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terça-feira, 1 de março de 2022

"Orfeu do Carnaval" (ou "Orfeu Negro"), de Marcel Camus (1959) vs. "Orfeu", de Carlos Diegues (1999)



É mais ou menos como aquele Brasil x França, da Copa de 2006. O Brasil, pentacampeão, considerado o melhor futebol do mundo, cheio de estrelas, pegava a França que, se não era tão recheada de craques, era certinha, mais organizada, e tinha Zidane e Henry. O que que deu? A nossa Seleção, apostando muito nas individualidades, viu os franceses jogarem um futebol de Brasil e acabou voltando pra casa mais cedo. "Orfeu", de 1999 tem um timaço, com Milton Gonçalves, Zezé Motta, o "galã" das novelas, naquele momento, Murilo Benício, o astro pop-reggae Toni Garrido, trilha de Caetano Veloso, e direção de nada menos que o lendário Cacá Diegues. O filme até não é mau mas carece de leveza, de encanto. É um filme pesado, duro. A atualização da peça de Vinícius de Moraes para um contexto atual, de bandidos, policiais, tiros, e outros elementos que fazem parte da realidade dos morros cariocas, deixa o filme um tanto carregado e carente de leveza. Nem as cantorias do Orfeu, Toni Garrido, são o suficiente para amenizar a rigidez do filme do diretor, cria do Cinema Novo e experiente em filmar nesse tipo de ambiente. 

"Orfeu do Carnaval", de 1959, produção francesa dirigida por Marcel Camus é pura magia! Tem, sim, toda a tensão da ameaça constante à acuada Eurídice, mas a atmosfera festiva, o tempo inteiro, num constante carnaval, o desenho dos personagens, de uma inocência saborosa, uma maior fidelidade ao texto da peça e, consequentemente ao espírito original de história, e o romantismo, mais natural e comprometido dos protagonistas, fazem da primeira versão algo mais prazeroso de se ver e admirar.
Além disso, os franceses jogam totalmente à brasileira: Marcel Camus faz um filme no Rio de Janeiro, falado em português, com um elenco predominantemente brasileiro, no papel principal, e cheio de samba, do início ao fim, com trilha sonora apaixonante de Tom Jobim e Luís Bonfá.

"Orfeu do Carnaval" (1959) - trailer


"Orfeu" (1999) - trailer


Ambos os filmes contam a história de amor entre o encantador Orfeu e a forasteira Eurídice, com a diferença que, no filme original, Orfeu, além de músico, é também condutor de bonde, enquanto na nova versão é apenas o compositor da escola de samba da comunidade onde vive. Em comum, os dois tem o fato que sua música é tão mágica, tão poderosa, que dizem ser capaz de fazer o sol nascer.

A harmonia do casal apaixonado, no entanto, é perturbada, no original, por um misterioso homem fantasiado de esqueleto, simbolizando a própria morte, enquanto no remake por um chefe do tráfico no morro, mas nos dois casos, também pela inconformidade de Mira, noiva de Orfeu, que não aceita nada bem o fato de ter sido trocada pela nova musa.

A perseguição pela Morte, mesmo carregando um um tom mais sinistro, confere uma aura mais poética ao enredo, enquanto que o envolvimento criminoso, marginal, bélico de traficantes, torna toda a atmosfera mais bruta, mesmo sendo o "dono do morro", vivido por Murilo Benício, um sonso, bundão que a gente mal consegue entender o que fala por conta de sua péssima dicção balbuciada.

Mas como já havia dito, a refilmagem não é um lixo. Não é, mesmo! É bem filmado, tem uma estética interessante, Cacá sabe filmar na favela, e sequência do desfile da escola de samba, filmada num desfile real na Marquês de Sapucaí, embora um pouco longa, é bem feita, bonita e dá um ganho ao filme.

Mas não tem jeito. O original, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ou seja, praticamente como ganhar a Euro e a Copa do Mundo, ganha o jogo sem dificuldade. Faz um gol pela fidelidade à peça e à lenda; dois pela leveza e pela magia; o Orfeu do original vale mais um, mas o gol é anulado pela Eurídice do remake (Patrícia França) que é melhor que a do primeiro filme. O elenco, de um modo geral, e o bom trabalho coletivo, como filme, no todo, garante o gol de honra para o filme de 1999; mas a morte de Eurídice, com um tiro acidental do traficante bunda-mole, é gol contra e o filme de 1959 faz mais um no final. As trilhas sonoras se equivalem, com leve vantagem para a antiga, mas o que não chega a se materializar como bola na rede. E, assim, o placar final aponta 3x1 para o time de Marcel Camus.

A França tirou o Brasil nas quartas-de-final da Copa de 1986 e 2006, levou o ouro na final olímpica de 1984, faturou a Copa de 1998 em cima da gente, e agora nos vence no Clássico é Clássico (e vice-versa). Assim já tá perdendo a graça! É, teve aquela vitória em 1958 mas, convenhamos que já faz tempo, hein. Já virou freguesia. 

Aqui os dois Orfeus.
Tony Garrido, o novo, até já mostrou que sabe jogar bola,
mas o da versão original, Breno Mello, foi jogador de futebol e
aí não dá chance para o adversário.
Faz gol e ainda vai sambar na bandeirinha de escanteio.


O Orfeu francês cheio de ginga brasileira, apronta um verdadeiro carnaval na defesa brasileira e leva o Estandarte de Ouro do Clássico é Clássico.
Dez! Nota Dez!




Cly Reis

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

"Aquarelas do Brasil ", vários autores, organização de Flávio Moreira da Costa - ed. Nova Fronteira (2018)




"São uma gente à parte - 
quase uma raça distinta das outras. 
Os que amam o Carnaval, como amam todas as outras festas, não são  dignos do nome de carnavalescos. 
O carnavalesco é um homem que nasceu para o Carnaval, que vive para o Carnaval, que conta os anos de vida pelos Carnavais que tem atravessado, e que, na hora da morte, só tem uma tristeza: 
a de sair da vida sem gozar os Carnavais incontáveis que ainda se hão de suceder no Rio de Janeiro pelos séculos sem fim.
(...) Porque o verdadeiro, o legítimo, o autêntico, 
o único tipo de carnavalesco real
 é o carnavalesco do Rio de Janeiro."
Olavo Bilac,
na crônica "Carnavalescos"



"Aquarelas do Brasil" não é exatamente um livro sobre Carnaval, mas os contos sobre a festa mais popular do Brasil, se destacam, em alguns casos até mesmo nos demais capítulos não dedicados aos festejos de Momo. A antologia, organizada pelo pesquisador e também escritor Flávio Moreira da Costa, se propõe a reunir contos de autores brasileiros que, de alguma forma, colocam música na literatura. Assim, o organizador, numa escolha muito criteriosa e feliz, compila episódios musicais narrados por grandes nomes das letras, abordando temas, estilos e festas diferentes, transitando entre o dramático, o trágico e o cômico, em doses certas e oportunas. Há histórias de compositores frustrados, de cantores conquistadores, coristas de baile, músicos sonhadores, passeando entre polcas, jazz, música clássica, bossa nova e, é claro, o samba. O capítulo de Carnaval é, não só o mais numeroso em contos, como também o que apresenta as histórias mais excitantes, como a do funcionário público que passara mal e viria a falecer preocupado com as filhas que não voltaram dos blocos já na quarta-feira de cinzas ("O Bloco das Mimosas Borboletas"); a de um expert na já extinta "guerra" de bexigas com águas-de-cheiros, no conto "O Último Entrudo", de Raul Pompeia; a do crime passional de um compositor ciumento em "A Morte da Porta-Estandarte, de Aníbal Machado; e a sinistra história de uma foliã que se revelaria não tão atraente quanto parecia com a fantasia, em "O Bebê da Tarlatana Rosa", de João do Rio.
Dos capítulos não dedicados especificamente ao Carnaval, alguns contos inevitavelmente se aproximam do tema, seja pelo destaque para determinado instrumento musical, pela menção ao samba, ou mesmo por conta do próprio apelo quase incontrolável que a festa exerce sobre os indivíduos. É o caso de "Quem Cai Na Dança Não Se "Alembra" de Mais Nada", causo popular em que um batalhão do exército cai na folia e os superiores se veem incapazes de punir os soldados pois também se entregam ao folguedo; sobre instrumentos, "O Machete", de Machado de Assis trata sobre um tocador de cavaquinho que rouba a esposa de um violoncelista clássico; e o comovente "O Samba", de Magalhães de Azeredo, de 1900, é uma das primeiras vezes que o termo que dá nome ao conto é referido na literatura brasileira.
Mas, como eu disse, "Aquarelas do Brasil", não é um livro de Carnaval. Tampouco é um livro de samba, ou de polcas, de bolsas ou qualquer outro ritmo ou festa. "Aquarelas..." é  uma celebração à música, à musicalidade do brasileiro, à sua riqueza criativa e à  ligação que tudo isso tem com o nosso cotidiano e com o jeito de viver desse povo. Mas, é claro, tudo isso, a musicalidade, a arte, a tradução do cotidiano, a manifestação popular, acaba, naturalmente, se traduzindo na maior manifestação popular brasileira e, no fim das contas, a brilhante antologia de Flávio Moreira da Costa, acaba sendo, sim, se não um livro sobre Carnaval, uma das boas publicações que temos sobre o tema.


por Cly Reis

domingo, 27 de fevereiro de 2022

cotidianas #744 - "Cordões"




"
(...) - Mas que pensas tu? O cordão é o carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão é o último elo das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem por sob a belbutina e o reflexo discrômico das lantejoulas, tradições milenares; cada preta bêbada, desconjuntando nas tarlatanas amarfanhadas os quadris largos, recorda o delírio das procissões em Biblos pela época da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu tenho vontade, quando os vejo passar zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do rumor, de os respeitar, entoando em seu louvor a "prosódia" clássica com as frases de Píndaro - salve grupos floridos, ramos floridos da vida...

Parei a uma porta, estendo as mãos.

- É a loucura, não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor das cefalgias e do horror?

- Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas.

Achas tu que haveria carnaval se não houvesse os cordões? Achas tu que bastariam os préstitos idiotas de meia dúzia de senhores que se julgam engraçadíssimos ou esse pesadelo dos três dias gordos intitulado - máscaras de espírito? Mas o Carnaval teria desaparecido, seria hoje menos que a festa da Glória ou o "bumba-meu-boi" se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de São Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios, em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, que através do tempo guarda a chama pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos.

Os cordões são os núcleos irredutíveis da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.

Quantos cordões julgas que há da Urca ao Caju? Mais de duzentos! E todos, mais de duas centenas de grupos, são inconscientemente os sacrários da tradição religiosa da dança, de um costume histórico e de um hábito infiltrado em todo o Brasil.

- Explica-te! bradei eu, fugindo para outra porta, sob uma avalanche de confetti e velhas serpentinas varridas de uma sacada.

Atrás de mim, todo sujo, com fitas de papel velho pelos ombros, o meu companheiro continuou:

- Eu explico. A dança foi sempre uma manifestação cultual. Não há danças novas; há lentas transformações de antigas atitudes de culto religioso. O bailado clássico das bailarinas do Scala e da Ópera tem uma série de passos do culto bramânico, o minueto é uma degenerescência da reverência sacerdotal, e o cakewalk e o maxixe, danças delirantes, têm o seu nascedouro nas correrias de Dionísios e no pavor dos orixalás da África. A dança saiu dos templos; em todos os templos se dançou, mesmo nos católicos.

O meu amigo falava intercortado, gesticulando. Começava desconfiar da sua razão. Ele, entretanto, esticando o dedo, bradava no torvelinho da rua:

- O Carnaval é uma festa religiosa, é o misto dos dias sagrados de Afrodita e Dionísios, vem coroado de pâmpanos e cheirando a luxúria. As mulheres entregam-se; os homens abrem-se; os instrumentos rugem; estes três dias ardentes, coruscantes são como uma enorme sangria na congestão dos maus instintos. Os cordões saíram dos templos! Ignoras a origem dos cordões? Pois eles vêm da festa de Nossa Senhora do Rosário, ainda nos tempos coloniais. Não sei por que os pretos gostam da Nossa Senhora do Rosário... Já naquele tempo gostavam e saíam pelas ruas vestidos de reis, de bichos, pajens, de guardas, tocando instrumentos africanos, e paravam em frente à casa do vice-rei a dançar e cantar. De uma feita, pediram ao vice-rei um dos escravos para fazer de rei. O homem recusou a lisonja que dignificava o servo, mas permitiu os folguedos. E estes folguedos ainda subsistem com simulacros de batalha, e quase transformados, nas cidades do interior (...)



(...) Isto no carnaval quando todos nós sentimos irreparável a desgraça. Mas o cordão perderia a sua superioridade de vivo reflexo da turba se não fosse esse misto indecifrável de dor e pesar. Todos os anos as suas cantigas comemoram as fatalidades culminantes.

Neste momento, porém, os "Amantes de Sereno" resolveram voltar. Houve um trilo de apito, a turba fendeu-se. Dois rapazinhos vestidos de belbutina começaram a fazer "letra" com grandes espadas de pau prateado, dando pulos quebrando o corpo. Depois, o achinagú ou homem da frente, todo coberto de lantejoulas, deu uma volta sob a luz clara da luz elétrica e o bolo todo golfou - diabos, palhaços, mulheres, os pobres que não tinham conseguido fantasias e carregavam os archotes, os fogos de bengala, as lâmpadas de querosene. A multidão aproveitou o vazio e precipitou-se. Eu e meu amigo caímos na corrente impetuosa.

Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável.

Toda a rua rebentava no estridor dos bombos. Outras canções se ouviam. E, agarrado ao braço do meu amigo, arrastado pela impetuosa corrente aberta pela passagem dos "Amantes do Sereno", eu continuei rua abaixo, amarrado ao triunfo e à fúria do cordão!..
"


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trecho do conto "Cordões"
de João do Rio, (1904)


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

“Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, de Ahmir "Questlove" Thompson (2021)

 

Não parece aceitável que seja apenas o aperfeiçoamento dos recursos técnicos, capazes de recuperar com tecnologia digital filmes antigos, o motivo que explique porque estejam vindo somente agora a público certos registros do passado cujos espinhosos temas são necessários e urgentes para se entender a sociedade do hoje. O racismo, seja estrutural, velado ou institucionalizado, de alguma forma colabora para essa justificativa. Por que, então, não fosse por isso, somente após 60 anos de carreira, Tina Turner sentira-se à vontade para divulgar questões até então sujeitas à crítica de sua vida pessoal no documentário “Tina”? Igualmente, por que apenas dos últimos anos para cá tenham fervilhado docs  abordando abertamente este tema como "Os Panteras Negras: Vanguardas da Revolução" (2015), "What Happened, Miss Simone?" (2015), "Eu Não Sou Seu Negro" (2016), "A 13ª Emenda" (2016) e "Libertem Angela Davis" (2012)?

Esse esquecimento perverso quase fez o mundo perder de conhecer uma história praticamente apagada das mentes, mas que, salva pelas mãos do cineasta Ahmir "Questlove" Thompson, foi resgatada para a eternidade. “Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, o magnífico e arrebatador documentário que concorre, com todo merecimento, ao Oscar nesta categoria, explora o Harlem Cultural Festival de 1969, evento que reuniu multidões de pessoas negras pela primeira vez em um acontecimento público e ao ar livre nos Estados Unidos e grandes nomes da música negra para celebrar a cultura afro-americana. Apesar da magnitude do festival, as imagens recuperadas pelo filme ficaram guardadas por décadas – acredite-se – numa cave. A referência no título à música de Gil Scott-Heron, escrita originalmente naquele mesmo explosivo ano de 1969, deixa claro o tom de denúncia que choca e encanta ao mesmo tempo. Como essa história tão rica nunca havia sido contada?

Wonder dando adeus ao sufixo "Little"
e ganhando maturidade
no Harlem Cultural Festival


Montado com sensibilidade e perspicácia, “Summer...” une em sua narrativa didática jornalística com arqueologia urbana. Focado nos vários números musicais que se apresentaram no palco montado em pleno Mount Morris Park, as apresentações são entrecortadas por breves mas extremamente precisas informações documentais sobre aspectos sociais, políticos e biográficos que sustentam o objeto do filme, fazendo com que não seja apenas um amontoado de músicas seguidas umas das outras (o que, neste caso, já seria interessante). Minitelejornais sobre determinado artista, imagens de fatos sociais recentes como manifestações contra o racismo, ou contextualizações históricas necessárias, como a coincidência do festival com o dia da chegada do homem à Lua, 20 de julho, dão ainda mais peso àquelas performances que se veem no palco, agigantando-as de significado e importância.

Afora isso, a variedade de estilos (R&B, funk, gospel, blues, jazz) e o nível de qualidade do cast é de encantar qualquer admirador da música feita nos últimos 60 anos. B.B. King, Nina Simone, Mahalia Jackson, Stevie Wonder, Sly & Family Stone, Gladys Knight & the Pips, The 5th Dimension, Max Roach e outros desfilam à frente dos olhos dos espectadores, dando a impressão de quase não se acreditar que aquilo um dia aconteceu. Mas está ali, vivo novamente. Afortunados que estavam na plateia e alguns daqueles artistas, como Marilyn McCoo e Ronald Townson, da The 5th Dimension, juntam-se aos espectadores comuns nesse assombro. Noutro grande mérito do filme de Thompson, pessoas que presenciaram o festival, seja assistindo ou se apresentando, são convidadas a reverem as imagens até então perdidas. Profundamente tocados, pois a revivência lhes retraz alegrias e dores, é impressionante perceber o quanto todos demonstram surpresa com o que veem, não só por somente agora terem a oportunidade disso, mas porque, não fosse a força intrínseca da imagem, do mistério divino que o cinema guarda, as memórias tendem a irem se apagando até, um dia, desaparecerem por completo. É o cinema documental exercendo suas duas primordiais funções: revelar e eternizar.

trailer de "Summer of Soul"

Além de um retrato do momento sociocultural de final dos conturbados anos 60, o filme serve também para se entender o próprio estágio em que se encontravam àquela época os artistas participantes, visto que, para alguns, o festival foi crucial para a carreira. Wonder, então com 19 anos, por exemplo, sobe ao palco do Harlem Cultural Festival exatamente no ínterim entre sua tutela artística pela Motown, iniciada quando ainda era uma criança, e o começo da maturidade criativa, que o levaria a se tornar um dos mais consagrados artistas de todos os tempos a partir de então. A Sly & Family Stone, igualmente. É impressionante perceber que “Stand!”, revolucionário disco de estreia da banda que mesclava o funk negro ao psicodelismo do rock com o grito contra as desigualdades, havia sido lançado apenas um mês antes da realização do festival e, mesmo assim, já era uma febre junto ao público. E o que dizer da apresentação explosiva de Nina?! Ou da homenagem a Martin Luther King, protagonizada por Mavis Staples e Mahalia!? De arrepiar. Se o assassinato do pastor e líder político ainda hoje não é totalmente assimilado pela comunidade negra, imagine-se à época, pouco mais de um ano anos após o trágico ocorrido e em que as feridas estavam abertas.

Mavis e Mahalia protagonizando
um dos momentos mais
emocionantes do filme
O paralelismo com fatos históricos daquele efervescente período está presente a cada minuto do longa, como a onipresença dos Black Panthers (responsáveis pela segurança do evento), a presença de figuras emblemáticas para a causa negra como o ativista Jesse Jackson e o protagonismo de Tony Lawrence, agitador cultural e organizador do festival. Somente assistindo-se o filme se entende com mais clareza, por exemplo, o porquê das críticas que sempre pairaram em relação à política de financiamento da corrida especial, intensificada pelos Estudos Unidos naquela década de 60 de Guerra Fria e disputa de poder com a União Soviética. Num dos momentos do filme, mostram-se reportagens da época com pessoas sendo entrevistadas durante o festival dizendo ser um absurdo o governo gastar bilhões de dólares para ir à Lua enquanto a população, ali, pobre e em sua maioria negra, passa por tanta dificuldade. Noutro ponto, mais um aspecto elucidativo de “Summer...”: o festival foi realizado, curiosamente, durante o mesmo verão que outro megaevento, o de Woodstock, o qual levantava não a perigosa bandeira da luta contra o racismo e dos direitos civis, mas a utópica máxima hippie de “paz e amor”. Não é difícil de saber qual festival entrou para a história e qual foi esquecido num porão...

“Summer...” não é só provavelmente o melhor documentário deste ano e forte candidato à estatueta da Academia, como um dos mais brilhantes sobre música da história do cinema, tranquilamente equiparável a clássicos do gênero como “O Último Concerto de Rock”, “Gimme Shelter” e “Amazing Grace”. Sua narrativa, que casa metalinguística e documentação histórica, é tão eficiente que lhe potencializa o caráter de espetáculo e de denúncia social num só tempo. A realização milagrosa de “Summer...” é, por si, reveladora, visto que funciona como uma metáfora da vida da América escravagista: preso num calabouço, o negro, até então fadado ao apagamento social, sai da condição subumana para forjar, com talento ímpar e força interior ainda mais admirável, toda a arte musical moderna como se conhece hoje.


Daniel Rodrigues