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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Música da Cabeça - Programa ESPECIAL #180

 


Das paradas de sucesso à musica para filmes e publicidade. O MDC especial 180 traz uma entrevista com o músico e produtor Leo Henkin, um dos grandes hitmakeres da música pop gaúcha e nacional e autor de algumas das mais célebres trilhas do cinema brasileiro. Isso, mais as músicas, os quadros e uma homenagem aos 90 anos que o poeta Ferreira Gullar faria se vivo. Aliás, nós estaremos todos vivos nesta quarta, às 21h, na orgânica Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues - vivinho da silva.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 12 ANOS DO CLYBLOG - Deee-Lite - "World Clique" (1990)


"Entrançados pelas revoluções musicais no jardim de Deee-Lite, os três groov-nicks estavam destinados a esbarrar um no outro. Três culturas diferentes unificadas na era da comunicação."
Trechos do texto do HQ do encarte do disco

"Como se diz delicioso?
Como se diz adorável?
Como se diz deliciosa?
Como se diz divina?
Como se diz de-groovy?
"De" com isso?
Como se diz Deee-Lite?"
Bordão da banda

Em 9 de novembro de 1989, afora a multidão presente in loco para presenciar aquele acontecimento histórico para a humanidade, o mundo todo parava para assistir pela TV a queda do Muro de Berlim. Mais do que apenas concreto, quebravam-se, naquele momento, diferenças. Tudo que a Guerra Fria alimentava com as sobras mal mastigadas da Segunda Guerra se dissolvia, tornando possível que, não apenas a Alemanha se reunificasse, como novas e saudáveis conexões e comunicações entre culturas acontecessem. Ocidente e Oriente não restavam mais apartados. Sua queda não apenas reidentificava uma dualidade ideológica, mas também simbolizava a quebra de preconceitos maiores, como de raça, gênero, cor, cultura e nacionalidade, fosse alemão, soviético, japonês ou norte-americano. Vislumbrava-se, ali, um renovado olhar para o respeito ao outro.

A música não demorou em captar estes ventos de liberdade e comunhão. Precisou, na verdade, precisamente de apenas 268 dias, bem pouco para quem suportou 9.490 deles dos 26 anos desde que o muro foi erguido, em 1963. Artista rapidamente tocada pela reconfiguração planetária de então foi Lady Miss Kier Kirby. A norte-americana, cantora, DJ, modelo e designer de moda aproveitou a passagem aberta pelo muro derrubado para, saída de seu país, passar por sobre seus escombros em direção a até bem pouco tempo inimiga Rússia e recrutar o talentoso Super DJ Dimitry. Sem guardas na fronteira, ela andou ainda mais e foi parar no Japão, desta vez para capturar outro “às” nas manipulações sonoro-digitais: Jungle DJ Towa Towa. Juntos, fizeram de QG, claro, a universal Nova York. Pronto: estava composta a primeira banda de música pop fruto da nova configuração mundial: a Deee-Lite.

O som dançante, alegre e altamente melodioso do trio fazia reverências retrô à música negra norte-americana, mas também a modernizava ao valer-se de elementos peculiares da experiência nativa de seus integrantes, do som das pistas noturnas e das novidades tecno que aquele início da última década do século XX passava a oferecer. Estavam ali a efervescente acid house mas também o hip-hop, o funk, a soul, o eletro-pop, a disco, o jazz, o AOR e o synth. Essa misturança criativa e libertária se materializava no primeiro e disparado melhor disco do grupo: “World Clique”, que completa 30 anos de lançamento neste dia 7 de agosto.

Japão (Towa), Rússia (Dimitry) e Estados Unidos (Kier) juntos para fazer o som da nova era
E como representar aquele novo momento mundial? Com festa, é claro! Sintonizados com o clima de diversão regada à música eletrônica da era clubber, a balada da Deee-Lite começa em altas vibes com “Good Beat”. Samples, beats, grooves e o canto de Miss Kier, que lembra o das grandes divas da era disco. Está aberta a pista, que lota de pronto! Pra não baixar a empolgação, outro arraso: “Power of Love”. Um acorde de piano muito jazzy chama as batidas secas da acid house, que reverberam fortes e fazem impactar o plexo solar. Mas não só: o vocal entra juntamente, formando uma dance tomada de soul anos 70, resumo daquela sonoridade nova que a Deee-Lite trazia em seu balaio cosmopolita. Impossível ficar parado!

Além do som, era importantíssima a Deee-Lite também a parte visual. Eles sintetizavam a “montação” da indumentária clubber, com suas saias e calças coloridas, leggings, tênis sneaker e esportivos, pulseiras, colares, tic-tacs, piranhas e anéis, além de vernizes, maquiagens brilhantes, piercings, tatuagens tribais, cabelos em cortes à frente da moda ou em tons berrantes como o verde-limão e a rosa-choque. Em elementos siderais divertidos e coloridos como os de um cartoon da Hanna-Barbera e tipografia retrô anos 50, a capa de “World...” traz os três integrantes em roupas não menos avivadas e extravagantes mas, principalmente, destaca seus traços antropomórficos típicos: Miss Kier, uma vistosa mulher com os ares latinos da América miscigenada; Dimitry, cujo tipo eslavo em roupas fashion prenunciava a aderência russa ao capitalismo a partir de então; e Towa Towa, de estatura baixa e cabelos pretos lisos típicos de um oriental, o qual trazia para aquela arquitetura estética a cultura pop dos animes japoneses. Todos prontos para a balada!

Mas não se pense que se trata de qualquer festinha! Na “delicious party” da Deee-Lite, além da importância do traje (quanto mais espalhafatoso, melhor), havia também convidados ilustres. O lendário Bootsy Collins é um deles. Baixista de grupos icônicos da black music, como a banda de James Brown e o combo de George Clinton, a Parliament/Funkadelic – a quem Towa Towa faz referência em seu boné na capa do disco – Bootsy empresta não apenas seu estilo único de tocar e o visual de “cartum ambulante” (o qual inclui, fora os óculos esquisitões e não raro uma cartola idem, um sorrisão irresistível) como, tanto quanto, a presença de alguém da “velha guarda” naquele projeto. Como uma chancela para a nova geração. É ele quem comanda baixo e guitarra do funkão pra lá de suingado “Try me On... I’m Very You”, onde Miss Kier, aliás, dá um show de vocal.

Bootsy: velha guarda da black music
dando aval para a nova geração
Bootsy volta a aparecer na pista em outro funk, a gostosa “Smile On”, mas desta vez acompanhado de outros convidados de pulseirinha vip com ele: os craques Maceo Parker, no sax, e Fred Wesley, além das cantoras Sahira e Sheila Slappy. Estas duas, aliás, não arredam pé do “queijão” em nenhum momento, sacolejando-se o tempo todo e fazendo o backing do disco inteiro, dando uma trégua apenas na brilhante “What is Love?” em que os DJ’s Dimitry e Towa homenageiam com muita propriedade a Kraftwerk, fazendo lembrar temas dos alemães como “Sex Object”, por causa da voz grave e sensual de Mike Rogers, mas também a sonoridade de coisas de “Computer World” e “The Man-Machine”.

A faixa título e “E.S.P.” mostram porque a Deee-Lite, principalmente na figura de Miss Kier, se tornou um ícone para a comunidade LGBTQ+. Uma ode ao hedonismo, à estética e ao amor. E o que dizer, então, de “Groove Is In The Heart”? Hit do disco, tornou-se um sucesso mundial, que estourou com clipe na MTV à época e fez com que a Deee-Lite tivesse seu maior reconhecimento, colocando o disco no 20º posto entre os mais vendidos. A música ficou entre as cinco primeiras no Hot 100 da Billboard dos EUA e do Reino Unido, bem como ocupou o 1º lugar na parada Hot Dance Club Play dos EUA. Não à toa. Resumo da proposta do trio, “Groove...” é ainda hoje uma referência quando se pensa em música alegre ou pra se dançar, tanto quanto uma “Stay in the Light” ou “YMCA”. Como não, aliás, entrar nessa com eles?! Pura energia boa. Sampler com a base de “Bring Down the Birds", de Herbie Hancock, o baixo saltitante de Bootsy, os metais de Maceo e Fred, o rap de Q-Trip e toda aquela galera ao fundo curtindo a balada.

Fecham “World...” as também ótimas "Who Was That?", um funk suingado cheio de “sampladelics relics” engendradas pelos DJ’s e um refrão pegajoso; e “Deep Ending”, acid house clássica que lembra, pelos acordes de teclados, Depeche Mode e New Order em seu uso menos convencional dos elementos eletrônicos, ora até num tom soturno herdado do gothic punk.

O HQ do encarte de "World Clique"
Porém, como toda balada animada, assim como começou, logo que raiou o dia, a rave da Deee-Lite se encerrou. O grande sucesso do disco de estreia da banda lhes renderia, inclusive, uma vinda ao Brasil para o Rock in Rio 1991. Mas ficou basicamente por aí. Soltariam apenas mais dois álbuns: o longo e inconstante "Infinity Within" (1992) e o derradeiro ”Dewdrops In The Garden” (1994), este último, praticamente já sem a principal cabeça compositiva da banda, o DJ Towa Towa, o qual começava a se aprumar para uma carreira solo deslumbrante agora rebatizado com o nome artístico pelo qual passaria a ser conhecido: Towa Tei. Diferenças e rusgas afastaram o trio cada um para seu canto. Dmitry, baseado atualmente na Berlim sem muros, segue trabalhando como DJ, compositor e produtor, remixando, inclusive, vários artistas, como Sinead O'Connor, Ziggy Marley, Nina Hagen e Ultra Naté. Além disso, seu conturbado relacionamento com Miss Kier inviabilizava totalmente a continuidade de qualquer projeto em comum. Ela, por seu turno, segue trabalhando agora em Londres como cantora e DJ, além de cumprir o importante papel de ativista da causa LGBTQ+, a qual ocupa posto de porta-voz. Uma perfeita drag queen em pele de mulher.

As portas da boate daquele improvável trio, que unia gente da América, a Europa e o Oriente, fechavam-se para receber outras e novas festas anos 90 afora. Se hoje é normal ver grupos como Black Eyed Peas e Fugees com integrantes de várias nacionalidades ou artistas identificados com a cultura queer, como RuPaul, Army of Lovers, Right Said Fred e Lady Gaga, isso não era comum naquele mundo pré-globalização da Deee-Lite. Eles, com alto astral e muita musicalidade, representaram o começo de uma era e transformaram para sempre a música pop, derrubando muros simbólicos e abrindo portas – e armários – para toda uma geração prestes a entrar no tão aguardado século XXI. Bastou darem um “clique”, para o “mundo” nunca mais ser o mesmo.

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O formato CD traz duas faixas não inclusas na edição original: a fantástica “Deee-Lite Theme”, parceria com Herbie Hancock, que prenuncia o que, principalmente, temas que Towa Tei faria em carreira-solo, como “Sound Museum”, de 1997. Além desta, “Build the Bridge”, cantada por Bill Coleman.

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Deee-Lite - "Groove Is In The Heart"


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FAIXAS:
1; “Good Beat” - 4:40
2. “Power Of Love” - 4:40
3. “Try Me On ... I'm Very You” - 5:14
4. “Smile On” - 3:55
5. “What Is Love?” - 3:38
6. ”World Clique” - 3:20
7. ”E.S.P.” - 3:43
8. “Groove Is In The Heart” (Deee-Lite/Herbie Hancock/Jonathan Davis) - 3:51
9. “Who Was That?” - 4:35
10. “Deep Ending” - 3:47
+ Bônus (versão CD):
- “Deee-Lite Theme” ((Deee-Lite/Hancock) - 2:08
- “Build The Bridge” - 4:32
Todas as composições de autoria de Deee-Lite, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO
Deee-Lite - "World Clique"

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Curtis Mayfield - "Curtis" (1970)



“Curtis escreveu um material que se tornou o exemplo clássico de como um negro inteligente, preocupado com a situação das pessoas, pode estabelecer novos objetivos e injetar orgulho na música. O talento único de Curtis combina uma melodia cativante, instrumentação interessante e comentários expressos que o levaram a um grande respeito na comunidade negra.”
Richard Robinson, para a revista Billboard

“Vidas negras importam”. 
Mensagem escrita em 
cartazes nas ruas norte-americanas 
durante as manifestações contra 
a morte de George Floyd

A história da música soul nos Estados Unidos é marcada pela revelação de talentos tão intensos que acaba sendo impossível de serem represados. O baterista contratado pela Motown estritamente para acompanhar bandas como Martha and the Vandellas e The Marvelettes no final dos anos 50 era também um cantor e compositor tão completo, que não demorou para a gravadora perceber que ele fazia jus em assinar sozinho os próprios trabalhos com o seu nome artístico: Marvin Gaye. Outro, o pianista da banda de Otis Redding nos anos 60, ganhou o protagonismo merecido antes mesmo daquela década terminar, tornando-se o genial “Black Mose” autor de “Shaft” e outras obras essenciais à música soul. Era um rapaz corpulento e de voz grave chamado Isaac Hayes.

Com Curtis Mayfield aconteceu algo semelhante. Um dos integrantes do grupo vocal de rhythm and blues de Chicago The Impressions, ele rapidamente destacou-se sobre seus companheiros, igualmente bons cantores como ele, mas não apenas pela afinadíssima voz tenor e, sim, pela incrível capacidade compositiva e de liderança que o diferia dos demais. Quem escuta os discos da banda, a qual pertenceu de 1963 a 1969, percebe que, desde a composição do primeiro sucesso, a clássica "Gypsy Woman", até o último disco como integrante, “The Young Mods' Forgotten Story”, todo escrito por ele, Curtis se tornara maior do que a Impressions. Ele não cabia mais num trio: precisava ser uno. Precisava alçar o voo solo.

Baldwin e Angela: referências
da luta racial nos anos 70
Vários fatores contribuíam para que a investida solitária de Curtis Mayfield fosse aguardada por público e crítica naquele início de anos 70. Aquele passo tinha tudo para representar uma guinada para alguém já experimentado como artista, pois acostumado com as paradas e com o showbizz, mas também de quem se esperava sintonia com o então efervescente momento de lutas raciais nos Estados Unidos. Fazia pouco que dr. King e Malcom X haviam sido assassinados, abrindo uma fenda emocional e de representatividade para a cultura negra. Em compensação, a ação dos Panteras Negras e o ativismo de figuras como Angela Davis e James Baldwin mantinham de pé as lutas pelos direitos civis. Mas dada a gravidade da situação, era preciso revoltar-se, e quanto mais (e qualificadas) vozes, melhor. A Sly & Family Stone já havia soltado o grito de resistência “Stand!”; Muhammed Ali defendia com punhos e verbos seu povo; James Brown versava as palavras do líder sul-africano Steve Biko: “Say it loud: I’m black and proud!” (“Diga alto: sou negro e orgulhoso!”); o movimento Black Power tomava as ruas exigindo “respect”. Porém, a comunidade negra precisava de mais, e Curtis, então com 28 anos, representava a ascensão e a afirmação de uma população segregada e violentada como cidadã. É nesse cenário que Curtis se lançava para um voo solo: carregando sobre suas asas a responsabilidade tanto artística quanto política da Black Music.

Ouvem-se, então, os primeiros acordes do disco: um som grave de baixo, que prenuncia um riff cheio de groove e inteligência musical. Talvez os “brothers and sisters” que a escutavam pela primeira vez naquele setembro de 1970 não percebessem que estavam diante de um dos mais célebres começos de disco de todos os tempos na música pop. Entram, na sequência, bongôs de matiz africano e vozes entrecruzadas levantando questões polêmicas, as quais são logo catalisadas pela do próprio Curtis, que anuncia com ecos retumbantes: “Não se preocupem: se houver um inferno abaixo de nós, para lá todos iremos!” É “(Don’t Worry”) If There's a Hell Below We're All Going to Go”, a arrebatadora faixa de abertura de um disco que não podia ter outro nome que não, simplesmente, “Curtis”. À exceção do tom pastel da capa, trata-se de um álbum negro em todas as dimensões possíveis: na sonoridade, no resgate da ancestralidade, na mensagem afirmativa e de denúncia e no comprometimento com o movimento negro.

Era a confirmação de que Curtis registrava sua emancipação como artista. A música conhecia pela primeira vez sua obra autoral, que abria com esse funk de reverências a James Brown e à africanidade. Curtis, consciente de seu papel, não fugia às discussões sérias, falando sobre preconceito, violência policial e repressão política: “Irmãs, irmãos e desfavorecidos/ negros e mulatos/ A polícia e os seus apoiadores/ Eles são todos os atores políticos”. “If There's...” antecipava outro trunfo da música soul daquele início de anos 70: a Blackexplotation. Quem escuta o primoroso arranjo de cordas, as percussões afro e o baixo marcado da faixa é impossível não associá-la às trilhas sonoras de filmes feitos com e para negros que “explodiriam” àquela época na indústria cinematográfica norte-americana – dentre as quais, a de “Superfly”, que Curtis assinaria poucos anos mais tarde.

Se o disco começa com algo que resume o estilo sofisticado de Curtis – as primorosas harmonias, os arranjos suntuosos, as cordas entusiasmadas, a levada groove da guitarra, o ritmo tão funky quanto fluido e, claro, o apurado falsete de sua voz –, agora ele, dono de seu rumo, queria mais. Queria tudo que lhe fosse de direito e de seus irmãos. “Other Side Of Town”, cuja abertura com harpas em cascata faz remeter à ideia de um sonho, é uma balada como as que se acostumara a escrever, mas com uma nova densidade tanto estilística quanto discursiva. O arranjo de metais dá-lhe um ar épico, como uma música triunfal da realeza africana, para, em contraste, fazer uma crítica ao apartheid a que os negros do gueto são submetidos socialmente. “Depressão faz parte da minha mente/ O sol nunca brilha/ Do outro lado da cidade/ A necessidade aqui é sempre de mais/ Não há nada de bom na loja/ Do outro lado da cidade/ (...) Minha irmãzinha, ela está com fome/ De um pão para comer/ O meu irmão me entrega sapatos/ Agora estão mostrando os pés”.

Curtis tocando ao vivo à época do disco:talento
confirmado como artista solo
"The Makings of You", novamente com o som da harpa bem presente, lembra bastante temas como “Keep On Pushing” e “For Your Precious Love” da Impressions, e comprova a incrível afinação de Curtis, que performa com sensibilidade e técnica tons agudos para cantar esta linda canção, que novamente traz as questões sociais. Porém, desta vez, relatando uma tocante cena: a de um rapaz que distribui doces para as crianças e as alegra por alguns instantes capazes de fazer com que o autor enxergue esperança “no amor da humanidade”.

A harmonia entre os homens, entretanto, está longe de se concretizar, e Curtis tinha consciência disso. Não à toa, vem, na sequência, a reflexiva “We People Who Are Darker Than Blue” (“Nós, pessoas que somos mais escuras que o azul”). Não por acaso também se trata de um lamentoso blues, o qual seu lindo canto cadencia versos como: “Nós, pessoas que somos mais escuras do que o azul/ Não há tempo para segregar/ Eu estou falando sobre marrom e amarelo também/ Garota tão amarela que você não pode contar/ Eu sou apenas a superfície do nosso poço profundo e escuro/ Se a sua mente puder realmente ver/ Você veria que sua cor é igual à minha”.

Outra preciosidade de "Curtis" é "Move on Up", grande sucesso da carreira solo do artista que prova o quanto ainda sabia escrever hits (a versão reduzida dos mais de 8 min originais passou 10 semanas no top 50 da parada de singles do Reino Unido em 1971, chegando ao 12º lugar, e se tornou um clássico da música soul ao longo dos anos). Esta empolgante soul, com exuberantes arranjos de cordas e metais, traz mais uma vez a intensa percussão afro e uma performance impecável de Curtis, responsável não apenas pela guitarra, mas por vários outros instrumentos. Aqui nota-se um músico totalmente dono de sua obra: ao mesmo tempo em que se vale de sua música para a crítica, também domina a arte de criar canções para as massas. Para os que acham que seu auge é "Superfly", "Move..." prova que este momento já estava em “Curtis”.

Curtis com a filha ainda criança,
nos anos 70
Na suingada e lúdica "Miss Black America", Curtis inicia dialogando com sua filha criança perguntando-lhe o que ela, em seus sonhos, se imagina quando crescer. A resposta induz a algo que, novamente, retraz as conquistas por direitos dos negros, uma vez que a recente vitória de uma mulher preta no concurso Miss Universo em 2019 (a sul-africana Zozibini Tunzi), ainda surpreende o mundo. "Wild and Free", com seus metais e cordas intensos, é mais um funk que reitera o discurso pelo respeito à causa racial e ao direito de ser "selvagem e livre". Agora, aliás, subindo o tom ao incrementar na letra a icônica mensagem anti-racismo "power to the people" ("Respeito por essas pessoas/ Poder para as pessoas/ Estabelecendo a velha geração/ Trazendo o novíssimo/ Selvagem e livre com a paz finalmente").

A suave "Give it Up" tem a primazia de fechar o brilhante debut de Curtis Mayfield, trabalho assustadoramente atual mesmo 50 anos após seu lançamento. A catarse mundial gerada pela revoltante morte do ex-segurança George Floyd, vitimado recentemente pela violência da polícia e da sociedade norte-americana, evidenciou o quanto as questões levantada neste disco, há cinco décadas, estão longe de serem resolvidas. Se o racismo ainda está aí, Curtis é morto desde 1999, quando, após complicações motivadas por um fatídico acidente que o deixara paraplégico, despedia-se prematuramente aos 57 anos. Só assim para frear o seu talento.

Embora não tenha feito o mesmo sucesso que seus contemporâneos de black music Marvin Gaye, Al Green, Stevie Wonder e Barry White, Curtis pode tranquilamente ser considerado integrante do.panteão dos grandes criadores da soul norte-americana. Ele é daqueles autores cuja obra demarca um “antes” e um “depois”, tanto pela beleza única de suas composições quanto pelo o que representou para o movimento negro e a luta pelos Direitos Civis norte-americanos naquele inicio de década de 70. O disco “Curtis” antecipa em um ano, inclusive, uma trinca de obras que se eternizaria, entre outras qualidades, justamente pelo teor de resistência: “What’s Going On”, de Gaye, “Pieces of a Man”, de Gil Scott-Heron, e “There’s a Riot Goin’ On”, da Sly. Curtis dizia que suas músicas sempre vieram de perguntas para as quais precisava de respostas. Vendo o quadro político-social de hoje ainda tão desigual, se estivesse vivo, 50 anos depois de ter levantado e respondido várias dessas questões, provavelmente voltaria numa delas e se indagaria: “o inferno, que eu pensava estar abaixo de nós, é aqui mesmo, então?”

Curtis Mayfield - "Move on Up"




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FAIXAS:
1. "(Don't Worry) If There's a Hell Below, We're All Going to Go" - 7:50
2. "The Other Side of Town" - 4:01
3. "The Makings of You" - 3:43
4. "We the People Who Are Darker Than Blue" - 6:05
5. "Move On Up" - 8:45
6. "Miss Black America" - 2:53
7. "Wild and Free" - 3:16
8. "Give It Up" - 3:49
Todas as composições de autoria de Curtis Mayfield

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OUÇA O DISCO
Curtis Mayfield - "Curtis"

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Música da Cabeça - Programa #165


Não apenas conseguimos como merecemos respirar! O MDC de hoje enche os pulmões para falar sobre a morte de George Floyd nos EUA e as dignas reações de protesto que tomaram as ruas e o mundo. Também falamos, claro, de música, e temos para nos ajudar nisso George Clinton e Parliament/Funkadelic, Madonna, Erasmo Carlos, Portishead, RPM, New Order e mais. Ainda, um "Sete-List" em homenagem ao noventão Clint Eastwood, sua relação com a música e, claro, com o cinema. Respira fundo e atiça os ouvidos hoje, às 21h, aqui pela resfolgada Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues #MDCAntiFascista


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/