignard, com quem estudou
nos anos 40, Picasso, pelo amplo paradigma oferecido que vai do cubismo à
abstração, e Bacon, a quem a comparação é inevitável, são três referências de
épocas distintas que passam por seu aprendizado. O pintor inglês, por exemplo,
faz-se conceitualmente presente no ótimo duo “Manequim” (óleo sobre madeira,
1983), haja vista a semelhança da deformação humana como embaraço, como crítica
da existência. Guignard, no apreço pelo detalhismo das primeiras paisagens,
como o do belo óleo de 1944.
É possível sentir em
telas como “Diálogo”, “Fantasmagoria” e “Ciclistas”, três de suas obras-primas
(todas de 1987), o ordenando do caos pictórico forjado e perscrutado pelo
artista, que cria e resolve e volta a desmanchar e criar novamente.
Incessantemente, como que querendo desfazer o tempo para, em seguida, vencido,
construí-lo novamente. A sensação que fica é a de que, mesmo “concluída”,
nenhuma tela é, de fato, redentora, cabível, suficiente. E que jamais, dada a
lúcida compulsão que o levava a tentar capturar o tempo de maneira tão
pungente, uma obra restaria acabada. Assim, a ligação entre uma obra e outra é
intrínseca, como se mais do que continuações de um mesmo trabalho (o que o é
até em termos biográficos) representam pedaços do artista despejados como um
lodo emocional que se desgruda do corpo para se transformar em arte.
Pelo pouco que aqui
comento, é possível captar o porquê de minha inconsciente resistência em falar
em Iberê Camargo e sua obra, ora tão lírica, ora tão perturbadora. Percorrer
qualquer galeria com suas telas e desenhos é dar um passo para dentro de um
mundo vívido, mas obscuro e pessimista por vezes, onde não raro os fantasmas de
artista e de quem observa se conversam. Pois, de minha parte, admiração não
falta a ele, que é certamente um dos maiores nomes das artes plásticas
brasileiras, por mais desafiador e autorreconhecível que isso represente.
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exposição “Diálogos no Tempo”, de Iberê Camargo
local: Fundação Iberê Camargo (Av. Padre
Cacique, 2000 - Cristal - Porto Alegre)
período: até 26 de março de 2017
de terça a domingo (inclusive
feriados), das 12h às 19h
entrada gratuita
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Autorretrato dos anos 80,
apuro na própria estética |
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Bela paisagem com influência de Guignard |
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Uma das paisagens a óleo dos anos 40.
Vê-se o traço espaçado de Van Gogh |
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Um dos estudos de movimento do corpo |
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Outro estudo, este de vexados manequins |
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Serigrafia interessantíssima de Iberê |
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Carretéis feitos em giz de cera |
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Carretéis com figura,
uma síntese de períodos do artista |
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O duo "Manequins".
Ares de Bacon |
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"Desastre" o acidente de carro vai do estudo
para a tela final |
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"Fantasmagoria", uma das obras-primas |
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Os obsessivos carretéis tomando formas além do objeto |