A estabilidade que a
primavera traz ao tempo reservou um dia ensolarado no parque da Redenção para receber
o 2º Festival BB Seguridade de Blues e
Jazz. Após passar por São Paulo, Recife e Brasília, este interessante
festival reuniu nomes nacionais e internacionais em torno de ambos os gêneros,
como Hamilton de Holanda, João Maldonado Trio, O Bando, Maria Gadú e a Orleans
Street Jazz Band. Estima-se que 32 mil pessoas estiveram no parque
curtindo o dia com a família e os amigos. Entre estes, Leocádia e eu.
Como não dava pra passar o
dia, fomos no horário que pegaríamos os dois shows que mais nos interessavam: o
da banda carioca Blues Etílicos e, em seguida, do guitarrista norte-americano
Stanley Jordan. Se bem que, quando apontamos no parque, ainda dava pra ouvir,
mesmo que de longe, Hamilton de Holanda detonando seu bandolim. Quando nos
acomodamos, já no intervalo entre uma apresentação e outra, aparecem os
paulistas da Orleans Street Jazz Band tocando no meio da galera. Alto astral aquele
som de jazz do sul norte-americano, com direito a tuba, trompete, trombone,
sax, banjo e percussão. As melhores das boas-vindas.
Orleans Street Jazz Band no 2º Festival BB Seguridade de Blues e Jazz
Logo em seguida veio a Blues
Etílicos. Embora as letras deixem a desejar, a sonoridade é do mais poderoso e
original blues eletrificado. Destaque para o guitarrista Otávio Rocha e seus
slides impiedosos. É ele quem segura o som de um berimbau extraído da própria
guitarra na música “Dente de Ouro”, misto de baião e blues, a melhor da
apresentação. Também teve participação do blueseiro gaúcho Solon Fishbone em
“Puro Malte”, noutro momento muito legal em que três guitarras se somaram.
Foi então a vez de Stanley
Jordan subir ao palco. Ele, que havíamos perdido de ver quando do Canoas Jazz
Festival, em 2014, deu um show curto mas delicioso. Isso que o tal Dudu Lima
quase pôs água no chope! O músico mineiro, baixista e líder do trio que apoiou
Jordan, começou o show tocando a “Suíte BItuca”, versão jazz fusion para “Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, com incursões de outras melodias, como a de “Raça”, também de
Milton, e “Asa Branca”, clássico de Luiz Gonzaga. Até aí, tudo bem. Acontece
que quando Jordan entra definitivamente para tocarem a primeira juntos, “Clube
da Esquina nº 2”, outra de Milton, esta parceria com Lô Borges. A beleza da
interpretação passa a ganhar tons de exagero por parte de Dudu Lima, que se perde,
sai do compasso e inventa improvisos mais ruidosos do que melódicos.
Pensamos: “Tudo bem, vai ver que estão esquentando
ainda”. Veio, então, o tema seguinte, “Regina” de autoria d Dudu. Estavam
os dois ali, tocando juntos quando, no meio da execução, o autor, decerto por
achar a autoria motivo para tal, desce do palco para tocar no meio do público
(!). Não que não possa fazer isso, mas no SEGUNDO número? E justo ele, o coadjuvante
do show? Totalmente despropositado. Jordan, na sua simplicidade, ficou no palco
fazendo base para o exibido lá embaixo. O bom foi que, a partir dali, tudo se
rearrumou. O mestre Jordan permanece no palco para, sozinho agora, mandar ver
duas suítes solo impressionantes. Uma delas é a originalmente linda “Eleanor
Rigby”, clássico dos Beatles presente no terceiro álbum de Jordan, o memorável
“Magic Touch”, de 1985. Um desbunde. Ele aproveita as linhas vocais, do cello e
dos violinos da original de 1966 para fazer o mesmo, só que apenas na guitarra.
Usando sempre das duas mãos, as quais tocam geralmente ao mesmo tempo, o
característico tapping – técnica que
evoluiu com ele –, a exuberante forma de Jordan tocar comove e impressiona.
A banda volta ao palco,
agora trocando seu bom baterista Leandro
Scio por um verdadeiro craque: o mestre Ivan Conti “Mamão”, integrante da
lendária banda de jazz-soul brasileira Azymuth. Não tinha como dar errado, e
até Dudu Lima, agora mais contido, passou a contribuir com seu competente baixo
elétrico. Uma linda execução de “Partido Alto”, faixa do disco da Azymuth "Light As A Feather", de 1979. Mamão, com sua experiência e suingue, dá outra
atmosfera para a sonoridade, um ganho que faz com que toda a banda cresça e
Jordan, por sua vez, conseguisse desenvolver ainda mais sua habilidade como
solista.
A formação com Mamão
arrepiou em outro jazz fusion estonteante, com variações de ritmo, agilidade e
performance de todos, claro, principalmente de Jordan. É o guitarrista que puxa,
enfim, novamente acompanhado do trio do começo, o número final, que o público
reconhece já nos primeiros acordes. É “Stairway to Heaven”, o clássico hard-rock
da Led Zeppelin. Como fizera
com a canção de Lennon e McCartney, nesta Jordan utiliza todas as
possibilidades harmônicas criadas pelo riff
de Jimmy Page, ora valendo-se da suavidade do dedilhado, ora transformando a
guitarra em piano, ora roncando em palhetadas. Até sons de bandolim e viola é
possível ouvir da guitarra de Jordan. Um final digno de um show que valeu a
pena aguardar esses dois anos para assistir.
vídeo de“Stairway to Heaven”porStanley Jordan e Dudu Lima Trio
Céu azul e muita gente na Redenção.
A Orleans Street Jazz Band toca no meio do público.
A inusitada percussão da OSJB.
A Blues Etílicos mandando ver no blues eletrificado.
No telão, Jordan e Dudu solando.
Galera aproveitando o gramado e a sombra das árvores.
mais fantásticas e antigas que a humanidade já criou.
Talvez tenha nascido da observação dos sons da natureza, não se sabe ao certo,
mas desde a pré-história o homem foi despertado para a necessidade de
organizar uma sequência de sons e silêncios que
pudesse ser apreciada, entendida e praticada.
Desde então ela vem sendo criada e executada
por todos os povos e culturas da Terra.
O segundo volume da antologia ‘Conte uma Canção’
(traz) histórias tristes, histórias com finais felizes,
histórias que assustam, histórias que excitam, histórias reais,
histórias nascidas da imaginação dos nossos autores,
aqui não importa o gênero ou tipo de narrativa.
O que importa é que são histórias que,
as músicas que as inspiraram, emocionam.”
texto de apresentação do livro
na contracapa
Já está nos pontos de venda a antologia “Conte uma Canção – vol. 2”, pela editora Multifoco, da qual meu
irmão e editor deste blog, Cly Reis,
e eu, subedidor, fazemos parte com
um conto cada um. O livro teve lançamento no último dia 30, durante a 24ª Bienal do Livro de São
Paulo, no Anhembi.
O conto de Cly, intitulado "O Filho do Diabo", é certamente um dos
melhores de sua profícua produção contística. Por conta do recorte temático, a
ligação da narrativa com uma música, seu conto tenha se beneficiado com isso,
haja vista ser ele um grande admirador e conhecedor da arte musical. No caso, o
blues, que sei que é um dos estilos de sua predileção. Sobre uma canção do
guitarrista norte-americano Robert Johnson, um dos precursores do blues, dos
anos 20, Cly cria uma história bastante envolvente e até assustadora em que um
homem misterioso bate à porta do protagonista cobrando-lhe uma “dívida” que este
nem imaginava ter. A associação da história com a canção, “Me and the Devil
Blues”, é não só muito pertinente e sacada como, no contexto, bastante
literária, uma vez que se aproveita de toda a atmosfera mística e mítica que
envolve o músico, o qual se diz ter pactuado com o Tinhoso e, por conta disso,
tivera tamanho talento mas, em contrapartida, morrido cedo e de forma
misteriosa. A vida imita a arte.
Já o de minha autoria, "'Heart Fog' vazando", se vale de uma música de
uma banda de indie rock inglesa dos
anos 90, a Th' Faith Healers. Desconhecida fora do meio alternativo, cultuada por
este público (dentro do qual me incluo), vali-me, assim como Cly o fez, deste
elemento mítico em torno do grupo, porém de uma forma diferente. Misto de fábula
urbana e história romântica, “Heart...”, assim como “O Filho...”, já havia sido
publicado no blog, porém, advirto que, tanto um quanto o outro valem a pena ser
lidos a versão do livro, mais aperfeiçoadas para a editoração.
Organizado por Frodo Oliveira e Marla Figueiredo, além de nós dois,
claro, há outros autores, tão merecedores de menção quanto, somando 21 textos
no total. São eles: Jojo Corrêa, L.P.S. Mesquita, Manoella Treis, Micael Pinto
de Almeida, Misa Ferreira, Nair Palhano, Nonato Costa, Rogério Rodrigues, Tatiana
Aline Santana, Valdileia Coelho, Alice Ferreira, Antonio Oliveira, Antonio
Sodré, Claudio Lopes de Araujo, Cris Caetano, Di Onísia, Emilene Salles e
Fernando Aires, além do próprio Frodo.
Ficamos devendo uma análise mais completa da obra toda, mas por ora vai
esse quase teaser para despertar o
interesse dos leitores. Abaixo um trecho de cada um dos nossos contos presentes
na antologia “Conte uma Canção – vol. 2”:
“Quem seria àquela hora?
As batidas insistentes à porta interrompiam sua habitual sesta, da qual não
abria mão, principalmente naquela época do ano em que fazia muito calor. Lidara
a manhã inteira no campo em seu pequeno pedaço de terra defendido pela mãe com
tanta luta naquelas terras hostis do Sul e que conseguia manter a tanto, e
agora que conseguia descansar o corpo exausto um inconveniente vinha
incomodá-lo. Quem seria?”
Trecho de “O Filho do Diabo”, de Cly Reis
“Horário de pico, entrou no metrô quase arrastado pela multidão na
estação já pelo meio do trajeto do trem. Seu objetivo de vida ficava uma
estação antes do final da linha e chamava-se ‘casa’ (...) Como faltava um bom
tempo ainda para chegar ao destino, procurou naquele aperto um espaço para se
acomodar, equilibrando-se minimamente entre tantos que faziam o mesmo. Parou de
frente a uma moça e um rapaz que, sentados, conversavam animadamente. ‘Bem
bonita’, pensou. Tipo executiva, cabelo aloirado preso no coco sem soltar
nenhum fio sequer, maquiagem em dia mesmo no fim de tarde, tailleurzinho risca-de-giz
cinza. Muito elegante, ou seja: ‘não é pro meu bico’, arrematou para si em cima
imediatamente. ‘Seriam namorados?’, ocorreu-lhe.”
Tive o prazer e o privilégio de assistir na noite da última sexta-feira ao show da lendária banda Blues Etílicos, referência no estilo no Brasil e possivelmente, junto com o já falecido Celso Blues Boy, o grande nome no gênero no país. Grande show onde a banda apresentou um repertório muito bem escolhido, um som contagiante e onde seus integrantes demostraram todas suas virtudes técnicas. Também, é só tem fera! O vocalista norte-americano Greg Wilson conduziu a festa com competência e elegância; Cláudio Bedran com seu baixo dava um suíngue todo especial ao blues da banda; o guitarrista Otávio Rocha, um dos grandes nomes do blues da atualidade, deu um show à parte, especialmente na introdução de "berimbau" da excelente "Dente de Ouro", um dos melhores números da noite, por sinal; o baterista Pedro Strasser, que já tinha tido a oportunidade de ver num show menor num pub de pequeno porte em outra ocasião, simplesmente destruiu tudo numa performance impecável conduzindo o ritmo da banda com firmeza e explosão; e o craque da gaita, Flávio Guimarães não deixa dúvidas do por quê de ser considerado um dos grandes nomes no instrumento reconhecido internacionalmente. Isso tudo sem falar na participação especialíssima do saxofonista Leo Gandelman que deu uma generosa canja participando de vários números do espetáculo, inclusiva da clássica "Safra 63", que, como lembrou bem Flávio Guimarães, foi a primeira música da Blues Etílicos a tocar em rádio, na extinta Fluminense FM, a "Maldita" como era conhecida, lá pelos idos de 1987.
Grande show. Grande festa. Uma verdadeira celebração do blues na companhia da maior banda brasileira do gênero.
Um trechinho do show com a participação de Leo Gandelman
2015 acabou e como sempre, fazemos aqui no ClyBlog aquele balanço da movimentação dos álbuns fundamentais no ano anterior: artistas com mais discos na nossa lista, países com mias representantes, o ano e a década que apresentam mais indicados e outras curiosidades. O ano abriu com a publicação de número 300 dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que teve a especialíssima participação do escritor Afobório falando sobre o grande "Metrô Linha 743", resenha que marcou assim a estreia, mais que merecida, de Raul Seixas no nosso time de fundamentais. Outros que já estavam maIs que na hora de entrarem pra nossa lista e que finalmente botaram seu primeiro lá foram a musa punk, Patti Smith; o poeta do rock brasileiro, Cazuza; a banda cult Fellini; o grande Otis Redding, os new wave punk do Blondie; os na´rquicos e barulhentos Ratos de Porão; o mestre do blues Howlin' Wolf; e em especial o Mr. Dynamite, James Brown, com seu clássico no Apollo Thetre. Alguns, por sua vez, se afirmaram entre os grandes tendo enfim seu segundo disco indicado pra mostrar que não foi acaso, como é o caso de Cocteu Twins, Chico Science com sua Nação Zumbi, Lobão e Björk. Com o ingresso, em 2015, do ótimo Ouça o que eu digo: não ouça ninguém", os Engenheiros do Hawaii finalmente completam sua trilogia da engrenagem; Bob Dylan que foi o primeiro a ter dois álbuns seguidos nos Álbuns Fundamentais, lá em 2010, depois de um longo jejum finalmente botou seu terceiro na lista, o clássico "Blonde On Blonde"; já John Coltrane que passou um bom tempo apenas com seu "My Favourite Things" indicado aqui, de repente, num salto, apenas em 2015, teve mais dois elevados à categoria de Fundamental, muito por conta do cinquentenário destes dois álbuns, bem como de outro cinquentão da Blue Note que também mereceu sua inclusão em nossa seleção, o clássico 'Maiden Voyage" de Herbie Hancock, alem do fantástico The Shape of Jazz to Come" como homenagem merecida a Ornette Coleman, falecido este ano. Por falar em falecido recentemente, não tem como deixar de falar em David Bowie que deixa este mundo na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mostrando que toda a idolatria e reconhecimento do qual gozava não era a toa. Mas ele não está sozinho na ponta! Alavancado pela inclusão de seu ótimo "Aftermath", os Rolling Sones alcançam os líderes e empatam com Bowie e com seus "rivais", os Beatles, prometendo grandes duelos para as próximas edições dos A.F. Como curiosidades, se no ano passado tivemos mais trabalhos de séculos passados, no último ano os A.F. tiveram um certo crescimento o número de álbuns produzidos no século XXI. Muito por conta de uma nova galera talentosa que vem surgindo por aí como Lucas Arruda e Tono que tiveram seus álbuns, "Sambadi" e "Aquário", respectivamente, reconhecidos e incluídos no hall dos grandes álbuns. Os garotos também colaboraram para um fato interessante: o altíssimo número de discos nacionais neste ano. Foram 15 no total, empatando com o número dos norte-americanos neste ano e deixando bem para trás os ingleses com apenas 3 em 2015. O pulo brasileiro refletiu-se na tabela geral e pela primeira vez desde o início da seção o Brasil está à frente da Inglaterra em número de discos. A propósito, falando de Brasil, se formos falar em termos nacionais, a principal mudança foi a elevação de Caetano Veloso, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia à vice-liderança, dividindo-a ainda com Gil, Legião e Titãs. Na ponta, segue firme o Babulina, Jorge Ben, com 4 álbuns fundamentais. E aí? O que será que nos reserva 2016? Como será a batalha Beatles vs Stones? Alguém alcançará ou passara Jorge Ben na corrida nacional? E os ingleses reagirão contra os brazucas e mostrarão que são a terra do rock? Aguarde as próximas postagens e acompanhe o ClyBlog em 2016. Por enquanto ficamos com os números de 2015 e uma visão geral de como andam as coisas nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS.
PLACAR POR ARTISTA (GERAL)
The Beatles: 5 álbuns
David Bowie 5 álbuns
The Rolling Stones 5 álbuns
Stevie Wonder, Cure, Led Zeppelin, Miles Davis, John Coltrane, Pink Floyd, Van Morrison, Kraftwerk e Bob Dylan: 3 álbuns cada
PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)
Jorge Ben (4)*
Titãs, Gilberto Gil*, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia; 3 álbuns cada
*contando o álbum Gil & Jorge PLACAR POR DÉCADA
anos 20: 2
anos 30: 2
anos 40: -
anos 50: 13
anos 60: 63
anos 70: 90
anos 80: 82
anos 90: 62
anos 2000: 8
anos 2010: 7
*séc. XIX: 2 *séc. XVIII: 1 PLACAR POR ANO
1986: 15 álbuns
1985 e 1991: 13 álbuns cada
1972 e 1967: 12 álbuns cada
1968, 1976 e 1979: 11 álbuns cada
1969, 1970, 1971, 1973, 1989 e 1992: 10 álbuns cada
PLACAR POR NACIONALIDADE*
Estados Unidos: 125 obras de artistas*
Brasil: 85 obras
Inglaterra: 80 obras
Alemanha: 6 obras
Irlanda: 5 obras
Canadá e Escócia: 4 cada
México e Austrália: 2 cada
Suiça, Jamaica, Islândia, Gales, Itália e Hungria: 1 cada
Quando assisti ao ótimo bluesmanKenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show
fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi
Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de
Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava
por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra
boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som
de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde
tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além
destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita
combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o
MDBF, vontade alimentada há anos.
Stroger, comandando o grupo no baixo.
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma
programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações
internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o
MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos)
que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso
é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso
ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de
apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento,
fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o
local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato
cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela
sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía
ajudou a aumentar o clima cinematográfico.
Bob Stroger posando para as lentes.
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das
pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que
ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85
anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente
por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de
irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições
deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja
vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele
referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um
caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul
norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e
trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do
início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se
sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.
Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados.
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em
si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e
chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado
blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado,
repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e
apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto.
Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo,
orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the
blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua
voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter,
“Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que,
além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”,
autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia
outro episódio importante horas depois...
"Don't You Lie To Me" - Bob Stroger - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Sherman Lee Dillon, pura energia.
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage,
iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli,
ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das
apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e
que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que
assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por
ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa:
Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide
guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música
que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de
rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano
Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele
velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia
observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando
empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.
Na bateria, Gutto Goffi.
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou
ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua
guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno
palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de
“Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante
quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o
baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e
sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião,
também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias
vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy
Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.
'Super Chikan' no palco principal do MDBF.
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no
Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais
atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan"
Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse
apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e
passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito
rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só
corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite
uma sequência de notas, sempre com muito groove.
Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra
imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.
Eu com Rip Lee Pryor.
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um
pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor),
que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o
que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais
para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra
das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a
cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles
vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para
Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi
tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym
n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no
sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua
poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a
plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de
sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com
repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a
excelência da voz de Zora.
A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia
ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com
receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a
equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir
Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais...
Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar
do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali,
sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas
que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar
a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de
verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado
no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora
e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco,
estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu,
abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.
"The Thrill Is Gone"/ "I'm Freee" - Zora Young - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento
compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o
MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu
mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer
Leocádia: “Oh, baby, don't you want to
go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet
home, festival?”
Diletante é diletante em qualquer lugar. Estou eu a trabalho numa feira do setor de transportes em São Paulo e mesmo com todo o barulho de motores e engrenagens mecânico-eletrônicas na minha cabeça, a música prevalece. Numa cerimônia de premiação em que estive no evento, eis que, durante o almoço oferecido, a organização chamou para tocar enquanto as pessoas comiam (!) o excelente bluesman norte-americano Kenny Neal. Músico de raiz, nascido em New Orleans, toca guitarra como um monstro, além de cantar maravilhosamente. Aquele nível de qualidade de blues que só mesmo quem é da gema sabe fazer.
O guitarrista e sua banda mandando ver no blues
O mais engraçado é que praticamente só eu me encantava com a apresentação, que levou boa uma hora de duração – por sorte, as pessoas levaram esse tempo para comer. Acompanhado apenas de bateria e baixo elétrico, Neal mandou ver em maravilhosos temas blues, desde o mais cadenciado até aqueles tristes ou mais agitados, que fazem fronteira com o rock. O cara, que é fã de B.B. King, chegou a tocar, numa digna versão do mestre, a clássica “The thrill is gone” (“The thrill is gone/ The thrill is gone away/ The thrill is gone, baby/ The thrill is gone away/ You know you done me wrong, baby/ And you'll be sorry someday”).
Delírio meu e... apatia dos outros. Por incrível que pareça, aqueles engravatados e aquelas mulheres executivas de saias justas mal reagiam! Mais preocupados com suas respectivas barrigas, eram poucos os que aplaudiam, isso quando não se esqueciam de fazê-lo. Mas ele não se abalou com a falta de atenção e fez um show da maior dignidade e qualidade. Pra mim, claro, foi um momento especial do dia em meio a tanta correria de trabalho, ainda mais que provavelmente não consiga ir ao Mississipi Delta Blues Festival, que acontece este mês ainda em Caxias do Sul, próximo à minha cidade, Porto Alegre, em que a pegada é bem essa: blues de raiz com atrações internacionais de peso dentro do estilo. Então, já que eu talvez não vá ao blues, ele veio a mim na forma do ótimo Kenny Neal, que teve ao menos um expectador verdadeiro que não o deixou entrar e sair desapercebido.
"O esplendor de um navio
marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a
compor a música “Maiden Voyage”
Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais
admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que,
em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente,
chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz
norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade
jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e
arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice
da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao
piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua
estreia como band leader, em 1962,
aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean
Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador.
É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de
1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.
Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que
qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não
apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria
articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências
sonoras. O jazz modal, o be-bop, a
música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela
inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E
a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada
e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo
acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George
Coleman; Freddie Hubbard, no trompete, outro
monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado
pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das
mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.
E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa
de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz
modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos
discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos
harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma
por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros,
enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo
assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem
de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais,
noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro
alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar
num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia
tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo,
quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos
pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E,
por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo
fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo
com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.
Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as
sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente
da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O
seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira
frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os
outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons
em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo.
Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas
sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda
essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da
manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal,
quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia
lhe autoriza.
Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco
anterior de Hancock, seu trompetetrazia
um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há
quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões
com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o
clima astral desse passeiomusical proposto por
Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama
todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho
de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares:
oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento
do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do
inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada,
adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um
colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética
mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante.
Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma
esfinge ainda a ser totalmente desvendada.
Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the
Hurricane”, hard-bop efervescente, como
o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A
atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e
contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam
acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus
longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num
solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as
ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos
comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de
Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado
chorus da introdução no final.
A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também
a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante,
arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um
breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual
Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos
3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de
Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às
improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre
dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz
lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de
“Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.
O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock
regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia
bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa
em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um
bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade
adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica
maneira de terminar a “viagem inaugural”.
O ano de 1965 foi
de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The
Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage”
certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no
caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50
melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a
permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus
músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois
de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o
músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu,
já estava nadando pelos mares do pós-bop,
do fusion e do funk para mudar
novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como
uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem
volta e com destino à eternidade.