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quarta-feira, 22 de maio de 2024

Exposição "“FUNK: Um grito de ousadia e liberdade” - Museu de Arte do Rio (MAR) - Rio de Janeiro/RJ (25/04/2024)

 

Ir ao Museu de Arte do Rio, o MAR, é sempre uma experiência rica e penosa. Rica pelo óbvio: a qualidade das exposições que lá circulam, não raro as mais bem curadas e capitalizadas que passam pelo Rio de Janeiro (esta, por sinal, a cidade de maior concentração de grandes exposições do Brasil junto ou até mais do que São Paulo). Mas também penosa porque, além de extensas (o que, por mais gratificante que seja, é também cansativo), dificilmente se consegue aproveitar tudo que o MAR oferece simultaneamente. No caso, foram seis mostras, das quais pude, na companhia de Leocádia e do amigo Eduardo Almeida, ver com um pouco mais de atenção três delas.

Uma destas, contudo, posso dizer que foi a melhor que presenciei no Rio desta feita: “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”. Um espetáculo. Com curadoria da Equipe MAR junto a Taísa Machado e ninguém menos que o lendário Dom Filó – um dos principais ativistas da causa negra e agitadores culturais do funk dos anos 70, responsável pela descoberta de que ninguém menos que gente como a Banda Black Rio e Carlos Dafé –, a principal mostra do ano do MAR perpassa os contextos do funk carioca através da história. A temática da exposição apresenta e articula a história do funk, para além da sua sonoridade, também evidenciando a matriz cultural urbana, periférica, a sua dimensão coreográfica, as suas comunidades.

Para chegar aos morros e favelas onde o funk carioca se tornou obra e sinônimo e estilo, a mostra traz com muita propriedade toda a construção desdobramentos estéticos, políticos e econômicos ao imaginário que em torno dele foi constituído, recuperando as audições públicas do início do século XX, os clubes para negros dos anos 40/50, os bailes hi-fi dos anos 60, até chegar, aí sim, no fenômeno das festas black dos anos 70. Influenciados pelo movimento Black Power, Panteras Negras, a Blackexplotation e, claro, a música soul norte-americana e outros, a galera tomou conta de ginásios e galpões da Zona Norte e mandou ver no movimento mais libertário e dançante que o Brasil moderno já viu. E tudo isso estava representado na exposição através de fotos, posters, pinturas, capas de disco, e também em som, seja dos hinos funk até o poderoso off do próprio Dom Filó. Ninguém melhor que ele para a tarefa de contar a história daquele momento crucial para a cultura pop no Brasil, o que viria a dar no funk carioca tal qual conhecemos.

Toda a parte que mostra a evolução do funk em terras cariocas é bem interessante, evidenciando as etapas vividas nos anos 90, a entrada no século XXI e o advento/chegada das novas tecnologias no morro. O contraste – inevitável, proposital, ressignificado – entre pobreza e riqueza, periferia e centralidade, comunidade e cosmopolitismo, é de uma riqueza incalculável, muito a se assimilar. Porém, mesmo com bastante material, esta segunda metade da exposição, mesmo sendo o crucial do projeto, não é tão interessante quanto a sua primeira, a que traz a pré-história do funk do Rio. Talvez pelo fascínio que a mim tem a era Black Rio, suas inspirações políticas, comportamentais e culturais que bebem nos Estados Unidos, isso tenha me prendido mais a atenção – embora tenha a sensação de que, documentalmente falando, seja pelos áudios, obras, objetos, músicas, etc., esta parte introdutória pareça mais completa.

Contudo, a principal sensação que se sai é a de que, enfim, chegamos aos espaços de arte. Embora eu não tenha relação e nem pertença ao universo do funk carioca (embora o seja contemporâneo, mesmo que de longe), a exposição fez-me aludir aos versos de Cartola em sua música "Tempos Idos", quando ele via seu samba assumindo a nobreza que lhe é merecida: "O nosso samba, humilde samba/ Foi de conquistas em conquistas/ Conseguiu penetrar no Municipal". Aqui, é a cultura pop na melhor acepção da palavra que adentrou os salões nobres das Belas Artes, o que suscita um sentimento de pertencimento. Ver meus ídolos da música pop negra brasileira - Black Rio, Dafé, Gerson King ComboTim Maia, Cassiano, Toni Tornado, Sandra Sá, Dom Salvador - e internacional - James Brown, Isaac Hayes, Parliament/Funladelic, Chic, Curtis Mayfield, Marvin Gaye -  estampados, um mais bonito que outro, redimensionando suas belezas estéticas e simbólicas, é algo que realmente preenche o coração.

Todos os desdobramentos artísticos explícitos e implícitos são, no mínimo, admiráveis, se não objeto de muita apreciação e análise, como a hipnotizante dança do passinho, as pichações, a estética das armas, a sensualidade, a pele preta à mostra, a luz tropical, os cortes de cabelo. Na música, a constatação de que o funk carioca, original, é muito mais advindo dos ritmos africanos (inclusive do Nordeste da África, na Península Arábica) do que somente do funk importado dos states. Tem mais macumba do que enlatado.

Independentemente, vale a pena demais a visita ao MAR, nem que seja para ver apenas esta exposição. Mas se for, aviso: vá com tempo. 

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Já na entrada, o maravilhoso corredor com as pichações iluminadas


Recepção ao som de pukadão


King Combo: mandamentos black, brother


Edu "tatuado" pela projeção de uma das obras de Gê Viana
da série "Atualizações Traumáticas de Debret"


A pré-história do funk: Pixinguinha puxa Ângela Maria (esq.) pra dança e Jackson do Pandeiro
punha be-bop no samba, tropicalizando a globalização - e não o contrário


As desbotadas cores dos antigos bailes hi-fi revistas por Gê Viana


O artista Blecaute também reconta os apagados eventos sociais negros do passado em novas cores


Mais de Gê Viana em sua série em que recria Debret: genial quebra do tempo
simbólico e cronológico 



Outra arte imponente, esta de Maria de Lurdes Santiago


Anos 60/70: as referências de fora chegaram. Nunca mais o mundo foi o mesmo


Reprodução de cartazes dos Black Panthers:
a coisa ficou séria agora


Eis que chega a Black Rio, potente como uma Maria Fumaça


Dom Filó e sua turma da Soul Grand Prix, promotores das festas black da Zona Norte


Os pisantes, indispensáveis nos clubes soul
em arte de André Vargas



Tão indispensáveis quanto, as potentes 
aparelhagens de som


James Brown, uma das referências máximas da galera, em fotos no Brasil


Os "times" liderados pelos grandes nomes da soul brasileira 



Lindas fotos, maioria P&B, dos tempos dos bailes funk nas noites da Zona Norte carioca e seus sagrados palcos


Encerrando a primeira parte da exposição, obras da genial gaúcha (e preta) Maria Lídia Magliani


Mais Magliani


Os corpos femininos sempre tão explorados... prenúncios de dança da bundinha


Já nos anos 90, a beleza dos passinhos se mistura
à fúria violenta dos excluídos

Esta cocota que vos escreve rebolando até o chão


Corpos negros femininos quebrando padrões de beleza e gênero


Presença LGBTQIAP+ nas comunidades, outra força simbólica na cosmologia do funk


Pop art gay no morro: "Só tem no Brasil"



Sem concessões, a exposição mostra também mazelas como as drogas


E esta incrível pintura, que mais parece serigrafia? 


Funk também é afrofuturismo


Pra finalizar a exposição, uma frase cheia de sarcasmo
que contraria os detratores




texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Eduardo Almeida



quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2023

 



Rita e Sakamoto nos deixaram esse ano
mas seus ÁLBUNS permanecem e serão sempre
FUNDAMENTAIS
Chegou a hora da nossa recapitulação anual dos discos que integram nossa ilustríssima lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e dos que chegaram, este ano, para se juntar a eles.

Foi o ano em que nosso blog soprou 15 velinhas e por isso, tivemos uma série de participações especiais que abrilhantaram ainda mais nossa seção e trouxeram algumas novidades para nossa lista de honra, como o ingresso do primeiro argentino na nossa seleção, Charly Garcia, lembrado na resenha do convidado Roberto Sulzbach. Já o convidado João Marcelo Heinz, não quis nem saber e, por conta dos 15 anos, tascou logo 15 álbuns de uma vez só, no Super-ÁLBUNS FUNDAMENTAIS de aniversário. Mas como cereja do bolo dos nossos 15 anos, tivemos a participação especialíssima do incrível André Abujamra, músico, ator, produtor, multi-instrumentista, que nos deu a honra de uma resenha sua sobre um álbum não menos especial, "Simple Pleasures", de Bobby McFerrin.

Esse aniversário foi demais, hein!

Na nossa contagem, entre os países, os Estados Unidos continuam folgados à frente, enquanto na segunda posição, os brasileiros mantém boa distância dos ingleses; entre os artistas, a ordem das coisas se reestabelece e os dois nomes mais influentes da música mundial voltam a ocupar as primeiras posições: Beatles e Kraftwerk, lá na frente, respectivamente. Enquanto isso, no Brasil, os baianos Caetano e Gil, seguem firmes na primeira e segunda colocação, mesmo com Chico tendo marcado mais um numa tabelinha mística com o grande Edu Lobo. Entre os anos que mais nos proporcionaram grandes obras, o ano de 1986 continua à frente, embora os anos 70 permaneçam inabaláveis em sua liderança entre as décadas.

No ano em que perdemos o Ryuichi Sakamoto e Rita Lee, não podiam faltar mais discos deles na nossa lista e a rainha do rock brasuca, não deixou por menos e mandou logo dois. Se temos perdas, por outro lado, celebramos a vida e a genialidade de grandes nomes como Jards Macalé que completou 80 anos e, por sinal, colocou mais um disco entre os nossos grandes. E falando em datas, se "Let's Get It On", de Marvin Gaye entra na nossa listagem ostentando seus marcantes 50 anos de lançamento, o estreante Xande de Pilares, coloca um disco entre os fundamentais logo no seu ano de lançamento. Pode isso? Claro que pode! Discos não tem data, música não tem idade, artistas não morrem... É por isso que nos entregam álbuns que são verdadeiramente fundamentais.
Vamos ver, então, como foram as coisas, em números, em 2023, o ano dos 15 anos do clyblog:


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PLACAR POR ARTISTA (INTERNACIONAL)

  • The Beatles: 7 álbuns
  • Kraftwerk: 6 álbuns
  • David Bowie, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis, John Coltrane, John Cale*  **, e Wayne Shorter***: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan e Lee Morgan: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden , U2, Philip Glass, Lou Reed**, e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, PJ Harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beastie Boys, Ride, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green, Santana, Ryuichi Sakamoto, Marvin Gaye e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"

**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"

*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 7 álbuns*
  • Gilberto Gil: * **: 6 álbuns
  • Jorge Ben e Chico Buarque ++: 5 álbuns **
  • Tim Maia, Rita Lee, Legião Urbana, Chico Buarque,  e João Gilberto*  ****, e Milton Nascimento*****: 4 álbuns
  • Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e Tom Jobim +: 3 álbuns cada
  • João Bosco, Lobão, João Donato, Emílio Santiago, Jards Macalé, Elis Regina, Edu Lobo+, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Baden Powell*** : todos com 2 álbuns 


*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil

**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"

*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"

**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"

***** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"

+ contando com o álbum "Edu & Tom/ Tom & Edu"

++ contando com o álbum "O Grande Circo Místico"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 121
  • anos 60: 100
  • anos 70: 160
  • anos 80: 139
  • anos 90: 102
  • anos 2000: 18
  • anos 2010: 16
  • anos 2020: 3


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 24 álbuns
  • 1977 e 1972: 20 álbuns
  • 1969 e 1976: 19 álbuns
  • 1970: 18 álbuns
  • 1968, 1971, 1973, 1979, 1985 e 1992: 17 álbuns
  • 1967, 1971 e 1975: 16 álbuns cada
  • 1980, 1983 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1965 e 1988: 14 álbuns
  • 1987, 1989 e 1994: 13 álbuns
  • 1990: 12 álbuns
  • 1964, 1966, 1978: 11 álbuns cada



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 211 obras de artistas*
  • Brasil: 159 obras
  • Inglaterra: 126 obras
  • Alemanha: 11 obras
  • Irlanda: 7 obras
  • Canadá: 5 obras
  • Escócia: 4 obras
  • Islândia, País de Gales, Jamaica, México: 3 obras
  • Austrália e Japão: 2 cada
  • Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola, Nigéria, Argentina e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)

sábado, 2 de setembro de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial 15 anos do ClyBlog - Marvin Gaye - "Let's Get It On" (1973)


"Let's Get It On": 50 anos

por Márcio Pinheiro

"Afirmo que SEXO É SEXO e AMOR É AMOR. Quando combinados, eles funcionam bem juntos, se duas pessoas tiverem a mesma opinião". 
Marvin Gaye, no texto da contracapa do disco


Com o início da década de 70, o Marvin Gaye romântico e alienado começa a entrar em conflito por ter atravessado os anos 60 sem uma participação política mais ativa. É aí que começa a se revelar o autêntico Marvin Gaye – intenso, inquieto, atormentado, introspectivo, radical –, analista e repórter de seu tempo. O manifesto em forma de disco era "What’s Going On", suíte dividida em nove partes em que Marvin discute a Guerra do Vietnã, os problemas ecológicos ("Mercy, Mercy Me" foi a primeira canção pop a tratar do tema) e o racismo. Para fazer "What’s Going On", Marvin brigou com Berry Gordy Jr., executivo de sua gravadora, a Motown, e chegou a ameaçar abandoná-la. Queria ter completa autonomia na produção, compor todas as canções e escolher os músicos. Gordy não queria mexer em time que estava ganhando e mudar o estilo da gravadora. Confirmando o que Marvin imaginava e contrariando as previsões de Gordy, "What’s Going On" foi sucesso de crítica e de vendagens. 

O disco seguinte, "Let’s Get It On", era menos político, mas não perdia nada no aspecto revolucionário. Erótico e lascivo, "Let’s Get It On" atingia o baixo ventre e os quadris sem desprezar o coração e sem ofender o cérebro. Parecia ser o início de uma fase prolífica e criativa de Marvin, mas a vida voltou a entrar em parafuso. Separou-se de Anna e passou a viver com Janis – 17 anos mais nova e que o trocaria pouco tempo depois pelo cantor Teddy Pendergrass. Os divórcios foram problemáticos, somados à dívidas de milhões de dólares com o fisco, consumo exagerado de cocaína e escassos shows pelos Estados Unidos. Tentou mudar de vida morando um ano no Havaí, mas como a dor também inspira são dessa época os discos "Here My Dear" (sobre a separação com Janis) e "I Want You" (outro manifesto erótico-dançante). Do Havaí foi para Londres e de lá para um autoexílio de três anos em Ostend, cidade litorânea da Bélgica, onde alugou um apartamento com vista para o Mar do Norte. 

Parecia mais tranquilo quando foi encontrado pelo produtor  Larkin Arnold, da CBS, que o queria de volta aos estúdios. A gravadora comprou seu passe da Motown por US$ 2 milhões e os advogados se encarregaram de resolver os problemas legais que Marvin tinha com a justiça americana.

O recomeço seria uma retomada de "Let’s Get It On" com "Midnight Love" esbanjando libido e sensualidade. À fluidez do soul dos anos 60 se acrescenta os ritmos caribenhos e os experimentalismos digitais. "Sexual Healing", carro-chefe do disco, garante a Marvin a eleição pela Billboard de compacto de música negra do ano e o primeiro Grammy de sua carreira. Marvin Gaye mostrou-se profético (e herético) pela última vez ao encerrar o disco com a faixa "My Love Is Waiting", orando pela proteção divina enquanto pedia que a mulher amada não o abandonasse.

A alma, ainda mais dividida, continuava sagrada e profana.

vídeo de "Let's Get it On" ao vivo em Amsterdan, em 1976


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FAIXAS:
1. "Let's Get It On" - 4:44
2. "Please Stay (Once You Go Away)" - 3:32
3. "If I Should Die Tonight" - 3:57
4. "Keep Gettin' It On" - 3:12
5. "Come Get to This" (Gaye) - 2:40
6. "Distant Lover" (Gaye/Gwen Gordy/Sandra Greene) - 4:15
7. "You Sure Love to Ball" (Gaye) - 4:43
8. "Just to Keep You Satisfied" (Gaye/Anna Gordy Gaye/Elgie Stover) - 4:35
Todas as composições de autoria de Marvin Gaye/Ed Townsend, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Marvin Gaye - "Let's Get It On" 



segunda-feira, 22 de junho de 2020

Curtis Mayfield - "Curtis" (1970)



“Curtis escreveu um material que se tornou o exemplo clássico de como um negro inteligente, preocupado com a situação das pessoas, pode estabelecer novos objetivos e injetar orgulho na música. O talento único de Curtis combina uma melodia cativante, instrumentação interessante e comentários expressos que o levaram a um grande respeito na comunidade negra.”
Richard Robinson, para a revista Billboard

“Vidas negras importam”. 
Mensagem escrita em 
cartazes nas ruas norte-americanas 
durante as manifestações contra 
a morte de George Floyd

A história da música soul nos Estados Unidos é marcada pela revelação de talentos tão intensos que acaba sendo impossível de serem represados. O baterista contratado pela Motown estritamente para acompanhar bandas como Martha and the Vandellas e The Marvelettes no final dos anos 50 era também um cantor e compositor tão completo, que não demorou para a gravadora perceber que ele fazia jus em assinar sozinho os próprios trabalhos com o seu nome artístico: Marvin Gaye. Outro, o pianista da banda de Otis Redding nos anos 60, ganhou o protagonismo merecido antes mesmo daquela década terminar, tornando-se o genial “Black Mose” autor de “Shaft” e outras obras essenciais à música soul. Era um rapaz corpulento e de voz grave chamado Isaac Hayes.

Com Curtis Mayfield aconteceu algo semelhante. Um dos integrantes do grupo vocal de rhythm and blues de Chicago The Impressions, ele rapidamente destacou-se sobre seus companheiros, igualmente bons cantores como ele, mas não apenas pela afinadíssima voz tenor e, sim, pela incrível capacidade compositiva e de liderança que o diferia dos demais. Quem escuta os discos da banda, a qual pertenceu de 1963 a 1969, percebe que, desde a composição do primeiro sucesso, a clássica "Gypsy Woman", até o último disco como integrante, “The Young Mods' Forgotten Story”, todo escrito por ele, Curtis se tornara maior do que a Impressions. Ele não cabia mais num trio: precisava ser uno. Precisava alçar o voo solo.

Baldwin e Angela: referências
da luta racial nos anos 70
Vários fatores contribuíam para que a investida solitária de Curtis Mayfield fosse aguardada por público e crítica naquele início de anos 70. Aquele passo tinha tudo para representar uma guinada para alguém já experimentado como artista, pois acostumado com as paradas e com o showbizz, mas também de quem se esperava sintonia com o então efervescente momento de lutas raciais nos Estados Unidos. Fazia pouco que dr. King e Malcom X haviam sido assassinados, abrindo uma fenda emocional e de representatividade para a cultura negra. Em compensação, a ação dos Panteras Negras e o ativismo de figuras como Angela Davis e James Baldwin mantinham de pé as lutas pelos direitos civis. Mas dada a gravidade da situação, era preciso revoltar-se, e quanto mais (e qualificadas) vozes, melhor. A Sly & Family Stone já havia soltado o grito de resistência “Stand!”; Muhammed Ali defendia com punhos e verbos seu povo; James Brown versava as palavras do líder sul-africano Steve Biko: “Say it loud: I’m black and proud!” (“Diga alto: sou negro e orgulhoso!”); o movimento Black Power tomava as ruas exigindo “respect”. Porém, a comunidade negra precisava de mais, e Curtis, então com 28 anos, representava a ascensão e a afirmação de uma população segregada e violentada como cidadã. É nesse cenário que Curtis se lançava para um voo solo: carregando sobre suas asas a responsabilidade tanto artística quanto política da Black Music.

Ouvem-se, então, os primeiros acordes do disco: um som grave de baixo, que prenuncia um riff cheio de groove e inteligência musical. Talvez os “brothers and sisters” que a escutavam pela primeira vez naquele setembro de 1970 não percebessem que estavam diante de um dos mais célebres começos de disco de todos os tempos na música pop. Entram, na sequência, bongôs de matiz africano e vozes entrecruzadas levantando questões polêmicas, as quais são logo catalisadas pela do próprio Curtis, que anuncia com ecos retumbantes: “Não se preocupem: se houver um inferno abaixo de nós, para lá todos iremos!” É “(Don’t Worry”) If There's a Hell Below We're All Going to Go”, a arrebatadora faixa de abertura de um disco que não podia ter outro nome que não, simplesmente, “Curtis”. À exceção do tom pastel da capa, trata-se de um álbum negro em todas as dimensões possíveis: na sonoridade, no resgate da ancestralidade, na mensagem afirmativa e de denúncia e no comprometimento com o movimento negro.

Era a confirmação de que Curtis registrava sua emancipação como artista. A música conhecia pela primeira vez sua obra autoral, que abria com esse funk de reverências a James Brown e à africanidade. Curtis, consciente de seu papel, não fugia às discussões sérias, falando sobre preconceito, violência policial e repressão política: “Irmãs, irmãos e desfavorecidos/ negros e mulatos/ A polícia e os seus apoiadores/ Eles são todos os atores políticos”. “If There's...” antecipava outro trunfo da música soul daquele início de anos 70: a Blackexplotation. Quem escuta o primoroso arranjo de cordas, as percussões afro e o baixo marcado da faixa é impossível não associá-la às trilhas sonoras de filmes feitos com e para negros que “explodiriam” àquela época na indústria cinematográfica norte-americana – dentre as quais, a de “Superfly”, que Curtis assinaria poucos anos mais tarde.

Se o disco começa com algo que resume o estilo sofisticado de Curtis – as primorosas harmonias, os arranjos suntuosos, as cordas entusiasmadas, a levada groove da guitarra, o ritmo tão funky quanto fluido e, claro, o apurado falsete de sua voz –, agora ele, dono de seu rumo, queria mais. Queria tudo que lhe fosse de direito e de seus irmãos. “Other Side Of Town”, cuja abertura com harpas em cascata faz remeter à ideia de um sonho, é uma balada como as que se acostumara a escrever, mas com uma nova densidade tanto estilística quanto discursiva. O arranjo de metais dá-lhe um ar épico, como uma música triunfal da realeza africana, para, em contraste, fazer uma crítica ao apartheid a que os negros do gueto são submetidos socialmente. “Depressão faz parte da minha mente/ O sol nunca brilha/ Do outro lado da cidade/ A necessidade aqui é sempre de mais/ Não há nada de bom na loja/ Do outro lado da cidade/ (...) Minha irmãzinha, ela está com fome/ De um pão para comer/ O meu irmão me entrega sapatos/ Agora estão mostrando os pés”.

Curtis tocando ao vivo à época do disco:talento
confirmado como artista solo
"The Makings of You", novamente com o som da harpa bem presente, lembra bastante temas como “Keep On Pushing” e “For Your Precious Love” da Impressions, e comprova a incrível afinação de Curtis, que performa com sensibilidade e técnica tons agudos para cantar esta linda canção, que novamente traz as questões sociais. Porém, desta vez, relatando uma tocante cena: a de um rapaz que distribui doces para as crianças e as alegra por alguns instantes capazes de fazer com que o autor enxergue esperança “no amor da humanidade”.

A harmonia entre os homens, entretanto, está longe de se concretizar, e Curtis tinha consciência disso. Não à toa, vem, na sequência, a reflexiva “We People Who Are Darker Than Blue” (“Nós, pessoas que somos mais escuras que o azul”). Não por acaso também se trata de um lamentoso blues, o qual seu lindo canto cadencia versos como: “Nós, pessoas que somos mais escuras do que o azul/ Não há tempo para segregar/ Eu estou falando sobre marrom e amarelo também/ Garota tão amarela que você não pode contar/ Eu sou apenas a superfície do nosso poço profundo e escuro/ Se a sua mente puder realmente ver/ Você veria que sua cor é igual à minha”.

Outra preciosidade de "Curtis" é "Move on Up", grande sucesso da carreira solo do artista que prova o quanto ainda sabia escrever hits (a versão reduzida dos mais de 8 min originais passou 10 semanas no top 50 da parada de singles do Reino Unido em 1971, chegando ao 12º lugar, e se tornou um clássico da música soul ao longo dos anos). Esta empolgante soul, com exuberantes arranjos de cordas e metais, traz mais uma vez a intensa percussão afro e uma performance impecável de Curtis, responsável não apenas pela guitarra, mas por vários outros instrumentos. Aqui nota-se um músico totalmente dono de sua obra: ao mesmo tempo em que se vale de sua música para a crítica, também domina a arte de criar canções para as massas. Para os que acham que seu auge é "Superfly", "Move..." prova que este momento já estava em “Curtis”.

Curtis com a filha ainda criança,
nos anos 70
Na suingada e lúdica "Miss Black America", Curtis inicia dialogando com sua filha criança perguntando-lhe o que ela, em seus sonhos, se imagina quando crescer. A resposta induz a algo que, novamente, retraz as conquistas por direitos dos negros, uma vez que a recente vitória de uma mulher preta no concurso Miss Universo em 2019 (a sul-africana Zozibini Tunzi), ainda surpreende o mundo. "Wild and Free", com seus metais e cordas intensos, é mais um funk que reitera o discurso pelo respeito à causa racial e ao direito de ser "selvagem e livre". Agora, aliás, subindo o tom ao incrementar na letra a icônica mensagem anti-racismo "power to the people" ("Respeito por essas pessoas/ Poder para as pessoas/ Estabelecendo a velha geração/ Trazendo o novíssimo/ Selvagem e livre com a paz finalmente").

A suave "Give it Up" tem a primazia de fechar o brilhante debut de Curtis Mayfield, trabalho assustadoramente atual mesmo 50 anos após seu lançamento. A catarse mundial gerada pela revoltante morte do ex-segurança George Floyd, vitimado recentemente pela violência da polícia e da sociedade norte-americana, evidenciou o quanto as questões levantada neste disco, há cinco décadas, estão longe de serem resolvidas. Se o racismo ainda está aí, Curtis é morto desde 1999, quando, após complicações motivadas por um fatídico acidente que o deixara paraplégico, despedia-se prematuramente aos 57 anos. Só assim para frear o seu talento.

Embora não tenha feito o mesmo sucesso que seus contemporâneos de black music Marvin Gaye, Al Green, Stevie Wonder e Barry White, Curtis pode tranquilamente ser considerado integrante do.panteão dos grandes criadores da soul norte-americana. Ele é daqueles autores cuja obra demarca um “antes” e um “depois”, tanto pela beleza única de suas composições quanto pelo o que representou para o movimento negro e a luta pelos Direitos Civis norte-americanos naquele inicio de década de 70. O disco “Curtis” antecipa em um ano, inclusive, uma trinca de obras que se eternizaria, entre outras qualidades, justamente pelo teor de resistência: “What’s Going On”, de Gaye, “Pieces of a Man”, de Gil Scott-Heron, e “There’s a Riot Goin’ On”, da Sly. Curtis dizia que suas músicas sempre vieram de perguntas para as quais precisava de respostas. Vendo o quadro político-social de hoje ainda tão desigual, se estivesse vivo, 50 anos depois de ter levantado e respondido várias dessas questões, provavelmente voltaria numa delas e se indagaria: “o inferno, que eu pensava estar abaixo de nós, é aqui mesmo, então?”

Curtis Mayfield - "Move on Up"




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FAIXAS:
1. "(Don't Worry) If There's a Hell Below, We're All Going to Go" - 7:50
2. "The Other Side of Town" - 4:01
3. "The Makings of You" - 3:43
4. "We the People Who Are Darker Than Blue" - 6:05
5. "Move On Up" - 8:45
6. "Miss Black America" - 2:53
7. "Wild and Free" - 3:16
8. "Give It Up" - 3:49
Todas as composições de autoria de Curtis Mayfield

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OUÇA O DISCO
Curtis Mayfield - "Curtis"

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #32


Uma das definições possíveis para “música” é a de que o músico traça notas em conjunto como que num desenho. Pois essa analogia entre música e figuração vamos ter no Música da Cabeça de hoje num bate-papo muito legal com o ilustrador Guilherme Tesch no quadro “Uma Palavra”. Além disso, claro, os sons que rodearam nossa mente na semana, como Marvin Gaye & Diana Ross, Stevie Wonder, Jamiroquai e Portishead. Pra finalizar, um “Palavra, Lê” com a poesia de Nei Lisboa. Motivos para você não perder não faltam, né? Então, escuta lá hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e rabiscos: Daniel Rodrigues.



Ouça: Programa #32

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Carlos Dafé - “Pra que Vou Recordar” (1977)



“A refavela/ Revela o passo/ 
Com que caminha a geração/ 
Do black jovem/ Do Black Rio/ 
Da nova dança no salão”. 
Gilberto Gil, da letra de "Refavela", de 1977

O ano de 1977 foi cheio para a Banda Black Rio. Formada a não muito da fusão de músicos de diferentes origens – os conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição –, eles eram os reis dos bailes black da Zona Norte carioca, que eclodiram nos anos 70. Além das festas,  começaram a ser bastante requisitados para outros projetos. Só entre janeiro e março, gravaram todo o primeiro disco e foram até tema de novela da Globo, Locomotivas. Era o momento deles. Junto com nomes como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo, Hyldon, Toni Tornado, Dom Mita e outros, a Black Rio não só representava como levava o nome da onda sociocultural que mobilizava milhares de negros excluídos pela sociedade. Eram jovens oriundos das "refavelas" em recente processo de ascensão social num Brasil de Ditadura Militar, que passavam agora a demonstrar seu orgulho pela raça, pelo cabelo crespo, pela dança, pela cor da pele, pelo sotaque, pela linguagem. E pelo seu som: brasileiro, mas universal.

Todos da Black Rio eram músicos excepcionais, mas nenhum sabia (pelo menos, ainda) cantar. E para incendiar a galera dos passinhos durante os bailes tinha que ter alguém chamando nos microfones e com presença de palco. Mais do que um crooner. A voz feminina a banda de Oberdan Magalhães achara: uma jovem cantora de voz rouca e potente digna das melhores da black music norte-americana chamada Sandra Sá. Porém, precisava de um gogó masculino também, o que coube perfeitamente a Carlos Dafé.

Cantor de elegância e gingado, Dafé é compositor e multi-instrumentista, capaz de mandar ver no violão, guitarra, baixo, piano, acordeão e vibrafone. Nascido no subúrbio de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, teve no pai (José de Sousa, um funcionário público tocador de chorinho) e na mãe (Conceição Gonçalves, poetisa) o incentivo à musicalidade. Tanto que, aos 11 anos, já estudava no Conservatório de Música e, na fase do serviço militar, fez turnê com o grupo Fuzi 9, do Corpo de Fuzileiros Naval. Toda essa bagagem deixava evidente que Dafé era a figura perfeita para acompanhar a Black Rio. Tanto que não ficou apenas restrito aos bailes. Assim como ocorrera com a própria banda naquele início de 1977, eles correram para o estúdio, quando se concebeu o brilhante “Pra que Vou Recordar”. Igualmente a “Maria Fumaça”, a também estreia da Black Rio, o disco de Dafé completa 40 anos de lançamento em 2017, formando o mais célebre duo de discos da soul music brasileira de todos os tempos.

A lendária Banda Black Rio: grupo de apoio de Dafé em sua estreia
Dançante mas altamente sofisticado, o álbum abre com uma das maiores canções pop já escritas no Brasil: a irrepreensível “De Alegria Raiou o Dia”. Parceria dele com outro craque da soul, Dom Mita, é um arraso em execução, timbres, sonoridade, ritmo. Que tabelinha de Luis Carlos na bateria e Jamil Joanes no baixo! Adicionado a isso, o Fender Rhodes de Cristóvão Bastos, a levada de guitarra de Claudio Stevenson, os sopros: tudo perfeito, encaixado, sonoro, musical. Mesmo sendo seu primeiro registro fonográfico, o já experiente Dafé mostra de largada toda a habilidade como compositor e cantor. A voz rasgada e de pronúncia aberta é, sobretudo, símbolo da afirmação daquela negritude adormecida e, agora, autovalorizada. O fraseado malandro, que opera propositais supressões de fonemas e adiciona ginga noutros, é de visível inspiração a nomes consagrados da música brasileira, como Seu Jorge e Criolo. Como se não bastasse o funk irresistível, na segunda parte, a “cozinha” entra com um samba-rock que, convenhamos, não tem ninguém que saiba, faça ou entenda como um músico brasileiro – quanto mais se tratando de Black Rio. Também nisso o disco de Dafé guarda semelhança com o debut do conjunto carioca, haja vista que as duas faixas de abertura trazem essa fusão dos ritmos típicos norte-americano e brasileiro como proposta conceitual.

“Tudo Era Lindo” (“Era lindo vagar, me perder de amor/ Correndo a enfrentar um mundo de loucos”) e “A Cruz” (“Se existe uma barreira/ Entre os nossos corações/ Não ligue pra essas coisas/ O importante somos nós”) dão a devida diminuída no ritmo em duas balada cheia de suingue e romantismo. Afinal, todo baile funk pede também aquela hora de dançar de rosto colado! A empolgação volta para homenagear o genial autor de “Superstition” com “Hello Mr. Wonder”, mas a um modo bem brasileiro: soul com muita carga de samba, assim como já haviam apresentado em “De Alegria...”.

Voltando para a pista, “Bem Querer” une a elegância do jazz soul com pitadas de samba, ou seja, tudo o que a turma domina. O coro feminino faz uma tabela perfeita com a voz de Dafé, enquanto Oberdan “apavora” num solo de sax. Merece ainda realce o baixo sempre incrível de Jamil, que não se restringe a simplesmente manter uma base, e, sim, desenhar linhas harmônicas sobre a escala.

A faixa-título (adicionada do complemento “o que chorei”), outro clássico do disco e da black music brasileira, faz jus ao mito. Além de trazer aquele clima das baladas dos mestres “gringos”, como Marvin Gaye e Bobby Womack, ainda adiciona-lhe a “cadência bonita do samba”. E mais uma interpretação impecável de Dafé, cheia de sentimento. Destaque para a levada de Luis Carlos e a guitarra solada de Claudio Stevenson.

“Zé Marmita” começa somente com Cristóvão ao piano elétrico e Dafé introduzindo os primeiros versos para, logo em seguida, cair num novo samba, agora bem suingado. A letra fala de um brasileiro pobre e trabalhador que se deixa levar pela alegria do Carnaval sem pensar que tem que pegar no batente no dia seguinte: “Cantando na avenida, você nem vê que amanheceu/ Esquece até da vida/ Pensa que o mundo agora é seu/ Quero só ver quando a festa acabar/ Coragem pra trabalhar”.

Ainda mais especial é “Bichos e Crianças”, que intercala uma doce melodia (“Dia de domingo/ Quem vai passear?/ Bichos e crianças vão”) com uma disco animada e lúdica cujo ritmo a Black Rio repetiria a dose na trilha do filme “Sábado Alucinante”, de 1979. Já “O Metrô”, última faixa, é o característico funk temperado com pitadas de brasilidade. A timbrística da Black Rio é algo realmente impressionante e improvável: une a sonoridade da Motown, com o padrão Steely Dan, recupera o samba telecoteco de Miltinho e o samba-rock da turma da Tijuca para chegar àquilo que eles mesmos se autodenominam: Black Rio. Ainda, é claro, a qualidade do band leader nos microfones. Um final com o que havia de melhor na cena. Em "Pra que...", Dafé e o time de Oberdan atingem um nível de musicalidade poucas vezes visto no mundo, haja vista que passa pelo funk, pela soul e pelos ritmos brasileiros em constante namoro com o jazz fusion, mas sem ser pedante nem difícil. Pelo contrário: é pop e sofisticado ao mesmo tempo.

Se 1977 ainda era tempo de Ditadura, é de se imaginar que, se a repressão recaía fortemente sobre adolescentes universitários de classe média, imagina se não iria exercer a mesma força a jovens negros da periferia? Bastou os bailes começarem a mobilizar muito mais gente que o esperado e, ainda por cima, ganhar espaço também na “branca” Zona Sul do Rio, que se resolveu dar um basta. Essa coisa de “movimento Black Rio” ou “Black o que fosse” estava começando a ficar perigosa para o governo. Então, para que os donos de equipes de som e artistas começassem a ir para o DOPS foi um passo.“Quando viram aqueles caras dançando junto, com aquelas roupas e cabelos, os militares perceberam que se nasce um líder ali no meio ia dar uma grande merda para o governo”, conta DJ Marlboro, que presenciou a cena. O movimento se tornava, da noite para o dia, subversivo.

A onda Black, pelo menos naquele momento, se esvaziara. Seguiram-se, nos anos seguintes, a última década de Governo Militar, a redemocratização, a era Collor, a ascensão do PT. Paralelamente, entretanto, o grito da periferia não se calara. Vieram o hip-hop, o break, o melô, o funk carioca, o charme, o punkadão. Se a qualidade das manifestações culturais da negritude não acompanhou aquele embrião animador e altamente musical, paciência. A bandeira pela liberdade dos negros havia sido hasteada. Dafé, Black Rio e Cia. cumpriram o papel daquilo que Gilberto Gil captara naquele sociologicamente fatídico 1977 para o Brasil negro: conceber um “samba paradoxal. Algo que só nossa “escola” é capaz. Ou seja: “Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional”.

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FAIXAS:
1. “De Alegria Raiou o Dia” (Carlos Dafé/Dom Mita) - 3:40
2. “Tudo Era Lindo” (Dafé/Jomari) - 3:34
3. “A Cruz” (Dafé/Tânia Maria Reis) - 5:52
4. “Hello Mr. Wonder” (Dafé/Claudio Stevenson/Luiz Carlos dos Santos) - 3:44
5. “Bem Querer” (Dafé/Lucio Flavio/Tião da Vila) - 3:11
6. “Pra Que Vou Recordar o que Chorei” (Dafé) - 3:46
7. “Zé Marmita” (Dafé/Vandenberg) - 3:34
8. “Bichos e Crianças” – (Dafé/Marilda Barcelos) - 2:45
9. “O Metrô” (Dafé/Lucio Flavio/Oberdan) - 2:58

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OUÇA

por Daniel Rodrigues