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domingo, 12 de junho de 2016

COTIDIANAS nº 440 ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS - Namorada... é que é serpente



Filippo tinha duas paixões na vida: cinema e Aurora. Mas comecemos pela mais analisada e analisável: o cinema.
Embora fosse farmacêutico, Filippo gostava mesmo era de sétima arte. Não no sentido de fazer cinema, mas de apreciá-lo. Era dedicado na sua profissão, e a cumpria muito bem. Mas os “24 quadros por segundo”, a magia do cinema, era o que realmente lhe movia. Era o que recheava sua cabeça inventiva e romântica. De certa forma, a vida de farmacêutico até o ajudava a dedicar-se ao que gostava: além de os horários na farmácia favorecerem, pois lhe davam a noite para poder ver o que queria, também ganhava o suficiente para ir ao cinema, comprar filmes e, solteiro, assistir a vários deles na TV a cabo madrugada adentro. E não era com blockbusters ou aventuras explosivas que Filippo se animava. Era cinéfilo mesmo, na verdadeira acepção da palavra. Conhecia cinema a fundo: europeu, asiático, norte-americano, alternativo, indiano, russo e por aí vai. De qualquer escola, movimento ou polo produtivo, fosse Cinema Novo Japonês ou Dogma 95, noir ou Realismo Fantástico, Filippo conhecia ao menos alguma coisa representativa.
De todas as nacionalidades do cinema, entretanto, a que mais lhe agravada era a italiana. Não necessariamente pela descendência, mas porque adorava a picardia, o conceito fotográfico, o sabor do idioma e o humor sarcástico do cinema da Itália até nos filmes não propriamente de comédia. Claro que admirava as obras dos mestres Fellini, Pasolini, Antonioni, Petri, De Sica, Visconti. Mas se deliciava mesmo era com as comédias italianas. Títulos como “Volere, Volare”, “Ladrões de Sabonete”, “O Incrível Exército de Brancaleone” e “O Monstro“ faziam-lhe a cabeça. Uma delas, porém, era a sua preferida, não apenas entre as comédias, mas entre todas as escolas, movimentos, nacionalidades e filmografias: “Parente... É Serpente”. O longa de Mario Monicelli era seu filme de cabeceira, o primeiro de todas as suas listas. Só havia um contrassenso nisso: Filippo não tinha este filme em sua videoteca. Já tivera, mas o perdera – e isso tinha uma explicação incômoda para ele. Mas exceto o fator estritamente emocional, que em seguida explicaremos, a priori, para um colecionador – ainda mais para quem gostava tanto de “Parente... É Serpente” – isso era uma falha gravíssima. Chegava a culpar-se por não tê-lo mais em sua prateleira: “Por que fui fazer a besteira de deixar o filme com ela?”
“Ela” quem? A Aurora, ora. Sim, Aurora, a segunda paixão de Filippo, aquela cuja análise é um tanto mais intrincada do que a de cinema. Mas tentemos: moça um pouco mais magra que o normal, talvez por sua estatura um pouco acima da média, era naturalmente sexy mesmo não fazendo o estilo “gostosona”. Esteticamente era bem proporcional: bunda, coxas, peitos, boca, cintura: tudo sem exagero mas sem faltar nada. Porém, o que lhe fazia sensual mesmo era seu jeitinho, o jeitinho que encantava os homens. Foi assim com Filippo naquele churrasco na casa do Douglas há quase seis anos: encantamento. Mas não só ele: o Maikinho, o Ventura, o Biboca, o Haroldo e até o dono da casa, noivo, gamaram naquela misteriosa fotógrafa lépida, faceira e desatenta aos olhares desejosos. A Priscila, a noiva do Douglas, levara a amiga na festa para fazer uns registros fotográficos despretensiosamente e sem cobrar nada, pois ela queria treinar a luz com a nova lente que acabara de comprar. Mas o que embasbacou de verdade a galera não foram as fotos, mas, sim, a própria Aurora fotografando. Era um show ao vivo do tal “jeitinho”. Com seu cabelo preto curtinho e espetado, ela passava de um lado para o outro, se agachava, se contorcia, falava sozinha, fazia careta quando encostava o visor no olho, punha uma pontinha da língua para fora da boca vermelha de batom para conferir o resultado. Era descolada, espontaneamente alegre e de gestos largos, como se não se importasse com a presença dos átomos à sua volta para exercê-los com liberdade, com iluminação própria. Uma esfinge. Uma aurora.
Ocorreu que o jeitinho de Aurora não bateu com o de mais ninguém naquela festa, apenas com o jeito nerd de Filippo. Os óculos de armação grossa estilo anos 60, o cabelo arrumado cujo corte permitia ao menos uma franja subversiva e a cabeça quadrada que comportava ricos olhos verdes trazidos de Bérgamo pelos bisavós na primeira leva da imigração italiana ao Rio Grande do Sul, cativaram a aparentemente distraída Aurora. Na verdade, confessou depois a Filippo, ela o percebera logo que entrara pela porta, sentado num banquinho tomando uma cerveja com o copo americano quase vazio. Até lhe mostrou uma série de fotos que batera dele com zoom, de longe, para não dar na vista o interesse. Fotos encantadas, que Filippo, todo bobo, não cansava de ver e rever mesmo anos depois.
Foi bonito o romance dos dois. Aurora foi a primeira namorada de verdade de Filippo, a primeira a quem ele realmente se afeiçoara. Já Filippo foi para Aurora o encontro de algo que ela precisava para preencher sua alma inquieta e perscrutadora. Era como se ele fosse um necessário prego cravado no chão segurando a barra de sua saia de modo que ela não saísse correndo desordenadamente mundo afora. Os quase dois anos de relacionamento correram com mais alegrias do que brigas. Na verdade, belicismo não era uma característica de nenhum dos dois. Apenas ocorria, isso sim, momentos de total tristeza de Aurora. Inexplicáveis. Tão sem justificativa visível que, no dia seguinte, aparecia ela de novo lépida e faceira como se nada tivesse acontecido. Filippo, por amor ou covardia, relevava.
O romance avançava para um enlace permanente: Aurora mudara-se para o apê de Filippo na Barão do Triunfo, no Menino Deus, e estabeleceram uma bonita rotina conjugal. Viajavam juntos e planejavam outras viagens; preparavam baldes de pipoca para as sessões de cinema na sala; iam ao super toda semana repor a dispensa; faziam sexo com bastantes frequência e prazer; levavam o Golias ao veterinário; pagavam a mensalidade da facúl de Aurora; compravam pão para o café da manhã do dia seguinte; essas coisas.
Tudo harmonioso, não fosse o tal jeito misterioso de Aurora. Embora gostasse de Filippo, sua ligação com ele, ou melhor, com os relacionamentos amorosos, guardava complexidades. Com o passar do tempo, foi ficando mais e mais inquieta. Ela parecia sempre estar em busca de algo que não encontrava – ou preferia não encontrar para permanecer buscando. Filippo nunca escutara dela, por exemplo, um “eu te amo”. Pelo contrário, costumava ouvir de Aurora, em tom brincadeira, outra sentença: “eu não sou casável”. E no mais, Filippo inconscientemente sabia que o seu prego cravado no chão não conteria Aurora para sempre, pois uma hora ou outra a barra do vestido se rasgaria e ela, enfim, sairia desorientada pelo planeta Terra.
A desagradável suspeita de Filippo se confirmara: a frase não tinha nada de brincadeira. Com a justificativa de fazer uma pós em São Paulo, Aurora um dia pegou sua mala e seus equipamentos fotográficos e foi morar na como ela agitada Sampa. Fim do romance, assim, sem mais nem menos, sem muita explicação. Sem olhar Filippo nos olhos na despedida. Como uma fuga, como uma busca por algo que provavelmente nem ela sabia o quê.
Não precisa dizer que Filippo ficou arrasado. Até parara de assistir filmes por um bom tempo, de modo a não gravar uma impressão ruim da obra por causa de sua inevitável fossa. Gostava muito de cinema para deixar que uma paixão maculasse a outra. “Imagina rever ‘Persona’ do Bergman nesse estado deplorável!”, pensava em sua melancolia cinéfila. “Aurora”, do Murnau, então: nem pensar! Um dia, chegara ao ponto de escondê-lo, pois seus olhos teimosamente percorriam a fileira de DVD’s na parede para baterem justo naquele maldito título: “Aurora”. No entanto, no momento em que engaiolava o clássico de Murnau, Filippo percebeu que, pouco antes na prateleira, organizada por ordem alfabética de cineastas, vagava uma caixinha. Era no “M” de Monicelli. Sim, faltava-lhe “Parente... É Serpente”. Numa recapitulação de milésimos de segundo, lembrara-se que emprestara para Aurora logo que começaram a namorar, ainda quando não moravam juntos. Ela levara para casa para assistir sozinha o filme predileto do recente namorado, num gesto de afeição dela. Já o de Filippo era de quem já acreditava naquele relacionamento, pois emprestar um item de sua coleção era uma raridade, e fazê-lo justamente com “Parente... É Serpente”, então! Uma prova de amor eterno.
Não foi eterno. Depois da tristeza pela separação, Filippo foi se recuperando do jeito que dava. Anos se passaram, namorou umas duas moças, transou com essas e mais outras três sem compromisso, mas não se firmou com nenhuma delas. Ia levando, mas sempre com Aurora lá no fundo da cabeça. Já se acostumara à vida sem ela e sem seu filme preferido. E como não convinha ir atrás dela, foi à cata do filme. Bateu aquela vontade de revê-lo, que todo cinéfilo tem para como suas fitas queridas de tempos em tempos. Pesquisou no site da Cultura e... “esgotado”. “Ok: vou procurar no site da Saraiva”. Igual. Livraria da Folha... idem. Todo comprador de internet sabe que não achar o que quer nesses sites é um mau sinal. Provavelmente é porque o produto não está disponível mesmo. Já aflito, fez uma busca genérica no Google pelo título do filme mais a palavra “comprar”. Nada, nem no Mercado Livre, onde só encontrara um VHS para vender – e ele não tinha mais videocassete há anos.
Mesmo pouco acostumado em baixar filmes, tentou ainda achar em sites de torrent e, incrível: não tinha também! Nem no Youtube, que, mesmo que tivesse, para Filippo, um colecionador à moda antiga, não cabia se contentar em tê-lo com uma imagem pixelada e correndo o risco de dessincronizar áudio do vídeo. Sim, tinha que se convencer: “Parente... É Serpente” estava fora de catálogo.
Ele se maldizia. Não convencido, pegou um dia um pedaço do horário de almoço e foi a um brique na Alberto Bins, onde sabia ter muita coisa rara. Com medo de receber de cara a má notícia do dono da loja, foi ele mesmo procurar. Em meio àquela zona totalmente fora de ordem, logo percebeu que não era possível achar qualquer coisa ali dada a bagunça, a pouca iluminação e a quantidade amazônica de DVS’s, CD’s, livros, revistas, vinis, VHS’s e até fitas cassete. Tudo junto e misturado. Um museu abarrotado e empoeirado. Podia até ser que tivesse o que procurava, mas não conseguiria achar por si só no pouco tempo que dispunha, só com muita sorte. Precisaria, enfim, consultar o dono da loja:
- Ei, tu tem o DVD do filme “Parente... É Serpente”?
- Não. – respondeu secamente sem pestanejar e nem olhar para Filippo.
- Mas tu tem certeza? Tu nem parou pra pensar, não consultou aí o computador. – disse Filippo, apontando com o queijo para um notebook dinossáurico do qual o homem não tirava os olhos.
- Tenho certeza. Esse filme tá fora de catálogo. – respondeu com a segurança de quem conhece o mercado em que atua enquanto Filippo escutava sua digitação e o som de aviso de bate-papo do Facebook saltarem do note.
- Puxa... É que, sabe, eu tinha esse filme, mas emprestei...
- Pra uma mina?
- É... pra uma namorada. – falou Filippo, constrangido com a previsibilidade de seu ato. – Ele se mudou pra São Paulo, e daí...
- Cara: que besteira que tu fez, hein? – tirando os olhos do Facebook e finalmente olhando para Filippo. – Esse filme é tri bom. Faz tempo que eu vi. Ih! Um tempão. E vou te dizer uma coisa: tu perdeu uma grana. Esse DVD é uma raridade hoje em dia. Nem no Mercado Livre tu encontra.
- É, eu já sei.
- Eu sei como é: já fiz essa merda também. O que a gente não faz por uma buceta, né? – disparou o homem, rindo, tentando criar uma cumplicidade machista.
- Não é isso, cara. – respondeu imediatamente Filippo franzindo a testa.
Mais emputecido pela busca frustrada do que ofendido com o outro, Felippo preferiu sair da loja e ir embora. Mas numa coisa ele tinha que concordar com aquele sujeito grosseiro: que besteira foi fazer em deixar o filme com Aurora! Perdera a amada e o filme amado ao mesmo tempo.
Anos se passaram até que, um dia, quando Filippo já se acostumara com a condição “sem Aurora” e “sem filme predileto”, algo improvável acontece. Voltando do Zaffari da Getúlio Vargas em direção à sua casa, Filippo dobra a esquina e com quem ele se depara? Aurora. Ela, um caminhão de mudanças estacionado na calçada e várias caixas sendo transportadas para dentro de um prédio a duas quadras de seu apartamento. Ambos pararam e se olharam com surpresa.
- Oi, Lippo!
- Oi... Aurora. Tu aqui?... – falou, apontando com o queixo para o prédio.
- Sim! Tô me mudando pra cá. Legal, né? Voltei pra Porto por que... tava com saudade daqui, do meu lugar, dos amigos. E também pra ficar perto da mãe, que anda doente. Lembra da mãe, né, dona Doralice?
- Sim, claro que lembro.
- Pois é. A mãe tá morando aqui pertinho, naquele condomínio ali na Barbedo com a Getúlio, sabe? E com esses problemas dela, o meu irmão morando em Londres, não tinha ninguém pra ficar com ela, que tá velhinha.
- Que coisa... Manda um beijo pra tia Doralice. E melhoras pra ela.
- Mando, mando, sim – disse animada, sorrindo graciosamente.
Ficaram se olhando sem trocar palavras por alguns segundos, ele segurando as sacolas brancas do Zaffari nas duas mãos, ela abraçando uma caixa grande com o número 39 escrito com hidrocor preta, que fez Filippo lembrar-se imediatamente do filme de Hitchcock, “Os 39 Degraus”, e da cena do carro de “Blow Up”, do Antonioni.
- Então: casou? – indagou ela, interrompendo o silêncio.
- Eu? Não. E tu?
- É, também não. – disse Aurora, sorrindo novamente. – Tive uns rolos em São Paulo, um outro em Budapeste, que eu passei um tempo lá. Até cheguei a morar junto por um tempo, mas, sabe como eu sou, né? “Não sou casável”, rsrs.
- É, eu sei...
- Tu não casou mesmo, então?
- Só se for com a farmácia e com meus filmes. – brincou Filippo, e os dois riram.  – A propósito: tu te lembra que eu te emprestei, faz anos isso, o meu DVD do “Parente... É Serpente”? Sabe, aquela comédia italiana do Mario Monicelli, que eu gostava muito, que eu vira e mexe comentava. Eu te emprestei antes de a gente... morar...
- Humm, acho que sei... Não lembro direito. Tenho uma vaga lembrança.
- Tu te lembra, sim: a gente até comentava que um dos personagens tinha o meu nome. Deve tá em alguma dessas tuas caixas aí.
- Não me lembro de ter visto lá em casa... Porque tu sabe, né? Minhas coisas são sempre uma bagunça! Pode ser que esteja nas minhas coisas. Tenho que procurar. É que foi tão rápida a mudança lá em São Paulo, tudo na correria, que só soquei tudo pra dentro e me toquei de lá. Nem sei direito o que tem dentro dessas caixas. Não vou estranhar se eu abrir alguma e encontrar um bicho, rsrs.
- Vai ver, tu encontra não o filme, mas uma serpente de verdade!
Riram juntos.
- Por falar em bicho, e o Golias? – lembrou-se ela, interessada.
- Foi morar com a mãe lá em Faria Lemos. Vida de cachorro velhinho não combina mais com a correria da cidade, apartamento, concreto. Agora tá curtindo uma casa com pátio e verde lá na Serra.
- Querido! Saudade dele.
Novo silêncio, agora por falta de assunto.
- Então... tchau.
- É, tenho que terminar aqui a mudança. – afirmou Aurora, convencendo-se.
- E eu tenho fazer meu almoço. A gente se fala, agora que estamos pertinho de novo, né?
- Sim! Meu celular novo com prefixo 51 é esse aqui – disse-lhe, soltando a caixa e pegando um cartão de dentro da bolsa. Ele anotou o seu celular atrás de um segundo cartão dela e despediram-se com dois beijinhos.
- Se tu achares o meu filme, me avisa, tá?
Filippo não acreditou que ela fosse ligar, e nem ele ligaria. Procurou-a no Face, achou seu perfil, mas não solicitou amizade. Adicioná-la no WhatsApp, nem pensar. Não iria atrás dela por orgulho e pela mágoa ainda mal resolvida, a qual despertara naquela semana desde que a revira.
Mas ela ligou:
- Alô?
- Oi Lippo! É a Aurora! Que tu tá fazendo?
- Eu? Tô em casa, organizando umas coisas, dando um tapa na casa, uma faxina. Por quê?
- É que eu tinha um job pra fazer agora de noite, um evento de um cliente, mas mixou. O cara desmarcou comigo em cima do laço. Tu vê, que desgraçado?!... Daí, eu pensei: por que não convidar o Lippo pra vir conhecer o meu novo apê?
- Sei...
- A gente podia jantar alguma coisinha. Tu sabe que eu não sou boa na cozinha, né? Continuo não sendo. Mas a gente chama um sushi, uma pizza, assiste um filme, sei lá. Tá tudo meio com cara de mudança aqui ainda, mas tu é de casa. Que tu acha?
- Bem... é que eu...
- Ah, Lippo, não vem com desculpa! Tu tá faxinando a casa numa sexta-feira às seis da tarde. É sinal que tu não tem nada melhor pra fazer! Diz que vem, diz que vem!
- Tá, Aurora. Acho que eu vou, sim. Deixa eu tomar um banho, que eu cheguei da farmácia e não parei. Mais tarde eu bato aí.
- Oba! Que bom que tu vem. Vou também dar uma organizada na casa pra te receber.
- E vem cá: por acaso o tal filme que tu pensou de a gente ver é o meu?
- De que filme tu tá falando, Lippo?
 - O “Parente... É Serpente”, Aurora! Que tu disse que ia procurar, pra ver se ainda tava contigo. Tu achou?
- Sinceramente, Lippo, não encontrei nada, pelo menos não nas caixas que eu abri até agora. Na real, tô achando que esse filme não tá comigo, viu? Acho que tu emprestou pra outra pessoa, outra namorada... e tá confundindo.
- Eu tenho certeza que te emprestei, Aurora. Faz tempo, mas foi pra ti. Mas, tá: deixa pra lá. Dá um tempinho que daqui a pouco tô chegando aí.
Filippo tomou banho mas vestiu-se despreocupadamente, pois não tinha a menor esperança de que alguma coisa voltasse a acontecer entre Aurora e ele depois de tanto tempo. Estava errado. Jantinha regada a vinho chileno, sala iluminada só pela luz da tevê, ela contando histórias de São Paulo e da Hungria, ele, dos aprontos do Golias, e não demorou muito. Conversa vem, conversa vai: pintou clima. A transa foi bonita e apimentada como nos velhos tempos, ali mesmo na sala e depois no quarto, madrugada adentro. Fluiu. Parecia que os anos nem haviam se passado. Aurora se entregou com prazer, linda nua. Filippo, no céu, dormiu exausto e suspenso com a sensação de que fora picado novamente pelo veneno deleitoso de sua Aurora.
Naquele sábado era sua folga, então, relaxado, Filippo deixou o sono se estender e acordou no meio da manhã ouvindo o barulho de chuva no vidro da janela. Sozinho. Não precisou chamar mais de duas vezes por Aurora para concluir que ela já não estava. Seus equipamentos sobre a cômoda não se encontravam mais ali. Decerto, tinha trabalho para fazer. Vestiu-se, bateu a porta do apartamento e desceu o elevador para voltar para casa. Não tinha porque ficar esperando ela voltar. No hall, o porteiro lhe avistou e o chamou:
- O senhor que é o senhor ‘Felipo’?
- Sim, sou eu mesmo – respondeu desconfiado.
- Dona Aurora deixou isso aqui pro senhor. Ela já tava saindo pelo portão, toda cheia de cousa, mala, bolsa, máquina de retrato, mas daí voltou aqui e disse pra mim lhe entregar isso aqui, que ela não queria voltar no apartamento pra não acordar o senhor.
E lhe estendeu a encomenda.
- A que hora foi isso?
- Cedo da manhã, senhor. Umas 6 horas.
Filippo finalmente tinha de volta seu DVD de “Parente... É Serpente”. Por dentro do plástico da caixinha, tapando a capa, um bilhete escrito a mão por Aurora:
“Lippo,
Tenho um trabalho (dava para ver escrita, por debaixo da rasura de caneta, a palavra “em”) longe, muito longe.
Na Índia.
Vou ficar seis meses fora, se não mais. Não sei ainda.
Não espera por mim, tá? Me desculpa. Tu sabe como eu sou.
Adorei te rever.
Te amo.
Adeus.”
Não assinou. Apenas gravou um beijo com seu batom cor vermelho-coral.
Felippo mal se despediu do porteiro. Atravessou a passos anestesiados a rua já molhada pela chuva que começava a apertar e foi para casa. Chegando, imediatamente repôs seu DVD perdido na prateleira sem revê-lo. Pegou, sim, o filme de Murnau, que desencarcerou do armário. Mesmo subvertendo uma norma de cinéfilo, de não assistir a um filme mudo de manhã – pois filme mudo é para ser visto no cinema ou de noite –, mecanicamente pôs para rodar aquele romance de final feliz. Sob a luz do dia, que vazava pelos cantos da janela fechada, lágrimas desesperançadas corriam soltas de seu rosto enquanto revia “Aurora”, tantas que se igualavam à quantidade de pingos da chuva que lá fora molhavam a calçada.



para Luis.


quarta-feira, 22 de abril de 2015

"O Irmão Alemão", de Chico Buarque - Companhia das Letras (2014)



Decepção não seria uma palavra correta tampouco justa para classificar meu sentimento em relação a “O Irmão Alemão” de Chico Buarque. Eu poderia dizer, sim, é que o todo ficou aquém das minhas expectativas. Letrista consagrado, de inegáveis méritos compositivos e linguísticos, Chico teve êxito imediato na carreira de escritor apresentando um crescimento literário evidente desde seu primeiro romance, até por isso, de minha parte, esperava algo realmente arrebatador. Não foi bem assim.
“O Irmão Alemão”, livro semi-autobiográfico que narra a história de um homem, no caso o próprio autor, que por acaso, em uma carta perdida entre livros, descobre que o pai tivera um filho na Alemanha, antes do casamento, no período entre guerras, e passa a empenhar-se por encontrá-lo, perde-se um pouco exatamente nesta tentativa/intenção de colocar a ficção na realidade o que a meu entender impediu o autor de soltar-se completamente no romance. Ainda que traga as inegáveis qualidades de escrita de Chico, a condução, o ritmo, a sonoridade das palavras e aquela quase musicalidade da narrativa, “O Irmão Alemão” não consegue emplacar, não engrena, não tem a fluência natural que conquiste o leitor. A 'confusão' comumente proposta por Chico Buarque de presente-passado-anseio-devaneio-sonho' tão bem utilizada em "Leite Derramado", por exemplo, não funciona tão bem desta vez e não colabora para o desenvolvimento da trama de maneira tão consistente quanto nos trabalhos anteriores.
Talvez um pouco pela questão emocional, pelo envolvimento, Chico não tenha conseguido tirar o máximo de si como romancista, sempre tendo que prender-se um pouco à sua própria história e de alguma forma ser fiel aos fatos. Fato é que para mim, “O Irmão Alemão” não passa de uma leitura interessante, não é chato, não é cansativo, mas também não é nada de excepcional. Talvez meu pequeno desapontamento e cobrança residam no fato que o crescimento qualitativo era tão progressivo; do bom “Estorvo”, para o muito bom “Benjamim”, para o ótimo "Budapeste", até o excelente "Leite Derramado"; fosse de se esperar algo 'fora do comum'. E não foi. Foi comum.
Mas qualidade e talento é que não faltam em Chico Buarque e tenho certeza que os próximos estarão à altura do que ele pode fazer. Fica pra próxima.


Cly Reis

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Oscar 2015 - Os Vencedores



O mexicano Alejandro Iñárritu com parte de sua equipe,
recebendo o Oscar de Melhor Filme 
E o Oscar foi para "Birdman"!
Sinceramente, me surpreendeu um pouco.
Embora torcesse por ele, por todas as qualidades que me revelou de maneira fascinante, imaginava que a Academia fosse mais conservadora e entregasse o prêmio de melhor filme ao meticuloso “Boyhood” ou a “Sniper Americano” como uma afirmação de americanismo. Mas não, o pouco convencional “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, de planos-sequência contínuos, discussões pesadas e atmosfera onírica levou não somente a estatueta principal da noite como fotografia, roteiro original e direção. Até achava que pudesse acontecer de, assim como no ano passado, as categorias máximas ficassem divididas, indo o Oscar de filme para um dos que apontei anteriormente, e o de direção para “Birdman”, pois pensava que por mais que se reconhecesse os méritos, a persistência, a projeto de Richard Linklater para “Boyhood”, era impossível ignorar o fantástico trabalho de direção de “Birdman”, que, contínuo, ininterrupto, integrando ambientes, atravessando o tempo, distorcendo a realidade, fez com que o brilhante roteiro, por sinal também premiado, funcionasse de maneira impecável e perfeita. A minha 'barbada' de direção poderia ter sido comprometida pelo fato do diretor ser estrangeiro e para piorar, já no ano passado um conterrâneo do diretor, o também mexicano Alfonso Cuarón, ter vencido na categoria. O fato poderia pesar para que Hollywood., como um todo, não quisesse repetir a dose e premiar novamente um estrangeiro, mas apesar da brincadeira de mau-gosto de Sean Penn na hora da divulgação, que só ajudou a fundamentar a origem da minha desconfiança, a justiça foi feita plenamente e outro 'chicano' saiu com o prêmio dourado nas mãos. Destaque também para o prêmio de fotografia de “Birdman”, que também me surpreendeu, não pela qualidade que julgo inegável, mas pelo anticonvencionalismo, tendo sido o filme rodado praticamente em corredores, camarins, bastidors, o que poderia dar a falsa impressão de pobreza de recursos técnicos.
Mas se o Homem-Pássaro de Iñárritu levou quatro estatuetas, o Hotel não ficou atrás. É verdade que “Birdman” ganhou os prêmios ditos principais, os definidores do que se entende por um bom filme, mas os prêmios estético-técnicos, por assim definir (figurino, direção de arte, maquiagem), e o, justíssimo, de trilha original, garantem a “O Grande Hotel Budapeste”, do bom Wes Anderson, o devido reconhecimento de suas verdadeiras qualidades, que para mim, não vão muito além disso.
Colado com eles, "Whiplash", o drama do baterista instruído por um professor severo, levou três estatuetas, sendo uma delas exatamente para o professor descontrolado, interpretado por J.K. Simmons. Os outros bem conceituados, que disputavam inclusive melhor filme, dividiram igualmente algumas das demais honrarias: "Sniper Americano" de Clint Eastwood, teve que se contentar apenas com o prêmio de Edição de Som; “O Jogo da Imitação” ficou com Roteiro Adaptado; “Selma” ficou com o prêmio de canção original, cuja interpretação, no palco, emocionou a platéia; Patricia Arquette justificou "Boyhood" com seu prêmio de atriz coadjuvante; Julianne Moore finalmente, com muita justiça levou seu primeiro Oscar por “Para Sempre Alice”; e na tradicional simpatia de Hollywood por covers e deficiências físicas, Eddie Redmayne, uniu as duas e levou pra casa o de melhor ator por sua interpretação de Stephen Hawkins, no filme “A Teoria de Tudo”.
De resto, gostei muito da parte técnica e estética do palco, dos telões, dos efeitos e recursos da cerimônia, mas achei mestre de cerimônias, Neil Patrick Harris, um tanto perdido e sem graça. Se no ano passado a reconhecidamente inteligente e talentosa Ellen DeGeneres me decepcionou pela ausência de tiradas interessantes, pela falta de criatividade, tendo que se socorrer num sefie coletivo para salvar a noite, que, é bom que se faça justiça, virou histórico, nosso glorioso apresentador da edição 2015 não conseguiu se salvar nem de cuecas no palco, parodiando a cena de “Birdman”.
Lamentável foi o fato de Scarlett Johansson, que apareceu deslumbrante num vestido verde, não ter levado nenhum prêmio. Sei que vão dizer que ela, afinal de contas, não estava concorrendo a nenhum, em nenhuma categoria e tal e blablablá. Sei, sei disso. Mas algum prêmio ela deveria ganhar. Qualquer coisa. Ela sempre merece.


Confira abaixo, então, todos os vencedores em todas as categorias.

***

Melhor filme
"Birdman"
Riggan (Michael Keaton)
de cuecas na Broadway














Melhor diretor
Alejandro González Iñárritu, "Birdman"


Melhor ator
Eddie Redmayne, "A Teoria de Tudo"


Melhor atriz
Julianne Moore, "Para Sempre Alice"


Melhor ator coadjuvante
J.K. Simmons, "Whiplash - Em Busca da Perfeição"
J.K. Simmons teve sua
grande atuação premiada
por "Whiplash"
















Melhor atriz coadjuvante
Patricia Arquette, "Boyhood - Da Infância à Juventude"


Melhor roteiro original
"Birdman"


Melhor roteiro adaptado
"O Jogo da Imitação"


Melhor animação
"Operação Big Hero"


Melhor filme estrangeiro
"Ida", da Polônia


Melhor documentário
"Citizenfour"


Melhor edição
"Whiplash - Em Busca da Perfeição"


Melhor fotografia
"Birdman"


Melhor direção de arte
"O Grande Hotel Budapeste"
O filme de Wes Anderson 
levou com justiça o prêmio de
direção de arte













Melhores efeitos visuais
"Interestelar"


Melhor edição de som
"Sniper Americano"


Melhor mixagem de som
"Whiplash - Em Busca da Perfeição"


Melhor figurino
"O Grande Hotel Budapeste"


Melhor cabelo e maquiagem
"O Grande Hotel Budapeste"


Melhor trilha sonora original
"O Grande Hotel Budapeste"


Melhor canção original
"Glory", do filme "Selma"


Melhor curta-metragem
"The Phone Call"


Melhor curta-metragem de animação
"O Banquete"


Melhor curta-metragem de documentário
"Crisis Hotline: Veterans Press 1"



Cly Reis

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"Sniper Americano", de Clint Eastwood (2015)


O novo herói de Clint Eastwood
por Paulo Moreira




  Clint Eastwood tem baseado sua carreira como realizador na busca e identificação do herói americano. Ou do anti-herói. Desde o começo de sua carreira, no seriado “Rawhide” ou nos gloriosos spaghetti-westerns de Sérgio Leone, Clint se interessa pela figura mítica que, em tempos idos, salvava o mundo de suas mazelas.
 Assim aconteceu com “Dirty Harry”, o vigilante que fazia a justiça pelas próprias mãos. Só que poucos notaram que Harry Callahan era um policial. Portanto, autorizado pela sociedade para fazê-lo. Seus cowboys – o pistoleiro sem nome de “High Plains Drifter” ou “Josey Wales, o fora -da-lei” - reforçavam este mito, destruído depois pelo próprio Clint em “O Cavaleiro Solitário” onde interpretava um pregador e, especialmente em “Os Imperdoáveis”, onde o personagem Will Munny era um pistoleiro aposentado. Mesmo nos filmes em que não protagoniza, como “Um Mundo Perfeito”, “Sobre Meninos e Lobos” e “Invictus”, a figura do herói aparece, mesmo que combalida. Por outro lado, em filmes como “Bird”, “A Conquista da Honra” e “J.Edgar”, o herói é falho, humano, cheio de defeitos, como o Walt Kowalski de “Gran Torino”, um ex-combatente de guerra que odeia seus vizinhos descendentes de coreanos, mas que passa a vê-los com outros olhos, diante de uma ameaça maior. Se antigamente Eastwood acreditava no poder do herói, a partir de um determinado momento, começa a analisar as causas desta mitologia ufanista reforçada em inúmeros filmes vindos de Hollywood.
Bradley Cooper como um herói de guerra
cheio de conflitos internos
   Seu filme mais recente, “Sniper Americano” segue esta trilha. Chris Kyle, interpretado com sensibilidade por Bradley Cooper, é um jovem americano fixado no mito do cowboy e do culto às armas, além de uma postura masculina, incentivada por seu pai. Aos 30 anos, depois de ver o ataque às Torres Gêmeas, Kyle se alista e se transforma num sniper, atirador de elite, que consegue o status de “ter matado mais de 160 pessoas” no Iraque. Através de flashbacks, o diretor procura explicar as motivações de um jovem americano em servir à pátria, mesmo que isso seja prejudicial à sua vida civil e, especialmente, seu casamento. Os dramas de consciência de Chris Kyle são muito bem colocados na primeira missão que vemos. Uma criança carrega uma granada em direção às tropas americanas e o sniper tem de decidir se mata ou não o jovem. Este conflito irá se repetir durante todo o filme, mesmo que Kyle sempre tenha consigo a certeza de servir a pátria. O interessante é que este é o mesmo Clint Eastwood que fez “O Destemido Senhor da Guerra”, onde usava a ficção para defender a invasão americana em Granada no ano de 1983. Apesar de seu passado republicano, o diretor parece ter enxergado além da visão maniqueísta de mocinhos e bandidos. Ele conduz com habilidade as cenas de combate, alternando-as com a vida cotidiana de Kyle com sua esposa (Sienna Miller) e seus filhos.
   Depois de um grande tempo para se readaptar à vida em sociedade, espantando seus fantasmas, Kyle chega ao final do filme aparentemente pronto para enfrentar o dia-a-dia. Uma análise mais simplista poderia dizer que “Sniper Americano” é um filme ufanista. Clint Eastwood usa todo seu arsenal narrativo – aprendido certamente com o seu mestre Don Siegel – e impede o discurso final. Aos 85 anos a serem completados em maio, podemos exagerar e dizer que Clint Eastwood chegou em sua maturidade criativa. Grande e poderoso filme.


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Consigo Mesmo Sob a Mira

por Daniel Rodrigues




Bradley muito bem no papel do sniper Chris Kyle
   Há anos acompanho direto nas salas de cinema cada estreia de Clint Eastwood, um mestre por trás das câmeras que, como ator, foi dirigido por grandes cineastas (Leone, Siegel, De Sica, Cimino) e aprendeu muito bem com eles. Meu acompanhamento tão de perto de sua obra não é à toa, pois, mesmo já dirigindo desde os anos 70, foi desde os 80 que Eastwood se estabeleceu como um dos maiores de sua arte no cinema atual. Não só pela capacidade de contar bem uma história, com classe e sensibilidade, mas por sua abordagem invariavelmente consciente e pessoal dos temas, muitas vezes revelando mazelas de sua própria sociedade, a dos Estados Unidos.
   Pois mais uma vez o velho Eastwood, no auge de seus 84 anos, toca em feridas mal curadas de seu povo. E que ferida. O ótimo “Sniper Americano”, produção concorrente ao Oscar de Melhor Filme e mais 5 estatuetas (ator, roteiro adaptado, edição, edição de som e mixagem de som), não apenas traz um assunto espinhoso como, para além disso, atinge o talvez mais maléfico problema dos norte-americanos para com o mundo e consigo mesmos: a cultura bélica e armamentícia. Adaptação do livro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History”, conta a história real de Chris Kyle (Bradley Cooper, muito bem no papel), um atirador de elite das forças especiais da marinha americana que, durante cerca de dez anos de operação militar no Iraque, matou mais de 150 pessoas, tendo recebido diversas condecorações por sua atuação. Um sucesso tão funesto como este não poderia, entretanto, ter saído impune na forma de ver de Eastwood. As marcas são perceptíveis quando o soldado retoma a “vida normal” ao retornar da guerra. Ele não sai do front, nem quando não está fisicamente nele. A objetividade cega, pueril e insensível de Chris o mutila psicologicamente tanto quanto seus ex-colegas que perderem partes do corpo físico. Ele é incapaz de amar a esposa, de sensibilizar-se e nem de se considerar a “Lenda” como o chamam: sua sina é apenas “defender seu território” a qualquer preço.
    Até aí, outros filmes também mostraram os traumas de guerra e as dificuldades sociais de ex-combatentes das várias que os EUA já se enfiaram, de “Sob o Domínio do Mal”, de 1962 (Coréia) e “Taxi Driver”, de 1976 (Vietnã), a “A Volta dos Bravos”, de 2006, (Iraque) para ficar em apenas três guerras e três títulos. Ocorre que, desta vez, é Eastwood quem volta suas lentes para o problema, e isso é de uma dimensão muito maior no atual cinema de Hollywood. Com um olhar sem hipocrisia – embora ele não esconda seu patriotismo –, Eastwood vai mais fundo no entendimento psicológico da questão. Não é só a guerra e seus problemas posteriores: o nascedouro é essencial de ser compreendido. Ao contar a biografia de Chris até chegar ao exército, o cineasta deixa claro o quanto está incutida nas raízes do norte-americano o mito às armas e ao combate. Caubói fracassado que atirava em animais desde criança para brincar de mira, o personagem se transforma (após assistir pela TV sobre um atentado terrorista à Embaixada dos EUA no Iraque e, principalmente, os ataques do 11 de Setembro), em um militar combativo e sedento por justiça. Suas fragilidades e frustrações são, assim, camufladas pelo uniforme e até ganham status de qualidade, uma vez que se transfiguram em capacidade de combater com competência e assertividade.
    Com este substrato, Eastwood nos dá uma aula de condução narrativa. Além das construções psicológicas precisas das personagens, os flashbacks da infância de Chris, quando ele aprende em casa com o pai a lei de Talião, e o presente, antes de ir para a guerra ou entre uma operação e outra, se indistinguem. Igualmente, as cenas que intercalam rapidamente entre a brutal preparação na SEAL e início de sua relação com a esposa até o casamento dão bem a ideia de que este pensamento bélico faz para do dia a dia. Mais que isso: de que nada é superior a tal. Se Chris é elevado a herói por seus feitos, como cidadão ele é totalmente deslocado, sem capacidade de interagir e viver com felicidade. A visão de Eastwood transparece até na fotografia, que muda apenas quando a história se passa no Oriente Médio. Nos Estados Unidos, seja passado ou presente, a luz, a coloração e a textura são as mesmas, pois tudo faz parte de um único nefasto e contínuo ideário selvagem ao mesmo tempo assassino e suicida.
    Por falar em fotografia, a do craque Tom Stern (de clássicos como “Beleza Americana” e “Cão Branco” e das parcerias com Eastwood em vários filmes como “Dirty Harry na Lista Negra”, “Bird” e “Os Imperdoáveis”),  é brilhante. Principalmente nas excelentes cenas de batalha, as quais não se restringem somente ao PV do ângulo privilegiado do atirador, mas também de campo, com travellings, câmera na mão e panorâmicas muito bem executadas. O conceito fotográfico lembra bastante o de outras referenciais realizações sobre o tema das guerras promovidas pelos EUA contra países islâmicos: “Guerra ao Terror” (Bigelow, 2008), também Iraque, e “O Grande Herói” (Berg, 2014), no Afeganistão. Ponto alto e de total diferenciação em “Sniper”, no entanto, é a sequência da tempestade de areia, justo no momento em que se travava um tiroteio entre a tropa americana e os soldados de Bin Laden. Nesta, Stern consegue um resultado interessantíssimo, pois totalmente inteligível para o espectador mesmo numa fotografia em que se desenham apenas vultos escurecidos sobre uma textura granulada marrom esverdeada.
    Tudo isso é mérito de Clint Eastwood, certo? Os norte-americanos não acham bem assim. Como se sabe, a Academia do Oscar acompanha em muito o sistema, haja vista as preferências, vícios e injustiças históricas que já se promoveram na premiação. Neste caso, “Sniper Americano” concorre e é dos favoritos, mas não aquele que o fez chegar a esse patamar. Estranho, né? Nem tanto, pois talvez Eastwood, com sua clareza e olhar sem concessões (como já fizera muito bem em “Gran Torino”, “Sobre Meninos e Lobos”, principalmente), talvez tenha ido um pouco longe na densa análise do ser do norte-americano. A característica do belicismo e do mito ao caubói está no cerne da sociedade, e expô-la de maneira tão real – ou seja, não escondendo que há consequências para este tipo de atitude – é vexatório na mentalidade auto-heroica e competitiva daquele país. Afinal, isso justifica uma série de atos e políticas que sustentam o poderia dos EUA.
    Além do mais, o “gelo” que a Academia dá a Eastwood, como já fizera com os igualmente opiniáticos e figurões Spielberg, Copolla e Scorsese, também é uma maneira de dizer: “Velho, nós te exaltamos e nos orgulhamos do teu talento, mas tu já ganhaste duas estatuetas (“Os Imperdoáveis” e “Menina de Ouro”, 1992 e 2004, respectivamente), então: baixa a bola”.
    Espero sinceramente que pelo menos o Melhor Filme venha para “Sniper Americano”, o mais hollywoodiano dos postulantes junto com “Selma” e “A Teoria de Tudo”. Embora não tenha visto todos, parece-me que "Birdman""Whiplash""O Grande Hotel Budapeste" e "Boyhood" (que tem o agravante de já ter levado o também yankee Globo de Ouro), os outros concorrentes nesta categoria distanciam-se mais do “cinemão”, o que dá vantagem ao filme de Eastwood.  Ainda mais considerando que, depois de uma fase de necessária renovação em que, no início dos anos 2000, a Academia premiou como Melhor Filme produções de linha alternativa, como “Crash” e "Quem Quer Ser Um Milionário?", a mesma voltou a um julgamento mais tradicional nos últimos anos. Tenho certeza de que, se ganhar, Eastwood subirá ao palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, com aquele sorriso simpático e sábio no rosto de quem se sentirá indiretamente vencedor também como diretor.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

"Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)", de Alejandro Ganzáles Iñárritu (2014)




Todos os filmes de Alejandro Gonzáles Iñárritu sempre foram perturbadores. De “Amores Brutos” (2000) até “Babel” (2006), ele fazia uma espécie de fé absoluta no hiper-realismo, no qual qualquer acontecimento fortuito no mundo pode trazer consequências imprevisíveis na vida do ser humano. Como o acidente de “Amores Brutos” ou o tiro de “Babel”, para Iñarritu, o simples voo de uma borboleta poderia causar um tsumani. A partir de “Biutiful” (2010), o sobrenatural começou a fazer parte do cinema do diretor mexicano. Nele, o personagem de Javier Bardem, Uxbal, consegue falar com os mortos. Após descobrir que está com câncer terminal, este contato passa a ser cada vez mais surreal. Mas “Biutiful” foi uma espécie de introdução a este mundo de fantasia. Seu filme mais recente, “Birdman” é o exemplo mais radical que Iñárritu conseguiu para este mergulho num mundo interior e de como ele se manifesta na vida real. Riggan Thomson (Michael Keaton, sensacional)é um ator atormentado (com o perdão do trocadilho) por um personagem das histórias-em-quadrinhos que interpretou em três filmes de sua carreira, o famoso Birdman.
Edward Norton e Naomi Watts, ambos em 
atuações destacadas
O filme começa com Riggan levitando em seu camarim antes de se envolver com toda a produção de uma peça de teatro na Broadway baseada nos contos do grande escritor minimalista americano Raymond Carver, “What We Talk About When We Talk About Love”.A partir daí, passamos 199 minutos oscilando entre o sonho, a realidade e a consciência de Riggan, manifestada na voz do seu personagem Birdman. Iñárritu nos leva nesta jornada por estes três estados da vida humana sem nos dar nenhuma folga ou pista de onde estamos. Com a câmera flutuante de Emmanuel Lubezki, o diretor brinca de “Pacto Sinistro”, de Alfred Hitchcock, nos dando a impressão de que estamos vendo um plano-sequência do começo ao fim. Nisso, a montagem de Stephem Mirrione e Douglas Crise é exemplar. Esta viagem pelo mundo de um astro decadente do cinema que tenta conseguir validação no mundo teatral é apenas um dos vários plots que Iñárritu cria em seu roteiro, dividido com outros três companheiros. A velha questão das diferenças de “cultura alta” e “cultura baixa” que Umberto Eco e Edgar Morin já analisaram lá nos anos 60 também está lá. Ele atualiza a discussão, usando o fascínio que Hollywood tem apresentado pelos super-heróis, o poder da crítica sobre o fato cultural, as relações de poder entre pai e filha e ator principal e coadjuvantes. Para tanto, ele conta com as atuações acima da média de Emma Stone, Edward Norton, Zack Gallifianakis, Naomi Watts e Andrea Riseborough. O grande destaque, porém, é mesmo Keaton, o ator perfeito para interpretar Riggan, especialmente depois de ter “desaparecido” dos blockbusters, após as experiências com os dois primeiros Batmans de Tim Burton. Muita gente tem reclamado do astral onírico de “Birdman”, pois não há diferenciação do que é real ou fantasia. O público médio parece ter a necessidade de que tudo seja muito bem explicadinho. Por isso, talvez, “Birdman” não tenha entrado numa espécie de inconsciente coletivo da mesma maneira que “Boyhood”, por exemplo, onde a realidade é mais do que explícita. É básica para a compreensão daquela história. Se você se permitir entrar na viagem visual de Iñárritu, tenho certeza de que não vai se arrepender. Quem não conseguir, sempre tem um filminho bonitinho e inofensivo como “A Família Bélier”em cartaz.


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por Cly Reis



Dia desses, na casa de serra do meu cunhado, meu sobrinho emprestado assitia a um filme que tinha gravado enquanto eu, na mesma sala, apenas brincava com a minha filha. Só que de repente, numa olhada que outra para a tela, aquele filme me começou a chamar a atenção. Porque não cortava. Não tinha cortes. Um plano sequência longo, longo, longo, com várias cenas e situações se desenvolvendo, câmera viajando, mudando de ambientes, personagens entrando e saindo de cena. O que era aquilo? Era "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2014), um dos concorrentes a melhor filme para o Oscar deste ano e por sinal, um dos filmes com maior número de indicações.
Me prendeu. Não parei mais de ver. Parei de brincar com a minha filha, passei a tarefa pra minha esposa pelas 2 horas seguintes e mergulhei na telinha. Como havia perdido o início, assim que acabou, voltei para ver desde o começo e quase acabo assistindo todo ele novamente.
Riggan perseguido pelo seu próprio personagem.
Estou (ainda) meio por fora dos concorrentes do Oscar deste ano, estava de férias quando saíram as indicações e não fixei bem os principais destaques, mas desde já, tendo visto apenas outros 2 concorrentes a melhor filme ("Boyhood" e "O Grande Hotel Budapeste"), entrego de cara os prêmios de direção, roteiro original para "Birdman", até deixo em aberto o prêmio de ator coadjuvante, mas considero a atuação de Edward Norton simplesmente extraordinária, isso sem falar na edição primorosa prêmio para o qual curiosamente o longa sequer foi indicado.
No que diz respeito a direção, só o fato de conduzir o filme praticamente todo em planos sequência (sutilmente interrompidos, é verdade), entrelaçando as situações de maneira tão hábil, fazendo de forma muito competente com que elementos da vida dos personagens confundam-se com o roteiro da peça encenada por eles dentro do filme, já são motivos muito fortes para que o bom, cada vez melhor, Alejandro Gonzáles Iñárritu, de "21 Gramas", "Babel" e "Biutiful", saia da cerimônia do próximo dia 22 de fevereiro com a sua estatueta na mão.
Por razões parecidas, por essa integração que ao mesmo tempo é um conflito do andamento da história com o da peça, com o desenvolvimento dos personagens, em especial com a vida do personagem Riggan Thomson, vivido por Michael Keaton, é que acho que, também, é impossível ignorar a qualidade de um roteiro assim, simplesmente brilhante e deixar de premiá-lo com o Oscar da categoria. E aí que me intriga que a edição não tenha sido indicada, uma vez que para fazer funcionar uma direção sem cortes e um roteiro tão bem concatenado, a montagem, preciosa e crucial para o filme, se destaca como ponto alto e inevitavelmente ligada às duas outras indicações que qualificam o filme.
Conflito de bastidores entre diretor e ator.
O bem desenvolvido roteiro, no caso, trata de um ator, famoso por um personagem de super-heroi no cinema, o Birdman, que tendo se negando a fazer mais uma sequência da franquia fica meio "escanteado" pelos grandes estúdios e pretendendo reerguer a carreira, ser levado a sério como ator e ter seu talento reconhecido não apenas como um personagem popularesco, resolve adaptar e dirigir uma peça para a Broadway. Entre temperamentos difíceis de atores, pressão de produtores, problemas pessoais, dificuldades de montagem, de roteiro, etc., os ensaios vão se desenvolvendo enquanto Riggan continua de certa forma convivendo com a sombra do personagem que o tornara grande.
O filme de Iñárritu é a mesmo tempo uma crítica e uma homenagem ao mainstream, à fama, à voracidade da indústria do entretenimento que é capaz de elevar alguém a uma condição de idolatria desmedida, quanto tem o poder de devorar esta mesma pessoa.
Inteligente, dinâmico, mordaz, engraçado, lúdico, poético, reflexivo, na minha opinião, "Birdman" só não leva o prêmio principal por aquelas coisas da Academia que a gente sabe como são. O tal "Doze Anos de Escravidão", um bom filme, porém bem comunzinho, levou o grande prêmio no ano passado, né? Pois é. Diretor estrangeiro, andamento atípico, humor negro... Fatores que podem contar a favor ou contra. Nunca se sabe quais os critérios que o pessoal de Holywood vai adotar.
Mas independente de premiações, fiquei muito satisfeito por, assim, quase sem querer, ter topado com um filme como esse. Daqueles que deixam quem gosta de cinema, em  todos os seus detalhes, plenamente satisfeito. Daqueles que enchem a alma de satisfação.




quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"O Grande Hotel Budapeste", de Wes Anderson (2013)



Apenas simpático. Nada mais que isso. História bem desenvolvida, direção de arte caprichada, um elenco de primeira e boas risadas garantidas. Ok. Mas daí a um possível Oscar de Melhor Filme tem uma distância enorme.
"O Grande Hotel Budapeste" é um barato. É legal pacas. Falo sério. É extremamente divertido, bem dirigido e com um apelo visual inegável, mas nada disso faz dele, na minha opinião, um grande filme.
Wes Anderson de "Três é Demais" e "Os Excênctricos Tenenbauns", tem muitos méritos. Mesmo sendo uma comédia, de humor negro é verdade, o filme tem momentos de tensão, de aventura, e cenas de ação de tirar o fôlego. Tomadas audaciosas, closes rápidos, uma condução inteligente e dinâmica que alterna a ação em cena com narração, dividindo o filme em capítulos que se entrelaçam e se complementam quase imperceptivelmente muitas vezes.
M. Gustave (Ralph Fiennes) com o lobby boy
que virá a tornar-se o dono do Hotel Budapeste
Quem narra a história é o dono do hotel e antigo mensageiro do mesmo quando garoto, personagem interpretado por F. Murray Abraham, relatando os fatos a um dos últimos hóspedes do estabelecimento, um escritor (Jude Law), que se mostra interessado em saber como um serviçal viera a tornar-se dono do hotel. Aí a trama desenvolve-se com a amizade do garoto pelo gerente, Ralph Fiennes, de atuação esplêndida por sinal, sempre envolvido com senhoras, hóspedes, bem mais velhas que ele, sendo que uma delas, apaixonada, ao morrer deixa-lhe uma herança que acaba disputada pelo filho inconformado. Nisso dão-se brigas, tiroteios, perseguições, fugas, piadas grotescas e um humor, às vezes, quase pastelão.
Bom filme. Muito superestimado, talvez, mas bom. Vá ver. Recomendo. E se você vir com a cabeça fresca, numa boa, disposto a um bom entretenimento e não se deixar levar tanto pelo visual exuberante, pelo carisma dos personagens, pelo humor fácil, perceberá que não passa de um filme simpático. Nada mais que isso.


Cly Reis



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Chico Buarque - "Chico" (2011)

"Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora."
trecho de "Essa Pequena"


Fui cheio de dedos ouvir o novo CD de Chico Buarque emprestado pela minha irmã que é mais louca que eu pela música do cara. Estranho foi que esta fãzoca me advertira que o disco não era ‘lá essas coisas’, meio fraco e coisa e tal, só que para ela colocar alguma restrição a um trabalho dele, olha..., era realmente de recear pelo pior. Como agravante, de minha parte já considero há algum tempo que, atualmente, Chico Buarque de Hollanda está mais para um ótimo escritor que faz música do que propriamente para um grande músico, o que tornava minha muito provável minha concordância com o conceito da fã em questão, dona do CD.
Peguei então para escutar descompromissadamente, meio assim, durante o café da manhã; e talvez por não esperar muito, a cada faixa que se seguia se me apresentava uma positiva surpresa. O disco não era tão mal quanto ela tinha pintado. Não, não! De fato é um bom disco. Passa a falsa impressão de ser ‘fraco’ por ser mais lento, ter um andamento mais cadenciado que de costume mas definitivamente para ruim não serve. O problema é que, também, o parâmetro de comparação de Chico Buarque é a própria obra de Chico Buarque, especialmente até a metade dos anos 80, e aí é covardia com ele mesmo cobrarmos sempre um “Almanaque”, um “Chico Buarque (1984), e coisas do tipo. Não é sempre que se faz discos assim.
Mas “Chico” (2011) é sim um bom disco. Ao longo das faixas a gente vai gostando, vai percebendo detalhes, méritos, qualidades e virtudes. “Querido Diário” que abre o CD e que funcionou como uma espécie de faixa-promocional, lançada previamente na internet, não é nada mais que simpática e dá a falsa impressão de que não teremos nada muito melhor pela frente ; “Rubato”, que a segue, é uma marchinha inusitada que causa uma certa estranheza pelo sutil descompasso de melodia e voz numa estruturação ousada de Chico com o parceiro João Helder.
Claramente sob efeito dos encantos de uma jovem, que minha irmã me informou ser a nova musa do compositor ds olhos verdes, Chico deixa transparecer em algumas faixas essa inspiração, mais evidentemente em “Essa pequena”, onde de alguma forma fala das diferenças deles dentro desta relação com idades tão distantes; mas também dá ‘letrinhas’ do assunto na ótima “Tipo um Baião”, ("Não sei para que outra história de amor a essa hora...") a melhor do disco na minha opinião, e na gostosa “Se eu soubesse” uma adorável valsinha que parece algo meio como a visão dela da coisa ("Ah, se eu pudesse não caía na tua conversa mole, outra vez/ Não dava mole à tua pessoa (...)/ Mas acontece que eu sorri para ti / E aí, larari, lairiri, por aí").
Se o Chico compositor está sempre rondando o Chico escritor, o inverso também vale e em faixas como na muito legal “Barafunda” toda a verve romancista com o traço característico dos seus livros está lá, com uma grande ‘confusão’ de memória que embaralha fatos, lugares e pessoas. Em “Nina” pode notar-se traços ou ideias não aproveitadas do seu romance "Budapeste" e em “Sinhá” alguma coisa talvez descartada ou resultante da concepção de  "Leite Derramado".
Merecem também destaque o samba composto com Ivan Lins, já conhecido a voz de Diogo Nogueira, “Sou eu”, que lembra de certa forma sua antiga “Deixa a Menina”; e a retomada da parceria com João Bosco, que já havia feito com ele a ótima "Mano a Mano" , na já referida, “Sinhá”, um comovente e triste samba de senzala que encerra o disco.
Não é o "Construção" , é verdade, não é um “Paratodos”, tá bem, mas não é em nada desprezível o novo trabalho musical deste grande escultor das palavras. Até que dá para dar um crédito para este escritor aí que andou se aventurando a gravar um CD. Tem futuro, tem futuro o garoto.
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Ouça:
Chico Buarque - "Chico" (2011)




Cly Reis