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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Duelo - com Paulo Telles (1ª parte)



Nosso convidado do Duelo do mês é o radialista, locutor, cinéfilo e blogueiro Paulo Telles. Morador da Lapa, no Rio de Janeiro, o famoso bairro boêmio carioca não é páreo para o fascínio cinéfilo de nosso entrevistado. Telles divide seu tempo entre as locuções e roteiros de rádio e as várias colaborações para blogs e revistas de cinema. Dentre elas, a DVD Magazine, onde possui uma coluna. Seu blog, Filmes Antigos Club, está há 5 anos no ar. O espaço é dedicado a artigos sobre filmes clássicos que fizeram história. Telles também é um dos maiores especialistas do Brasil no tema western, tendo escrito diversos textos e resenhas sobre o gênero. Ele se considera criterioso para fazer suas matérias e põe a pesquisa como peça fundamental para redigir qualquer texto. Eu decidi entrevistá-lo e explorar todo seu vasto conhecimento de sétima arte. Ele gentilmente aceitou e colaborou com respostas bem afinadas e nos deu uma grande entrevista. Um prato cheio de spaghetti e western de todo tipo, fartura total para os amantes do bang bang. Desfrutem com armas na mão.



BINO: Paulo, vamos entrar direto no tema western. Recentemente eu li um texto seu para a DVD Magazine que foi um dos melhores que vi sobre o tema bang bang. Era sobre o Western Americano e o Europeu, uma comparação, na verdade, uma diferenciação de ambos os estilos, quase um duelo. Eu tenho notado entre amigos e cinéfilos uma divisão de preferências entre os dois. É certo que o spaghetti fez o western americano repensar sua estética de cowboy limpinho, mas ao mesmo tempo bebeu muito na fonte hollywoodiana de fazer estes filmes. Quais foram as grandes contribuições que ambos os gêneros deram um para o outro?
Eastwood e seu referencial "Os Imperdoáveis"
PAULO TELLES: Primeiramente, saudações cinéfilas aos leitores do Clyblog e obrigado pela acolhida. Esse texto foi um dos meus primeiros redigidos no meu blog Filmes Antigos Club, criado em 2010, dividida originalmente em três partes, e foi trasladado para minha coluna Revendo por Edinho Pasquale (editor do DVD Magazine) em um único artigo. Ambos os estilos deram uma indelével contribuição à sétima arte, contudo, os faroestes spaghetti ajudaram a fortalecer o gênero. Para vocês terem uma ideia, o western (por definição do famoso crítico Andre Bazin, o "cinema americano por excelência") foi extremamente explorado por Hollywood pelo menos durante os primeiros 60 anos de indústria, inclusive na TV e nos seriados infantis de cinema (ao estilo Durango Kid, The Lone Ranger, etc), praticamente repetindo uma fórmula, ou melhor, dizendo, uma estética lírica e poética. Obviamente isso foi saturando o público e a crítica, mesmo que o cinema americano nos meados da década de 1950 tentasse inovar o gênero com temas sociais e de politização. Até que veio um notável cineasta italiano chamado Sergio Leone a mostrar para as plateias do mundo que o Velho Oeste era mais pungente do que os cineastas americanos florearam, mas estes, amantes da mitologia e do folclore, não se importavam com a fidelidade dos reais acontecimentos, e sim com a legenda áurea e romântica dos mitos do Oeste Americano. Obviamente, isso não condizia com uma época violenta que fora o Velho Oeste. Ele admirava os trabalhos dos mestres Ford, Hawks, Mann, Daves, Hathaway, mas discordava do idealismo romântico e poético que estes diretores envolviam acerca de seus cowboys e no meio em que viviam, mesmo que estes cowboys fossem de teor freudiano. Se não fosse Leone, os westerns americanos ficariam quase batendo na mesma tecla, e graças a ele o gênero, no geral, sobreviveu mais um pouco e vem de certa forma, sobrevivendo. Afinal os americanos não teriam feito obras como “Meu ódio Será Sua Herança”, “Os Profissionais”, “Quando os Bravos se Encontram”, “Mato em Nome da Lei” e até mesmo "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood, se não fosse pela intervenção dos westerns italianos. Ambos os estilos, o americano e o europeu, cada um com sua essência, foram importantíssimos e são de um legado ímpar para a cinematografia mundial.

B: Um dos legados de Ford e de outros grandes diretores foi mitificação do homem do Oeste americano. Mas ao mesmo tempo sabemos que muito do que se via nos filmes não correspondia à realidade ou era controverso. Um dos maiores exemplo é o famoso tiroteio de O.K. Corral. Tivemos diversas produções sobre este tema e que exaltaram os participantes do tiroteio, mas a pesquisa de especialistas disse que não foi nada daquilo o que aconteceu na verdade. E outro foi uma espécie de inversão que transformou o índio em pária social pelas produções de cavalaria, aquela história de mocinho versus índio. Formato que alguns diretores repensariam anos depois – Ford foi um deles. O progresso a qualquer "custo" desnudado nas produções de Leone confrontava os mitos fordianos e CIA. A figura do pistoleiro anti-herói e errante é na verdade uma cutucada. Fale-nos um pouco do mito do cowboy.
PT: Como eu disse, os americanos são fascinados pela mitologia do Oeste Americano, e isso já acontecia antes mesmo do surgimento do cinema. Em 1883, o próprio William Frederick Cody, conhecido mundialmente como Buffalo Bill, já vinha explorando ele mesmo seu lado de “herói” nos seus espetáculos circenses do Oeste Selvagem. Quando o cinema já existia como um espetáculo, Buffalo Bill foi convidado por um dos primeiros mocinhos do Far-West, Gilbert Broncho Billy Anderson (que também era produtor) para estrelar um filme, intitulado “The Adventures of Buffalo Bill”, justamente com a intenção de demonstrar que, no cinema, a ideal “fábrica de sonhos”, realidade e lenda poderiam se confundir facilmente. Dois anos depois da morte de Wyatt Earp, em 1929, um escritor chamado Stuart Lake publicou um livro chamado “Wyatt Earp, Frontier Marshal” (“Wyatt Earp, o Delegado da Fronteira”), onde narrava as façanhas do “Leão de Tombstone”, como era Earp alcunhado. Lake sempre declarou que cada narrativa, cada palavra ou vírgula, foram do delegado, mas depois voltou atrás, dizendo que todo o livro era de sua inteira autoria, e que Wyatt nunca lhe passou informações. Contudo, já nessa época, o cinema estava em busca de heróis para mitificar o verdadeiro mocinho, e não de personagens freudianos ou em enredos elevados a tragédia grega como viria mais tarde. Com base no livro de Lake, Wyatt Earp parecia se encaixar como este novo mito cowboy. Em 1937, Randolph Scott e Cesar Romero eram respectivamente Wyatt e Doc Holliday no filme “Frontier Marshal”, um dos primeiros filmes a abordar o duelo de O.K. Corral baseado na história de Lake, cujo argumento serviria também para “Paixão dos Fortes”, de John Ford, em 1946. Mas evidente que não foi apenas Wyatt Earp o objeto desta mitificação cinematográfica, e Hollywood transformou em heróis Billy The Kid, Jane Calamity, Buffalo Bill, Jesse James, Wild Bill Hickcok, Kit Carson e até mesmo o famigerado General Custer. Todos na realidade estavam distantes de serem “mocinhos”, mas o cinema americano preferiu de início laurear tais ídolos do Velho Oeste, pondo uma legenda romântica em cada um, imprimindo lendas e descartando fatos verdadeiros. Afinal, um famoso cineasta que todo bom amante de western prestigia já falava em um de seus grandes filmes: “Isto é o Oeste. Quando a lenda é mais forte que os fatos, se imprime a lenda”. Isso mesmo, John Ford.
"Sem lei e sem alma"
Quanto ao famoso tiroteio do O.K. Corral, tão bem retratado em filmes como “Paixão dos Fortes”, “Sem Lei e Sem Alma”, e “A Hora da Pistola” (os dois últimos de John Sturges), não passou de uma tremenda farsa. O verdadeiro tiroteio, ocorrido em 26 de outubro de 1881, durou um minuto, enquanto que no filme “Sem Lei e Sem Alma” dura 15. Nem Wyatt Earp e nem seus irmãos foram heróis em nenhum momento de suas vidas, e sim assassinos acobertados pela insígnia da Justiça. Ike Clanton era um homem pacífico e ele e seus parentes foram vítimas dos Earp, porque sabiam de coisas comprometedoras a respeito de Wyatt e Doc Hollyday, este um pobre coitado. O verdadeiro Earp era o típico “171” do Velho Oeste: trapaceiro, mentiroso, amoral e covarde. Nem mesmo a amizade de Earp com Holliday era verdadeira. Foram, de fato, parceiros de copo e mesas de jogo, além de ser seu aliado e cúmplice no duelo de O.K. Corral, mas não tinham grandes afinidades. Wyatt era de uma família de rudes camponeses pioneiros do Oeste, e Doc de uma família refinada do Leste, diplomado em Odontologia e de esmerada cultura. E fato é que, na última vez que se encontraram, descobriram que eram bastante diferentes e resolveram não mais se falar. Segundo o cinema, tal fato não deve ser impresso, mas sim a lenda romântica de que os dois eram amigos inseparáveis. Contudo, o western como gênero cinematográfico foi sendo revisado a partir do início de 1950, e o protótipo do herói que vinha sendo retratado em muitos destes filmes sofreu mudanças por grande parte de cineastas revisionistas. O herói não era 100% herói, ou definitivamente, não era. Ele podia agir de acordo com sua forma de pensar sobre justiça, lei, ordem e meio que vive. Poderia cometer acertos e erros como qualquer ser humano. Enfim, foi preciso humanizar o cowboy, e mesmo os famigerados vilões também são objetos de profunda análise pela base psicológica.

B: Quem foram para você os diretores e os filmes de western que melhor deram esta contribuição, vamos dizer, social e mitológica do homem daquele meio?
James Stewart em "E o sangue semeou a terra".
mito do cowboy
PT: Acredito que Anthony Mann e Delmer Daves foram os mais prolíferos dentro desta contribuição à mitologia do homem dentro do Velho Oeste, muito embora os estilos dos diretores se diferenciem. Interessante em dizer que os cinco filmes em série estrelados por James Stewart em parceria com o cineasta Mann refletem bem a mitologia do homem em seu meio social. Basta assistirmos obras como “Winchester 73” (1950), “E O Sangue Semeou a Terra” (1952), “O Preço de um Homem” (1953), “Região do Ódio” (1954) e “Um Certo Capitão Lockhart” (1955) que veremos este mito do herói grego no meio da tragédia grega, ou em outras palavras, o mito do homem, do novo cowboy, no meio social em que ele esta vivendo. Já Delmer Daves tem uma obra “didática” que reflete muito bem o tema, “Como Nasce um Bravo”, de 1958, estrelado por Glenn Ford e Jack Lemmon, onde temos este aprendendo a ser um “cowboy de verdade” em meio a um grupo de rudes vaqueiros liderados por Ford, um dos grandes ícones do Far-West americano. Lemmon, um cara do Leste e acostumado à boa-vida, tem exatamente em sua mente o mito meio que laureado do cowboy, mas quando ele vai ver, percebe que não é nada disso.

B: Agora nos fale dos primeiros westerns realizados nos Estados Unidos.
PT: O cinema nasceu em 1895, na França, e isto já é falar nos primórdios da sétima arte e de sua invenção como meio de entretenimento. Já em 1898, nos Estados Unidos, a Edison Company (de Thomas Edison), produziu uma vinheta de um minuto de duração chamada “Cripple Creek Bar Room”, aclamado por alguns críticos e estudiosos como o primeiro western da história. Segundo Primaggio Mantovi, autor do livro “100 anos de Western”, a cena mostrava um pequeno saloon com alguns cowboys, um típico jogador do Velho Oeste, e uma garçonete de aspecto masculino que pôde ter sido interpretado por um ator. Contudo, foi “O Grande Roubo do Trem”, datado de 1903, que mereceu a honra de ser o primeiro western, por se tratar de um primeiro filme a contar uma história escrita especialmente para o cinema (logo, o primeiro script para o gênero). O filme foi feito em apenas dois dias e se tornou oficialmente o primeiro western do cinema. Vieram pioneiros como David W. Griffith, Thomas Happer Ince, William S. Hart, Cecil B. DeMille (mais tarde, o idealizador de grandes espetáculos épicos e bíblicos, como “Os Dez Mandamentos” e ”Sansão e Dalila”), e o próprio John Ford, cada um realizando uma obra ou outra no gênero. E não somente quando o cinema engatinhava em seus primeiros passos, como também ainda não se tinha o recurso do som, afinal ainda era a fase silents do cinema. David W. Griffith é considerado o pai da linguagem cinematográfica, e realizou em 1915 o filme que é considerado, de fato, o primeiro longa-metragem do cinema: “O Nascimento de uma Nação”. Thomas Ince idealizou o primeiro estúdio ao ar livre, ao comprar 20 mil acres de terra para construir sua própria cidade do Velho Oeste, contratando depois uma trupe de cowboys autênticos e índios de verdade, peritos em cavalgar, laçar e atirar. “War on The Plains” e “Custer’s Last Fight”, ambos de 1912, foram um dos primeiros westerns rodados por Ince.

vídeo O Grande Roubo de Trem

Contudo, o ano de 1914 é tido como o ano oficial do nascimento do western no cinema, porque até então não houve a preocupação em desenvolver um ator capaz de encarnar o autêntico cowboy do Oeste, ou por que não dizer, o mito. Os primeiros atores a desenvolver os heróis do gênero foram Lionel Barrymore e Francis Ford (irmão do cineasta John) e eram figuras presentes nos filmes de Griffith e Ince, mas o primeiro herói oficial do gênero foi mesmo Gilbert “Bronco Billy” Anderson. William S. Hart e Cecil B. DeMille tiveram um interesse maior pelo gênero nos primórdios do cinema americano. Ainda em 1914, DeMille estreou na direção com “Amor de índio”, e posteriormente transportou para as telas, em primeira adaptação cinematográfica, o famoso romance de Owen Wister, “The Virginian – O Paladino da Justiça”, história esta que teria várias readaptações para o cinema em épocas futuras, inclusive originando uma série de TV na década de 1960, muito famosa – “O Homem de Virginia”, estrelada por James Drury. Ainda no período silents do cinema, Cecil B DeMille dirigiu os westerns “Sonhos de Moça” (“The Girl of The Golden West”), em 1915, e refilmou, em 1918, “Amor de Índio”.
"Marked Man",
primeiro western
do mestre John  Ford
William S. Hart era um ator clássico do teatro norte-americano que tentava transferir sua carreira para o cinema, e junto com John Barrymore e o lendário Douglas Fairbanks (na minha consideração, o primeiro grande aventureiro da sétima arte), seria um dos poucos a realizar este ideal, mas Barrymore não estava interessado em westerns. Com a ajuda de Thomas Ince, que foi seu produtor, ele realizou os westerns “Um Negócio Perigoso”, em 1914; “Terra do Inferno”, em 1916 (considerado o primeiro western adulto); “Serás minha escrava”, também de 1916; “The Tiger”, em 1918; e “Wagon Tracks”, em 1919. Juntos, a dupla Hart e Ince alcançaram sucesso de crítica e público que nem eles ao certo poderiam imagina.
John Ford começou sua carreira em 1914, como assistente de direção, ator e até dublê, com o nome artístico de Jack Ford. Iniciou na arte da direção em 1917, dirigindo “A Marked Man”, seu filme favorito e um dos poucos que adorava mencionar em suas entrevistas. Entre este ano de 1917 até 1920, Ford realizou 28 westerns para o estúdio da Universal, todos de grande importância para o gênero. Em 1924, Ford realizou uma obra-prima, o épico do gênero “Cavalo de Ferro”, estrelado por George O’ Brien, que havia sido dublê de Tom Mix. Existem ainda muitas outras obras do gênero realizadas nos primeiros anos da indústria cinematográfica, mas numerá-las todas é um trabalho que requer ainda pesquisa de minha parte.

B: O papel da mulher na sociedade do Oeste americano era bem secundário, penso que nas produções do gênero western isso também não era diferente. São raros os filmes em que tivemos mulheres como protagonistas e com personagens fortes. O que você pensa disso?
PT: Penso que isso não é necessariamente verdade em termos de produção do gênero. Temos ótimos filmes em que a mulher é a protagonista. É verdade que não são muitos, mas devemos fazer justiça aos cineastas que se lembraram delas. Anthony Mann fez isso em “Almas em Fúria”, em 1950, colocando Barbara Stanwyck como a heroína freudiana e corajosa que desafiava a “madrasta má” vivida pela dama do teatro americano Judith Anderson, para defender seu pai, vivido por Walter Huston (pai do cineasta John). Stanwyck era considerada por Hollywood como a “Madrinha dos Westerns”, e tudo porque ela era perfeita para o gênero. Ela cavalgava muito bem e sabia atirar de verdade, sendo também uma extraordinária atriz em outros gêneros, geralmente em papéis bem avançados para as atrizes de sua época. Barbara atuou em fitas westerns como “A Bandoleira” (ou “Na Mira de um Coração”), dirigido por George Stevens, em 1935, onde viveu a lendária Annie Oakley, e fez um importante papel feminino em “Aliança de Aço”, de Cecil B. DeMille, dividindo as honras com Joel McCrea. Anos mais tarde, na década de 1960, foi a estrela de um famoso seriado de TV do gênero, “The Big Valley” (1965-1969), onde viveu a corajosa matriarca de uma família.
Barbara Stanwyk,
madrinha do western
Também tivemos um personagem forte feminino como protagonista num grande clássico americano do gênero dirigido por um dos grandes artesãos da sétima arte, o brilhante Nicholas Ray. Falo de “Johnny Guitar”, realizado em 1954, onde Joan Crawford esbanja toda a ousadia e a coragem como nunca antes exibidas no cinema. Joan está perfeita como a dona de saloon perseguida por uma banqueira que sente um ódio mortal por ela (vivida pela também brilhante Mercedes McCambridge), enquanto ela também é defendida por um “herói-bandido” que sempre carrega um violão, Johnny Guitar (vivido por Sterling Hayden). Uma das obras mais psicológicas do gênero com um surpreendente espaço para a reivindicação feminina, tendo como pano de fundo a disputa de duas mulheres pelo amor de um mesmo homem, onde o confronto final entre as duas é inevitável. Em 1994, aproveitando o embalo da volta dos westerns no mercado de cinema graças ao estrondoso sucesso de "Os Imperdoáveis", de Eastwood, veio “Quatro Mulheres e Um Destino”, dirigido por Jonathan Kaplan, onde temos um elenco de primeira, lideradas pelas poderosas Madeleine Stowe, Mary Stuart Masterson, Andie MacDowell e Drew Barrymore, onde são elas as grandes protagonistas da obra. E pouco tempo depois, veio Sharon Stone protagonizando em “Rápida e Mortal”, em 1995, contracenando com Gene Hackman. Seja como for, as mulheres estão sempre marcando o seu território no gênero, sejam como protagonistas ou personagens secundárias, talvez mesmo servindo como a fonte de motivação para o herói ou o mito do Velho Oeste. Sem a cativante presença feminina, o western não tem graça.

B: Vamos falar de spaghetti, vamos falar de Leone. A meu ver foi um diretor completo, inovador e vanguardista. Estava à frente de seu tempo em relação a muitos diretores de seu país e até de Hollywood. Mesmo assim ele foi massacrado pela crítica em sua época, algo que Peckinpah e outros também sofreram na pele. Porque ele demorou tanto a ser reconhecido e valorizado?
Um dos principais respossáveis
pelo faroeste spaghetti,
Sergio Leone
PT: Foi, em grande parte, o preconceito de alguns críticos. Tanto Leone quanto Sam Peckinpah utilizaram muito do excesso da violência em suas obras, algo inovador para os padrões dos anos de 1960. Os críticos de então acreditavam que o público poderia ficar chocado com esta nova maneira de se fazer Western. Tanto a violência mostrada por Peckinpah quanto as mostradas por Leone eram uma arte incompreensível para a crítica da época, muito embora Sergio se preocupasse não somente com a violência, mas com todo um conjunto. Contudo, ambos os diretores tiveram merecido reconhecimento lá pela metade dos anos de 1970, quando suas obras foram revisitadas por críticos de mente mais aberta. Outro fator que também que veio a demorar o reconhecimento destes dois mestres foi a desconstrução do mito do cowboy romântico. Leone, assim como Peckinpah, derrubaram de vez todas as lendas romanescas do gênero, que já eram obsoletas já no fim da década de 1950. Alguns críticos de início não viam isso com bons olhos, e muito menos, Hollywood. Contudo, como sabemos, foi graças ao sucesso dos Westerns italianos que o cinema americano teve que se reinventar para não perder a concorrência, e não deu outra. Outro motivo que ajudou também a retardar o reconhecimento de Leone & Cia foi justamente alguns cineastas de baixo orçamento tentarem imitar o estilo de Leone sem sucesso, o que o incomodava, pois achava que o estavam plagiando. Por isso que muitas vezes tivemos faroestes europeus tão pobres e inexpressivos que mal passaram das prateleiras das locadoras de vídeo, muitos deles feitos com baixíssimo orçamento e roteiros sem pé e nem cabeça. O próprio Sergio Leone declarou a respeito de seus imitadores durante uma entrevista: "Sou considerado o Pai do Western Spaghetti, mas se eu soubesse que teria feito parir tanto fdp..."


(continua...)

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial de 15 anos do ClyBlog - Accept - "Restless and Wild" (1982)



 
Acima, a capa da versão brasileira
e abaixo a de Europa e EUA
"Não sei se somos modelos, mas certamente ajudamos a iniciar todo esse gênero [Trash Metal] de certa forma, e isso me deixa muito, muito orgulhoso. É uma grande honra ter todas essas bandas nos nomeando como sua influência. E eu já ouvi tantas vezes 'Cara, quando ouvimos ‘Restless and Wild’ isso nos fez começar a tocar música.' E para muitas bandas, esse foi o ponto de partida, então isso é incrível. O que mais você pode querer da vida ou da sua carreira musical?"
Wolf Hoffmann


A primeira vez que tive contato com o Accept foi lá pelo início de 1984, escutando o Central Rock, na saudosa Ipanema FM, 94.9, apresentado pelo Ricardo Barão. O programa acho que era transmitido de segundas às sextas ou apenas uma vez por semana, não recordo com exatidão, mas ia ao ar das 22h às 24h. 

A música da banda alemã tocada foi "Fast as a Shark", a primeira faixa do disco "Restless and Wild", de 1982. E o seu começo era estranho, pois começava com um som chiado e uma voz feminina cantando “Heidi, Heido, Heida”, e na sequência, escutávamos uma agulha arranhando o disco e entrava o vocal gritado de Udo Dirkshneider, seguido de uma bateria insana e solos de guitarra. O efeito trazia a música tradicional alemã ("Ein Heller und ein Batzen", escrita em 1830 por Albert von Schlippenbach) e de acordo com o guitarrista e líder Wolf Hoffmmann, era para enganar os ouvintes, pois ao colocar o disco, eles iriam escutar uma música que não tinha nenhuma conexão com o álbum e teriam certeza de que haviam comprado o LP errado. Uma pegadinha que deu certo. 

A música em questão, "Fast as a Shark" ("Rápido como um Tubarão") é considerada a pedra fundamental do Thrash Metal, do Speed Metal e do Power Metal. E não sou eu que estou afirmando. A opinião foi dada por integrantes de várias bandas do gênero, como Metallica, Exodus, Anthrax. O vocalista do Exodus, Steve Zetro Souza, afirmou que ao escutar "Fast as a Shark" teve uma espécie de epifania. "É isso, é isso", soltou ele, que confessa cantar baseado nos vocais de Udo Dirkschneider e Bon Scott, do AC/DC

No dia seguinte ao escutar o Central Rock, fui atrás do LP para comprá-lo. Adquirido, é um dos meus preferidos desde sempre. E passados quase quarenta anos, sigo escutando o trabalho da banda alemã, surgida na cidade de Solingen, na então Alemanha Ocidental nos anos 1970. 

"Restless and Wild" é um daqueles álbuns perfeitos, ou seja, todas as suas músicas são excelentes, assim como "Powerslave", do Iron Maiden, e "The Wall", do Pink Floyd. Ele é o quarto da discografia do Accept, sucessor do  debut homônimo de 1979, “I’m A Rebel”, de 1980, e “Breaker”, de 1981. 

A obra foi para as lojas europeias no dia 2 de Outubro de 1982, com dez faixas. Nos Estados Unidos seria lançada no ano seguinte, e chegando ao Brasil no começo de 1984, sendo o primeiro da banda a sair por aqui. Nesta época o estilo Heavy Metal começava a criar força incomum no nosso país, chegando ao auge em 1985, com o advento do primeiro Rock In Rio.  

Já falei da música ícone "Fast As A Shark", que abre o lado A, seguida de "Restless And Wild", que dá nome ao disco e como o nome diz, é de uma selvageria musical, até hoje presente nos shows, "Ahead Of The Pack", "Shake Your Heads" e "Neon Nights". 

No lado B, estão "Get Ready", que tem uma pegada a la Judas Priest, "Demon’s Night", "Flash Rockin’ Man", "Don’t Go Stealing My Soul Away", um dos títulos de música mais legais, e a épica "Princess Of The Dawn", com um solo monstruoso de Wolf Hoffmann, e uma das minhas preferidas de todos os tempos, escutada pelo menos uma vez por semana desde aquela época. 

A capa original do "Restless And Wild" apresenta uma foto de duas guitarras, modelo Flying V, cruzadas e pegando fogo. Aqui no Brasil, no entanto, a capa do álbum mostra a banda se apresentando ao vivo, com luzes vermelhas e vários amplificadores, e em destaque Udo Dirkschneider estrangulando o baixista Peter Baltes - sendo a mesma da versão japonesa. 

“Restless And Wild” abriu caminho ainda para uma sequência clássica de grandes lançamentos. O disco seria sucedido pelos mega-clássicos “Balls To The Wall”, de 1983,  “Metal Heart”, de 1985, e "Russian Roulette", de 1986. Então, o Accept entraria em crise, com a saída de seu fundador Udo Dirkschneider, que seguiria carreira solo. A banda alemã entraria em colapso nos anos 1990, entrando em um hiato de quase 15 anos. A volta aconteceria em 2010, com novo vocalista, Mark Tornillo, estando na ativa até hoje. 

Quatro fatos sobre o Accept em minha vida:  

Na época do II Grau (hoje Ensino Médio), cursado no Colégio Estadual Paula Soares, eu emprestei o disco "Restless and Wild", sim, naquela época a gurizada emprestava ou trocava discos sem medo de não tê-los de volta, para um colega punk. O cara levou o disco para casa, curioso em escutar aquele som novo e diferente. No dia seguinte, ele me devolveu o disco, e contou: "quando cheguei em casa, fui para o quarto e coloquei o disco para tocar. E na primeira faixa, achei que ele estava arranhado. E na sequência, entrou aquele cara gritando...na hora a minha mãe abriu a porta do meu quarto e soltou: 'quem foi o débil mental que te emprestou este disco?'"

Caímos na gargalhada. Afinal, o cara era afeito a escutar bandas punk como Exploited, Sex Pistols, Dead Kennedys e Misfits. Mas a mãe dele achou absurdamente doente o som do Accept. 

Em 2013, assisti finalmente o Accept ao vivo em show no Bar Opinião, em Porto Alegre. E durante a execução de "Balls to the Wall", o guitarrista Wolf Hoffmann se curvou em direção a plateia, olhou pra mim, e disse: "For you, man", colocando uma palheta na minha mão. 

Anos depois, sem conseguir achar uma camiseta do "Restless and Wild" (eu coleciono camisas de bandas), visitei a loja Zeppelin, do Alexandre Nascimento, especialista em ítens sobre Heavy Metal, e comentei com ele. Na hora, o Tiziu pegou o telefone e ligou pra um camarada catarinense, que fez sob medida a camiseta com a capa do disco. E paguei apenas o custo de fabricação, e nada mais: R$ 50,00. 

Por fim, em 2023, pude presenciar o show do vocalista mais ícônico do Accept, quando Udo Dirkschneider se apresentou no Bar Opinião. No setlist, apenas músicas clássicas da banda que ele fundou lá na década de 1970. 

Agora, chega... bora escutar pela milionésima vez "Restless and Wild" e acordar a vizinhança.


por C H I C O   I  Z I D R O


★★★★★★

FAIXAS:
1. "Fast as a Shark" - 3:49
2. "Restless and Wild" - 4:12
3. "Ahead of the Pack" - 3:24
4. "Shake Your Heads" - 4:17
5. "Neon Nights" - 6:01
6. "Get Ready" - 3:41
7. "Demon's Night" - 4:27
8. "Flash Rockin' Man" - 4:28
9. "Don't Go Stealing My Soul Away" - 3:15
10. "Princess of the Dawn" - 6:15
Todas as composições de autoria de Wolf Hoffmann, Stefan Kaufmann, Udo Dirkschneider, Peter Baltes


★★★★★★

OUÇA:



★★★★★★



Chico Izidro é jornalista, crítico de cinema e escritor e youtuber. Nascido em Porto Alegre, estudou no Colégio Paula Soares/Pio XII e é formado em jornalismo pela Unisinos. Teve passagens pela Assessoria de Imprensa do Juizado de Menores, Band AM, Ipanema FM, Placar, Folha de S. Paulo, Rádio Guaíba, A Notícia-SC e Correio do Povo. No YouTube mantém os canais Cinema de Peso, ao lado dos críticos de cinema Criba Aquino e Lauro Arregui, e Guaibadas, onde conta causos de sua vida. É autor de dois romances, “Era Vidro e Se Quebrou” e “Olhos Verdes”.



terça-feira, 6 de agosto de 2013

Stevie Wonder - “Songs In The Key Of Life” (1976)





“Songs In The Key Of Life’é apenas
um aglomerado de pensamentos
no meu subconsciente que meu Criador
decidiu me dar como força,
amor + amor – ódio = energia do amor capaz de fazer 
o possível para
trazer 
à minha consciência 
uma ideia.
Uma ideia para mim
é um pensamento formado
 no subconsciente,
o desconhecido e, 
por vezes,
aquilo que se procura no impossível.” 
Stevie Wonder
texto do encarte original



Chegou a hora de falar de um monumento da música do Século XX e que vai ficar pra sempre na vida de todo mundo: “Songs In The Key Of Life”, de Stevie Wonder. Conheci este disco nas ondas da Continental Superquente 1120, em 1976. A rádio começou a tocar o primeiro de muitos hits do disco, "Isn't She Lovely". E aí me apaixonei. Comprei o disco em 1979 e começou uma longa história de amor e devoção com este disco com D maiúsculo.

Ele começa com um gospel wonderiano de arrepiar chamado "Love's in Need of Love Today". Nela, todos os instrumentos são tocados por ele - especialmente os sintetizadores -, a não ser uma percussão incidental. Os vocais também são todos de Stevie, que se esmera em criar um efeito de coral de igreja batista norte-americana. Um começo de impacto. O Stevie religioso se manifesta com "Have a Talk With God", na qual novamente está no comando de todos os instrumentos. Nela, SW diz: "Quando você achar que a vida está muito difícil/ apenas tenha uma conversa com Deus". Religiosidade sem pregação. "Village Ghetto Land" mostra o lado de preocupação social. Os sintetizadores - uma obsessão wonderiana na época - tão o tom sombrio de um gueto cheio de violência, lixo e descaso das autoridades.

Na sequência, uma das surpresas do disco: uma faixa instrumental chamada "Contusion". Uma espécie de homenagem de Stevie ao guitarrista Jeff Beck, que participou de vários discos dele durante a década de70 e recém havia lançado o também monumental "Blow by Blow". "Contusion" não ficaria mal como bonus track do disco de Beck. Comandada pela guitarra de Michael Sembello (que faria sucesso no começo dos anos 80 com "Maniac", lembram?) a música ganha os vocais de SW e outros vocalistas e se transforma em um fusion soul. Só ele mesmo poderia fazer algo do gênero. Pra fechar o Lado 1, um tributo ao mestre Duke Ellington e ao jazz: "Sir Duke" tem um naipe de sopros que faz lembrar a big bands de Duke e Count Basie, entre outros. O arranjo esperto de SW faz a gente bater o pé numa batida irresistível. Uma delícia!

No formato vinil, o lado 2 começa com Stevie recordando seus tempos de criança em Detroit, já cego em "I Wish". Nela, SW manda ver na bateria, base de todo o arranjo. Tirando o baixo de Ben Watts e os sopros, Stevie comanda o show dizendo "Eu gostaria que aqueles dias pudessem voltar uma dia / Eu gostaria que aqueles dias nunca tivessem desaparecido". Uma evocação da infância difícil, mas de muita luta. Foi lá que ele começou a tocar os primeiros instrumentos. Depois deste momento balançado de memória, vem a minha música preferida por motivos sentimentais: "Knocks Me Off My Feet". Uma balada tendo o piano como base, mas a letra é que dá o tema: "Não quero te incomodar/mas tem alguma sobre o teu amor/ que me faz fraco e me deixa fora de mim", numa tradução nada literal. Linda canção e que me emociona sempre que a ouço. E vendo ouvindo há mais de 30 anos. Isso é o que se pode chamar de uma música que fica contigo. Lembranças sentimentais à parte, vem "Pastime Paradise", cujo riff de sintetizadores imitando cordas virou a base de "Gangsta Paradise" de Coolio na década de 90. Novamente, as preocupações sociais de Stevie Wonder afloram: segregação, exploração, mutilação são os problemas que ele aponta. A solução deve ser integração, consolação, salvação para a paz no mundo. Tudo temperado com coro de Hara Krishnas e de uma igreja de Los Angeles.

É neste disco que Stevie dá vazão à suas indagações sobre o mundo. Contextualizando: os Estados Unidos tinham passado por uma tempestade social com o caso Watergate, a crise do petróleo e o crescimento da violência urbana, especialmente nos guetos. Estes fatos iriam desembocar nos anos 80 com o surgimento do rap e do hip hop, levando adiante a mensagem de Wonder. "Summer Soft" inicia como mais uma balada de SW, mas se transforma na segunda parte, quando o destaque fica com o órgão pilotado pelo grande Ronnie Foster (cuja importância para a música brasileira acontece em 1982, quando produz "Luz", o grande disco de Djavan). "Ordinary Pain" também tem uma ligação com a MPB. Em 84, no seu disco "Fullgás", Marina Lima fez uma versão da primeira parte desta música ("Pé na Tábua") . Mas SW foi engenhoso. Faz uma música de amores perdidos e a divide em duas, apresentando a versão masculina, suave, e a feminina, uma funkeira cantada por Shirley Brewer.

O Lado 3 começa com Aisha, a filha recém nascida de Wonder chorando. Esse choro se transforma na batida irresistível de "Isn't She Lovely", uma das canções mais conhecidas dele. O solo de harmônica desta canção é das melhores performances instrumentais que eu já ouvi. Um mega hit merecido e cantado até hoje nos shows, onde Stevie apresenta Aisha já adulta - e maravilhosa! "Joy Inside My Tears" traz SW outra vez no comando de todos os instrumentos, excetuando os teclados de Greg Phillinganes. Esta é daquelas canções que vão te pegando aos poucos. São necessárias várias audições pra entrar no clima. Mas depois te garanto, tu vais sair na rua cantando o refrão "You, you, you / have made life history / You brought some joy inside my tears".

"Black Man" é a epítome da preocupação de Wonder em integrar todas as raças. Ele traz para o final da música um professor que pergunta aos alunos questões sobre aventureiros, descobridores, políticos que tiveram grande feitos e as crianças respondem a raça de cada um deles. Brancos, negros, índios, todos mencionados e mostrando que somos iguais. Uma bela mensagem de integração numa base funk. Fechando o disco, o lado 4 abre com uma preciosidade: "Ngiculela", onde Wonder canta uma história de amor em uma língua africana, em espanhol e em inglês, sobre uma base instrumental feita somente por ele. Mágico, assim como a próxima faixa. "If It's Magic" é outra surpresa. O arranjo traz Dorothy Ashby na harpa e Wonder no vocal e na harmônica somente no final. Suavidade e beleza num momento de reflexão.

Na sequência, Stevie traz ninguém menos que Herbie Hancock pra pilotar o piano elétrico Fender Rhodes em "As", outra música de amor onde ele declara sua paixão dizendo que "Eu sempre te amarei/ Até que os arco-íris queimem o céu/ Até que os oceanos cubram todas as montanhas/ Até que a Mãe Natureza diga que seu trabalho está pronto". Nada vai impedir Stevie de sentir este amor por uma mulher, pelas crianças e pela humanidade. E se você conseguir ficar parado nesta canção, é porque está morto!!! Fechando o disco original, vem um petardo dançante chamado "Another Star" com as participações de George Benson na guitarra e Bobbi Humphrey na flauta. Stevie compreende o ideário pop e faz a gente cantar o tempo inteiro com um coro de backing vocais entoando apenas "lálálá". Impressionante o comando que ele tem das formas musicais que formam o que se convencionou chamar de "música pop". E o tempo todo em "Songs in The Key of Life” somos surpreendidos pelas sacadas geniais que ele arma, transformando e transmutando as formas do soul, do jazz, do funk, do gospel. Uma hora com um grupo convencional de guitarra, teclados, baixo,bateria e percussão. E em outra fazendo dos sintetizadores uma orquestra de cordas ou um órgão de igreja para passar sua inquietação sobre os destinos do mundo. Tudo isso em 1976!

No disco original ainda vinha um compacto duplo (vocês sabem o que é isso? Um disquinho de vinil com duas músicas de cada lado). A primeira é "Saturn", na qual tirando duas guitarras e um teclado, ele toca todos os instrumentos e faz todas as vozes. "Ebony Eyes" tem sabor de bubblegum pop com a novidade daquele momento, o talk box, que Peter Frampton tinha popularizado em seu disco "Frampton Comes Alive". Destaque também pro solo de sax de Jim Horn. "All Day Sucker" é um funkão que traz três guitarras (!!) fazendo a base para Stevie e os backing vocais de Carolyn Denis. E o compacto termina com ma faixa que se poderia chamar de balada jazzy chamada "Easy Goin' Evening (My Mama 's Call)”. O Fender Rhodes e a harmônica tocam a melodia, enquanto Nathan Watts faz a base para este final sereno de um totem da música de todos os tempos. Se você não conhece, aqui vai um presentinho do tio Paulo Moreira: logo abaixo um link para o disco completo. Desculpem o tamanho do texto, mas um disco desses merece!

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FAIXAS:
1. "Love's in Need of Love Today” - 7:06
2. "Have a Talk with God" (Wonder, Calvin Hardaway) - 2:42
3. "Village Ghetto Land" (Wonder, Gary Byrd) - 3:25
4. "Contusion" - 3:46
5. "Sir Duke" - 3:54
6. "I Wish" - 4:12
7. "Knocks Me Off My Feet" - 3:36
8. "Pastime Paradise" - 3:28
9. "Summer Soft" - 4:14
10. "Ordinary Pain" - 6:23
11. "Saturn" (Michael Sembello, Wonder) – 4:54
12. "Ebony Eyes” – 4:11
13. "Isn't She Lovely?" - 6:34
14. "Joy Inside My Tears" - 6:30
15. "Black Man" (Wonder, Byrd ) - 8:30
16. "Ngiculela” “(Es Una Historia)” “(I Am Singing)" - 3:49
17. "If It's Magic" - 3:12
18. "As" - 7:08
19. "Another Star" - 8:28
20. "All Day Sucker" – 5:06
21. "Easy Goin' Evening (My Mama's Call)" – 3:55

todas de Stevie Wonder, exceto indicadas

(ordem da versão em CD)

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OUÇA:




segunda-feira, 16 de outubro de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (última parte)

 

Coutinho dirige e atua em seu "Cabra...", um dos 10
maiores e um dos 5 filmes do diretor na lista
Chegamos, enfim, ao momento mais aguardado: o final do nosso especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. Ou melhor, o início, já que seguimos uma ordem numeral inversa, partindo dos últimos da lista para, agora, os primeiros. Chegou a hora de dar fim a um dos conteúdos especiais alusivos aos 15 anos do Clyblog em 2023, iniciada em abril e publicado em cinco partes ano longo dos meses. Nossa proposta foi trazer aqui, de forma criteriosa e misturando noções de crítica e história do cinema com preferências pessoais, títulos que representassem o cinema brasileiro neste corte temporal. E justamente num ano em que o cinema brasileiro completou 125 de nascimento segundo a efeméride oficial. O que não invalida a nossa intenção, a qual teve como referência, se não a gênese da produção cinematográfica nacional, em 1898, outro marco inconteste para a história da cultura audiovisual sul-americana, que é a exibição do mais antigo filme brasileiro preservado: “Os Óculos do Vovô”, de 1913.

Embora as corriqueiras e até salutares ausências (afinal, listas servem muito para que outras também sejam compostas), o que se viu aqui ao longo da extensa classificação foram títulos da maior importância e qualidade daquilo que foi produzido no cinema do Brasil neste mais de um século. De produções clássicas, passando pela fase muda, os alternativos, o cinema da atualidade aos sucessos de bilheteria. Num país de dimensão continental, houve trabalhos do Norte ao Sul, com representantes de seis estados da nação: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. Entre as décadas, leva pequena vantagem os anos 60 sobre os 80 e 2000, com 25, 24 e 23 títulos respectivamente, dando uma boa ideia dos períodos de maior incentivo à produção 

Diretores consagrados e filmes marcantes para a cinematografia brasileira e mundial também percorreram a listagem de cabo a rabo. Nomes como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Hector Babenco, Kléber Mendonça Filho, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho e Joaquim Pedro de Andrade se fizeram presentes de forma consistente e todos com mais de um título, provando sua importância basal para a concepção formativa do cinema brasileiro. Glauber, maior cineasta brasileiro, encabeça, com seis filmes, seguido de Coutinho, com cinco, e Nelson, Leon e Babenco, com quatro cada. Porém, os novatos, nem por isso deixaram de também demarcarem seus espaços, feito talvez ainda mais louvável uma vez que, com pouco tempo de realização, já figuram entre os grandes. Caio Sóh, com “Canastra Suja”, de 2018, (107º colocado), Gustavo Pizzi, de “Benzinho” (2018), e Gabriel Martins, com “Marte Um”, de 2022 (79º) estão aí para provar.

Katia, uma das 7 cineastas
mulheres: pouca representatividade
Embora em menor número, as diretoras não deixam de contribuir com seu talento ímpar. Kátia Lund (com duas co-direções, junto a Fernando Meirelles e a João Moreira Salles), Anna Muylaert, Daniela Thomas (“Terra Estrangeira”, com Walter Salles Jr.), Sandra Kogut, Laís Bodanzky, Tatiana Issa e Suzana Amaral formam o time de sete cineastas mulheres, que dão um pouco de diversidade à lista. Muito a se evoluir? Sim. Representatividades negras, LGBTQIAPN+ e indígenas aparecem de maneira periférica, até superficial, consequência natural participação de tais minorias na economia cultural brasileira ao longo da história. Quem sabe, daqui a mais uns anos não se precise demorar tanto mais para que se incluam definitivamente entre os essenciais do cinema brasileiro?

Outro recorte que vale ser frisado são os documentários, que se estendem por todas as postagens dessa série. Além de contarem com um dos dois mais representativos realizadores, Coutinho, rivalizam muito bem com as ficções, totalizando nada mais nada menos que 13 títulos neste formato, 11,8% do geral. Enfim, análises que podem se deduzir a uma coleção de filmes tão interessantes e simbólicos de uma nação, aqui representados por aqueles mais bem colocados e, de certa forma, mais significativos. Por isso, diferentemente do que vínhamos procedendo até então, ao invés de comentarmos apenas de 5 e 5, todos desta vez merecem algumas palavras. Afinal, eles podem se vangloriar de serem os 10 melhores filmes brasileiros de todos tempos. Ao menos, nesta singela e propositiva seleção. 

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10.
“Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (1980) 

Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassistência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.




09. “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (1981)
Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.


08. ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984) 
Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.


07“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



06. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (1965)
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima pouco lembrada.


05. 
"O Cangaceiro”, Lima Barreto (1953)
No nível do que Nelson Pereira faria com Jorge Amado e Ruy com Chico Buarque anos mais tarde, Lima Barreto teve a o privilégio de contar com diálogos escritos por Raquel de Queiroz. O que já seria suficiente ainda é completado por um filme de narrativa e condução perfeitas, com uma trilha magnífica, figurinos de Carybé, uma fotografia impecável e enquadramentos referenciados no Neo-Realismo de Vittorio De Sica e no western norte-americano de John Ford. O precursor do faroeste brasileiro ao recriar sua atmosfera e signos à realidade do nordeste. Se "Bacurau" foi aplaudido de pé em Cannes 66 anos depois, muitas dessas palmas devem-se a "O Cangaceiro", onde o filme de Barreto já havia emplacado o prêmio de Melhor Filme de Aventura e uma menção honrosa pela trilha sonora. Primeiro filme nacional a ganhar prestígio internacional, também levou os prêmios de Melhor filme no Festival de Edimburgo, na Escócia, Prêmio Saci de Melhor Filme (O Estado de S. Paulo) e Prêmio Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.




04. “Limite”, Mário Peixoto (1930)
Scorsese apontou-o como um dos mais importantes filmes do séc. XX, tanto que o restaurou e para a posteridade pela sua World Cinema Foundation. David Bowie escolheu-o como o único filme brasileiro entre seus dez favoritos da América Latina. Influenciado pelas vanguardas europeias dos anos 20, Peixoto, que rodou apenas esta obra, traz-lhe, contudo, elementos muito subjetivos, que potencializam sua atmosfera experimental. Impressionantes pelo arrojo da fotografia, da montagem, da concepção cênica. Considerado por muitos o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Um cult.


03. “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (1963)
Genial. Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia, atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes do cinema mundial, a do sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.




02. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha (1963)
A obra-prima do Cinema Novo, um dos maiores filmes do século XX. De tirar o fôlego. Sobre este, reserva-se o direito de  um post inteiro, escrito no blog de cinema O Estado das Coisas em 2010. Mais recentemente, este marcante filme de Glauber mereceu outra resenha, esta no Clyblog.



1º.
 
"O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (1960) 

Com absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito do início ao fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição, cenografia. Obra de Dias Gomes transposta para a tela com o cuidado do bom cinema clássico. Brasilidade na alma, das mazelas às qualidades. Cenas inesquecíveis, final arrepiante. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.





Daniel Rodrigues

segunda-feira, 21 de março de 2016

Cinema Marginal


"Quando a gente não pode fazer nada,
a gente avacalha
e se esculhamba."
O Bandido da Luz Vermelha


É com grande satisfação que a hoje iniciamos uma nova série de cinema na seção CLAQUETE do ClyBlog. Vagner Rodrigues desta vez vai nos falar sobre o Cinema Marginal Brasileiro, essa forma anárquico-artística que deu mais uma reviravolta na linguagem da sétima arte produzida no Brasil e que deixou sua marca, mesmo que à força, no cinema nacional. Conheceremos melhor os filmes, seus diretores, estrelas às vezes improváveis, as particularidades, curiosidades, lendas por trás das câmeras, as inspirações e pirações que envolveram suas obras de estética e linguagem ousadas, para muitos, de gosto constestável e duvidoso. Mas enfim, vai aqui uma breve introdução, um retrato mais amplo do cinema marginal só para aquecer, para esperar pelos próximos que virão dissecando cada uma das obras marcantes deste movimento que na verdade mão era exatamente um movimento, não era exatamente cinema, não era exatamente... nada, era uma grande e admirável esculhambação.
Cly Reis
editor-chefe



Os anos 60 foram uma época de surgimento de novos cinemas de vanguarda e mudanças. A Europa como um todo passou fortemente por isso e o movimento mais famoso foi sem dúvida a "nouvelle vague". O Brasil também teve seu "cinema novo", que impulsionado por alguns conflitos ideológicos gerou outro interessante movimento o Cinema Marginal.
Mestre Sganzerla
Na metade dos anos 60 houve essa ruptura de cinemas no Brasil, o momento em que acaba amizade entre Bressane e Glauber Rocha, apos este último acusar o filme "O Anjo Nasceu"(1969) de Bressane de ter plagiado seu filme "Câncer" que fora filmado em 1968 e finalizado em 1972 (Ratinhooooo!!!). O país passava por um forte cerceamento politico, o AI-5 chegava com força, e o "cinema marginal" surgia como resposta contra essa opressão. Ele não foi um movimento organizado, os cineastas não fizeram uma reunião e decidiram criar o "cinema marginal", o nome inclusive foi dado de maneira pejorativa de modo a diminuir os filmes e atingir seus idealizadores. "Não somos marginais, fomos marginalizados" foi, inclusive, uma frase de Carlos Reichenbach, em uma entrevista quando questionado sobre o nome do movimento.
Se o Cinema Novo era popular e seus idealizadores tinham muita força na época, devido esse rixa, o "cinema marginal" foi extremamente rejeitado e boicotado, chegando ao ponto dos filmes serem impedidos de participarem de alguns festivais. A maioria das obras "marginais" só tiveram seu reconhecimento recentemente, assim, somente agora, tardiamente tivemos a oportunidade de ver toda a força de um cinema radical que existiu no Brasil na década de 60.
Como falei no inicio, não foi um movimento organizado, foram diversos focos de novos cineastas que buscavam um novo caminho cinematográfico espalhados por diversos cantos do Brasil,com destaque,é claro, para o Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, berço da turma da Boca do Lixo.
Um avacalho de tão bom
que é esse filme.
O filme que é dado como o primeiro "marginal" e também o primeiro da Boca do Lixo é "A margem"(1967) de Ozualdo Candeias. O filme feito com baixíssimo orçamento, narra a história de personagens pobres e excluídos, como bêbados, prostitutas e loucos, que vivem na margem do Rio Tietê mas que também vivem à margem da sociedade. No ano seguinte, 1968, o "cinema marginal" e a boca do lixo, produziram o que para muitos foi o maior filme deste movimento, o clássico "O Bandido da Luz Vermelha" de Rogério Sganzela. Esta obra contém todos os elementos que marcaram o "cinema marginal", um filme de manifesto, questionamento de ordem política, uma estética diferente e bela, (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo, "quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba", frase dita pelo Bandido durante o filme mas que serviu como um lema do "cinema marginal".
Depois do sucesso do seu primeiro longa, Sganzela produziu seu próximo filme, "A Mulher de Todos"(1969), dando continuidade ao estilo cinema mal comportado, com clara influencia Godardiana. O longa marcou o surgimento da musa Helena Ignez, interpretando Angela Carne e Osso, a inimiga número 1 dos homens. Uma personagem que daria muito orgulho ao movimento feminista que temos atualmente pois, sim, ela transava com todo mundo mas queria, tinha autonomia do próprio corpo e, não, não a confunda com uma personagens de pornochancada, "Agora só tenho tempo para os boçais" clássica frase da personagem Angela Carne e Osso.
Esse período foi o momento de maior sucesso popular do cinema marginal, além dos dois filmes de Sganzela, as obras "O Pornógrafo"(1970) de João Callegaro e "As Libertinas"(1968) filme em episódico dirigido por João Callegaro, Carlos Reichenbach e Antônio Lima, também foram muito bem aceias pelo publico.
Helena Ignez, muito mais que simplesmente
a musa do 'Cinema Marginal'.
Nos anos 70 esse cinema mais questionador começou a perder forçar no mercado que passava a voltar-se naquele momento mias para o cinema erótico. Alguns diretores não fizeram mais longas após essa época como João Callegaro, por exemplo, outros tentaram colocar um pouco de suas e ideias e críticas em filmes eróticos como Carlos Reichbach e Ozualdo Candeias e alguns se distanciaram ao máximo das pornochanchadas e continuaram produzindo na Boca do Lixo como foi o caso de Candeias
Extremamente influenciados pela obra do poeta modernista Oswald de Andrade, muitos diretores do movimento faziam referencias a seu textos e poemas sendo Júlio Bressane o mais oswaldiano entre eles. Um exemplo é seu filme " Uma Família do Barulho"(1970) que alguns críticos consideram uma adaptação cinematográfica livre do "Manifesto Pau-Brasil" de Oswald de Andrade. O filme é anárquico, liberal e repleto de um erotismo inegavelmente oswaldiano.
Muito influenciados por esse espirito, Rogério Sganzela, Julio Bressane e Helena Ignez fundaram no inicio dos anos 70 produtora de filme Belair, que produziu 6 longas em 3 meses. Além de confrontar o AI-5 a Belair batia de frente com a Embrafilme, mostrando que e ainda se podia fazer um cinema questionador no pais, que era possível "fazer cinema do jeito que se pode fazer".
Glauber, herói e inimigo do cinema marginal
Entre os filmes da Belair estão "Copacabana Mon amour", "Sem Essa Aranha" e "Carnaval Na Lama" (filme perdido) de Sganzela, "Cuidado Madame", "Barão Olavo, O Horrível" e o já mencionado "Uma Família do Barulho", de Bressane. Foram obras mais radicais, com violência exagerada, cenas de tortura, frases constantemente repetidas, um uso bem irresponsável da câmera na mão, trilhas sonoras sendo feitas durante a filmagem, um diálogo muito próximo ao do teatro, o que alguns críticos apontam como um exagero de vômitos náuseas e cuspes e arrotos. Mas por outro lado foi da Belair o filme  "marginal" mais bem acabado, a obra mais refinada entre todas da produtora, e um dos grandes clássicos da filmografia brasileira, o já referido "O Bandido da Luz Vermelha", consolidando assim, de uma forma ou de outra, a Belair como um dos marcos mais importante do movimento "marginal e sem dúvida do cinema nacional.
Com a ameaça de prisão dos seus fundadores, que tiveram que se exilar fora do Brasil, depois de apenas 4 meses de funcionamento a Belair acabou fechando. Apos o encerramento de suas atividades o cinema marginal perdeu suas forças e nunca mais consegui voltar. Mas deixou sua marca no cinema brasileiro sendo um dos movimentos mais referenciados dentro do circuito nacional até hoje.
Um fato importante que marca o fim de uma era mas por outro lado também uma reconciliação importante e indispensável para o cinema nacional foi a morte de Glauber Rocha que, apesar de todas as divergências que tinha com a turma da 'boca do lixo' era muito repeitado por estes e considerado o pai do cinema "câmera na mão", sendo sua morte muito sentida pelos fundadores da Belair mesmo tendo sido smpre um dos principais adversários e críticos do cinema marginal. Logo após a sua morte Bressane escreveu um belo texto em sua homenagem, chamado "Da Fome da Estética do Amor" que reatou os laços do cinema novo com cinema marginal. O cinema brasileiro estava em paz de novo.