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terça-feira, 24 de setembro de 2013

Chick Corea - "Mad Hatter" (1978)




“CHAPELEIRO: Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço você não falaria em gastá-lo, como uma coisa.
Ele é alguém.
ALICE: Não sei o que você quer dizer.
CHAPELEIRO: É claro que você não sabe!
Eu diria até mesmo que você nunca falou com o Tempo!
ALICE: Talvez não, mas sei que devo marcar o tempo
quando aprendo música.”

trecho de “Alice no País das Maravilhas”,
de Lewis Carroll


Depois de “Blow By Blow” do Jeff Beck, meu preferido, apresento pra vocês mais um favoritíssimo da casa: “The Mad Hatter”, do pianista e tecladista norte-americano Chick Corea. Como sempre, um pouquinho de história: em 1978, aos 37 anos, Armando Anthony Corea já tinha uma longa estrada na música. Tocou com os percussionistas Mongo Santamaria e Willie Bobo, com o flautista Herbie Mann e com o sax tenor Stan Getz.  Gravou seus primeiros discos solo na metade dos anos 60 e mergulhou de cabeça na sonoridade free daqueles tempos.

Em 1968, foi convidado por Miles Davis a substituir Herbie Hancock em sua banda. Participou dos seminais discos "In a Silent Way" e “Bitches Brew”. Paralelamente, tinha os grupos Circle – com e sem o multiinstrumentista Anrhony Braxton – e a primeira encarnação do Return to Forever, da qual participavam os brasileiros Airto Moreira e Flora Purim, além de Joe Farrell e Stanley Clarke. Após dois discos com esta formação, Corea foi com tudo pro fusion, trazendo para a banda, primeiro o guitarrista Bill Connors, e depois descobrindo um jovem de 19 anos, Al Di Meola.

Neste tempo todo, Corea fazia projetos especiais para a gravadora ECM, como discos de piano solo, duetos com o vibrafonista Gary Burton e trios com Dave Holland e Barry Altschul. Em 1976, sentindo a necessidade de misturar a linguagem acústica de seus discos da ECM com o fusion, muito em moda na época, Corea fez uma trilogia de discos temáticos onde estas preocupações tomam a forma de música: “The Leprechaun”, baseado nas histórias de duendes, e “My Spanish Heart”, onde ele se debruça sobre a Espanha e seus sons, ambos de 76, e “The Mad Hatter”, de 78. Na minha opinião, este terceiro é provavelmente o trabalho em que Corea consegue mesclar as duas linguagens – e o acento erudito com quinteto de cordas – com sucesso total, musicalmente falando.

Baseado no clássico livro de Lewis Carroll, "Alice no País das Maravilhas"a chave para entender o disco está na capa com Corea vestido de Chapeleiro Maluco. A viagem inicia aí. Em termos musicais, "The Mad Hatter" começa com Corea pilotando seus teclados em “The Woods”. Com moogs, mini-moogs, sintetizadores, pianos elétricos e outros bichos, ele consegue reproduzir os sons de uma floresta, com sapos, grilos e insetos, dando uma prévia do que virá pela frente, a mistura de clássico com moderno. “Tweedle Dee” segue na mesma trilha, fazendo uso das cordas e dos sopros (três trompetes e um trombone), pode-se verificar com clareza a influência de Bela Bártok em sua música. Na música seguinte, “The Trial”, temos a primeira aparição da exímia cantora e tecladista, além de mulher de Corea, Gayle Moran (que havia participado da segunda formação da Mahavishnu Orchestra, ao lado de John McLaughlin e Jean-Luc Ponty). No julgamento do Rei de Copas, retirado diretamente do livro de Carroll, Gayle canta com acento lírico: “Who’ll stole the tarts / Was it the king of Hearts?”.

O principal momento jazzístico do disco acontece com “Humpty Dumpty”, uma preferida dos músicos de Porto Alegre. Com um quarteto básico de jazz, Corea consegue performances extraordinárias de seus colegas Joe Farrell no sax tenor, Eddie Gomez no baixo acústico e Steve Gadd na bateria. Em meio a todos aqueles teclados, cordas e sopros, é interessante ouvir o contraste de um grupo acústico tocando um hard-bop clássico. Cada músico dá seu showzinho particular, mas preste atenção no som de baixo de Gomez. Madeira pura!

O lado 1 do LP termina com “Prelude to Falling Alice”, onde o tema é tocado ao piano e “Falling Alice”, quando o pianista e compositor usa de todo o arsenal sonoro para contar a queda de Alice. Gayle Moran canta o tema principal, acompanhada pelas cordas e pelos sopros. Nesta música, temos a primeira aparição de Herbie Hancock no piano elétrico, fazendo a harmonia para o solo de mini-moog de Corea. Neste período, ele e Corea começam a gravar duos de pianos. Destaque também para o sax tenor de Farrell, um talento subestimado do jazz. Como estamos no tempo do LP, há um fechamento musical da história pra que as coisas comecem de novo no lado 2.

Ao virar o disco, “Tweedle Dum” reprisa o tema de “Tweedle Dee” numa espécie de introdução da melhor faixa do disco, “Dear Alice”. Com 13 min e 7 seg, a música é uma espécie de tour de force de todos os envolvidos. Pra começar com Eddie Gomez fazendo a melodia no baixo acústico e Corea fazendo pequenos comentários ao piano acústico. Durante 2min e 46seg, o baixista conduz a música com seu solo, à medida que Gadd vai entrando aos poucos com acentos rítmicos na bateria. Moran entra para cantar o tema principal e aí temos Farrell brilhando no solo de flauta, secondado pelo quinteto de cordas e pelos sopros. Depois, Chick mostra toda sua destreza e musicalidade ao piano. Tudo isso com Gadd dando seu show à parte e mostrando porque é um dos bateristas mais cultuados do mundo. Na época, ele deu uma entrevista dizendo que pedia as partituras de piano de Corea e estudava em casa antes de gravar. Esta preocupação deu resultado: em algumas passagens de "Dear Alice", os dois instrumentos parecem uma coisa só. Esta música sozinha valeria o disco inteiro, tamanha a musicalidade que Corea e seus músicos atingem, sem falar no arranjo perfeito que contrapõe as cordas e os sopros.

Para encerrar o disco, "The Mad Hatter Rhapsody" com Corea no mini-moog e Hancock em sua segunda aparição no piano elétrico. O encontro destas duas feras é sensacional. Enquanto Corea sola, Hancock faz harmonias diferenciadas no Fender Rhodes. Nesta faixa, Hancock consegue tirar Gadd da bateria e coloca seu fiel escudeiro Harvey Mason, que dá um suingue todo especial à faixa. Depois que os dois tecladistas demonstram toda a sua qualidade, vem um interlúdio com o tema principal tocado pela flauta e pelos sopros. Claro que a latinidade não poderia ficar de fora e uma passagem de uma salsa estilizada com teclados e Gadd no cowbell fazem a cama para o tema final onde volta Gayle Moran para apoteose final. Um disco maravilhoso. Quem não tem, procure nas lojas ou na internet.
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FAIXAS:
01. "The Woods" – 4:22
02. "Tweedle Dee" – 1:10
03. "The Trial" – 1:43
04. "Humpty Dumpty" – 6:27
05. "Prelude to Falling Alice" – 1:19
06. "Falling Alice" (Chick Corea/Gayle Moran) – 8:18
07. "Tweedle Dum" – 2:54
08. "Dear Alice" (Corea/Moran) – 13:06
09. "The Mad Hatter Rhapsody" – 10:50
todas de Chick Corea, exceto indicadas

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Baixe para ouvir:


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

ClyBlog 5+ Discos



Esse assunto é tão importante aqui no blog que até mesmo temos uma seção dedicada exclusivamente a grandes representantes neste campo, os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Assim, nesta série especial dos 5 anos do clyblog, não podíamos deixar de perguntar para nossos convidados quais os 5 grandes discos que fazem suas cabeças. Os indispensáveis, os clássicos, os xodózinhos, os indiscutíveis, os do coração, os que você levaria para uma ilha deserta, enfim, aqueles discos que para estas 5 pessoas são os top 5.
Então, sem mais, com vocês, clyblog 5+ discos.



1 Carlos "Cigana do Rock"
músico
(Balneário Camboriú /SC)

"Cara, são muitos.
Trampo difícil!!!"

1. "Revolver" - The Beatles (1966)
2. "Aftermath" - The Rolling Stones (1966)
3. "Original de Fábrica" - Cartolas (2007)
4. "The Kids are Alright" soundtrack - The Who (1979)


5. "Wolfmother" - Wolfmother (2005)

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2 Eduardo Lattes
publicitário
(Porto Alegre /RS)

"Pensei numa lista boa sem repetir artistas.
Que tal?"



Elvis é um dos ídolos de Eduardo Lattes




1. "White Album" - The Beatles (1968)
2. "Pet Sounds" - The Beach Boys (1966)
3. "From Elvis in Memphis" - Elvis Presley (1969)
4. "Houses of the Holy" - Led Zeppelin (1973)
5. "Are You Experienced" - The Jimmi Hendrix Experience (1967)




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3 César "Pereba" Castro
baterista
(Sapucaia do Sul/RS)

"Listar cinco é tarefa difícil pra quem tem uma lista com,
no mínimo 200 grandes da história e uns 100 da lista pessoal.
Mas aí vai minha lista dos 5 greats."

Um dos destaques de 
César Castro.
Novos Baianos F.C.


1. "Revolver" - The Beatles (1966)
2. "Are You Experienced" - Jimmi Hendrix Experience (1967)
3. "Novos Baianos F.C." - Novos Baianos (1973)
4. "Tim Maia Racional" - Tim Maia (1975)
5. "The Singles: Volume 4 - 1966/1967" - James Brown (2007)




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4 Júlio Faleiro
funcionário público e músico
(Viamão/RS)

"Na verdade, dos Beatles nem vale pois todos são meus xodós."


1. "Revolver" - The Beatles (1966)
2. "The Wall" - Pink Floyd (1979)


3. "Falso Brilhante" - Elis Regina (1976)
4. "Amor de Índio" - Beto Guedes (1978)
5. "Circuladô" - Caetano Veloso (1992)


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5 Paulo Moreira
radialista
(Porto Alegre/RS)

"Exile on Main Street" tem toda uma mitologia por trás de sua gravação
e este é o verdadeiro caso em que esta mitologia está a serviço de um disco impecável;
Jeff Beck, numa era de jazz-rock e fusion, gravou O disco do gênero. Genial!!;
em "The Mad Hatter", Corea mistura Lewis Carroll com metais e cordas;
Belchior se superou com "Alucinação", falando das agruras de ser artista em plena ditadura militar;
e o "Abbey Road" é uma enciclopédia da pop music. Tudo o que veio depois já estava ali. "




O favorito de 
Paulo Moreira

1. "Exile on Main Street" - The Rolling Stones (1972)
2. "Blow By Blow" - Jeff Beck (1975)
3. "The Mad Hatter" - Chick Corea (1978)
4. "Alucinação" - Belchior (1976)
5. "Abbey Road" - The Beatles (1969)



domingo, 12 de outubro de 2025

Chick Corea - "Children's Songs" (1984)


"Adoro estar perto de crianças, porque elas são livres e brilhantes e te fazem acordar. Então, pensar sobre esse conceito do brilho das crianças foi o que serviu de modelo para eu escrever essas canções infantis".
Chick Corea

É interessante perceber como músicos acostumados a se experimentarem uma hora chegam à música infantil. Foi assim com Woody Guthrie, Carole King e Esquivel, assim como com os brasileiros Chico Buarque, Adriana Calcanhoto (sob o pseudônimo Partimpim), Paulo Leminski e Vinicius de Moraes. Até mesmo na música clássica, a se ver por Prokofiev, Debussy e Mozart. Há exemplos no jazz também, de Sammy Davis Jr., com seu “Sings the Complete ‘Dr. Dolittle’”, a Vince Guaraldi, que um dia foi escalado para compor as trilhas da série infantil televisiva Peanuts e ficou mundialmente conhecido justamente por esse trabalho.

Não é uma regra, mas quando esses músicos se tornam mães ou pais, há um motivo a mais para dedicarem canções aos pequenos. Chick Corea é um desses casos. No início dos anos 70, já uma lenda do jazz mundial, ele estava recém divorciado da mãe de seus filhos, Thaddeus e Liana, e casava-se pela segunda vez, agora com a também pianista Gayle Moran, esposa que o acompanhou até o final da vida, em 2021. Porém, os filhos ainda eram pequenos àquela altura. Como, então, afagá-los neste novo momento de suas vidas pessoais? Como mantê-los próximos a si? Não há confirmação sobre esta motivação, mas a resposta parece ter vindo, nada estranhamente, em formato de música. A coincidência dos períodos entre a nova configuração familiar, as primeiras composições com a temática da criança e o começo das improvisações solo ao piano dão a “Children’s Songs”, de 1984, este caráter.

Virtuose do piano, mas também um visionário da música contemporânea, Corea ajudou a moldar o curso do jazz moderno, influenciando gerações de músicos com sua habilidade técnica, ousadia harmônica e busca incessante pela inovação. Sua obra passa pelo hard bop, jazz fusion, latin jazz, eletrônico, vanguarda e música clássica. Escritas entre 1971 e 1983, as “Children’s Songs” captam, num grande poder de síntese e sensibilidade, vários aspectos de toda essa musicalidade em 20 peças e mais um “adendo” final.

A onipresença dos filhos na vida de Corea fez com que ele, inspirado na série “Mikrokosmos”, de 1940, do compositor húngaro Béla Bartók (uma de suas grandes influências), passasse a escrever, dentre outros diversos formatos, breves miniaturas de música infantil. Ele cria suas versões em composições ao mesmo tempo líricas e ricas em estrutura melódica e harmônica, que passeiam pelo romântico, pelo jazz, pelo folk e pelo pop. Na simplicidade lúdica das “Children’s Songs” há um trabalho complexo. Há paralelos estilísticos e estruturais com o ciclo de Bartók, como o uso das escalas pentatônicas, o emprego de compassos e de ritmos cruzados incomuns, a variedade de atmosferas sonoras em um tempo relativamente curto de cada peça e o aumento gradativo de dificuldade e complexidade ao longo da sequência.

A lúdica capa com os Smurfs de
"Friends", de 1978, onde já tinham
duas das "Children's Songs"
Traços desse repertório aparecem, a partir de então, em vários momentos de sua vasta produção musical, seja em carreira solo, em bandas ou parcerias. Uma versão mais lenta de "Nº 1" aparece pela primeira vez no álbum “Crystal Silence”, duo com Gary Burton, de 1972, e um ano depois junto da Return to Forever em “Light as a Feather”. A célebre banda de jazz fusion de Corea, entretanto, já havia prenunciado as “canções infantis” dentro da faixa "Space Circus Part I", constante no primeiro disco deles, “Hymn of the Seventh Galaxy”. Já os temas "Nº 5" e "Nº 15" surgem em “Friends”, de 1978, quando acompanhado dos músicos Steve Gadd, Eddie Gomez e Joe Farrell.

A ebulição elétrica da Return to Forever foi usada mais uma vez por Corea para trazer esses conceitos musicais dentro da extensa "Songs of the Pharoah Kings", que encerra epicamente o álbum “Where Have I Known You Before”, de 1974, a qual escondia, na verdade, a fuga “Nº 6”. Até mesmo o travesso tema "Nº 9" fez sua primeira aparição no álbum solo “The Leprechaun”, de 1976, como "Pixieland Rag".

Somente nos anos 80, agora desnudadas de qualquer arranjo ou grandes instrumentalizações, as “Children’s Songs” são reunidas e gravadas ao piano solo em julho de 1983, no Tonstudio Bauer, em Ludwigsburg, Alemanha, pelo selo ECM. A exceção é a última faixa, em que o Corea forma um trio de câmara com Ida Kavafian, ao violino, e Fred Sherry, no violoncelo. O alegremente elegante "Addendum", que fecha “Children's Songss”, demonstra a excelência contrapontística do pianista e a capacidade de compor para cordas, uma habilidade que surgiu em “The Leprechaun” e foi aprimorada ainda mais por ele no clássico “Mad Hatter”, de 1978.

Corea, que pretendia "transmitir simplicidade como beleza, representada no espírito de uma criança", como escreveu no encarte original do disco, não apenas conseguiu seu objetivo como entendeu ser importante não se eximir (e nem isentar a criança) de experimentar densidades musicais não tão comuns de serem dirigidas a esse público. Lances lúdicos, coloridos e graciosos se juntam à dramaticidade, melancolia e introspecção. E não necessariamente nessa ordem, como na impermanência da vida, algo essencial que um ser humano aprenda desde pequeno. E o objetivo principal foi atingido: os filhos Thaddeus e Liana sentiram-se devidamente afagados. E os fãs também.

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Chick Corea apresentando ao vivo na 
Alemanha as "Children's Songs", em 1982


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FAIXAS:
1. “Nº 1” - 1:47
2. “Nº 2” - 0:53
3. “Nº 3” - 1:23
4. “Nº 4” - 2:14
5. “Nº 5” - 1:07
6. “Nº 6” - 2:38
7. “Nº 7” - 1:38
8. “Nº 8” - 1:39
9. “Nº 9” - 1:11
10. “Nº 10” - 1:29
11. “Nº 11” - 0:38
12. “Nº 12” - 2:33
13. “Nº 13” - 1:21
14. “Nº 14” - 1:58
15. “Nº 15” - 1:08
16. “Nº 16” & Nº 17” - 1:55
17. “Nº 18” - 1:47
18. “Nº 19” - 2:26
19. “Nº 20” - 1:20
20. “Addendum” - 5:10
Todas as composições de autoria de Chick Corea

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OUÇA O DISCO:
Chick Corea - "Children's Songs" 

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Daniel Rodrigues

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Robert Wyatt - “Shleep” (1997)



Pela primeira vez, eu revi meu passado
e parecia tão inacessível,
e tudo o que eu tinha feito
- mesmo tendo gravado
 neste meio tempo – 
parecia tão distante do que eu era agora,
 que era a primeira experiência
que eu já tive na minha vida de nostalgia.”
Robert Wyatt,
sobre Shleep



Os Jogos Paralímpicos, ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, trouxeram à tona o velho questionamento – muitas vezes, retórico e demagogo – das dificuldades e enfrentamentos que deficientes físicos têm de passar em suas vidas. Na arte, mesmo em tempos modernos como os de hoje, as barreiras são semelhantes. Quando se pensa sobre artistas famosos com deficiência logo vem à mente Stevie Wonder e Ray Charles, dois cegos que passaram por cima de seu problema físico por mérito, perseverança e, claro, talento. Mas outra cabeça genial também se enquadra nessa lista de artistas deficientes que souberam suplantar esse aspecto tanto pela superação quanto, igualmente, pela capacidade criativa. Está se falando do inglês Robert Wyatt, fundador e integrante da Soft Machine e um dos principais representantes da chamada cena de Canterbury, grupo de bandas e músicos do final dos anos 60/início dos 70 que misturavam com muita propriedade rock progressivo, psicodelia e jazz. Mas não só isso quando se fala de um criador de alta estirpe como Wyatt.

A inventividade harmonia e rítmica que Wyatt tirava da bateria na Soft Machine já denotava algo que seria determinante em sua obra solo a partir de 1º de julho de 1973. Pois neste fatídico dia, numa festa regada a muita droga, Wyatt, numa crise depressiva, se atira do terceiro andar de um prédio. Resultado: fica paraplégico. O que seria trágico para quem tem de usar as pernas para operar seu instrumento por completo foi transformado por Wyatt. Com dor e sacrifício, ele se reinventa como pessoa e como músico. Se sua figura hoje lembra a de um mago – barba branca e espessa, sobrancelhas angulosas e olhar firme –, não é coincidência. A expressão guarda as marcas de alguém que, talvez inconscientemente, tenha tido que buscar nas profundezas mais místicas de si próprio uma forma de fazer nascer um novo homem e artista diante da condição limitadora que a cadeira de rodas impõe. Impossibilitado de tocar bateria, ele, em contrapartida, especializa-se em vários outros aparatos musicais, tornando-se multi-instrumentista. Sua musicalidade provou, assim, ir além do instrumento em si, pois é de sua natureza, independente do timbre que produza ou da técnica que precise usar. Dentro de uma extensa e profícua discografia (tanto solo quanto em outros projetos), “Shleep”, de 1997, é uma joia que condensa seus melhores predicados.

O brilhante afro-pop “Heaps Of Sheeps” abre o disco em alto nível. Uma levada de guitarra soul, um baixo bem marcado e uma base de teclados norteiam esta embalada melodia, repleta de percussões e efeitos de sintetizador. Ademais, “Shleep” conta com a produção do mais habilidoso profissional das mesas de estúdio do rock internacional: Brian Eno. Artista de formação plural, alia sua sensibilidade e conhecimento musical e artístico a serviço do conceito dos trabalhos que produz, tornando-se, não raro, um coautor não creditado como tal – assim como ocorrera em “Zooropa”, do U2, ou “Dream Theory in Malaya”, de John Hassell. Mesmo também não coassinando este, é visível sua interferência na estrutura do repertório, na arquitetura sonora e nas marcantes participações, seja de seus teclados e sintetizadores, vocais ou arranjos. Ouvindo “Heaps...”, por exemplo, é impossível não lembrar-se de outras faixas de abertura de projetos de Eno, como “Home” (em “Everything That Happens Will Happen Today”, com David Byrne), “Lay my Love” (de "Wrong Way Up", com John Cale) ou “No One Receiving” (“Before and After Science”, solo). E como não perceber no refrão o toque de Eno no coro com aquele ar étnico? O vocal de Wyatt, entretanto, é um elemento único. Sua quase sufocada voz transmite ao mesmo tempo sapiência e sofreguidão.

“Shleep” segue com a engenhosidade harmônica das duas linhas de piano de “The Duchess” – uma em tempo 1 x 2 e outra 3 x 3, mas meticulosamente dessincronizadas –, que dão-lhe um caráter quase atonal. Lembra bastante a obscuridade da The Residents – banda, aliás, bastante influenciada por Wyatt. As frases do sax de Evan Parker, combinadas com uma flauta e o violino polonês de Wyatt, ao mesmo tempo emprestam dissonância e cores a esta canção de ninar macabra, que podia tranquilamente integrar a trilha de um filme de terror com criança. A atmosfera muda totalmente em “Maryan”, quando o trompete de Wyatt, sobre o dedilhar de um violão, começa a canção serpenteando acordes hispano-árabes. O djembê africano de Gary Azukx e o violino oriental de Chikako Sato adicionam-se. World music in natura. É quando entra a intrincada melodia de voz de Wyatt, a qual inclui a da esposa e parceira musical Alfreda Benge, formando a provavelmente mais complexa e bela canção do disco. Isso sem mencionar o solo de guitarra de outro fera que participa das gravações: o mestre Phil Manzanera. Tudo, claro, orquestrado pela maestria de Wyatt.

De fato, a inteligência musical de Wyatt sempre foi além do óbvio. Ligado às artes plásticas (é de sua autoria as pinturas e desenhos que ilustram todas as capas de seus discos), sua visão de arte vai além apenas dos sons. Por isso, sua música é tão completa e complexa. Do rock progressivo ele faz suscitar o dodecafonismo e a eletroacústica; sua leitura do jazz engloba a avant-garde e projeta o pós-jazz; a psicodelia não fica somente nos clichês, mas vai em busca de texturas próximas do concretismo, do minimalismo e do microtonalismo; as referências exóticas não se restringem apenas à música indiana ou oriental, mas bebem nos timbres e ritmos da Espanha muçulmana e da África negra e egípcia. “Was A Friend”, nessa proposta politonal e polirrítimica, é um jazz dissonante que quebra novamente o ritmo da sequência de faixas, o que, em termos de conceito de obra, é um expediente empregado por Eno na construção temática dos álbuns que produz afetuosamente aos amigos (“Everything...”, com Byrne, e “Outside”, com David Bowie, por exemplo, respeitam essa ordem).

Noutro destaque, a emocionante “Free Will And Testament” (“Livre vontade e testamento”), dá para captar na voz sentida e em registro agudo de Wyatt (de difícil afinação) o sofrimento pela condição da paraplegia, bem como a culpa pelo ato suicida que ainda o rondava mesmo quase 25 anos depois do acidente. “Vou ter a minha liberdade, mas dentro de certos limites/ Eu não posso desejar para mim ilimitadas mutações/ Eu não posso saber o que eu seria se não fosse ele/ Posso apenas imaginar a mim mesmo”. Um lamento do fundo da alma que gerou uma canção excepcional. Mudando de sintonia de novo, o pós-jazz “September The Ninth” remonta a Chick Corea de "Mad Hatter", a Carla Bley de “Escalator Over the Hill” e até ao microtonalismo de Harry Partch na ópera-lóki “Revelation in the Courthouse Park”.

“Alien”, composição de Wyatt e Alfreda, tem claramente o dedo de Eno no arranjo. Basta notar os característicos teclados espaciais ao fundo, os mesmos que se ouvem lá em "Low", de Bowie, e em outros vários trabalhos de Eno, principalmente os de ambient music. Aos belos vocais longilíneos de Wyatt somam-se percussões africanas bastante rítmicas e um baixo alto e bem marcado, revelando aos poucos outra grande faixa do álbum – a qual retraz, agora, a pegada world music experimentada por Eno com os Talking Heads em "Remain In Light", de 1979.

“Out Of Season”, intensa, também interliga vários pontos díspares: música de teatro, atonalismo, Debussy, jazz modal. E como se tudo estivesse propositadamente disperso, fora da estação. Porém, na montanha-russa proposta pelo autor, logo há uma nova tentativa de encontro de um centro tonal (e emocional) mais acolhedor, o que se nota na colorida – mas não menos dispersa –  “A Sunday in Madrid”. Aqui, Wyatt narra uma onírica e viagem à capital espanhola, numa letra de grande teor literário: “Pa chega à cidade das portas fechadas/ É recebido por mineiros das Astúrias/ Sua limusine estriada guarda as últimas brilhantes gavetas-caixas gigantes/ Amontoados para o calor/ Ele é depositado em sua câmara interna/ Mais tarde, Pa encontra o urso representando uma árvore/ Para confundir sentido de cheiro dos cães dos portões do inferno...”

Mais uma ótima é “Blues In Bob Minor”, um blues embalado que é levado numa base de órgão. O canto ininterrupto de Wyatt conta outra longa história, esta da existência sem sentido dos personagens Roger e Martha em meio à célere e burocrática vida urbana. Nessa, a guitarra carregada do ex-Roxy Music Manzanera faz um duo de improviso com a jazzística de Philip Catherine, noutro momento especial do disco. “The Whole Point Of No Return”, composição do amigo Paul Weller (Jam e Style Council), é uma pequena vinheta altamente lírica que encerra o disco numa versão tão personalizada que em nada lembra a original, de 1982. A base se sustenta num coro ao estilo do canto medieval, soturno e litúrgico, assinado pelo próprio Weller. O piano de Wyatt solta notas esparsas, dando a liberdade perfeita para seu trompete solar, que desfecha “Shleep” com a mesma complexidade e beleza que o perfazem desde o início.

Da discografia de Wyatt, muitos destacariam “Rock Bottom”, de 1973, como o pesquisador musical italiano Piero Scaruffi, que o coloca como o 2º maior álbum de rock de todos os tempos e entre dos 15 trabalhos mais importantes da música mundial na segunda metade do século XX. Não é para menos: gravado imediatamente após o acidente, é um registro fiel e pungente do então novo Robert Wyatt que o destino reservara (o título, pertinentemente quer dizer “fundo do poço”). Entretanto, o também celebrado “Shleep”, além de contar com a mão mágica de Eno na produção, é resultado de um artista, então aos 52 anos, maduro, tanto no que se refere à sua música e arte quanto a ele próprio enquanto pessoa e cadeirante. “Levei muito tempo para me recuperar do acidente”, confessou em entrevista na época do lançamento de “Shleep”. As questões da depressão estão igualmente presentes, bem como a reflexão de quem se é a busca de significados maiores. Se Wyatt chegou às respostas, só ele pode confirmar. O disco, no entanto, dá pistas desse olhar autocurador que ele lançou para dentro de si. Terapêutico para ele e um deleite para quem escuta.
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FAIXAS:
1. Heaps Of Sheeps (Alfreda Benge/Robert Wyatt) - 4:56
2. The Duchess - 4:18
3. Maryan (Philip Catherine/Wyatt) - 6:11
4. Was A Friend (Hugh Hoppe/Wyatt) - 6:09
5. Free Will And Testament - 4:13
6. September The Ninth (Benge/Wyatt) - 6:41
7. Alien (Benge/Wyatt) - 6:47
8. Out Of Season (Benge/Wyatt) - 2:32
9. A Sunday In Madrid - 4:41
10. Blues In Bob Minor - 5:46
11. The Whole Point Of No Return (Paul Weller) - 1:25

todas as composições de Robert Wyatt, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO: