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sexta-feira, 23 de julho de 2021

Cinema e Esporte - As Modalidades Esportivas na Telona - II


Embora algumas modalidades já tenham iniciado suas competições, os Jogos Olímpicos de Tóquio estão abertos, oficialmente mesmo, a partir de hoje e, desta forma, também está aberta a temporada de publicações referentes a esporte e ao país sede, o Japão, aqui no ClyBlog.
Pra começar, assim como fizemos na última Olimpíada, preparamos uma listinha destacando alguns filmes relacionados com esportes olímpicos. Alguns filmes são especificamente sobre determinada modalidade, em outros há uma cena ou um momento marcante, em outros o esporte é um elemento contextual, em outros é decisivo para a trama... Tem para todos os gostos! O importante é que os esportes estão ali. É lógico que um evento desse porte tem tantas modalidades esportivas que não dá para destacar todas e, sinceramente, eu duvido que tenhamos filmes de algumas delas, mas aqui no Claquete destacamos dez e achamos que  ficou uma lista bem diversificada quanto a gêneros cinematográficos, estilos, abordagens, nacionalidades e com esportes bem interessantes que renderam bons filmes. Então, chega de papo-furado, e vamos à lista:

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"O Campeão", de Franco Zefirelli, (1979)
  - Quando se fala em filmes com esporte, é impossível não pensar nos filmes de boxe, e quando o boxe é assunto na telona, alguns filmes imediatamente vêm à mente como a saga "Rocky" e o cultuado 
"Touro Indomável". Mas outro que é referência quando se fala na Nobre Arte é o dramático "O Campeão". Dirigido por Franco Zefirelli, o filme trata da história de um boxeador aposentado, com problemas com álcool e um filho pequeno para criar, depois que a mãe os abandonara. Com problemas de dinheiro, tentando garantir a guarda do filho diante da mãe (Faye Dannaway), que retornara cheia de grana e arrependimento, e ainda querendo justificar a idolatria do filho, que o vê como um herói, Billy Flynn, vivido por John Voight, resolve voltar aos ringues. Mas já sem as melhores condições físicas e contrariando recomendações  médicas, uma nova luta, àquelas alturas, pode não ser uma boa ideia... Embora muita gente já tenha visto, não vou dar spoiler e contar o final,  mas, só para dar uma ideia, o filme é considerado um dos mais tristes de todos os tempos. Já da pra imaginar, né?

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"Caçadores de Emoção", de Kathryn Bigelow (1991) - O surfe, que estreia em Olimpíadas este ano, em Tóquio, aparece em "Caçadores de Emoção", uma aventura policial em que um agente se infiltra em um grupo de surfistas que, ao que parece, vem realizando roubos a bancos fantasiados com máscaras de presidentes americanos. Johnny Utah (Keanu Reeves), se aproxima, aprende a surfar e, para ganhar a confiança do líder do grupo, Bhodi, interpretado por Patrick Swayze, até pega umas ondas com os carinhas. Dirigido por Kathryn Bigelow, que anos depois seria a primeira mulher a ganhar o Oscar de melhor direção por "Guerra ao Terror", e com Patrick Swayze no auge de sua popularidade e em sua melhor forma física, para delírio do público feminino, "Caçadores de Emoção", se não é um grande filme, ao menos mantém o espectador grudado na trama e na aventura. O surfe está presente em muitos momentos do filme em boas cenas cheias de adrenalina, mas a cena final, numa espécie de "hora da verdade", é a mais marcante e uma das mais icônicas dos filmes de ação dos anos 90.

"Caçadores de Emoção - cena final"


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A galerinha de "Kids", com o skate presente,
dando um daqueles rolezinhos.
"Kids", de Larry Clark (1995)
- Não é um filme sobre skate e, na verdade, o esporte também debutante em Jogos Olímpicos, este ano, nem tem tanto destaque assim. O fato é que a turminha que protagoniza os eventos e envolvimentos do longa é um grupo de jovens skatistas, uma galerinha da pesada que não tá nem aí  pra nada e só quer saber de trepar, ficar doidão e barbarizar por aí. Filme pesado, duro, com algumas situações angustiantes, revoltantes e até degradantes. Produzido no auge da situação da AIDS, o filme que era para ser uma espécie de alerta para a irresponsabilidade, especialmente entre os jovens, em suas relações, parece não ter conseguido sequer controlar o próprio set de filmagem que, pelo que se sabe foi um caos com sexo e drogas para todo lado. Consta que alguns atores, muitos deles amadores, ficaram traumatizados com a experiência e outros sequer conseguiram voltar a atuar. Daquele time, no entanto sobreviveram à  experiência e vingaram na carreira as boas Rosario Dawson e Chloë Sevigny.

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"Troca de Talentos", de John Witesell (2012)
 - Mesma pegada do consagrado "Space Jam" mas sem os desenhos e sem a mesma qualidade. Brian, um garoto impopular, fracote, zoado, fãzaço de basquete mas sem nenhum talento para a prática do jogo, vai assistir a um jogo de seu time, o Oklahoma City Thunders, onde jogava Kevin Durant na época, e, por uma rara sorte em sua azarada vida, naqueles entretenimentos do intervalo de jogo, ganha de Durant uma bola de basquete, mas por uma circunstância toda especial e mágica, acabam trocando de talentos no momento da entrega da bola para o garoto. Aí o que acontece é que o garoto, que era um pereba na escola, passa a arrasar, entra pro time principal, vence todos os jogos contra outras escolas e, de quebra, conquista a gatinha que tanto cobiçava. Na outra ponta da história, o craque da NBA, passa a jogar nada, decepciona na liga, é responsável por derrotas, vai para a reserva e até  mesmo pensa em encerrar a carreira. Seu empresário, desesperado, passa a procurar as razões para aquela queda tamanha e repentina de qualidade e, juntando os pontos, elementos, fatos, chega até  o garoto e a noite da entrega da bola. Aí, só resta descobrir como fazer para devolver os respectivos talentos a cada um.
Filme fraquinho, previsível, cheio de clichês mas, no fim das contas, se o espectador for pela mera diversão, sem muita exigência, até pode achar uma comediazinha bem divertida.

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"O Casamento de Muriel", de P.J. Hogan (1994)
- Muriel é uma gordinha simpática, doce, sonhadora, fã de ABBA, mas, infelizmente, não muito popular e sem nenhum amigo. Ela tem o sonho de mudar de vida, sair da pequena Porpoise Split, conhecer gente, afastar-se de sua sufocante família, em especial de seu desprezível pai, e, acima de tudo, se casar. Mas casar da forma mais bela e tradicional: com cerimônia, bolo, vestido branco e tudo.
Mas que diabo esse filme tem a ver com esportes e com Olimpíadas? Tem que, depois de sair de Porpoise Split, encontrar uma boa amiga, finalmente se sentir viva por um momento na vida, mudar o nome para Mariel, voltar à cidadezinha, ser descoberta no golpe que aplicou na própria mãe, fugir de casa, ir morar com a amiga, nossa protagonista, decidida em casar, decide procurar, em anúncios especializados de jornais, um homem à procura de uma jovem para matrimônio. Ela conhece David Van Arkle, um nadador sul-africano que busca de uma esposa local a fim de obter cidadania australiana e e poder participar dos jogos olímpicos. Assim, Muriel consegue realizar seu sonho, embora, salvo raros momentos, o casamento não tenha sido exatamente o paraíso que ela poderia imaginar. Boa comédia com elementos dramáticos, com destaque para Tony Colette, no papal que, de certa forma, impulsionou sua carreira.

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"O Homem Que Mudou o Jogo", de Bebnet Miller (2012)
- Se o futebol americano já ganhou uma certa força e popularidade no Brasil, o beisebol, que tem uma quantidade considerável de produções cinematográficas por parte da indústria norte-americana, ainda nem tanto. Desta forma, salvo algum argumento mais emotivo ou atraente, os filmes sobre o tema acabam não caindo totalmente nas graças do público brasileiro. E entre tantas histórias de ex-jogadores com algum tipo de crise, dramas de superação, times infantis de bairro, paizões treinadores, animações, um dos que merece destaque dentro desse universo, muitas vezes tão pobre de qualidade, é o bom "O Homem Que Mudou o Jogo", de Bennet Miller, história real de um cara que, com muita observação, perspicácia, coragem, em 2002, impulsionou um time nada mais que mediano, o Oklahoma Atlhetics, e o tornou um dos destaques da MLB, tendo seu modelo de gestão, imitado depois, até mesmo, por times maiores e tradicionais.
É um filme de beisebol mas outras questões como os métodos do manager Billy Beane, sua determinação, os objetivos, as dificuldades, se salientam tanto que a estranheza do esporte yankee, de nossa parte, acaba sendo superada pelo bom roteiro e pela ótima atuação de 
Brad Pitt no papel do protagonista. Filme de beisebol que vale a pena, apesar do beisebol.

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"Uma Razão Para Vencer", de Sean McNamara (2018)
- Filmes com voleibol são bem raros e até por isso, mesmo não sendo grande coisa, vale a pena mencionar na nossa lista de filmes com esporte, o longa norte-americano "Uma Razão Para Viver". Baseado em fatos reais, o longa trata sobre um time de vôlei cuja capitã e melhor jogadora, Caroline, uma jovem alegre, positiva e vibrante, morre num acidente trágico de motocicleta, e sua melhor amiga, completamente desestruturada a partir do acidente, passa a tentar recuperar o estímulo e o prazer pelas coisas. Para isso, contará com a liderança e persistência da treinadora do time que vai fazer com que a decisão de voltarem a jogar e disputarem o torneio, se torne uma espécie  de missão  e tributo à  jovem que não está mais entre elas.
"Uma Razão Para Vencer" é um típico drama de superação, de motivação, meio irregular no ritmo, meio cansativo em alguns momentos, mas que não é um lixo e conta com um bom elenco, com nomes como a boa Erin Moriarty e os oscarizados 
William Hurt, como pai da garota falecida, e Helen Hunt, no papel da determinada treinadora.

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A tensa cena da corrida em que 
Ali tem que dar tudo de si (mas nem tanto assim).
"Filhos do Paraíso", de Majid Majidi (1999)
-  Não é um filme de atletismo mas a cena da corrida é uma das mais emocionantes do filme e... se encaminha para ser decisiva para a resolução do problema. E qual é  o problema? A questão toda é que um garoto, Ali, de uma família humilde de Teerã, perde o único sapato da irmã menor ao levá-lo para consertar, no sapateiro. Constrangido e culpado, e sem outra opção, dadas as condições da família e o temor de contar para os pais, ele empresta os seus próprios tênis, rasgados e velhos, para a irmã ir a escola pela manhã, aguardando que ela volte para que ele possa ir à sua aula, à tarde. Mas a combinação tem seus problemas, seus imprevistos, seus atrasos, suas correrias e a situação passa a ficar insustentável. Quando tudo só parece ficar cada vez pior, uma corrida promovida pela escola parece ser a grande oportunidade de resolver o problema, pois o prêmio para o terceiro colocado é,  nada mais nada menos que um tênis. Mesmo com uma certa indisposição dos professores em relação por conta dos muitos atrasos ocasionados pelo revezamento do tênis, Ali dá um jeito de ser inscrito na prova e terá que, ao mesmo tempo ser competente e rápido o suficiente para estar no grupo da frente, entre os primeiros, mas cuidadoso o bastante para não chegar em primeiro nem em segundo.
Como eu já disse, a cena toda é algo absolutamente tensa e agoniante, ainda mais quando, um dos concorrentes trapaceia e derruba Ali, que tem que se recuperar na prova e dá uma arrancada decisiva para que fará com que consiga (ou não) o tão almejado prêmio.
Mais um dos ótimos filmes da safra iraniana dos anos 90, com toda aquela competência que os cineastas de lá têm, de nos apresentar, dentro de uma trama aparentemente simples, todo um aspecto humano sempre relevante e significativo, além de uma contextualização de realidade social e cultural com sensibilidade e beleza.

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O tiro certeiro de Merida que lhe garantiu
a solteirice (e a indignação da mãe).
"Valente", de Branda Chapman (2012)
- Merida passa longe de ser a princesa ideal. É  largadona, dasaforada, rebelde e, por isso tudo, em constante conflito com a mãe, a rainha autoritária e intransigente Elinor. Ela quer que a filha siga os padrões de comportamento de acordo com sua posição e mantenha as tradições do reino, tornando-se sua sucessora, casando-se com o pretendente de outro clã que vencer um torneio de arco e flecha que ela pretende promover. Merida não quer que seu destino seja decidido numa competição, num jogo, mas, já que é  assim, ela dá um jeito, reinterpreta as regras e se habilita a competir contra os próprios pretendentes. Autoconfiante e certeira, ela, praticante desde pequena do esporte, não dá a menor chance para os competidores, acabando com essa história de casamento e causando revolta nos líderes dos outros clãs mas, especialmente na mãe, que fica uma fera. Elas discutem, brigam e Merida foge para a floresta onde é guiada por chamas mágicas à cabana de uma bruxa, a quem pede para que a mãe deixe de ser como é. A bruxa atende mas... a ideia não era bem a que Merida tinha em mente. A mãe que estava uma fera com ela, se transforma, literalmente numa fera, mesmo. A rainha é metamorfoseada num enorme urso negro e, agora, Merida tem que lidar com a criatura transfigurada da mãe e impedir um conflito que se aproxima entre seu povo e o reino vizinho, por conta do descumprimento da promessa do casamento que representaria a paz entre eles.
Muita aventura, confusão, boas risadas e algumas boas quebras de paradigmas como só a Pixar sabe fazer quando negócio é animação. "Valente" é a 
Pixar apostando num filme de princesa pouco convencional, numa fábula diferente, numa heroína incomum e acertando no alvo. 

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"Match Point", de Woody Allen (2006)
 - 
Woody Allen teve uma sequência de trabalhos geniais, quase ininterruptamente, ali, do início dos anos '70 até a metade dos '80. Praticamente só obras-primas! Ali, a partir dos anos '90, a qualidade já passou a oscilar um pouco e, se às vezes éramos brindados com mais um filmaço que poderia se juntar, tranquilamente, à galeria dos seus melhores, outras tantas tínhamos algo bem enfadonho e dispensável. Mas nessa época de altos e baixos, um dos que, certamente, pode ir para a categoria dos grandes é "Match Point - Ponto Final", um suspense policial que, literalmente, deixa o espectador com o coração na mão até o último momento, até o último ponto.
Chris Wilton é um ambicioso ex-jogador de tênis que se torna instrutor em um requintado clube inglês e que ganha a confiança de Tom Hewitt, um ricaço filho de um grande empresário, passando a ser seu treinador somente para se aproximar de sua irmã e, quem sabe entrar para a família. O golpe está  dando certo até  que ele conhece a noiva de Tom, a belíssima Nola, o que é o começo de sua ruína. Chris casa com a filha do milionário, garante um lugar como executivo em sua empresa, dá o golpe do baú, mas o envolvimento paralelo com Nola , uma inesperada gravidez (será???) e a ameaça da revelação do affair, que colocaria todo seu esforço a perder, faz com que tome atitudes drásticas e resolva se livrar da amante.
Fora alguns contratempos, alguns imprevistos de um assassino de primeira viagem, superados com uma certa dose de sorte, seu plano corre bem, seus álibis são convincentes e não há nada que a polícia possa suspeitar. Um crime perfeito! Bom, quase... Pois uma certa intuição de que alguma coisa não fecha, não bate, faz com que um dos investigadores refaça os passos e chegue se aproxime do assassino.
Exatamente para eliminar qualquer suspeita, Chris pretende se livrar dos pertences que levara do apartamento vizinho, de modo a fazer tudo parecer mero um roubo que terminara em assassinato. Ele joga as coisas da senhoria de Nola no rio, mas ao jogar o último item que percebera em seu bolso, o anel da idosa, o objeto, 
na cena mais marcante do filme e uma das grandes da filmografia do diretor, caprichosamente, bate no parapeito, sobe e.... Allen desacelera a cena num slow-motion angustiante, com o anel no ar, e remete à própria cena inicial do filme, quando uma bola de tênis bate na rede e, num quadro parado, fica no ar, podendo decidir o jogo. Para um lado, cai na água, e a prova do crime é eliminada; para o outro, cai no chão e o policial, que se está em seu encalço, poderá ter a prova que falta de que Chris estivera no prédio no dia dos crimes.
Não vou dar spoiler aqui. Aliás já falei demais, mas posso garantir que a cena faz a gente torcer como se fosse uma partida de tênis de verdade. Filme que começa leve, parece uma comédia, parece um romance, vira um drama, passa a ser um um policial, até tornar-se um suspense eletrizante, "Match Point" é Woody Allen na melhor forma, voltando ao gênero do thriller policial, ao melhor estilo de "O Misterioso Assassinato em Manhattan", um dos  seus bons dos anos 90, só que aqui sem a comédia e com muito mais tensão.
"Match Point", em sua brilhante construção e desenvolvimento, além de todas suas qualidades e virtudes cinematográficas, tem o mérito de fazer  refletir sobre a impotência humana diante do todo, de que não temos domínio sobre tudo. Que, no fim das contas, muitas das vezes, na vida, por mais que façamos tudo "certo" ou tudo errado, as coisas se resumem, na verdade, em para qual lado a bola vai cair.

"Match Point" - cena inicial 





por Cly Reis

terça-feira, 5 de outubro de 2021

"O Segundo Rosto", de John Frankenheimer (1966)


Eu dilacerado

Sondar as profundezas da natureza humana é uma das mais recorrentes propostas do cinema de autor. Neste universo, há inúmeros títulos que abordam o tema sob enfoques dos mais diversos. Determinados cineastas, no entanto, tomam este tipo de temática quase como uma obsessão – o que lhes faz soar formalmente ainda mais freudianos. O cinema europeu, mais dado a estes instigantes “intrincamentos psicologizantes”, tem em Bergman uma referência indissociável, mas ainda há Antonioni, Wenders, Resnais, Buñuel, Fassbinder e alguns outros. No cinema americano a prática de levar a câmera ao divã é mais incomum, porém, por sorte, não inexistente. Inspirado no cinema marginal americano dos anos 40-50 (Penn, Aldrich, Ray), no expressionismo alemão e pelas vanguardas dos anos 60 e 70 – que tomavam os corações de jovens cineastas pelo mundo todo àquela época –, o norte-americano John Frankenheimer (1930-2002) muito perseguiu em seus filmes a temática psicanalítica. Seu mais assertivo feito é, entretanto, “O Segundo Rosto” (Seconds, EUA, 1966), uma brilhante metáfora sobre a perda de identidade e a dilaceração do indivíduo na sociedade moderna.

Um dos livros mais importantes do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “Modernidade e Holocausto”, traz, através da visão crítica e ampla peculiar do autor, a ideia de que os sintomas da Solução Final da Segunda Guerra Mundial ultrapassam o castigo aplicado ao povo judeu (o que já seria, contudo, suficientemente trágico). Para ele, as implicações do massacre praticado pelo regime nazista se estendem às esferas política, sociológica e psicológica com tal força que se torna, ainda hoje, problema não só de judeus, mas de não-judeus, de ocidente e oriente; da sociedade moderna como um todo. Trata-se, obviamente, de um fenômeno maligno, mas cujos fatores psicossociais formadores não são necessariamente perversos, visto que pautado no tripé da burocracia moderna, da eficiência racional-tecnológica e da mistificação – aspectos que, convenhamos, isoladamente, não inspiram essencialmente maldade. 

Nesta linha, “O Segundo Rosto” traz à tona, num enredo envolto em mistério, ficção-científica e surrealismo, um dos resultados psicossociais dos efeitos devastadores que o genocídio impregnou no inconsciente coletivo: a divisão do “eu”. Afinal, a Crise dos Mísseis havia ocorrido há apenas 4 anos, a cisão entre as “Alemanhas” estava no auge e a Guerra Fria era “compensada” pelos Estados Unidos num conflito injustificável no Vietnã. Tal tensão fica explícita na construção do personagem-protagonista (s?). Na história, um homem de meia idade, John Hamilton (maravilhosamente interpretado por John Randolph), vice-presidente de um banco, vive com a esposa numa confortável casa de subúrbio. Angustiado e insatisfeito com sua vida burocrática e repetitiva, contrata uma empresa especializada em "renascimentos". A organização forja sua morte e, após avançados procedimentos cirúrgicos, faz com que ele renasça na figura de Anthiocus Wilson (Rock Hudson), um pintor de sucesso cuja história toda pré-programada ele, agora renovado por fora, terá de se incubar “por dentro”. Claro, não sem enormes desafios psicológicos.

Cena de "Seconds":  modernidade e Holocausto

Frankenheimer concebeu um filme revolucionário, inspirador de grandes realizadores como David Cronenberg e Roman Polanski, de quem se vê em vários trabalhos elementos pescados de “O Segundo Rosto”. A relação carne/alma, recorrente discussão na obra de Cronenberg – “A Mosca” (1986) e “Crash” (1996), por exemplo –, é explorada numa brilhante metáfora no filme: a “companhia de renascimentos” usa como fachada um frigorífico. A utilização das perturbações mentais como elemento narrativo é também típica do cinema tanto de Cronenberg quanto de Polanski, que de “O Segundo Rosto” se valeu bastantemente para compor os roteiros e a atmosfera sombria de suspenses psicológicos como “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O Inquilino” (1976).

De fato, “O Segundo Rosto” inova e surpreende. Começa com a hipnótica abertura do mestre Saul Bass, designer alemão que revolucionou o modo de apresentar os filmes ao adicionar, com técnica e criatividade, o conceito do filme já nos subtítulos, e cujos créditos iniciais de obras-primas como “Um Corpo que Cai”, “O Homem do Braço de Ouro” e “Cabo do Medo”, assinadas por ele, são um espetáculo à parte. Em “O Segundo Rosto”, Bass se vale de imagens em hipercloses distorcidas de um rosto casadas com a tensa música de outro mestre, Jerry Goldsmith, dando a tônica do que virá no decorrer da trama. 

A marcante abertura assinada por Saul Bass


As interpretações são outro destaque, principalmente a de Rock Hudson, cuja mente perturbada consegue-se penetrar pelo espectador a ponto de causar uma quase náusea. Perversão, culpa, alucinação, medo, inocência; está tudo ali, embaraçado. As figuras que, por paranoia ou não, aterrorizam o mundo de Anthiocus parecem saídas de um tenebroso sonho, lembrando as caracterizações feitas por Orson Welles em “O Processo” (1962). 

Afora o roteiro, eficiente e preciso, equilibrando densidade e didática, a direção e a fotografia merecem aplausos. O olhar de Frankenheimer é cirúrgico, usando os elementos fílmicos com precisão e clareza de objetivos. A câmera, por exemplo, é um artifício para, independente da forma como é empregada, transmitir desequilíbrio, seja em movimentos bruscos – como na fascinante cena inicial na estação (presa à altura da cabeça do ator, esta técnica de hiperrealismo ainda é muito usada hoje, na publicidade, por exemplo, para fortalecer a proximidade física do espectador com o “objeto” filmado) –, seja em enquadramentos fixos, ora em angulações distorcidas e inclinadas, ora aproveitando-se da profundidade de campo proporcionada pela lente objetiva.

O "eu" dividido: simbologia
do espelho como terror
A propósito disso, a fotografia expressionista em P&B assinada pelo chinês James Wong Howe, outro craque de Hollywood que modificou a forma de fotografar em audiovisual, é um dos pontos mais marcantes do filme, tendo concorrido, inclusive, ao Oscar daquele ano. Não só o uso da perspectiva funciona como ressignificação da complexidade psicológica do protagonista como, igualmente, os closes nas texturas rugosas das peles, nas gotículas de suor que escorrem do rosto, no brilho artificial da íris dos olhos. Foco e desfoco andam juntos o tempo todo, e a composição dos cenários, às vezes propositadamente poluída de elementos visuais, reforçam o deslocamento psicológico de Hamilton-Anthiocus no mundo em que vive – embora o termo “viver” não seja propriamente o mais adequado nesta situação.

Falando em terminologias, este é outro fator expressivo no que se refere à metalinguagem que o filme suscita. O título original pode ser traduzido tanto como “segundo” ou “outro”, pontuando o conceito de dualidade marcante da obra, quanto por “segundos”, numa referência à passagem do tempo, seja este imagético ou físico, real ou psicológico, cronológico ou anacrônico. Outro termo que merece atenção é o “renome” que o protagonista recebe: Anthiocus. Ora: se alguém que busca reinventar-se na modernização forçada de suas feições e biografia recebe um nome etimologicamente referido a “antigo”, é porque alguma coisa está errada! Na sua nova vida, o agora artista, amante de uma linda jovem, conviva da alta classe burguesa e bonito feito um Deus submerso num novo inferno, na verdade, não se desfez daquele velho Hamilton que há dentro dele e cuja casa à art nouveau sempre pareceu um museu – e dos gélidos. Sua profissão de artista plástico, como o "Pintor da vida moderna" de Baudelaire – cuja existência servia para transpor à tela o momento presente –, soa como uma irônica metalinguagem da abstração da realidade pelo cinema enquanto arte.

Duas cenas de "Seconds": influência expressionista
nas imagens distorcida e aterradoras

Este Fausto revisitado, como bem associou o crítico cinematográfico francês Jean Tulard, tem tudo a ver com as crias que o fantasma do Holocausto produziu e produz. Se pensarmos que a pós-modernidade em que vivemos hoje é fruto da modernidade e de que, embora o mundo globalizado e a era digital signifiquem um novo paradigma repleto de novas significações, a própria recentidade história do pós-Guerra intui que problemáticas advindas com este período não tenham sido ainda esgotadas. Tudo bem em se renovem os questionamentos; mas, conforme assinala Bauman, sofre-se ainda, como o personagem de “O Segundo Rosto”, do mal-estar característico da crise da modernidade, impelido pelo também recente advento da psicanálise, pela queda do materialismo histórico e pela quebra do Estado clássico. O resultado é a perda de direção e a criação de um grande “nada”, o qual se impõe à frente de tudo. Alguma semelhança com a falta de critérios e distinções morais da família, da sociedade, do Estado de Direito que se vê hoje?

Cena de "Brilho Eterno...":
poesia do inconsciente
Fugir, então: eis a solução! Este “eu” que, do século passado para cá, de tão massacrado, não está mais se achando. “Eu” que se reduziu a suas meras limitações na filosofia existencialista; “eu” de um K. de “O Processo” de Kafka, que não sabe para onde vai e nem porque; “eu” que perde-se no labirinto das veleidades e da estética, como o hedonista fotógrafo Thomas de “Blow Up” (Antonioni, 1966); ou aquele “eu” lisérgico, marginal e impulsivamente desistente do sistema de Jack Kerouac, Para onde correr, se só há o nada em qualquer direção em que se vá? O jeito é reinventar-se – mesmo que artificialmente. Mais recente, o poético “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (Michael Gondry, 2004) navega por mares bem parecidos com o de “O Segundo Rosto”. Neste lindo romance psicológico da era digital, Joel (Jim Carrey) vive um marido magoado por sua esposa Clementine tê-lo, como nos computadores, deletado de sua mente. Resolve, então, retribuir na mesma moeda. No decorrer da operação na “clínica”, Joel percebe que, na verdade, não quer excluí-la de sua vida, e sim manter em sua memória os momentos em que estiveram felizes. A partir disso, ele enfrenta uma incrível luta mental para que essas memórias continuem vivas dentro de si.

O conflito em que esses personagens se consumem e os leva a uma divisão de si mesmos está, em ambos os filmes, diretamente ligada à relação com suas mulheres. Elas lhes são o espelho de suas identidades. Analisando o filme Frankenheimer, a esposa de Hamilton-Anthiocus exerce um papel fundamental na trama, tanto no início da história, no descompasso entre eles, quanto no desfecho, quando se reafirma este desafino. Embora o objeto espelho seja recorrente no cinema para expressar duplicidade, divisão, diferenciação, afastamento, ruptura etc, a repetição deste no decorrer de “O Segundo Rosto” é ludicamente deliciosa ao mostrar a “distorção” da imagem tanto de Hamilton quanto de Anthiocus. Há, porém, na cena crucial do diálogo entre o ele e sua (ex) esposa na casa em que viviam, onde é ela quem se vê refletida e não se “reconhece”, tal como ocorre com o (ex) marido a todo instante, antes e depois da cirurgia.

"O Inquilino" de Piolanski:
dissociação do "eu"
A formação do “eu” no olhar do “outro”, de acordo com o psicanalista francês Jacques Lacan, inicia na infância na relação do ser humano com os sistemas simbólicos fora dele mesmo. O que ele chama de "fase do espelho" é quando a criança, não possuindo qualquer autoimagem como uma pessoa "inteira", vê-se ou "imagina" a si própria refletida, figurativamente, no "espelho" que é o olhar do outro. Só aí ela pode se ver como uma "pessoa inteira". Mas o que ocorre quando este “espelho” está “quebrado”? Outro famoso psicanalista, o suíço C. J. Jung, disse que “não se cura a dissociação dividindo-a, mas dilacerando-a”. No já citado “O Inquilino”, o personagem principal, num processo semelhante ao de Anthiocus, a certa altura, questiona-se: caso mutilassem partes de seu corpo, poder-se-ia, mesmo assim, ele e suas partes continuarem se chamando pelo mesmo nome? Despedaçado, sua angústia está em perder a “unidade” de sua alma, de ser um mero “inquilino” dentro de si mesmo.

Embora  este sujeito complexo e problemático esteja sempre partido, ele passa a vivenciar sua própria identidade como se ela estivesse reunida e "resolvida", como resultado da fantasia de si mesmo que ele formou naquele espelho em cacos. Aspectos tão profundos da psique humana e do inconsciente coletivo encontram, por sorte, leito na obra de autores do cinema americano como Frankenheimer (e aí se podem citar também Allen, Scorsese, Eastwood e Altman), coisa que o cinema de outras partes do mundo, infelizmente, muitas vezes não tem tanto poder em atingir um público maior valendo-se de recursos semelhantes. Apesar de pessimista, a visão de Frankenheimer supõe um alarme, um apontamento do erro de nossa pós-modernidade de que fugir de si esvazia e dilacera.

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trailer de "O Segundo Rosto"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Os 10 melhores filmes de Robert Altman


O cinéfilo e meu querido colega José Fernando Cardoso veio novamente me provocar com sua lista de 5 filmes preferidos do gigantesco diretor americano Robert Altman, um titã da cinematografia mundial e, concordando com o Zé, o único a rivalizar com o Scorsese em termos de qualidade e quantidade nos últimos 50 anos. Vou incrementar a lista dele e colocar 10 filmes do Altman (de quem recentemente lembrou-se da data de morte, 20 de novembro, em 2006), que fizeram a minha cabeça na adolescência naquelas sessões do cinema Bristol, em Porto Alegre, onde iniciei minha educação cinematográfica, “in the nineteen-seventies”, como diria o Neil Young

Por favor, os filmes não estão em ordem de preferência, senão teria de botar os 10 filmes no primeiro lugar, de tanto que eu gosto deles.


1 - NASHVILLE (1976)

No ano do bicentenário americano, Altman destrói o sentimento patriótico do universo da country music, jogando na tela uns 20 personagens, todos colidindo uns com os outros e fazendo um painel do que era a América naquele período pós-Nixon e Watergate. Impossível destacar alguém do elenco, mas Keith Carradine fez muito sucesso com sua música "I'm Easy".

Keith Carradine cantando "I'm Easy"


2 - CERIMÔNIA DE CASAMENTO (“A Wedding”, 1978)

O que fez com a música country em "Nashville", Altman faz aqui com uma das instituições mais cultuadas no mundo ocidental: o casamento. A demolição acontece a cada fotograma, especialmente com a irmã da noiva, interpretada pela Mia Farrow, marcando território com o noivo numa rapidinha atrás da cortina. O entra-e-sai de figuras patéticas só ajuda a demolir a aura de felicidade de um casamento.


3 - ONDE OS HOMENS SÃO HOMENS (“McCabe and Mrs. Miller”, 1971) 

Um faroeste existencial no meio da neve com fotografia belíssima de Vilmos Zsigmond e música de Leonard Cohen. Julie Christie esplendorosa e Warren Beatty brigando com Altman o tempo inteiro mais aquela turma do Altman que sempre estava de coadjuvante: René Aberjounois, Michael Murphy, Bert Remsey e Shelley Duvall.


4 - VOAR É COM OS PÁSSAROS (“Brewster McCloud”, 1970)

A história de um guri recluso que sonha em voar e constrói um par de asas artificiais com a ajuda de sua madrinha. Bud Cort, saindo do sucesso de "Ensina-me a Viver" encarnando o "menino maluquinho” e a deliciosa Sally Kellerman fazendo o papel da dinda. Um detalhe interessante: enquanto as aventuras de Brewster McCloud são mostradas, há uma aula de ornitologia ministrada pelo professor René Auberjonois, que vai se transformando em pássaro à medida em que o filme avança. No final, o veterano ator William Windom apresenta o elenco num picadeiro. Maluquice total, porém muita divertida!



5 - M.A.S.H. (1970) 

No auge da Guerra do Vietnam, Robert Altman usa a sátira sexual para demolir o exército e suas idiossincrasias durante o conflito na Coreia. A dupla Elliot Gould e Donald Sutherland fez tanto sucesso que acabou fazendo uma série de outros filmes. A cena mais emblemática é a da gostosa porém maluca Lábios Quentes (Sally Kellerman) tomando banho e a catrefa toda abrindo a cortina e dando nota para seus "atributos", por assim dizer. O primeiro grande momento da carreira do diretor. Virou série de sucesso.




6 - BUFALLO BILL E OS ÍNDIOS (“Buffalo Bill and the Indians” ou “Sitting Bull's History Lesson” 1976)

Depois de “Nashville”, Altman continuou na sua busca de escrachar os símbolos americanos. Com o herói Búfalo Bill, não foi diferente. Seus cabelos longos são uma peruca, suas atitudes são inventadas e as batalhas com índios e bandidos são ensaiadas para que ele ganhe. Paul Newman mandando brasa no papel-título. Na época, não foi bem recebido, mas merece uma revisão.


7 - O PERIGOSO ADEUS (“The Long Goodbye”, 1973)

Baseado em Raymond Chandler, mas Altman desloca a ação dos anos 40 para a década de 70, no porre pós-Watergate, Woodstock e do movimento hippie. O detetive Phillip Marlowe tem de localizar seu amigo Terry Lennox acusado de matar a esposa. A trama de Chandler está intacta, mas o diretor imprime um clima de fim de festa à investigação, que é difícil não torcer pelo private investigator. Durante a busca, os personagens mais incríveis se sucedem. Elliot Gould arrasando como o Marlowe existencial.


A turma do jaazz reunida interpretando os mestres
8 – KANSAS CITY (1996)

Pode dizer que estou puxando a brasa pro meu assado, porque é isso mesmo. O filme nem é tão bom assim, mas com toda aquela turma do jazz dos anos 80 e 90 (David Murray, Joshua Redman, James Carter, Craig Handy e Geri Allen) tocando e interpretando os mestres da década de 30, a gente nem presta muita atenção à história, um filme de gangsters em Kansas City. Jennifer Jason Leigh e Miranda Richardson são as femmes fatales e Michael Murphy e Harry Belafonte são os principais atores masculinos. Médio, porém bom. Dá pra entender?


9 – O JOGADOR (“The Player”, 1992)

Hollywood estava querendo fazer um mea culpa por ter vilipendiado o independente Altman a vida inteira e adotou “O Jogador” como veículo desta “valorização”. O filme ganhou 3 indicações ao Oscar mas não ganhou nenhuma (aí ia ser demais, não é Academia?). Tim Robbins faz o executivo de Hollywood que mata um aspirante a roteirista que acredita estar mandando ameaças de morte. “O Jogador” é um who’s who de quem era alguma coisa na cidade dos sonhos naquele momento. São 65 aparições de gente como o diretor Sidney Pollack, os atores Dean Stockwell e Whoopi Goldberg e o cantor country Lyle Lovett. O plano-sequência de 7 minutos e 47 segundos já te ganha no começo do filme. E tem até a Joyce Moreno na trilha!

Plano-sequência inicial de "O Jogador"


10 – SHORT CUTS - CENAS DA VIDA ("Short Cuts", 1993)

Os contos do minimalista Raymond Carver são a base para as histórias contadas neste filme, que tem dois artistas da música em papéis principais: a cantora de jazz Annie Ross e o cantor e compositor Tom Waits. As angústias da classe média americana misturadas com a possibilidade da sorte e/ou do azar mudar sua vida. Mais um filme de Robert Altman onde a força do grupo de atores é mais importante do que as performances individuais.


por Paulo Moreira

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

"Robocop, O Policial do Futuro", de Paul Verhoeven (1987) vs. "Robocop", de José Padilha (2014)

 



Em "Robocop, O Policial do Futuro", de Paul Verhoeven, de 1987, numa Detroit do futuro, dominada por sádicos criminosos, a polícia foi privatizada e não consegue deter a alta criminalidade. A multinacional OCP pretende substituir os policiais humanos por ciborgues, e aproveita o cadáver do policial Murphy, executado pro uma quadrilha, para criar RoboCop - um misto de máquina e homem a serviço da justiça. Mas as memórias de Murphy, que deveriam ter sido apagadas, ressurgem, e com elas o desejo de vingar-se do seus assassinos.

No "Robocop", do brasileiro José Padilha, de 2014, a ação se passa em 2028 e o conglomerado multinacional OmniCorp está no centro da tecnologia robótica. No exterior, seus drones têm sido usados para fins militares há anos, mas na América, seu uso foi proibido para a aplicação da lei. Agora a OmniCorp quer trazer sua controversa tecnologia para casa, e buscam uma oportunidade de ouro para fazer isso. Quando Alex Murphy (Joel Kinnaman) – um marido e pai amoroso, e um bom policial que faz seu melhor para conter a onda de crime e corrupção em Detroit – é gravemente ferido no cumprimento do dever, a OmniCorp vê sua chance para criar um oficial de polícia parte homem, parte robô. A OmniCorp prevê a implantação de um Robocop em cada cidade para assim gerar ainda mais bilhões para seus acionistas, mas eles não contavam com um fator: ainda há um homem dentro da máquina.

Apresentados os times, vamos ao jogo:

Cada um dos filmes, dentro das suas épocas e propostas, conseguem entregar algo bem positivo. Ambos com suas críticas sociais, com dinâmicas bem feitas em cenas de ação, um com efeitos práticos, e outro indo mais para os computadores e CGI, mas ambos com um bom resultados. Vamos fazer a bola rolar e ver quem ganha esse duelo de Robozão, e não estou falando do CR7.

Antes da bola rolar, vamos destacar os treinadores. Cada com seu estilo porém ambos gostam de atacar, e fazem esquemas bem ousados colocando os times para frente. Não espere um jogo sem gols.

O time de '87, mesmo cheio de volantes marcadores, mordedores, cara feia, não deixa de jogar para o ataque, mas a polêmica já começa no aperto de mão quando o time de 2014 estica a mão para o cumprimento e o de 1987 logo fala, “Tira essa mão! Nada de mão aqui!

Depois da treta começa o jogo e rola a bola. O time de 2014 está com futebol bonito, uniforme lindo, elenco cheio de estrelas, tem mais posse de bola, porém não vai pra frente, só toque lateral, ninguém chama responsabilidade do jogo. Já o time de '87, mesmo sem estrelas, só com a experiente e rodada Nancy Allen, já começa, com futebol “pegado”, às vezes até mesmo violento, mas o juiz deixa rolar e  então a pauleira segue. Na base da intimidação, na força física, o time de '87 consegue impor seu futebol e abre o placar, após vários tiros à meta adversaria, fuzilando o gol. Com uma fotografia suja e uma construção de cenário beirando o pós-apocalíptico, a parte visual o trabalho da direção de arte e efeitos fazem a versão original sair na frente, sem falar no bom uso da violência. Robocop (1987) 1 x 0 Robocop (2014).

 Jogo que segue truncado e mesmo o time de 2014 querendo colocar mais velocidade, não adianta muito, não passando do meio campo e fazendo um jogo morno sem jogadas criativas. No final do primeiro tempo, após os craques de cada time acordarem e começarem a participar mais ativamente do jogo, a partida esquenta. Um deles, mais parado, sem muita mobilidade mas com raciocínio rápido, consegue disparar para meta adversaria, mesmo com curto espaço. O outro é mais rápido, corre pelas pontas, dá dinâmica ao jogo e embora seu estilo de jogo não agrade a muitos, cumpre muito bem a função. Na velocidade e sem sujar seu belíssimo uniforme, Robocop de '14, empata, passeando pela zaga adversaria, deixando os zagueiros caídos no chão. Mas a alegria dura pouco e logo em seguida, o time de '87 vai ao ataque, Robocop vence a batalha contra os fortíssimos zagueiros ED-209, e coloca seu time outra vez na frente. Robocop (1987) 2 x 1 Robocop (2014)


"Robocop, O Policial do Futuro" (1987) - trailer



"Robocop" (2014) - trailer


Os dois times colocam mais velocidade no final da partida, o jogo ganha em emoção e o time de 87 tem bons ataques mas marca mesmo na bola parada, em uma bela falta em que a bola passa por cima da falha barreira policial, e acerta em cheio com suas ótimas críticas ao sistema penitenciário americano. 3x1 para Robocop 87. Minutos depois, em um escanteio, o Robocop de Verhoeven sobe no último andar da OmniCorp para dar uma cabeçada certeira, fazendo seu adversário desabar. 4 x1.

Partida praticamente resolvida e nos acréscimos, mostrando que ter um bom elenco que pode fazer diferença, o segundo volante Samuel L. Jackson, diminui, mostrando como as falsas mentiras, as meias verdades, o sensacionalismo, a manipulação de informações podem ser um grande inimigo. Mas aí já parece ser tarde. O time de 2014 pressiona nos últimos minutos, mas o de '87 está fechado. Vivo ou morto esse time vai sair com a vitória. Fim de jogo.

O novo Robocop até tem um uniforme mais bonito, mas
o antigo mesmo mais pesadão, mais lento, prova dentro de campo que
 não é nenhuma lata velha.


O time de Paul Verhoeven funciona como uma máquina 
e destroça a tropa de elite de José Padilha.



por Vagner Rodrigues


quinta-feira, 1 de março de 2018

The Cure, eu te amo mas não te quero mais

Apesar de tudo, você ainda tem meu coração.
Eu já amava o The Cure antes mesmo de conhecer. Sim! Pode parecer exagero mas é a mais pura verdade. Por ocasião  da vinda da banda em 1987, uma rádio de Porto Alegre fez um especial de uma hora com alguns dos melhores momentos da carreira do grupo até então. Eu, um garoto de doze anos recém começando a escutar coisas interessantes, estimulado pela então recente explosão do rock nacional, fui ouvir o programa interessado em saber quem eram aqueles tão badalados ingleses que em alguns dias desembarcariam na minha cidade. E eis que o programa começa e eu percebo que não  somente já conhecia, como sempre gostara daquelas músicas mesmo sem saber de quem eram. "Inbetween Days" era a abertura do programa Clip Clip, "Close To Me" era aquela do clipe do armário, "Primary" era vinheta de uma rádio, "The Walk" tocava num comercial, "Boys Don't Cry" tocava à insistência por todo o canto, e outras que eu não conhecia, mais soturnas e sombrias, caíram  imediatamente nas minhas graças. Eram eles! Era o que eu queria ouvir e tudo estava reunido em uma só  banda. Estava estabelecida uma relação de amor. 
Não fui no show porque os tempos eram outros e se hoje em dia a meninada passa dias acampada numa fila em frente a um estádio para ver seus ídolos, não só com o consentimento dos pais como muitas vezes com acompanhados deles, naquela época, eu um fedelho, mesmo que me fosse permitido ir, meus pais não pagariam meu ingresso ainda mais pra ver uns caras mórbidos e esquisitos como aqueles. Mas passei então a partir dali a obter tudo o que pudesse daquela banda.
A coletânea "Standing On A Beach"
que me orientou quanto ao que
procurar e conhecer da banda.
Comprei a coletânea  "Standing on a Beach" e conhecendo a partir dele a ordem cronológica da obra da banda fui atrás de tudo. O exótico "The Top", o acessível e consagrado "The Head On The Door" e o ao vivo "Concert", que tiveram distribuição no Brasil, a muito custo, economizando mesada, consegui comprar. Os importados, no entanto, fora da minha realidade, eu dava um jeito de conseguir numa loja que gravava os álbuns por um valor bem mais em conta do que fosse comprá-los. Aí  que conheci o "Three Imaginary Boys", que hoje vejo como irregular mas que na época lembro de deixar rolando de madrugada até que eu pegasse no sono; os álbuns  gêmeos "Seventeen Seconds"e "Faith", ambos direcionadores da identidade que a banda assumiria e viria a lhe ser distintiva; o tecno-pop mal-resolvido porém de bons resultados comerciais de "Japanese Whyspers" e mais um monte de bootlegs, que na época era ao que se atribuía o termo "pirata". Com muito esforço consegui comprar o clássico "Pornography", este sim, disco definidor de característica e linguagem, e o subestimado e pouco valorizado "Blue Sunshine" do projeto de Robert Smith com Steven Severin do Siouxsie and The Banshees, disco de importância crucial na consolidação do pop que o Cure apresentaria a partir dali.

Naquele ano de 87 a banda em seu melhor momento e com sua melhor formação, que se tornaria a mais clássica e idolatrada, lançaria "Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me", um duplo muito bem acabado e repleto de hits mas que, como conjunto, poderia ter sido melhor como um álbum simples mais enxuto. 
Dois anos se passaram e mesmo com todo o sucesso dos últimos trabalhos, boatos sobre problemas internos e um possível fim da banda não paravam de rolar. E foi em meio a esse clima e a essa boataria que surgiu "Disintegration", um álbum denso, pesado mas que mesclava com maestria essa melancolia com um pop de alta qualidade resultando num improvável sucesso que fez deste o álbum  mais vendido e um dos mais cultuados da banda. Meio que na carona veio a coletânea de remixes "Mixed Up" que, se não se justificava plenamente, trazia ao menos algumas boas releituras e a então inédita e interessante "Never Enough". Mais fofocas, mais diz-que-diz, e novamente do meio do turbilhão outro grande disco: "Wish", mais solto e leve surgia como um raio luminoso na carreira do Cure, emplacando novamente um monte de sucessos e trazendo a reboque dois ótimos registros ao vivo, os discos "Show" e "Paris".
Robert Smith , no show do Rio em 2013
Mas os boatos não eram somente rumores e os problemas existiam de verdade: Laurence Tolhurst, um dos fundadores e amigo de longa data de Robert Smith, com problemas de alcoolismo era mandado embora, outros integrantes com outros interesses e projetos davam no pé, o selo pelo qual o Cure gravara desde o início da carreira, a Fiction, era vendido e Dave Allen, produtor de todos os grandes trabalhos do grupo não estava mais nos planos. Ninguém fica indiferente a tudo isso e quando o Cure veio ao Brasil em 1996 para o Hollywood Rock, e quando finalmente consegui realizar meu desejo de vê-los ao vivo, o que se viu foi uma banda confusa, desentrosada e com um repertório novo bastante irregular. É que aquela vinda precedia o lançamento do álbum "Wild Mood Swings" e foi aí que nossa relação começou a estremecer. Desde então a banda pareceu ter perdido o rumo, a identidade, criatividade e limitar-se a tentar imitar a si mesma. O bom mas, para mim, superestimado "Bloodflowers" ainda foi um último suspiro de qualidade e, embora seja colocado ao lado de "Pornography" e "Disintegration" como parte de uma espécie de trilogia das sombras, passa muito longe dos dois e até mesmo de outros momentos mais criativos da banda.
Depois disso, então, tudo só veio a piorar. O Cure virou uma auto-paródia e seus discos seguintes "The Cure" e "4:13 Dream" passaram a ser não somente dispensáveis como irrelevantes. Assim que eu não ouço mais The Cure. Praticamente ignoro tudo depois de "Wish". Tenho o "Bloodflowers" em casa mais por respeito do que por paixão mas de resto, tudo que ouço depois desta época me parece insosso, indiferente ou mais do mesmo. Até o visual, a cabeleira desgrenhada de Robert Smith, hoje parece muito mais uma caricatura do que colabora no seu papel de marca registrada.
É claro, ouço todos os antigos discos com o mesmo fervor e admiração e ainda sou apaixonado por aquela banda que eu conhecia. É como aquele cara que teve que acabar um namoro porque sabia que era necessário, que a namorada não era mais a mesma, que mudara, mas que ao chegar em casa dorme abraçado com o porta-retrato com a foto dela. 
Teaser do show comemorativo de 40 anos no Hyde Park
Nesse 2018 quando o The Cure completa 40 anos de existência, embora respeitada fico com a sensação que a banda nunca recebeu o devido valor e reconhecimento por sua obra e trajetória. O Cure não inventou a roda, não descobriu o fogo, mas criou uma identidade musical tal que é referência desde que a banda se firmou, sabendo expandir seu leque e suas possibilidades de modo a não ficar restrito a determinado tipo de público, sem para isso abrir mão de suas características. Sua música pode não ser originalíssima mas seu som e tão único que eu costumo dizer que tem coisas que só o Cure faz pr'a gente. Mas não tem feito. E faz tempo.
A banda comemorará suas quatro décadas de atividade com um show monumental no Hyde Park em Londres no mês de julho, que tem tudo para ser épico e no qual certamente tocará todos seus grandes sucessos e as preferidas dos fãs, que é o que atualmente o que vale a pena no Cure: seu passado. Tive a oportunidade de compensar o fraco show do Hollywood Rock com uma apresentação de mais de três horas, aqui no Rio, em 2013, que foi mais ou menos nessa linha: apresentaram o que tinham de melhor. Apesar da fraca e pouco carismática formação atual, lavaram a alma e com certeza levarei aquele dia como um dos grandes momentos da minha vida. Mas a essas alturas tenho a impressão de que isso é tudo que teremos deles: grandes recapitulações e rememoramentos. E é aí que eu fico pensando que se é para ficar gravando discos como os que o Cure vem apresentando e insistindo em musiquetas sem a menor inspiração, seria melhor Robert Smith cumprir aquilo que tantas vezes ameaçou e dar um ponto final nisso tudo. Não pensem que falo isso sem alguma dor. Que recomendo isso com satisfação. Não! The Cure é minha banda do coração. Mas se é pra fazer música como quem trabalha num cartório, prefiro apenas ficar com os nossos bons momentos: descobrir aquela banda num programa de rádio, dormir ao som do "Three Imaginary Boys", comprar o "Pornography", presenciar aquele showzaço de 2013... Sim, eu te amo, The Cure, mas tenho que ser realista e admitir para mim mesmo que, se for assim como está, eu não te quero mais.



Cly Reis
(texto publicado originalmente no blog Zine Musical)