Mais um privilégio que tenho como morador de Porto Alegre e admirador
da black music do Brasil. Depois de
assistir ao memorável primeiro show do pernambucano Di Melo, em julho, agora, a
festa Voodoo, responsável por trazer essa turma malemolente à minha cidade,
presenteou os porto-alegrenses como eu com a vinda de outra lenda da soul brasileira: Gerson King Combo. Mais um dos artistas que caiu no ostracismo com
o declínio do estilo nos anos 80, King Combo foi redescoberto no estrangeiro
(Inglaterra e Japão) e, atualmente com 70 anos, voltou a ser cult de alguns anos para cá ao universo do
entretenimento.
O dançarino SoulBalaMachine
ditando o ritmo da galera.
Dono de uma voz possante, que salta daqueles senhores pulmões, o
carioca Gerson Côrtes (irmão de outro precursor da soul no País, Getúlio Côrtes) entra no palco muito bem iluminado da
Quadra dos Bambas da Orgia vestindo sua tradicional capa, esta azul-claro misto
de boxeur e super-herói, mais calças do
mesmo tecido lânguido e da mesma cor, casaco, colete, camisa de golas largas, colares
no pescoço, sapatos bicolor e chapéu. Uma figura exótica e impressionante. A
imponência do porte e do vozeirão, no entanto, se amenizam com o tratamento
educado e a simpatia, que dão o clima alegre da festa. A animação foi bastante
ampliada ainda pela presença do
dançarino Rafael SoulBalaMachine, que, vindo especialmente do Rio, ajudou a
ditar o ritmo com seus passos mágicos e incentivando o público a fazer o mesmo.
Nós curtindo o balanço de Gerson King Combo.
Sem voltar a Porto Alegre desde 2001, o Rei da Soul Brasileira (que
leva o reinado já no nome), não poderia começar a apresentação com outra
música: “Estou voltando”. Os versos dizem tudo: “Está voltando com mais força (força)/ Pois nunca teve ausente/ Presente
nessa guerra/ Esperou o tempo certo pra voltar”. “Uma chance”, do seu
grande álbum de 1977, fez o clima ficar ainda mais quente, mesmo com a
torrencial chuva que caía lá fora. “Deixe Sair o Suor” e, mais ainda, “Eu vou
Pisar no Soul”, traduzem o sentimento do seleto público que, corajoso, não se
intimidou com o temporal e compareceu: “Já
separei a minha beca, engraxei os meus sapatos/ Espichei os meus cabelos,
detonei os caras chatos/ Por que.../ Eu vou pisar no soul/ Eu vou dançar um Black”.
O mestre da soul com a cozinha afiada da Ultramen.
O irresistível groove de “Funk
Brother Soul”, outro de seus clássicos – este, do LP “Gerson King Combo Volume
II”, de 1978 –, antecipa “Soul da paz” e a pacífica “Força e poder”. Das
surpresas do show, King Combo, com toda autoridade que tem, encarna o
conterrâneo e contemporâneo Tim Maia e manda uma brilhante versão de “Rational
Culture”, a faixa em inglês da viagem esotérica de Tim presente no disco “Racional
Vol.1”. A banda, os rapazes da Ultramen (Júlio Porto, guitarra; Pedro Porto,
baixo; Zé Darcy; bateria; e Leonardo Boff, teclados) mais dois sopros (sax e
trompete excelentes, diga-se de passagem), funcionaram perfeitamente bem assim
como ocorrera no show de Di Melo, no mesmo formato. Apreciadores e fãs, eles sabem
de cor as canções dos mestres – segundo King Combo, ensaiaram com ele apenas
uma vez na tarde daquele mesmo dia. O “síndico” foi novamente revisitado com a cover de um de seus maiores hits, “Sossego”, num dos melhores
momentos do show. King Combo convidou da plateia duas pessoas para cantarem com
ele, uma delas a cantora gaúcha Nani Medeiros, que o incentivou a tocar a
balada “Foi um sonho só”, que contém na original um coro feminino e que havia
sido tirada do set-list por não ter quem
o acompanhasse. Achou-a.
Chamando Nani Medeiros ao palco
para dividir o microfone.
Herdeiro de James Brown no Brasil, King Combo, que integrou as bandas
de Erlon Chaves e de Wilson Simonal e grupos seminais da soul brasileira, como a Black Rio e a Fórmula 7, é dos poucos que tem procuração para cantar o Godfather of Soul. E foi o que fez em dois momentos.
Primeiro, numa quente “I Feel Good”, dos maiores clássicos da música negra
mundial. Claro que todo mundo cantou e dançou junto. A outra foi dentro do
maior sucesso do próprio King Combo: “Mandamentos black” (“Dançar, como dança um black/ Amar,como ama um black/ Andar, como anda
um black/ Usar, sempre o cumprimento black/ Falar, como fala um black...”),
um dos hinos da cena dos anos 70. Nesta, inseriram “Sex Machine”, outro hit de
Brown, incendiando de vez a quadra dos Bambas.
Na despedida do público.
Se “Estou voltando” iniciou o show, o recado final foi dado com “Good
Bye”, outra bem conhecida do King of Brazilian Soul, que, particularmente,
considero sua melhor música. Funk da melhor qualidade: ritmo contagiante,
sopros inteligentes, letra romântica e cantarolável e aquilo que só quem faz funk no Brasil sabe: um toque de samba.
Ah! Aí é insuperável, e Gerson King Combo é um dos principais representantes! Quando
eu pensei que, por não ser a banda original de Kink Combo, a Ultramen não
incluiria a pitada brasileira, o baterista Zé Darcy, na segunda parte, engendra
um ritmo de samba. Um final perfeito.
Se continuarem assim as promoções da Voodoo, trazendo lendas da soul brasileira, vou querer ver também
Hyldon, Carlos Dafé, Toni Tornado, Cassiano, Bebeto, Tony Bizarro, Arthur
Verocai... Estão me acostumando mal.
Certa vez, conversando com uma ex-colega de trabalho sobre música, sobre rock, ela me contava que o filho, uma grata raridade entre o bando de desculturalizados musicais de sua geração, dentro do possível, não perdia a oportunidade de ver ao vivo grandes nomes do rock, quando estes vinham ao Brasil, pois, já tendo essa galera das antigas uma idade avançada, somada a todos os excessos que cometeram em seus tempos áureos, possivelmente seria a última oportunidade de ver aquela determinada lenda, ali, na sua frente. Embora não tenha colocado como meta pessoal, pelo fato desses nomes terem contribuído substancialmente para minha formação musical, dos tantos shows que fui, acabei já tendo presenciado a apresentações de alguns desses artistas fundamentais para a história do rock. Já vi ao vivo Rolling Stones, Black Sabbath, vi Pink Floyd, ou pelo menos parte dele, no show de Roger Waters, e, num negocinho de ocasião, vi o Deep Purple. Quando foi anunciado, no finalzinho de 2006, meu primeiro ano morando no Rio de Janeiro, que eles viriam e tocariam na cidade, inicialmente, os ingressos foram informados em valores um tanto salgados. No entanto, logo em seguida, talvez percebendo a baixa procura, numa promoção do extinto Jornal do Brasil, com um cupom e, se não me engano, um alimento não perecível, o preço ficava extremamente em conta. Aí não teve dúvidas: pronunciei a minha entrada e me garanti pro show de uma das maiores lendas do rock de todos os tempos. O problema é que a parada ia rolar lá no Riocentro e, pra quem não é do Rio e não tem muita noção, o tal do lugar é longe pra caramba. Pra piorar, o Riocentro é um conjunto de pavilhões para eventos em geral, feiras, simpósios, etc., e a estrutura física dos prédios não é nada adequada para shows de rock. Muito concreto, vigas metálicas, telhas de zinco, pilares distribuídos ao longo do espaço... Resultado: acústica ruim, reverberação, pontos cegos, visibilidade prejudicada pelos pilares... enfim: uma bela bosta! Mas não tem sabotagem infra-estrutural que derrube um show do Deep Purple. Boa parte da banda original no palco, incluído o frontman Ian Gillan, um repertório clássico w de respeito, energia total e uma galera de fãs empolgada por estar vendo à sua frente aqueles monstros do rock. Sinceramente não lembro com detalhes do show em si, de cada momento, do set-list e tal. Minha recordação é mais como um todo e essa memória é feliz e muito positiva. É claro que teve, "Black Night", "Space Truckin'", "Highway Star", e "Smoke on the Water" que, essa sim lembro, foi uníssonamente acompanhada em coro pela galera. Já vi Black Sabbath, já vi Deep Purple... faltou o Led Zeppelin pra completar a tríade dos criadores do metal. Mas vai que Plant, Page e Jones resolvam se juntar pra uma última turnê... Essa seria uma daquelas pra não perder de jeito nenhum. Daquelas oportunidades únicas. A do Deep Purple foi uma dessas. Ainda bem que não perdi.
Confira abaixo alguns momentos do show do Rio, em 2006, obtidos no canal do fã
"Nós somos parte do que eu chamaria de Renascença moderna. Acredito que, como na Idade Média, somos um grupo que combina circo, magia, música e máscaras."
Gene Simmons, em 1980
O Kiss
nasceu no mesmo ano que eu, mais precisamente em 1973. Mas, como muitos garotos
dos anos 1980, só fui conhecer a banda quando eles vieram ao Brasil, em 1983.
Portanto, assim como eles, naquela época, eu era um menino de 10 anos. É sabido
que formamos nossa personalidade musical entre essa faixa etária e a
adolescência. O que aconteceu é que fiquei tremendamente impactado com aqueles
seres estranhos, gigantes e pintados.
A Rede Globo
produziu e veiculou em cadeia nacional um compacto do show, que vendo com meus
olhos de hoje, revela uma tremenda falta de conhecimento sobre o grupo. A
reportagem sensacionalista afirmava que eles faziam sacrifício de animais no
palco e que os shows eram uma espécie de ritual satânico. E o boca a boca
desinformado se espalhava, como um exemplo de fake news. Amigos meus diziam que
ouviram falar que, com suas botas enormes, os integrantes esmagavam pintinhos
vivos no palco, e que a crueldade incluía explodir porcos da índia utilizando
bombinhas. Cuspiam sangue (seria humano?) e vomitavam. Ao analisar a entrevista
concedida pelo grupo, integrante do referido especial, podemos ver que a banda
desmentia tais afirmações, o que parecia surtir um efeito contrário. Fanáticos
se postavam na entrada do show advertindo a audiência de que ali se realizaria
um culto maligno. As apresentações no Brasil foram com certeza algumas das
maiores do Kiss, mesmo que em sua formação original só constassem Gene Simmons
e Paul Stanley.
Vivíamos
em uma época de pouca informação e muita especulação (ou será que ainda
vivemos?). Nessa fase em que eu descobria o Kiss, era tal a confusão que certa
vez, ouvindo o álbum "Alive II" (1977), e olhando abismado as fotos da
contra-capa, um amigo meu disse que, de tanto gritar, o vocalista estava
ficando rouco, com uma voz demoníaca. O que eu não sabia direito era que todos
os integrantes cantavam, e o meu desinformado brother estava mal comparando e
confundindo os vocais de Stanley e Simmons. Só alguns anos depois, consegui
compreender melhor a banda e o seu projeto artístico, graças a uma série de
posters biográficos vendidos em bancas de jornais (não havia bibliografia
disponível nem documentários para assistir e aprender). Lembro de ter comprado
um vinil do "Alive!" (1975) e, todos os dias, ao voltar da escola, depois da
janta, passar horas ouvindo-o de cabo a rabo, fitando a capa e a contra-capa (a
versão brasileira era pobre, como sempre, e não possuía encarte algum). Ficava olhando
aquelas imagens e imaginando como teria sido aquele show, como eles se moviam
no palco. Da única visão da banda em movimento assistida pela Globo restaram
apenas vestígios de memória, uma vez que naquele tempo não havia como gravar e
rever o show, fato hoje solucionado com um punhado de cliques rápidos na web.
O fato é
que, mesmo com informações fragmentadas e rasas, a sonoridade e a estética
visual tiveram (e ainda tem) grande impacto na minha formação musical, tanto
como ouvinte, como músico e guitarrista (nos anos 1990 eu iria formar a banda
de heavy metal Titânio, que embora soasse mais como Iron Maiden, tinha nos meus
genes musicais um pouco de Kiss). Quando recebi esse convite para escrever
sobre algum álbum do Kiss, talvez o mais obvio fosse discorrer sobre "Alive!" ou
sobre "Destroyer" (1976), discos considerados pela crítica e pelo público como
emblemáticos. Hoje, com os anos de vivência no meio musical e acadêmico, ainda
sou apaixonado pelo Kiss, embora tenha constantemente me decepcionado em
perceber que, para Gene Simmons, trata-se muito mais de um jogo de marketing do
que de uma banda de rock. Desde "Revenge" (1992), com exceção de "Psycho Circus" (1998), o Kiss tem produzido álbuns fracos, especialmente os mais recentes.
Como disse, embora o primeiro álbum que ouvi inteiro tenha sido "Alive II", quero
dirigir o meu foco para o primeiro álbum, "Kiss", lançado em 1974, quando eu era um
bebê de um ano de idade.
Acredito
que hoje Ace Frehley e Peter Criss tenham se tornado péssimas sombras do
passado, muito distantes daquela energia e glória do primeiro álbum, mesmo que
de início ele tenha vendido pouco. Aliás, o Kiss não emplacou da noite para o
dia. Venceu graças a confiança e persistência de seus membros em acreditarem
naquela proposta ousada e inventiva que era encarada frequentemente com ares de
deboche e descrença. Em 1974, o Kiss não contratava ghost musicians, ou seja,
músicos de estúdio que gravam os álbuns e não são creditados, fazendo com que
acreditemos que aquelas performances vibrantes emanem de seus membros
originais, o que, em diversos momentos do Kiss, foi um truque bastante utilizado
(e triste, para um fã descobrir), hoje afirmado pela própria banda. Para um fã
devoto e apaixonado, tal artimanha soa como uma espécie de traição. Em 1974
temos um Kiss sincero, honesto e real.
As
letras do Kiss sempre foram bobinhas, e se você critica a música brasileira
atual, deveria prestar atenção no conjunto da obra deles. Mas, mesmo que você
se choque com a afirmação que vou fazer, assim como o tão criticado, amado e
odiado Pablo Vittar, o Kiss nasceu para chocar e divertir, não para filosofar.
Mesmo que exista uma miríade de produtos licenciados, dos mais nobres aos mais
esdrúxulos, os fãs sempre entraram na brincadeira do consumo da marca Kiss, e
dificilmente você verá um fã apaixonado criticar tal fato. Assim são os
apaixonados cegos pelo amor, assim são os fãs do Kiss.
Eu trago
a minha fala para esse texto me colocando como fã (sim, apesar de tudo o que
apontei é uma das bandas que mais amo), e como crítico e pesquisador. Em 1998,
ou seja, 15 anos depois de conhecer a banda, quando estava concluindo minha
graduação em Publicidade e Propaganda, escrevi uma monografia analisando o Kiss
como marca e mito. No ano passado, ao concluir meu doutorado em comunicação,
fechei um ciclo e retomei o Kiss como objeto de estudo, analisando, justamente,
a sua construção mítica, trabalho que pode ser lido no livro que publiquei
chamado “Mitologia Musical: Estrelas, ídolos e celebridades vivos em
eternidades possíveis” (Editora Appris, 2017).
Essa
analise mista de fã apaixonado com pesquisador distanciado me fez concluir que
inegavelmente o Kiss é uma grande banda. E o álbum "Kiss" é um grande álbum. Os
álbuns iniciais das bandas guardam o frescor e a inocência de suas juventudes
artísticas. Nem todos são bons. Às vezes, um artista demora até amadurecer e produzir
uma obra emblemática. No caso do primeiro álbum do Kiss, isso não ocorre. Das
10 faixas, 7 se tornaram hits do Kiss. Não vou dissecar faixa por faixa, pois
existem muitas analises espalhadas com esse recorte. Convido você a ouvir o
álbum na íntegra, saboreando cada momento de acordo com o seu ritmo de ouvinte.
O Kiss é um mito vivo, e embora seja uma banda muito mais de shows do que de
álbuns, conseguiu captar e propagar com grande eficiência, aquela energia
promissora que se consolidaria ao longo das décadas seguintes, prensado naquele
vinil de 1974, hoje disponível para audição nos bits espalhados pelo
ciberespaço. Abra os ouvidos, feche os olhos e prepare-se para receber um beijo
sedutor do Kiss.
Ticiano Paludo é produtor musical, sound designer, remixer e pesquisador. Possui doutorado em Comunicação Social pela PUCRS/FAMECOS. Em mais de três décadas de atuação, recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais por seu trabalho como compositor e produtor. Foi colunista da revista Backstage. Ao longo de sua carreira, desenvolveu projetos de áudio publicitário para marcas como Converse, Electrolux e Iguatemi. Compõe para publicidade, teatro, dança, vídeo e cinema. Como docente, leciona disciplinas tais como Produção em Áudio Publicitário, Promoção e Ativação de Marcas, Arte e Estética, Produção Musical, Empreendedorismo e Semiótica, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e nas Faculdades Integradas de Taquara.
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da
história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não
terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem
espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no
Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e
beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o
tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão
neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra”
do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos
aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás
desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do
que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca
bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo
ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais
e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/
Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De
uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/
Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não
é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado
pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade
igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se
equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se
enfrentar.
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso
do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra
celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/
Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de
fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o
gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma
inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul
music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande
público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova
dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso,
Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa
nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As
harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor
estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente
ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck
ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano
sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer
decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros,
buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou
do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa
nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gilcomenta e canta"Babá Alapalá"
*******************
FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas
Nessas
brincadeiras diletantes de criar listas sobre os mais diferentes
temas musicais nas redes sociais (10 melhores show assistido no
Teatro da Ospa, 10 melhores discos de jazz da ECM, 10 melhores
músicas contra a ditadura militar, 10
músicas chatas do Chico Buarque, 10 melhores discos de soul
music, e por aí
vai)fui
instigado a montar uma que, num primeiro momento, titubeei. “Será
que eu saberia compor uma com esse tema?”, pensei. Tratava-se
do “Melhor Disco Instrumental de Música Brasileira”. Mesmo com
meu conhecimento musical, que não é pouco, teria eu embasamento
suficiente para criar uma lista interessante e, além disso,
suficientemente informada a esse respeito? Pois, para minha própria
surpresa, a lista saiu, e bem simpática, diga-se de passagem. Além
de não se prender a um estilo musical específico (o que se chamaria
burramente de “música instrumental brasileira” pura), típico de
minha forma de enxergar a música e a arte, acredito que minha
listagem não ficou pra trás em comparação a de outros que se
empolgaram e publicaram as suas também.
Claro
que tem muita coisa que não consta na minha lista que vi na de
outros, pois certamente ainda tem muito o que se conhecer dentro do
mar de maravilhas sonoras que existe. Raul de Souza, Barrosinho, Os
Cobras, Victor Assis Brasil, Djalma Correa e Edison Machado, por
exemplo, nem cito, pois não tive o prazer ainda de conhecer seus
trabalhos a fundo ou ponto de saber selecionar-lhes um disco
representativo. Mas acho que, afora o gostoso dessa prática quase
infantil de elencar preferências, tais lacunas são justamente o
papel dessas listas: abrir novos paradigmas para que novas revelações
se deem e se passe a conhecer aquele artista ou banda que, quando se
ouve pela primeira vez, se pensa com surpresa e excitação: “Cara,
como que eu nunca tinha ouvido isso?!” Se algum dos títulos
que enumero causar essa sensação nos leitores, já cumpri meu
papel.
Aí
vão, então os meus 15 discos preferidos da música brasileira
instrumental, mais ou menos em ordem:
1 –
“Maria Fumaça”, da Banda Black Rio (1977)
2 –
“Coisas“, do Moacir Santos (1965)
3 –
“A Bed Donato”, do João Donato (1970)
4 –
“Wave”, do Tom Jobim (1967)
5 –
“Em Som Maior”, da Sambrasa Trio (1965)
6 –
“Revivendo”, do Pixinguinha e os Oito Batutas (1919-1923 –
coletânea de 1895)
7 –
“O Som”, da Meirelles e os Copa 5 (1964)
8 –
“Donato/Deodato”, do João Donato e Eumir Deodato (1973)
Di Melo com todo seu gogó e suingue em Porto Alegre
foto: Daniel Rodrigues
"Dos deuses o final de semana em
Porto Alegre.
Mui-alegremente.
‘Unificando público e banda’, foi
resplandescente...
deu liga, deu encaixe, foi uma festa in-dis-crê-vente.
Uma
banda formada de mágicos músicos locais com a mesma proposta.
Nunca nos vimos e
tocamos como se estivéssemos tocando durante longos anos.
Fica provado que a
linguagem musical e a linguagem do amor são universais.
Que gratificante, meu
Deus!"
Di Melo
Banda afiada acompanhando
o craque pernambucano
foto: Daniel Rodrigues
Se como o próprio diz, “para o
imorrível, nada é impodível”, um acontecimento raro e inédito envolvendo
ele aconteceu na minha Porto Alegre. O “ele” a quem me refiro é o mestre do pop-soul brasileiro Di Melo, que aterrissou em terras gaúchas nunca d’antes por ele exploradas
com seus contagiantes suingue, simpatia e talento. Num memorável e descontraído
show na quadra da escola de samba Bambas da Orgia lotada dentro da festa
conjunta “Voodoo” e “Cadê Tereza?”, o cantor e compositor pernambucano mandou
ver em clássicos do seu mítico LP de 1975 (recentemente listado por mim entre
os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui no ClyBlog) e outras canções próprias que me impressionaram tanto quanto às que já conhecia.
Di Melo no palco e nós assistindo
ali, na primeira fila, ao centro do palco. (acharam?)
foto: Ariel Fagundes
Di Melo estava acompanhado da cozinha da banda gaúcha Ultraman mais
dois sopros, que, admiradores de sua obra, sabiam de cor todas as faixas a
ponto de nem precisarem ensaiar bastante para o conjunto soar super bem. No centro
do palco, o protagonista, um senhor de 66 anos com certa protuberância
abdominal e de feições tipicamente nordestinas que mantém o mesmo estilão, o
mesmo groove e o mesmo poder vocal de quando lançou seu primeiro álbum, 40 anos
atrás – até a boina de couro com a qual estampa a capa de “Di Melo”, quando ainda
magro e jovem, é igual. Exatamente na frente de seu microfone, na primeira
fileira, Leocádia e eu vimos com clareza todo o show, começando pela arrasadora
“Kilariô”, seu grande sucesso, que abriu a apresentação pondo todos para cantar
e dançar sob aquele fantástico jazz-funk
de ares caribenhos. Na sequência, outros dois funks clássicos e cheios de molho da mesma época: “Aceito Tudo” e
“Se o Mundo Acabasse em Mel”, esta última, bastante gostada pelo público.
Di Melo mandando ver
no funk
foto: Leocádia Costa
Entre os temas para mim inéditos (Di Melo tem outros nove CD’s
independentes), “Engano ou Castigo” foi a primeira apresentada. Um belo pop-rock romântico. Igualmente
brilhantes, “Milagre”, balada soul
belíssima que podia, como disse o próprio Di Melo, ser gravada por Tim Maia se
este estivesse vivo; e “Fator Temporal”, com a tradicional poesia afiada de Di
Melo, um funk sensual puxado no qual
faz um jogo com terminações de palavras ("Tudo
que me satisfaz é ter seu corpo desnudo/ Nudo/ Teus contornos iniguais me
enlouquecem, vou fundo/ Fundo..").
O bailarino que encantou a
plateia com seus passos
foto: Leocádia Costa
Ele volta no tempo novamente para trazer as suingadas “Minha Estrela” e
“Pernalonga”, incendiando a quadra. Com disco novo a ser lançado este ano, Di
Melo adiantou ao público porto-alegrense algumas faixas, entre estas
“Diuturno”, com versos que sintetizam várias ocasiões do dia a dia,
corriqueiras ou não, num encadeamento maravilhosamente literário. Ainda por
cima, este funk-rock traz brilhantes riff e arranjo, que a faz ir ganhando
volume até encerrar grandiosamente. Das melhores do show e que já dá uma noção
da maravilha que vem por aí no novo CD. Outra que conterá no próximo trabalho
também executada é o samba-rock “Barulho de Fafá”, que me lembrou bastante os
também pernambucanos Mundo Livre S/A. Esse momento foi especial no show pois,
além de ser mais uma ótima música, contou ainda com a repentina participação de
um lindo bailarino e cantor estilo black
rio, elegantemente trajado de fatiota de linho bege e um chapéu coco
vermelho, que subiu ao palco não apenas para encantar a plateia com seus passos
deslizantes e tomados de malemolência, mas, ainda, mandar um rap de improviso totalmente
dentro da harmonia. Di Melo e o público o aplaudiram.
O convidado articulando
um rap com Di Melo
foto: Leocádia Costa
Essa ponta foi mostra da interação entre Di Melo e o público. Ele
demonstrava felicidade por estar ali, cumprimentando e se reportando com a
galera, inclusive com este que vos fala mais de uma vez. Fez até poesia de
improviso, dizendo: “Porto Alegre, te amo
alegremente”. Acontece que ele sabe muito bem que essa fase lhe é especial,
uma vez que sua redescoberta, ocorrida anos atrás com mais de 30 anos de
defasagem, tem lhe proporcionado um novo estrelato junto ao público jovem. Mais
uma obra resultante do momento atual é a cortante “Navalha”, um soul-rock de letra igualmente bem
sacada. Nesta, a performance, tanto
dele quanto da Ultraman, foram ótimas. Já “Kiprocô de Patrono”, outro samba-rock,
este escrito em homenagem a Chico Buarque, está presente em um dos seus discos independentes (“Sons, sensações, sambas e tesões”) e no qual parafraseia inteligentemente o riff do clássico samba “Brasileirinho”.
Set list e a pulseira da festa
foto: Daniel Rodrigues
Seu outro grande sucesso, “A Vida em Seus Métodos Diz Calma”, ficou
guardada para o fim, contagiando todo mundo antes de “Kilariô” ser tocada
novamente como bis e finalizar o belo show. O primeiro de Di Melo em Porto
Alegre, quatro décadas depois de lançado seu disco de estreia e pelo qual ficou
mundialmente conhecido quando DJ’s ingleses e o selo norte-americano de jazz Blue Note recapturaram sua obra nos anos 90. O Brasil só fez ir atrás. Ainda
bem. Antes tarde do que nunca, pois, pelo visto, este retorno de Di Melo, gravando
disco novo em São Paulo – o que se presume estar sendo feito com a devida
estrutura –, está no nível que ele merece pelo artista referencial que é.
A noite continuou lá dentro da quadra dos Bambas, mas não havia mais
porque permanecermos. O show era o que queríamos ver. Antes de sair,
entretanto, pedi ao roadie
o papel com o set list. Ele pegou
para mim justo o que ficava no pé de Di Melo, o qual, junto com a
pulseirinha da festa (que traz a sábia frase da canção: “A Vida em seus métodos diz calma”), guardei como um amuleto. Com
tudo isso, fui para casa pensando: será que, por obra de alguma magia, quem ficou
com um registo físico do show, assistiu-o tão de perto e chegou até a apertar a
mão de um imorrível se torna imorrível também?
Foi um acontecimento encantado que Porto Alegre presenciou na úmida
noite de domingo. Afinal, a lendária banda A Cor do Som, com a formação original, resolveu reunir-se 32 anos
depois da última vez e escolheu a capital gaúcha para estrear. A opção, aliás,
se justificou plenamente. Num Bourbon Country lotado de fãs empolgados e
emocionados, o grupo reviveu clássicos e sucessos, preenchendo uma ausência de
quase todo esse tempo, haja vista que a última vez que pisaram num palco da
cidade foi em 1981, no antigo Teatro Leopoldina. Aos que estavam lá àquela
época, valeu a pena esperar, assim como para fãs como eu, que os somente bem
depois os conheceu e passou a apreciar seu trabalho sui generis.
O que se viu foi um verdadeiro espetáculo de musicalidade, virtuosismo
e empatia de todos os integrantes com o público, o qual cantou todas as letras
e soltou-se como poucas vezes vi nessas geladas terras gaúchas. Afinal, além de
terem escrito a trilha sonora da adolescência de muitos dos presentes, os cinco
músicos são capazes de conquistar públicos de todas as gerações. Intercalando
suítes instrumentais com hits cantados, Armandinho (guitarra baiana e bandolim), Dadi (baixo), Mu Carvalho (teclados), Gustavo Schroeter (bateria) e Ary Dias
(percussão), trouxeram um repertório
literalmente colorido, daqueles que se sai preenchido de alegria ao final. A
mistura híbrida de funk, samba, pop, baião, reggae,
choro, hard-rock, frevo, progressivo,
maracatu, disco (e o que mais o
ouvido conseguir detectar) faz com que criem um inclassificável tipo de jazz
que somente uma banda desses trópicos como A Cor do Som – formada, entre
outros, por remanescentes dos Novos Baianos e Banda do Zé Pretinho, Dadi e Mu,
e descendentes diretos dos trios elétricos baianos, caso de Armandinho e Ary – pode conseguir.
E eles já saíram pondo tudo abaixo com “Saudação a Paz”, faixa que abre
seu terceiro disco, de 1981. Em seguida, cantada com a voz suave do “leãozinho”
Dadi, um dos grandes sucessos: “Abrir a Porta”, daquele que é talvez sua
obra-prima, “Frutificar”, de 1979. Deste mesmo trabalho, mais uma maravilha
instrumental na sequência: “Pororocas”, jazz-baião em que todos se esmeram,
principalmente o virtuose Armandinho no bandolim, do qual ele extrai timbres de
guitarra elétrica. Das cantadas, que contagiaram a plateia, ainda veio o lindo
xote “Semente do Amor”, na voz de Mu (“Sim,
é como a flor/ De água e ar luz e calor/ O amor precisa para viver/ De emoção,
e de alegria/ E tem que regar todo dia...”), e “Beleza Pura”, do baiano e
padrinho Caetano Veloso (autor do nome da banda e que lhes presenteou a música,
um sucesso em 1979), que o conterrâneo Armandinho entoou.
De fato, a proximidade e o carinho que a música d’A Cor do Som tem para
como os gaúchos é muito grande. Outra do mano Caetano encomendada a eles é uma
que tem a cara de Porto Alegre. Aliás: é inspirada num dos bairros mais
queridos da cidade, “Menino Deus”. A letra, de uma beleza incrível, claro,
emocionou os que lá estavam a ouvindo na voz de Dadi: “Menino Deus, um corpo azul-dourado/ Um porto alegre é bem mais que um
seguro/ Na rota das nossas viagens no escuro/ Menino Deus, quando tua luz se
acenda/ A minha voz comporá tua lenda.”
Armandinho é ovacionado enquanto
sola no meio da plateia.
Vinham também sempre as instrumentais, que deixavam a plateia mais
contemplativa e menos dançante, pois boquiaberta com tamanha destreza dos
músicos e beleza musical. Caso de “Ticaricuriquetô”, de Armandinho, um misto de
heavy-metal, frevo e rock progressivo
em que o guitarrista arrasa com a pequena guitarra baiana. Dadi, Mu, Ary e
Gustavo não ficam para trás nos solos, tanto quanto nas difíceis bases que as
melodias exigem, remetendo muitas vezes à complexidade harmônica do jazz fusion de uma Weather Report ou Pat
Matheny Group. Nessa linha, a talvez mais impressionante de toda a apresentação
foi a clássica “Frutificar”, faixa-título do álbum de 1979 e de autoria de Mu.
É ele quem a inicia com uma abertura quase erudita de alguns minutos conjugando
piano e teclado elétrico. O baixo e a bateria entram de leve. É quando Ary,
mais atrás no palco, ao lado da bateria, posiciona os bongôs à frente, pareando
com o teclado e com Armandinho, que está ao centro. Ao comando do teclado, que
intensifica o compasso, o percussionista deslancha uma intensa percussão típica
africana, e aí quem entra é Armandinho. Cruzes! Num clima de trilha sonora de
thriller de ação dos anos 70, os cinco se esbaldam nos improvisos e o tema vai
num crescendo de emotividade até ganhar formas épicas. Um tema gigante.
Seguiram-se outras das melodiosas e cantaroláveis, como o reggae “Zero”
e mais um hit: “Zanzibar”, em que Armandinho puxou a galera pra cantar e
dançar. Houve o momento em que, durante o solo, o guitarrista, lá pelo meio do
número, desce do palco e percorre os corredores da plateia. Solando! E solando
MUITO bem! Fazia com a maior naturalidade o que muito guitarrista, mesmo
totalmente parado e concentrado, não teria a mínima capacidade. Um monstro do
instrumento. Para fechar, “Swingue Menina” pós todo o teatro pra se embalar ao
som do reggae. O bis teve mais uma peça de pura habilidade e a gostosa “Dentro
de Minha Cabeça”, em que Ary largou a percussão para assumir o microfone e
cantar: “Dentro da minha cabeça/ Tenho um
pensamento só/ Sei que não tenho juízo/ Dentro da minha cabeça/ Eu só quero
amor/ Amor, amor...”. Detalhe: Ary dedicou-a a uma “amiga” das antigas que
estava na plateia, a qual congelou tamanha a surpresa.
Juntamente com a saudosa Black Rio, A Cor do Som é certamente a grande
banda de jazz brasileiro moderna. Porém, diferente dos autores de “Maria
Fumaça”, cujas atividades se encerraram após perderem seu cabeça, Obderdan, já
falecido, todos os seus integrantes estão ativos e em plena forma. Então, por
que não aproveitar isso em vida, né? Foi essa celebração à vida, à música, às
cores dos sons, que A Cor do Som compartilhou com todos nós esta noite. Lá fora
podia já estar escuro e chuvoso, mas lá dentro estava colorido e iluminado.