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segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tom Zé - "Estudando o Samba" (1976)



“[Tom Zé] pensou e realizou este disco, onde procurou reunir uma variedade de tipos e de formas rurais e urbanos do samba, dando a cada música a vestimenta que achou mais adequada.”
Elton Medeiros


Nos anos 90, o destino pôs diante de Tom Zé o 'talking head' David Byrne, que o trouxe do ostracismo para uma posição de artista cult e mundialmente reverenciado. Mas o início desta história hoje já conhecida nasceu de uma audição despretensiosa de um dos vários LP’s de MPB que Byrne comprara numa vinda ao Brasil. Dentre aqueles bolachões, um lhe fez a diferença. Foi este que o motivou a procurar saber quem era aquele artista e, em seguida, conhecê-lo e gravá-lo. Este álbum era “Estudando o Samba", de 1976, sem dúvida o melhor trabalho do baiano de Irará.

Metalinguístico, atonal, serialista, revisionista. Todos estes atributos “difíceis” estão certos quando creditados a “Estudando o Samba”. Mas tudo tem pouca importância quando o negócio é simplesmente ouvi-lo. Um deleite! Trata-se de um disco indiscutivelmente conceitual, o que já lhe garante certa aura de complexidade. É, talvez, o grande disco-conceito da música brasileira depois do “Coisas” do Moacir Santos, de 1965 (neste quesito, nem “Tropicália”, de 68, em que Tom Zé participa junto com toda a turma de Caetano, Gil, Gal, Nara e Mutantes, é tanto). Mas, acima de tudo, é delicioso escutar o álbum do início ao fim e curtir músicas como “Tô”, “Hein?” e “Vai”, onde Tom Zé desconstrói o gênero samba para, didaticamente, mostrá-lo de maneira híbrida em suas mais variadas vertentes.

Comecemos pelo fim. Afinal, sou daquela teoria de que todo grande disco tem uma obra-prima de desfecho, de abertura ou as duas coisas juntas. No caso de “Estudando...” a faixa final não é bem um espetáculo, mas, com certeza, original e incomum, por isso o destaque. Intitulada “Índice”, traz na letra de frases fragmentadas e de sentido vago um verdadeiro índice remissivo em que se repassam os títulos de todas as músicas anteriores. Aí o motivo tanto de a letra ser quase silábica, pois todos os títulos (exceto “A Felicidade” e a própria “índice”) são formados por palavras que não passam de quatro letras, quanto, também, do teor fortemente conceitual do disco, visto que a obra se autoreferencia a todo instante.

Se o final do disco é interessante, porém não musicalmente estonteante, o início é. “Mã”, samba modernista repleto de referências aparentemente díspares, é a tradução da obra de Tom Zé (não à toa o próprio artista a regravou com outras letras mais de uma vez depois). Num clima entre a ópera e o ritualístico, mistura batuque de terreiro, canto de trabalho das lavadeiras nordestinas, coro sacro-religioso, ruídos da São Paulo urbana, entrecruzamentos vocais ao modo das vanguardas europeias (Ligeti, Stockhausen) e riff de rock (tocado não na guitarra, mas cavaquinho de samba!). Tudo está ali: tradição e vanguarda, lundu e tropicália, popular e erudito, roça e asfalto; e de uma forma intensa, poderosa. Já tendo criado ótimas músicas até então (o samba concretista “Todos os Olhos”, o sertanejo-pop “Sabor de Burrice” ou o funk-rock “Jimi Renda-se”), “Mã” é, definitivamente, marco da maturidade musical de Tom Zé como músico.

Na sequência, a única do disco que não é de sua autoria: o clássico “A Felicidade”, de Tom e Vinícius. A escolha, claro, não foi à toa: tocada em ritmo de valsa-rancho, Tom Zé canta lindamente em tom baixo acompanhado só de violão, que sincopa o compasso. Ainda, esparsos acordes de baixo e frases de orquestra de metais ao estilo de George Martin ou Rogério Duprat. Através desta economia de elementos, Tom Zé põe a nu a belíssima estrutura melódica original da canção, homenageando não apenas a famosa dupla de autores, mas a bossa nova como um dos gêneros sambísticos. Ainda, para arrematar, depois de um dos últimos “soluços” da síncope, entra uma cozinha de pagode na diagonal do compasso, desconexão rítmica esta que não estraga a música. Pelo contrário: cai tão bem que faz deixar ainda mais clara a percepção de que os criadores da bossa nova muito se inspiraram no que vinha do morro.

Outra que merece todos os elogios é “Toc”, talvez o único samba serial da história! Próximo ao que o maestro francês Pierre Boulez inventou, o serialismo (método de composição que usa séries de notas, ordenando-as e variando suas durações, intensidades e ataques), “Toc” representa, em tese, uma sequência de sons infinitos e contínuos. Só não é assim porque, como um jogo de xadrez, o compositor “joga” com as notas e as séries sonoras, tirando-as, adicionando-as, repetindo-as, deslocando-as, num esquema matemático em que as variáveis são intermináveis. Sem nenhuma percussão, esta “brincadeira” instrumental ainda traz um dos “inventos” de Tom Zé: o agogô no esmeril, uma serra de verdade adaptada como instrumento musical, o que faz deste samba soar mais barulhento do que muito rock pesado.

“Tô” é outra pérola; das minhas preferidas. Parceria com o sambista Elton Medeiros e de letra filosófica, mas pegajosa (“Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”), é um sambão urbano a la Riachão. O disco ainda passa pelo samba brejeiro (“Ui!”), o samba minimalista (“Dói”), o samba-canção (“Só”), o samba-marchinha (“Vai”) e o samba “dor de cotovelo” (“Se”: “Ah, se maldade vendesse na farmácia/ Que bela fortuna você faria”). Tudo de forma revisitada, revisada, irônica e filtrada pelo olhar tropicalista de Tom Zé.

“Estudando o Samba” significa, na história da MPB, um passo adiante na linguagem do gênero não por inventar um novo conceito, mas por montar uma “enciclopédia do samba”, evidenciando, ao decompor a espinha-dorsal dos seus subestilos, as mil e uma possibilidades que ainda poderia vir a ser explorado. E deu certa a experiência em laboratório. Estão aí Towa Tei, Beastie Boys, Sean Lennon, Ed Motta e Fantastic Plastic Machine que não me deixam mentir. Todos adicionaram a seu paradigma de referências o samba, invariavelmente usando-o entre outros estilos. Afinal, foi Tom Zé mesmo quem disse: “estudando [o samba] pra saber ignorar”.

FAIXAS:
1. Mã
2. A Felicidade
3. Toc (Instrumental)
4. Tô
5. Vai
6. Ui!
7. Dói
8. Mãe
9. Hein?
10. Só
11. Se
12. Índice
**********************

Ouça “Estudando o Samba”:
Tom Zé Estudando o Samba
....................................................

Além de “Estudando o Samba”, vale ouvir outros três discos super representativos da longa obra de Tom Zé: “Todos os Olhos” (1973), a “mais completa tradução” da São Paulo moderna; “The Hips of Tradition” (1992), o marcante primeiro trabalho gerado após a redescoberta por David Byrne; e a linda trilha do balé “Parabelo” (1997), composta em parceria com José Miguel Wisnik para o Grupo Corpo.

Ouça “Todos os Olhos”:
Todos os Olhos

Ouça “The Hips of Tradition”:
The Hips of Tradition

Ouça “Parabelo”:
Parabelo

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por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 17 de maio de 2021

“Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau (1922) vs. “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog (1979)

 

Seja no futebol ou no cinema, têm enfrentamentos que se pode dizer que metem medo. Colocar frente a frente os dois “Nosferatu”, as adaptações mais conhecidas do romance de horror “Drácula”, do escritor britânico Bram Stocker, é um desses que dá aquele frio na espinha mesmo antes de a partida começar. Qual time é mais “mordedor”? Qual deles “ataca” mais? Qual saberá se valer melhor do “elemento surpresa”? Qual escola conseguirá superar a outra? Indagações que os comentaristas se fazem, mas que ninguém sabe ao certo as respostas até o certame ser definido ali, dentro das quatro linhas, olho no olho, dente por dente.

 Os retrospectos das duas equipes são de amedrontar qualquer adversário. São duas forças do futebol alemão, inegavelmente. De um lado, aquela que é considerada a obra-prima do Expressionismo Alemão: “Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau, de 1922. Produto do período Entre-Guerras, é um ícone máximo de uma escola de cinema, incorpora uma série de inovações, tanto técnicas (como o uso do contraste negativo, a expressividade do jogo de luz e sombra, a cenografia distorcida, a maquiagem carregada) quanto narrativas, tornando-se referência para todo e qualquer filme de terror até os tempos atuais. Do outro, “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog, de 1979, a versão muito bem elaborada pela leitura de outra referencial escola cinematográfica, mas esta do pós-Guerra, o Novo Cinema Alemão, do qual o cineasta, um dos grandes expoentes, tinha como parceiros de movimento nomes como Win Wenders, Margarethe Von Trotta, Volker Schlöndorff e Rainer Werner Fassbinder.

Mas por que se lê “Nosferatu” e não “Drácula” nos uniformes? Porque, na década de 20, oito anos após a morte de Bram Stocker, a família do escritor não queria ceder os direitos para a obra ser filmada. Além da mudança do título, o vampiro titular se tornou o Conde Orlock na a primeira versão. Jonathan Harker foi rebatizado para Thomas Hutter, Lucy Harker tornou-se Ellen Hutter e Abraham Van Helsing virou Professor Bulwer. Nos anos 70, com esse impasse superado, Herzog consegue utilizar os nomes originais, mas mantém o roteiro (e o título) do filme mudo. Ambos, porém, são baseados na trama do livro “Drácula”: um homem faz uma viagem de negócios para um fantasmagórico castelo, onde o vampiro quer seduzir sua noiva. Em ambos há também o acréscimo de alguns elementos para mudar um pouco a obra original e, claro, disfarçar a inspiração, como a ideia de que a luz do sol mata os vampiros.

Schreck e Kinski: vampiros de atuações matadoras
Mas chega de pré-jornada. Vamos, de fato, à jornada em si, aquela que vai da pacata Wisborg rumo à assustadora mansão nos Montes Cárpatos. Depois daquele papo motivacional nos vestiários (“quero ver todo mundo dar sangue hoje!”, “vâmo entrar mordendo!”, “se passar por ti, gadunha!”, etc.), é hora de enfrentar aquele friozinho na barriga e entrar em cena de vez. A bola (fita) vai rolar! Poucos minutos decorrem e já se percebe que o jogo vai ser, como diz na linguagem do futebol, “pegado”. Esquemas espelhados em campo: marcação no cangote do adversário, mas sem perder a qualidade quando vão pra frente. O filme de Murnau começa fazendo o contraste necessário da proposta expressionista: cenário bucólico e iluminado ao mostrar a vida de Hutter antes de chegar à Transilvânia, local onde a atmosfera, agora sombria, sem profundidade e claustrofóbica, se transforma em algo sinistro, gótico. Já Herzog prefere adicionar ao expressionismo o qual homenageia aspectos barrocos do período medieval em que a trama transcorre, seja na fotografia e direção de arte quanto no aspecto cênico, retirando um pouco da carga romântica típica do expressionismo (os arroubos emocionais, as expressões exageradas) e incluindo maior naturalidade às interpretações. Futebol moderno, mais prático. Estratégias que mostram estilos diferentes: um mais cru, mais objetivo; o outro, mais elaborado, mais híbrido e, assim, o placar permanece no zero.

O páreo segue duro quando se fala dos atores que interpretam Conde Orlock/Drácula: Max Schreck e Klaus Kinski. Igual Luis Suárez na Copa de 2014, os dois disputam cada centímetro do gramado na base da dentada! Imbuído do espírito expressionista de uma interpretação mais teatral e hiperbólica, o ator do primeiro simplesmente cria um ícone do cinema. Além dos olhos esbugalhados, da maquiagem distorcedora e da expressão de mistério, seu trabalho corporal compõe o personagem: gestos lentos, passos curtos, costas curvadas, mãos contorcidas, semblante esquelético e braços colados ao corpo (como que recém saído do caixão). No entanto, Kinski não fica para trás. Ele – com quem Herzog havia rodado anos antes o excelente mas traumático “Aguirre: A Cólera dos Deuses”, em que Kinski quase enlouqueceu a equipe a ao próprio cineasta com ataques de sua própria cólera – usa sua fúria natural para assimilar o que Schreck lhe legara, porém valendo-se muito bem de um elemento ao qual o outro não tinha condições de aproveitar à época da primeira realização: a comunicação sonora. Kinski, que é louco mas não é bobo, dota seu vampiro de voz e de sons guturais e animalescos, que o fazem parecer ainda mais com um assombroso morcego. Não disse que era páreo duro? Nem a destreza cênica de Kinski, entretanto, é capaz de superar a invenção de uma forma de atuar e a marcante personificação de um mito da cultura ocidental quando se fala em histórias de terror. Afinal, o que seria de um Freddie Krugger ou dos filmes de zumbis se não fosse esse grotesco vilão? Sim: Schreck mostra os dentes e marca o primeiro. E não dá pra dizer que foi descuido da defesa, não! Foi, sim, total habilidade do atacante. 1 x 0 pra “Nosferatu” de 22.

Acontece que, como deu pra perceber, o remake não veio só pra reverenciar, mas para disputar palmo a palmo. E qual a tática que usa para isso? Valorizar o que tem de diferencial. Bruno Ganz e Isabelle Adjani como casal Harker é um desses pontos, e quase marcam gol. Momento de pressão do time mais jovem (se é que dá pra falar disso de um cara como Drácula, com 200 anos de idade). Os atores são um elemento do esquema tático que se soma ao uso da cor desmaiada da foto de Jörg Schmidt-Reitwein e da trilha da banda krautrock Popol Vuh, constantes colaboradores de Herzog àquele época e corresponsáveis pelo climatização sonora de seus filmes. No volume de jogo, “Nosferatu” de 1979 empata a partida: 1 x 1.

 

O pavor das mocinhas Greta Schröder (como Ellen Hutter) e Isabelle Adjani (Lucy Harker)

Mas o primeiro “Nosferatu” não se intimida e segue propositivo, assustando (literalmente) a cada vez que chega na área. Time entrosado, em que os jogadores trocam passes em silêncio, sem trocar uma palavra sequer. Mas nem precisa! Eles cercam o adversário quando estão sem a bola, diminuindo os espaços. E quando vão pra cima, meus amigos! É bola na trave, é sequência de escanteios, é defesa daquelas sobrenaturais do arqueiro, é salvada do zagueiro e cima da linha. Na gíria futebolística: “Nosferatu” bota terror! Eis então que o longa mudo desempata novamente a partida com a sequência da chegada de Orlock com o navio cheio de ratos trazendo a peste à cidade, momento em que não apenas impressionam as cenas dele andando pelas ruas com o caixão nos braços quanto o filme de Murnau se vale de efeitos visuais bem ousados para sua época. 

Não leva muito tempo, porém, e o desafiante, num contra-ataque, digamos, “letal”, altera o placar mais uma vez! Que jogo histórico estamos presenciando! Mais do que histórico: secular! Aproveitando-se exatamente desta sequência do desembarque da nau pesteada a Wisborg, que corresponde ao 4º ato do filme original, o professor Herzog intensifica ainda mais a atmosfera fantástica e põe milhares de ratos a invadirem as ruas da cidade. Que coisa apavorante! Isso é que se chama de povoar o campo do adversário! O jogo está indo para seus 15 minutos finais e o que se vê no marcador é 2 x 2. Tudo igual mais uma vez. Os ânimos vão ficando cada vez mais nervosos. O juiz, ao perceber as entradas estão cada vez mais fortes e que dos dois times, que têm tendência a machucar, estão querendo tirar sangue do adversário, distribui alguns cartões para colocar um freio. Se não a coisa descamba, Arnaldo!


Filmes "Nosferatu" completos: de 1922 e de 1979





Acontece que time que sabe que é grande não se amedronta fácil. O filme de Murnau sabe que representa não só um marco no cinema mundial como, em termos históricos, artísticos e sociológicos, uma síntese dos tempos pré-nazismo. A psicanálise, a industrialização e, principalmente, a 1ª Guerra, traumatizaram o mundo dos anos 20. A Alemanha, inferiorizada e pobre, tinha nas diversas correntes artísticas daquele período manifestos desta conturbação. Um deles, dos mais bem sucedidas enquanto forma de arte, é justamente o Expressionismo Alemão, o que se vê em obras como esta ou “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), “As Mãos de Orlac” (1924), “Fausto” (1926) e “Metrópolis” (1922). Dá pra dizer que “Nosferatu” de Murnau não é apenas um filme: trata-se da invenção de uma escola, da demarcação de um estilo, da mais profunda manifestação artística de uma real onda sombria a qual não só se intuía como, infelizmente, se concretizaria no Holocausto anos depois.

A inigualável cena da sombra 
subindo a escada
Não tem como segurar um time desses, né? Pois é o que acontece. A “sinistra” qualidade técnica do filme dos anos 20, como a montagem precisa, o uso mimético dos planos de câmera e a adequação da luz à simbologia cênica fazem o time crescer para cima da sua vítima. A cena de Orlock subindo as escadas e levando a mão à maçaneta da porta da casa de sua pretendida, como se apenas a sombra agisse, é daquelas jogadas que somente os grandes ousam. O cinema noir até hoje agradece por esta cena, sem a qual dificilmente este movimento cinematográfico existiria. Além disso, o aspecto altamente erótico, que envolve desejo, medo e morte, outra ousadia que certamente impacta mais em um filme do início do século para um mais ao final deste. Herzog, um técnico honesto e sensato, no fundo sabe que seu lugar na história cinematográfica é de um renovador e não de pioneiro como o seu adversário, a quem ele reverencia. Por isso, ciente do seu tamanho, Herzog não se mete a besta em “copiar” a cena com o seu Conde Drácula, e é justo nesse detalhe que a partida se define: 3 x 2 para o clássico “Nosferatu”. E está fechado o caixão!

Planos parecidos em jogo de esquemas táticos espelhados:
bem acima, cena da aparição de Nosferatu no navio;
abaixo, o vampiro sai da tumba; ratos, muitos ratos,
levam a peste para a cidade; por fim, a luz do sol,
mortal para um vampiro que salva os homens
da criatura das trevas.


Num confronto tenso, com sustos para os dois lados, 
defesas mordedoras e ataques afiados como caninos, 
“Nosferatu: O Vampiro da Noite” faz um jogo de igual 
pra igual com o seu original, “Nosferatu: Uma 
Sinfonia do Horror”. Mas a camiseta – ou melhor, 
a capa – pesa nessas horas, e nos 10 minutos 
finais, quase ao apagar das luzes (ou seria ao
“acender das luzes” quando mata o vampiro... 
ah, sei lá!), o clássico de Murnau se impõe 
como grande obra-prima da história do cinema 
e crava! Opa, o placar, não os dentes! 
Não pensem que, no entanto, por ser disputada, 
a partida foi feia, desleal ou tenha partido para a
 violência gratuita. Não! Muita qualidade 
para os dois lados, agressividade na medida certa 
e atuações dignas de duas escolas campeãs. 
Placar justo em um clássico bem jogado.






Daniel Rodrigues

terça-feira, 12 de março de 2013

cotidianas #209 - Tininho e Tiririco




As cigarras já esganiçavam seu canto funesto àquela hora, fim de tarde. O sol, forte e alaranjado naquele dia, caía agora frouxo, aguado, por detrás do morro do Piau como que prostrado da lida do dia, cansado, consumido de si mesmo. Justino havia piorado. E naquela luz pouca de não-sol, então! A pior das impressões. Magro como estava, aí sim que sumia. Um risco. Desde a noite anterior, ardera em febre, revirando os olhos, espumando a saliva, estrebuchando, coisa horrível de se ver. Eu vi. O que eu não vi, o resto, me contaram. Tremia dum jeito que dona Arminda só tinha visto pequena, lá nos idos de 1892, ainda no Vapabuçu, quando Frasino, irmão dois anos antes dela, batia os queixos tão forte que rachou o dente de leite da frente. Ela lembra como se fosse hoje de observar cara da mãe. Rosto afinado mais do que precisava, tanto resultado de doença quanto de pouco de-comer. Via o sofrimento dela, tanto que só a boca sacudia. O resto, tudo parado. Até o piscar. Mas agora, com o seu pobre Tininho ali mal à sua frente, não é mais o “como se fosse hoje”: é o hoje. Fosse assim, seria lembrança. Doída, mas passada. Mas não era. Era, sim, desta feita, num filho. Já vira Justino passar por sérias ruindades de saúde. Mas agora era pior, visível que era. Judiaria.
Dentro da palhoça, terço gasto na mão áspera, muita ladainha. E choro. Lá fora, sentado, com o queixo apoiado sobre as duas mãos cruzadas no cabo da enxada, Tiririco. Olhando o vazio, acabrunhado. Burro, como sempre se foi desde que apareceu ali um dia, com fome, há uns 12 anos, e foi ficando, ficando, sem jamais, ‘té hoje, dizer uma palavra. Bom de roçado, opera tudo que precisar. Reza religiosamente a cada prato que lhe é posto na frente, e isso desde que chegou, já naqueles idos. Educado nas rezas como um seminarista, bonito de se ver. Agradecido como de não muitos, quase nenhuns. E se dá bem com os bichos mateiros que, decerto por identificação, gostam dele de pronto, seja anta, cachorro-vinagre, bugio, jaratataca, jia, maria-faceira, araçari, chora-chuva. Coração bom tem dentro. Mas abestalhado da cabeça por demais. Essas coisas de doença, enfermidade como a de Justino, jamais teve atino pra essas coisas; muito jumentoso pra isso. Trabalha bem a lida forte, mas be-a-bá, valei-me Nossa Senhora!, é-lhe muito. Explicar o porquê da doença era perda de tempo. Fazia cara de bobice, como se não tivesse entendendo aquilo que realmente não tinha; um ouvido só servia pra dar passagem ao som que vinha do outro, e lá se ia a explicação embora sem serventia. Com Justino assim, adoentado, era proibido de entrar na casa porque, se Nhô Chico vacilasse, Tiririco ia se chegando de mansinho, sem piar, escondido, até que, de repente, ‘regalava os olhos e desatava a chorar. Berreiro longo, assoviado, esganiço nem pela boca nem pelo nariz que dava pra ouvir na cercania de Nhô Matias, meia légua, 600 braças dali. E não só: ainda borrava-se nas calças, emporcalhava-se todo, empestava. Isso se assucedeu umas duas vezes, até que Nhô Chico deu-lhe um basta. É que Tiririco gostava muito do Justino, era isso. Como um irmão a quem escolheu pra ser. Justino desde pequeno também se afeiçoara no maninho emprestado. Foi ele, inclusive, que atribuíra essa graça esquisita: Tiririco. Nome que não quer dizer nada, como o próprio, que nada diz. Deu-se cabimento, assim, o tal nome. É que Justino, ‘inda piá, abraçava o irmão bem forte e embestava em repetir-lhe: “Tiririco, Tiririco, Tiririco”. Aí, ficou. Mas aquela não era hora de abranjo nem de fala. Então, pra modo de não estorvar Justino e de Nhô Chico não ter de desenhar-lhe um galo na cabeça, o certo era Tiririco ficar lá fora no curral enquanto cuidavam do acamado. Lá fora: ele e o cabrito.
O pano branco de Nhá Doca, emplastrado daquelas ervas e embebido de água fresca recém-tirada do poço por seu Chico, já não dava mais conta. Esquentava sobre a testa de Justino, que fervia. Dava para enxergar o vaporzinho subindo, serpentinando uma dança mundana e ligeira. A mão calosa e encarquilhada da curandeira virava e desvirava o tecido, repetindo o sinal da cruz e murmurando na boca sumida pela velhice orações que ninguém entendia. Às vezes, parecia até que Justino queria repetir as palavras, gesticulando a boca com dificuldade. Mas não era reza, não. Decerto, devaneio da cabeça febril, frenesim (certo que era). Nhá Doca ainda tentava a cura com sua famosa beberagem, cuja receita continha garapa-amarela, melado, palavras místicas, cauda-de-cavalo e guaco socado. Dava a ele pela ligeira fenda entre os beiços num chumaço de algodão empapado, pingando ali gota a gota. Brincadeira da vida: logo Nhá Doca, parteira do pequeno Justino, era quem, agora, com as mesmas mãos que lhe trouxeram pra imensidão da vida, lhe via despedir-se dela a cada minuto que passava. Era no já-já, questão de esperar apenas. Estava-se indo o Tininho.
Terço na mão, Dona Arminda agora só chorava sobre o lenço algodoado e surrado. A pele flácida e calcinada estremecia a cada lacrimejo. Tentava não fazer barulho, suplicando baixinho à Nossa Senhora das Sete Dores. Mas o quarto minúsculo, cuja maca onde o filho pesteado se estendia, tomando-lhe quase toda área, prendia o som choroso ali mesmo, que dali não saía. A maca não era da família, não. Era de seu João Troncoso, homem granjola dali das bandas favorecido dos faz-me-rir que a emprestou para seu Chico não sem exigir que este o entregasse de volta a maca mais 3 contos de réis. Nhô Chico, fazedor de tudo para ver o filho são, assumiu mesmo sem saber como ia cumprir. Valia. Até porque, do seu jeito torto, João se apiedara do caso de Justino, a quem ele vira crescer à mesma época que seu mais novo, Salustiano, que hoje está no Rio de Janeiro fazendo o colegial. Foi Salustiano que, anos atrás, acometido de espinhela caída, ficou dois meses deitado sobre aquela maca tomando remédio e aquietando as costelas. E sarou. Maca boa, comprada nas estranjas. “Vai que acontece o mesmo com o Justino!”, pensou João, e a emprestou com a benevolência descontada dos apatacados de até deixar-se pagar depois.
No quarto, as velas bentas alumiavam com cor de fogo febril o chão batido de terra vermelhusca, acendendo também, ao canto, a imagem da Santa, que padre Lino, por consideração, cedera do altar da igrejinha. “Muit’agradicida”, disse-lhe dona Arminda, beijando-lhe a mão e correndo logo em seguida de volta pra casa com a Virgem debaixo do braço. Noutro canto, o feixe fazia descobrir a carteira dos estudos. Justino, sabido nas letras e nas contas, queria ser doutor. Daria esse gosto pra seu Chico, certamente. Mas, ironia d’O-de-Lá-de-Cima, a saúde nunca acompanhou o sonho dele e do pai. O organismo frágil desde a infância, se por um lado lhe limitavam dos afazeres mais pesados da roça, por outro, pareciam que emprestavam mais inteligência àquele corpo desmilinguido que mal parava em pé nos dias em que Deus soprava o vento mais forte. E era querido em toda redondeza. Brigão? Nunca. Os rapazolas valentões viviam de sopapo pra cá e pra lá, fosse de verdade ou só de borga. Ele: não. E era respeitado, sabe? Ninguém lhe pegava pra inticar. Era admirado. Eu mesmo, sempre o gostei. Cabeça sempre pros estudos, desde caboclinho. Queria, um dia, mostrar pra Nhô Chico e Nhá Arminda o anel do doutoramento.
Pois o tempo avançava e a ventania assoprava lá fora da casinha, sacudindo as palhas do telhado, que apitavam. As cigarras já de tanto cantar aquele canto desgracento desistiram de esperar melhora e morreram. Justino piorava. Nada daquilo tudo adiantava. Nhá Doca tinha que tomar rumo, não podia mais ficar ali. Tinha outra família pra atender, e, fora isso, morava noutras paragens, longe, lá no arraial das Taquaras. Mas, de bom grado, pois consternada com o jovem, deixou ali uma caneca daquela beberagem, o emplastro e a bacia com as ervas que colhia na mata da Caratiga, “santas”, diziam todos por lá. Dona Arminda, resignada, agradeceu, e seu Chico mal o fez com a cabeça, assentindo (nem palavra tinha mais). A benzedeira pôs o surrão nas costas e saiu a passo miúdo mas rápido pra sua idade. Na saída, cruzou com Tiririco, que ainda obedecia a regra de se manter debaixo do sereno. Sentado num toco, ele e o cabrito faziam-se companhia, consolando um ao outro, como amigos. Essa parceria só podia ser por conta dessa parecença que Tiririco tem com os bichos. Certa feita, um velho sertanejo, de passagem por ali, pediu água à Nhá Arminda. Sentou-se a convite uns minutos no mesmo toco esse, cansado, com um cajado na mão. Até que mirou Tiririco longe, na capina. O velho parou o gole no meio e disse:
- Esse menino é ribeirinho, nasceu no regato do São Francisco, logo se vê. Posso até dizer onde foi: foi nas Pedras de Cima, na margem do rio Chico, bem lá.
Nhô Chico estranhou. Olhou pra mulher e depois pra Tiririco espantado, pois nunca lhe passou pela cabeça que Tiririco tivesse vindo de algum lugar.
- Vósmecê me adescurpe, mas não lhe dê caso: isso aí não veio de lugar nenhum nem tem grande aproveitamento. Isso aí é burrico, só sabe de enxada e lavramento - disse Nhô Chico rindo, apontando desdenhoso na direção de Tiririco com o queixo.
- Bonito de ver mesmo é meu filho, Justino. Tá nus´istudo agora essa hora. Vai estudar na cidade ano que vem. Esse, sim, tem precisão pra vida - relatou, orgulhoso.
Mas o velho, sem dar ouvido, concluiu, encantado:
- Logo se vê que esse caboclinho é filho do santinho dos animais...
Tomou o resto d’água, agradeceu e foi-se. Sumiu na caatinga pra nunca mais.
O frio e o escuro da noite fechada e bonita agora pareciam não dar mais nenhuma esperança. A morte já se acomodara, calma e agourenta, esperando o minuto certo, que se anunciava pra dali a não muito. Nhá Arminda, desacorçoada, suplicava à Consoladora um milagre. No fundo, culpada por ter botado no mundo uma cria tão sem vigor, tão quebradiça, gravetinho. Nhô Chico, de oposto, não admitia. Revoltava-se. Embestado e indignado, não entrava no seu miolo porque Deus não se apiedava dele; porque Deus fazia isso com Justino, menino tão bom; porque Deus fazia essa judiação, essa maldade tão maldade com ele, Chico. Pecado? Tinha, claro; mas então que aquilo não fosse com Justino! Fosse então com... com... (sabia o que queria pensar, mas abafava.) O que fez pra merecer, indagava, olhando furioso pra palha do teto tentando enxergar o que tinha por detrás dela, acima, lá em cima, no céu preto. Pensava que jamais alguém dos Da Luz seria alguém nessa vida; ia tudo continuar naquela miséria dos infernos. Todo o dinheiro juntado por anos pra custear os estudos do menino na cidade grande, pra quê? Tudo aquilo, pra quê?
Justino lutava pra não ir, mas carecia mais luta não. Era. Até que se alevantara. Alisou com gosto no corpo a roupa de chita de xadrez colorido, aquela que de quando em quanto abria a gaveta e admirava, usada só nos dias de festa de São João. Vestia uma calça branca adornada de botões, bem solta, cuja bainha dava no meio das canelas. Calçava aquela sandália franciscana de couro endedada. Justino caminhou em direção à comodazinha, onde pegou com delicadeza a concertina, lustrosa de tão limpa. Reluzia o instrumento. Enganchou as alças sobre os ombros, posicionou os dedos sobre as sétimas e olhou para os pais com um sorriso iluminado de tanto encanto.
- Ói, mãe, que bonito! Que nem Tiririco falou ‘quele dia, se alembra? Ói, pai, ói!
Na rua, Tiririco teve um estalo. Olhou pro céu estrelado e, naquele escuro infinito, enxergou uma rolinha pararu alçar de repente. Uma luz parecia cobrir somente a sua penagem azulada dentro da escuridão do em volta. Luz só nele, branca. Cois’estranha um pararu-azul àquela hora, noitinha, ‘inda mais apontado naquela luz tão de não-sei-onde! A ave sibilou seu canto cheio: “u-út... u-út”, e Tiririco, pra modo de não bulir com Nhô Chico e Nhá Arminda, respeitando a dor dos pais lá dentro da casinha jururu de tão triste, abriu pra si um sorriso silencioso, enquanto uma lágrima entendedora caía de seu rosto.



segunda-feira, 2 de abril de 2018

"Tropicália" ou "Panis et Circencis" - vários (1968)


O Descobrimento do Brasil

“Eu organizo o movimento/ 
Eu oriento o carnaval/ 
Eu inauguro o monumento/
No planalto central do país.”
Versos da canção “Tropicália”, de Caetano Veloso

“SEQUÊNCIA 5 – CENA 9
INTERIOR, NOITE EXTERIOR, DIA, ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAN E OS MUTANTES. FRENTE AO MICROFONE. OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO. 
TODOS – As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.
CORTA.”
Trecho do texto do encarte original de “Tropicália”

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.“ 
Trecho do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, 1928.


A filosofia antropofágica que o modernista Oswald de Andrade concebeu em finais dos anos 20 traz no cerne uma revolução conceitual cuja difícil assimilação perdura ainda nos dias de hoje. Como criar uma arte brasileira e original ao deglutir, temperado com os sabores tropicais, aquilo que vem de fora? Oswald converteu o ato de canibalismo ameríndio do colonizador numa metáfora de combate ideológico. Noutras palavras, devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer a própria cultura e, assim, recriá-la.

Desafiador, por óbvio. Afinal, isso significa, antes de saber identificar o que é de fora, entender o que pertence a si próprio. Complicado de concretizar, ainda mais em terras tupiniquins historicamente subjugadas e inferiorizadas. Houve quem topasse a briga, contudo. E não foi um alguém, mas um grupo. Em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil, filhos da santa Bahia imortal e seguidores da bossa-nova de João Gilberto, organizaram o movimento e orientaram o carnaval. Sob a égide das ideias oswaldianas, criaram aquilo que pertinentemente se chamou de “Tropicália”, disco e movimento, que estão completando celebráveis 50 anos. Vestidos de parangolés por dentro e por fora, eles, mais os representantes da Paulicéia Desvairada Mutantes e Rogério Duprat, os conterrâneos baianos Gal CostaTom Zé, a carioca Nara Leão o os poetas tão nordestinos quanto universais Torquato Neto e Capinan, fizeram aquilo que o continental, desigual e rico Brasil moderno ensejava: estabelecer uma verdadeira ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura, o bom e o mau gosto. Vicente Celestino dialogava, sim, com rock britânico, e Carmen Miranda não ficava abaixo da avant-garde. O mesmo para com Luiz Gonzaga em relação à Disney, ou os sambistas do morro à linhagem clássica do Velho Mundo. Tudo junto e misturado. Era mais que um desejo: era uma necessidade.

Caetano e Gil à época do Tropicalismo, as duas principais
cabeças do movimento
De fato, a conturbação sociológica a que os anos 50 e 60 se acometiam não era pouca: Guerra do Vietnã, ameaça de desastre atômico, ascensão das ditaduras nas Américas, Crise dos Mísseis, assassinato de Kennedy, corrida espacial, revolução sexual. No Brasil, se a bossa-nova, a arquitetura de Niemeyer e o Cinema Novo colocavam o País no mapa mundial da produção intelectual – para além apenas da habilidade física de um futebol já bicampeão mundial àqueles idos –, os primeiros anos de Ditadura Militar anunciavam tempos cada vez mais sombrios de censura, perseguições, prisões, vigília, cerceamento e exílio – como acabaria por ocorrer com Caetano e Gil menos de dois anos dali. Os festivais espocavam de euforia e tensão. A cultura de massa começava a fermentar nas telas da tevê. Roberto Carlos, Elis Regina e Wilson Simonal movem multidões. Ao mesmo tempo, pairava no ar um clima de inquietação, medo e incertezas. E a antropofagia cultural caía como uma luva para compreender essa louca realidade brasileira.

“Tropicália” mostrava-se, então, como um acidente inevitável. Não tinha mais como fugir: era ir adiante sem lenço e sem documento enquanto o seu lobo não vinha."Tupi or not tupi", era essa a questão. Os acordes de órgão em clima litúrgico abrem o disco dando uma noção da complexidade que seguirá até o seu término. A missa pagã irá começar! É o início de “Miserere Nobis”, cuja letra de Capinan guarda em seu latim ecumênico ideias revolucionárias de igualdade social (“Tomara que um dia de um dia seja/ Que seja de linho a toalha da mesa/ Tomara que um dia de um dia não/ Na mesa da gente tem banana e feijão”) e de resistência (“Já não somos como na chegada/ O sol já é claro nas águas quietas do mangue/ Derramemos vinho no linho da mesa/ Molhada de vinho e manchada de sangue”).

A influência do rock psicodélico da época está totalmente presente, como na colegam das faixas, igual ao então recente e já referencial “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”. Mal “Miserere...” anuncia seu término, já começam a se ouvir estrondos intermitentes. É a percussão martelada de “Coração Materno”, a superversão do seresteiro Vicente Celestino pela ótica tropicalista. Inspirando-se na veia sinfônica dos Beatles (“She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby”, entre outras), mas superando-os em conceito, a música evoca a orquestração carregada de Duprat e o canto emotivo de Caetano para dramatizar (ainda mais!) a canção escrita nos anos 30, redimensionando seu caráter operístico. Novamente, a dialética clássico versus popular. Ao mesmo tempo, a nova leitura moderniza o antigo original, cuja certa breguice esconde um ar tragicômico, dando-lhe um caráter de seriedade que o faz parecer... ainda mais tragicômica! Fina ironia.

É a vez, então, dos Mutantes aparecerem pela primeira vez com “Panis et Circencis”, um dos hinos do movimento e tão importante no repertório que subtitula o projeto. A produção impecável e ousada de Manuel Berenbein põe os acordes do Repórter Esso – noticiário de radio e telejornalismo símbolo da cultura de massa daquele Brasil – antecipando a exótica melodia que vem a seguir, misto de balada medieval com cantata italiana. A letra faz aberta crítica às “pessoas da sala de jantar”, a burguesia alienada apenas “ocupada em nascer e morrer”. Metalinguística, lá pela metade da faixa, o coro de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias é emulado como se o tape tivesse sido desligado. Um segundo momento na música traz solos de flauta e corneta e repetições de versos enquanto o andamento acelera para, em nova interrupção, entrar a ambiência de uma sala de jantar com pessoas à mesa, quando, enfim, tudo acaba sendo engolido de vez por um som agudo. Só no terceiro final, aí que a música acaba realmente. Como numa edição de um filme de Glauber Rocha ou um quadro de Hélio Oiticica, a fragmentação e a descontinuidade que traduziam os tempos confusos de então.

Nunca se vira nada igual na música brasileira (e nem mundial) até então.

Fragmentação na edição de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, de 1967

Eis que dá a impressão de que tamanha subversão parece ser superada com “Lindoneia”, um bolero classicamente orquestrado e com a doce voz de Nara, símbolo da bossa-nova e do “bom gosto” consensual na música brasileira. Ledo engano. Inspirada numa tela do artista visual Robens Gerchman – aliás, autor da arte da capa do disco –, “Lindoneia” remonta a história de depressão de uma linda modelo que, diante da hipocrisia asfixiante da sociedade moderna, se suicida. “Despedaçados, atropelados/ Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”. São as imagens que as retinas da jovem não conseguem parar de enxergar até que, fatalmente: “No avesso do espelho/ Mas desaparecida/ Ela aparece na fotografia/ Do outro lado da vida”. Sem precisar das famigeradas guitarras elétricas, combatidas pelos conservadores da MPB àqueles idos, a música é tão impactante e provocativa quanto o restante.

Na linha do que pautaria toda sua obra, “Parque Industrial”, de Tom Zé – que ainda gravaria o primeiro disco solo naquele ano –, é outra obra-prima de “Tropicália”. A sonoridade de bandinha marcial, como se celebrasse ignorantemente a industrialização do sentimento humano, é típica da ironia do baiano de Irará. Ele critica num só tempo as indústrias do entretenimento, dos bens de consumo e da comunicação, sem deixar de dar uns tapas na Igreja Católica: “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção”. E o refrão diz, impiedoso: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil”.

O baião-exaltação “Geleia Geral” tem na poesia de Torquato e na brilhante melodia de Gil outro hino tropicalista, quase um ideário ali condensado. “Um poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia/ Resplendente, cadente, fagueira/ Num calor girassol com alegria/ Na geleia geral brasileira/ Que o jornal do Brasil anuncia”. A letra carrega a complexidade cultural que a Tropicália descobria, como que tirando um véu das escondidas “relíquias do Brasil”:“Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra/ Maracujá, mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil/ Três destaques da Portela/ Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade/ Hospitaleira amizade/ Brutalidade, jardim.” Brasilianista, carrega em seus versos Macunaíma, Sérgio Buarque de Hollanda, cultura de massa, diáspora africana, arte popular, folclore. Uma das mais belas letras do cancioneiro nacional.

Instalação "Tropicália", de Oiticica,
de 1966, antecipando o movimento
Se a referencial bossa-nova carioca permeia toda a obra, como no sucesso “Baby” – aqui, na sua versão mais clássica – e "Enquanto seu Lobo Não Vem", genial em sua construção em contrapontos, o igualmente basal baião nordestino sustenta a dissonante "Mamãe, Coragem", outra joia da parceria Caetano/Torquato (“Mamãe, mamãe não chore/ Não chore nunca mais, não adianta/ Eu tenho um beijo preso na garganta/ Eu tenho um jeito de quem não se espanta”) cuja interpretação de Gal é irretocável. Novamente, um final abrupto que, junto de todos os outros elementos sonoros e simbólicos, dá feições não apenas musicais, mas também visuais e antropológicas à proposta tropicalista.

A poesia concretista-visual da
letra de"Bat Macumba"
O passeio pela cultura brasileira está presente ainda na farra “Bat Macumba”, de letra claramente sintonizada com o concretismo de um dos padrinhos do movimento, Augusto de Campos, e cujo arranjo mistura os batuques de terreiro com as guitarras distorcidas do rock; na releitura histórico-musical de “Três Caravelas”; e na faixa que encerra apoteoticamente o álbum, "Hino ao Senhor do Bonfim", que se indica uma afirmação “baianística” dos seus mentores, também funciona como um interessante contraponto à música de abertura, “Miserere Nobis”: primeiro, a súplica e, depois, a elevação.

Caetano, Gil e a turma tropicalista já eram artistas populares tanto por suas obras musicais quanto pelas participações ativas em teatro, tevê e cinema. Mas é a partir desse projeto coletivo muito bem concebido e acabado que eles engendram uma revolução não somente em suas obras e carreiras, mas na cultura nacional. Nunca mais o Brasil foi o mesmo. Nunca mais o Brasil se viu da mesma forma. BRock, Black Rio, Lambada, Axé Music, Pagode, Mangue Beat: tudo teve (e seguirá tendo) o visto do Tropicalismo.

A pretensão modernista ainda hoje é digerida pelos dentes do Tropicalismo. Mesmo tão influente que foi e é, ainda lhe restam pedaços mal comidos sobre o prato – basta ver, hoje, o abismo que há entre Anitta e Criolo, dois influenciados. Por querer ou não, o movimento abriu caminho para a proposição de uma verdadeira identidade nacional, uma expressão brasileira salvadora. A Tropicália, em sua assimilação da antropofagia, fez o contrário dos inocentes índios quando os europeus lhes compravam com meros espelhos: dessa vez, foi o nativo quem apresentou o espelho para o forasteiro e lhe disse: “Olha só como eu sou”.

O Tropicalismo pôs o Brasil sobre um palco iluminado pelo sol dos trópicos e ornamentado com frutas e vegetação – com direito a mulatas rebolando e declamações de poesia ufanista. Sugeriu que o Brasil enxergasse a si próprio, que se lhe percorresse as matas, os sertões,os  mangues, as praias e os morros. Conhecesse por dentro suas mansões, malocas, palafitas e ocas. Considerou admitir-se complexo, pois mestiço e pluricultural. Levantou a esperança da realização da alternativa alegre e sábia diante dos outros povos do mundo. “A alegria é a prova dos nove”, como já preconizava o Manifesto Antropofágico.

 Se “o Brazyl não conhece o Brasil”, pois “nunca foi ao Brazil”, como disse certa vez Tom Jobim, a Tropicália propôs uma ruptura emancipadora a estes tristes trópicos. Ir a seu próprio encontro, mas não ao vento de caravelas, e sim, de expresso. De número 2222. No embalo do ritmo alucinante da modernidade para forjar o renascimento de uma nação. Como um (re)descobrimento do Brasil.

FAIXAS
1. "Miserere Nóbis" (Capinam, Gilberto Gil) – com Gilberto Gil - 3:44
2. "Coração Materno" (Vicente Celestino) – com Caetano Veloso - 4:17
3. "Panis et Circencis" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) - Os Mutantes - 3:35
4. "Lindoneia" (Caetano Veloso) – com Nara Leão - 2:14
5. "Parque Industrial" (Tom Zé) – com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e Tom Zé - 3:16
6. "Geleia Geral" (Gilberto Gil, Torquato Neto) – com Gilberto Gil - 3:42
7. "Baby" (Caetano Veloso) – com Gal Costa e Caetano Veloso - 3:31
8. "Três Caravelas (Las Tres Carabelas)" (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) - Caetano Veloso e Gilberto Gil - 3:06
9. "Enquanto seu Lobo Não Vem" (Caetano Veloso) - com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee - 2:31
10. "Mamãe, Coragem" (Caetano Veloso, Torquato Neto) – com Gal Costa - 2:30
11. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) – com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 2:33
12. "Hino ao Senhor do Bonfim" (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 3:39

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OUÇA O DISCO
Vários - "Tropicália"

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

ClyBlog 5+ Livros



E chegamos ao último especial da série 5+ do clyblog. Não que não tivéssemos mais assunto, daria pra pesquisar sobre mais um monte de coisas com os  amigos, saber o que mais um monte de pessoas interessantes pensam, levantar listas mas acredito que estes temas abordados, além de bastante significativos, resumem, de certa forma, a ênfase de assuntos e as áreas de interesse do nosso canal.
E pra encerrar, então, até aproveitando o embalo da Feira do Livro de Porto Alegre, cidade que é uma espécie de segundo QG do clyblog, o assunto dessa vez é literatura. Sim, os livros! Esses fantásticos objetos que amamos e que guardam as mais diversas surpresas, emoções, descobertas e conhecimentos.
Cinco convidados especialíssimos destacam 5 livros que já os fizeram sonhar, viajar, rir, chorar, os livros que formaram suas mentes, os que os ajudaram a descobrir verdades, livros que podem mudar o mundo. Se bem que, como diz aquela frase do romando Caio Graco, "Os livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros mudam as pessoas.".
Com vocês, clyblog 5+ livros:




1. Afobório
escritor e
editor
(Carazinho/RS)
" 'O Almoço Nu' é muito bom.
Gosto muito desse livro."

1- "Trilogia Suja de Havana", Pedro Juan Gutiérrez
2 -"Búfalo da Noite", Guillermo Arriaga
3- "Numa Fria", charles Bukowski
4 - "Sorte Um Caso de Estupro", Alice Sebold
5 - "O Almoço Nu", William Burroughs
 
Programa Agenda falando sobre o livro "O Almoço Nu", de William Burroughs

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2. Tatiana Vianna
funcionária pública e
produtora cultural
(Viamão/RS)


Kerouac, um dos 'marginais'
da geração beatnik
"Cada um destes são livros que chegaram as minhas mãos em momentos diferentes de vida
e foram importantes para muitos esclarecimentos.
Algumas destas leituras volta e meia as retomo novamente para entender melhor,
porque sempre algo fica pra trás ou algo você precisa ler depois de um tempo,
de acordo com o seu olhar do momento."

1- "On the Road, Jack Kerouak
2 - "1984", George Orwell
3 - "Os Ratos", Dionélio Machado
4 - "A Ilha", Fernando Morais
5 - "O livro Tibetano do Viver e Morrer", Sogyal Rinpoche






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3. Jana Lauxen
escritora e
editora
(Carazinho/RS)


"Minha vida se resume a antes e depois de "O Acrobata pede desculpas e cai".
"O Jardim do Diabo", do Veríssimo, é um romance policial incrível
do tipo que você não larga enquanto não acabar. E quando acaba dá aquela tristeza.
"Capitães da Areia" li há muito tempo e não consigo me esquecer desse livro.
O engraçado é que a primeira vez que o li, tinha uns 12 anos e  não gostei.
A segunda vez eu tinha mais de 20 e fiquei fascinada pela obra.
O "Livro do Desassossego" é para ter sempre por perto, para abrir aleatoriamente e dar aquela lidinha amiga.
Conheci Pedro Juan em uma entrevista que ele concedeu para a revista Playboy,
e a "Trilogia Suja de Havana" foi o primeiro livro do autor que eu li.
Seus livros são proibidos em seu próprio país, visto a crítica social que o autor acaba fazendo sem querer.
Digo sem querer por que sua temática não é política – ele fala de sexo, de drogas, de pobreza, de putas,
e detesta ser classificado como um autor político.
Mas acaba sendo, pois é impossível descrever qualquer história que se passe em Cuba sem acabar fazendo alguma crítica social.
Mesmo que enviesada."

"Capitães da
Areia"

1- "O Acrobata Pede Desculpas e Cai", Fausto Wolff
2 - "O Jardim do Diabo", Luís Fernando Veríssimo
3 - "Capitães da Areia", Jorge Amado
4 - "Livro do Desassossego", Fernando Pessoa
5 - "Trilogia Suja de Havana", Pedro Juan Gutiérrez





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4. Walessa Puerta
professora
(Viamão/RS)


"Estes são os meus favoritos."

1- "O Tempo e o Vento", Érico Veríssimo
2 - "O Mundo de Sofia", Jostein Gaarder
3 - "Era dos Extremos", Eric Hobsbawn
4 - "Dom Casmurro", Machado de  Assis
5 - "O Iluminado", Stephen King



 A brilhante adaptação de Stanley Kubrick, para o cinema, da obra de Stephen King

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5. Luan Pires
jornalista
(Porto Alegre/RS)


"Dom Casmurro" tem uma das personagens mais emblemáticas da literatura nacional:
Capitu. A personagem dos "olhos de cigana oblíqua e dissimulada" é um verdadeiro ensaio para quem curte a construção de um personagem.
Toda criança deveria ler a coleção do "Sítio do Pica-Pau amarelo". E todo adulto deveria reler.
Uma homenagem a imaginação, a cultura e ao sonho das crianças e dos adultos que nunca deveriam deixar de ter certas inquietações juvenis.
Desafio qualquer um no mundo a descobrir o final de "O Assassinato de Roger Ackroyd"! [ponto final!].
Cara, pra mim, "Modernidade Líquida" é o livro mais necessários dos últimos tempos.
Pra entender a sociedade e o caminho para onde estamos seguindo.
"@mor" é um ensaio perfeito das relações humanas atuais.
O que me chamou atenção é que não demoniza a internet, mas aceita o papel dela nos relacionamentos atuais.
O formato, só em troca de e-mails, é um charme. E o final é de perder o fôlego."


1- "Dom Casmurro", Machado de Assis
2 - "Sítio do Pica-Pau Amarelo" (qualquer um da coleção), Monteiro Lobato
A turma do Sítio, do seriado de TV
da década de 70, posando com seu criador
(à direita)
















3 - "O Assassinato de Roger Ackroyd", Agatha Christie
4 - "Modernidade Líquida", Zigmunt Bauman
5 - "@mor", Daniel Glattauer




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