"Alô, Sandra Sá! Aqui é o Tim Maia. Eu fiz essa música pra você. Já tenho a ideia do arranjo, que eu vou falar com o Lincoln (Olivetti). E tem mais: eu vou gravar ela contigo no teu LP!"
Tim Maia, em ligação telefônica para Sandra Sá, sobre a música “Vale Tudo”
O chamado Black Rio foi o grande movimento cultural próprio do Rio de Janeiro depois da bossa nova. Se não teve a mesma influência ou projeção internacional que as notas dissonantes ou que a Garota de Ipanema, a cena, movida à música soul importada dos states mas com tempero bem tupiniquim, cumpria uma função social corajosa ao exaltar algo inédito naquele Brasil ditatorial dos anos 60 e 70: a cultura negra. Influenciado pelo Black is Beautiful dos Estados Unidos, o movimento Black Rio conseguia levar a pistas brasileiras aquilo que o perseguido samba, o mais brasileiro dos ritmos, nunca havia alcançado, que era a valorização uma raça preponderante em população, mas marginalizada, violentada e desumanizada pelo histórico e estrutural racismo.
As danças, as roupas, os pisantes, os cabelos, a pele, os gestos. Tudo compunha o cenário de deslumbramento e descoberta dos bailes black, que tomavam a Zona Norte carioca. Equipes de som como Furacão 2000, Soul Grand Prix, Modelo, Sua Mente numa Boa, Rick e Revolução na Mente garantiam a festa, frequentada por milhares de pretos e pretas. E claro: a música exercia um papel fundamental nesta inédita onda de autovalorização e resistência. E se a Banda Black Rio tinha a autoridade sonora e onomática de grande grupo da cena, Gerson King Combo o de astro central e Carlos Café o de principal cantor, havia a necessidade de responder também ao público feminino. Sandra Sá, então, naturalmente veio tomar este espaço.
Nascida em Pilares, na Zona Norte carioca, a neta de africanos Sandra Cristina Frederico de Sá levou sua voz rouca e cheia de groove das festas black direto para as rádios, um salto inédito na indústria musical brasileira até então para uma artista negra de música pop. Depois de um celebrado álbum de estreia, em 1980, com direito a música inédita de Gilberto Gil ("É"), Sandra é adotada de vez pela turma da soul brasileira. O sucesso comercial de "Lábios Coloridos", do segundo disco, de 1982, já contava com Lincoln Olivetti nos teclados e arranjos, Robson Jorge nas guitarras, o Azimuth Ivan Conti "Mamão" na bateria e a cozinha da própria Banda Black Rio, a se ver pelas participações ativas de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes e Cláudio Stevenson. Em "Vale Tudo", terceiro e último trabalho pela gravadora RGE, Sandra repetia as parcerias e já estava pronta para sua grande obra, a qual completa 40 anos de lançamento em 2023.
O precioso repertório de "Vale Tudo" une músicas de autores consagrados e da nova geração, que passava a se firmar. A começar pela faixa-título: o sucesso instantâneo de Tim Maia dado de presente por ele a Sandra. Não é difícil entender o porquê: em duo com o próprio Síndico, Sandra solta a voz numa animada disco engendrada pelo próprio autor em parceria com Lincoln e executada pela banda Vitória Régia. Ouvir os dois maiores cantores da soul brasileira juntos foi tão estrondoso, que a faixa ganhou videoclipe do Fantástico e virou hit em todo o Brasil, figurando na 28ª de posição entre as 100 músicas mais tocadas do ano de 1983.
videoclipe de"Vale Tudo", comSandra Sá e Tim Maia
Mas se tinha Tim, tinha Cassiano também. É dele a autoria do funk suingado "Candura", em preciosa parceria com Denny King, das melhores do disco. E se havia Tim e Cassiano, também aparecia Guilherme Arantes, na romântica "Só as Estrelas", que encerra o álbum. Com o samba-funk brasilianista "Terra Azul", a dupla veterana Júnior Mendes e Gastão Lamounier eram outros que não resistiram ao talento da cantora, sendo fisgados por seu carisma e seu timbre, que não deixava nada a desejar a grandes cantoras internacionais da época. Se os norte-americanos tinham Donna Summer, Roberta Flack e Chaka Khan, o Brasil tinha Sandra Sá.
De fato, ninguém queria ficar de fora do bonde de Sandra. Tanto é que músicos de primeira linha como Serginho Trombone e Reinaldo Árias também tocam e assinam arranjos. Igualmente presente, seja na caprichada produção quanto em arranjos, é o tarimbado violonista Durval Ferreira, cujo currículo inclui trabalhos com Leny Andrade, Sérgio Mendes e o lendário saxofonista de jazz norte-americano Cannonball Adderley. Ferreira também assina duas composições: o tema de abertura, a excelente "Trem da Central", ao lado de Sandra e Macau (este, o autor de “Lábios Coloridos”), e o funk dançante “Pela Cidade”. Ambas as músicas trazem um olhar diferente da Rio de Janeiro idílica da Zona Sul, evidenciando uma cidade preta e periférica que começava a pedir passagem.
Fotos das gravações no encarte original de "Vale Tudo"
Outras duas delícias emitidas pelo aveludado vocal de Sandra: “Gamação”, soul de muito suingue e romantismo, e a brilhante "Guarde Minha Voz", do craque Ton Saga, tranquilamente uma das mais belas canções pop-soul já gravadas no Brasil. Uma joia equiparável a outros “clássicos B” do AOR brasileiro, como “Débora”, de Altay Veloso, “Joia Rara”, da Banda Brylho, ou “Lábios de Mel”, de Tim. Como diz a letra: para se guardar no coração.
Embora a maioria das músicas seja de compositores masculinos, o disco de Sandra traz uma outra pequena revolução, que é o papel de mulheres como autoras. Além dela própria, que assina a balada “Musa” e coassina “Trem...”, a carioca abre espaço para compositoras no seu repertório já tão disputado. Rose Marinho divide a autoria da já citada “Pela Cidade” com Durval e outro veterano, Paulo César Pinheiro, enquanto Irineia Maria revela outro destaque do disco: a apaixonada “Onda Negra”. Balada soul deliciosa, com a arranjo de Oberdan, contém em sua letra vários elementos representativos da figura de Sandra para o movimento Black Rio, que é um filtro de olhar feminino para aquela “onda negra de amor” que se presenciava: “Nessa forma de beleza/ Vou seguindo a te levitar/ E o som me envolve me fascina/ Não consigo mais parar/ Mas é sempre uma dose certa/ De alegria, paz de luz e cor/ E a certeza de poder criar/ Uma onda negra de amor”. Mais visto na MPB de então por conta da geração de compositoras como Joice Moreno, Leila Pinheiro e Sueli Costa, no meio pop Sandra prenunciava aquilo que se tornaria comum anos depois para Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Vange Leonel e outras, bem como, especialmente, para as cantoras pretas brasileiras da atualidade, tal Xênia França, Larissa Luz, Luedji Luna, Iza e outras.
Depois de “Vale Tudo”, Sandra - que adicionaria definitivamente dali a alguns anos a preposição “de” original de batismo ao nome artístico - ainda alcançou sucessos esporadicamente, principalmente com “Bye Bye, Tristeza”, de 1988. Numa viragem mais pop e comercial para a carreira, hits como este, embora a tenham ajudado a se consolidar no cenário musical brasileiro, denotavam, por outro lado, que a fase áurea havia terminado. Porém, ninguém tira de Sandra o nome gravado na história da música brasileira, haja vista que sua credibilidade como artista e seu legado permanecem inalterados. Mais do que isso: renovados. Um disco como este, mesmo ouvido quatro décadas depois de seu lançamento, soa como um agradável compêndio do que de melhor havia na soul music brasileira àquela época e, porque não dizer, na história da música preta no Brasil. Está tudo lá: intacto. Assim como a voz de Sandra, que o público a atendeu e guardou no coração.
Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips, Universal e em edição conjunta com o disco imediatamente anterior de João, "Amoroso"
"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário".
Gilberto Gil
"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira".
Maria Bethânia
"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado".
Caetano Veloso
Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa
fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez
sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes
é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não
raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o
povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os
continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto
o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só
samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do
maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer
então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por
consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a
realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...
O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual
que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços?
A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo
interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal
e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao
inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às
harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a
tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do
seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o
Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela
metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa
da produção intelectual mundial.
Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores,
chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado
"Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o
destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo,
juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus
versos.
O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas,
sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de
lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na
carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do
álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de
ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem
trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O
repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos
50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos
matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas
dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas
era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano
para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.
Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João ao vivo exibindo sua arte: momento único
Celebrações se inauguram ao som de hinos. Não poderia ser
diferente, então, que o disco começasse com aquele que é considerado o segundo
símbolo musical nacional, talvez mais conhecido que o próprio hino pátrio: “Aquarela
do Brasil”. O clássico de Ary Barroso – então já imortalizado em gravações como
as de Francisco Alves com a orquestra de Radamés Gnatali, em 1939, ou a de Elis Regina, de 30 anos depois – ganha uma versão revestida de personalidade e
elegância e que vai ditar o conceito de toda a obra. Os primeiros acordes
são emitidos da espinha dorsal: o violão, instrumento que João integrou à voz
na sua revolução bossa-novista ao invés de dissociar um elemento do outro como
até então havia sido em música popular. Porém, desta vez ele tem correligionários para acompanhá-lo
em sua magia, pois é um uníssono emocionante o que se ouve. Os famosos versos
ufanistas "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou
cantar-te nos meus versos" saem das vozes de João, Gil e Caetano juntas. Quanta
história e simbologia unidas! Assim, impactante, como a delicada força das águas
do mar, eles intercalam-se, cada um repetindo uma vez a letra sozinho para,
num final triunfante, tornarem a unir os vocais, agora acompanhados da
empolgante percussão comandada por Paulinho da Costa e os teclados e
sintetizadores arranjados por Johnny Mandell. A sensação ao final da faixa é
que podia até ficar somente nisso, de tão completo que é. Mas tem mais.
A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”,
samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da
música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a
perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com
seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas,
joão-gilbertiando o que há de bom.
A união de vozes do trio volta para interpretar uma
deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz
rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo
impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra
baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia,
que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No
Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa
voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e
a bossa nova em si –, mínimo é mais.
A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a
vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante:
pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música
brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons
que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem
emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.
Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo
menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil
que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os
germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos
forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado
dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente,
faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa
legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas
ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o
Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e
contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas
protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do
peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual.
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documentário "Brasil",de Rogério Sganzerla (1981)
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FAIXAS: 1. "Aquarela do Brasil (Brasil)" (Ary Barroso) - 6:34 2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks,
Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18 3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13 4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50 5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57 6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20
Até os deuses morrem. Na semana em que nos despedimos do mais humano deles, Maradona, também falamos da perda do artista visual Gelson Radaelli rodando a entrevista que fizemos com ele em nosso programa de nº 20, em agosto de 2017. Mas não só isso: o MDC de hoje terá também Jorge Ben Jor,Red Hot Chili Peppers, Miles Davis, Cameo, Cartola e mais. "La mano de Dios" vai agir sobre nosso programa hoje, com hora marcada: às 21h, na milagrosa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e presenciamento: Daniel Rodrigues.
“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989
No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor.
Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.
O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.
Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.
Detalhe da contracapa do disco: a identidade das digitais e da 3x4 de quando foi preso na adolescência, que lembra as fotos de presos políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta.
O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos).
Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco.
O artista em 1980, fotografado por Thereza Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.
Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?
Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier.
De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.
A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.
"Bye Bye, Brasil": marco do cinema brasileiro genialmente traduzido em música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos,masque dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.
Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.
"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.
Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?
E quando a chuva molhar o jardim, ah, eu fico contente
E na primavera vou brotar na terra
E tomar banho de sol, banho de sol, banho de sol, sol.”
Rita Lee, da música "Baila Comigo"
São poucos os discos que sei as letras de cor e as canto corretamente, ou seja, como ela foi escrita. Geralmente curto a melodia em alguns, noutros sei parte da letra e na maioria das vezes troco a letra de todos e invento harmonias paralelas de vozes e sons ao que estou escutando. Cresci assim e já aceitei que é uma maneira pessoal minha de escuta.
Porém, o disco “Lança Perfume” é um desses discos que faz parte da minha história musical de vida. Ganhei o LP por muita insistência. Enchi o saco da minha avó paterna Hedy que, depois de vencida, deixou uma quantia alta na loja de discos dentro de um supermercado, que ficava na rua em que morávamos, em meados dos anos 80. Eu estava fazendo aniversário de 7 anos e esse foi o meu presente. Um LP recém-lançado da Rita Lee! Isso era uma fortuna numa época em que LPs eram um investimento alto para famílias de classe média. Minha avó, católica e muito reservada a determinadas sonoridades, ficou chocada quando um dia entrou na nossa casa e me viu cantando a faixa-título “Lança Perfume”. Comentou com a minha mãe: “Mas, Tia Anita, ela está cantando uma música que diz 'de quatro no ato'?!” Constrangida por não ter sabido o conteúdo das canções e ter me dado o LP, teve a resposta da minha mãe Anita, que sempre foi libertária e ousada: “ Posso imaginar o choque da vó, pois, um ano antes, ela havia me dado o disco do Pde. Zezinho!
Agradeço até hoje o presente da vó, porque, lá em casa, o LP se tornou a playlist das nossas manhãs. Minha irmã, que é 4 anos mais nova do que eu, também capricorniana como a Rita, recorda até hoje com alegria que praticamente furamos o bolachão de tanto que escutávamos. Ele passou a ser utilizado em playback em festas de aniversário da nossa família e nas festas de Natal, sempre com aplausos entusiasmados dos familiares.
A Rainha do Rock Brasileiro, que comemora 40 anos de seu "Lança Perfume"
Cada canção para mim é como um hit, está no universo imaginário da minha geração e estourou em mercados da América do Norte e Europa. Imaginem: estamos falando de 1980 e, nessa época, o mundo era menos interligado, não tínhamos essa rapidez de comunicação e nem as plataformas compartilhadas para promover os discos. Mesmo assim, é indissociável pensar em música nos anos 80 sem citar esse disco da Rita. Ela é a roqueira que nos representa desde antes e desde então.
Quando soube essa semana de uma LIVE BATE PAPO sobre os 40 anos desse LP, que acontecerá hoje, 07/05, às 19h30, no @litaree_real, mediado por Guilherme Samora (que assessora a Rita faz uns anos) e com as participações de Mel Lisboa (que fez a Rita no teatro) e outros convidados, tais como Pedro Bial, Rita Cadillac e Ronnie Von, minha vivência emocional com esse disco veio à tona e então decidi compartilhar com vocês.
Elis com o figurino inspirado em Rita Lee
Rita Lee sempre foi um exemplo para mim e tenho a gratidão de através dos anos de escuta e de leitura (com os livros que ela tem lançado recentemente) saber mais das ideias, da vida e do que é essencial para ela. Rita com seu talento revolucionou a história da música brasileira, inspirou artistas e mulheres da sua geração e me inspira diariamente. Faz uns anos soube que Elis Regina teve uma amizade muito íntima com ela quando foi morar e produzir em São Paulo. Em uma entrevista, Elis disse ter visto Rita “lamber o microfone” e completou: “Passei anos da minha vida com vontade de fazer isso e com medo de ser eletrocutada”. Há também uma história sobre o figurino do último show de Elis, que foi copiado do figurino que é capa desse LP: o macacão transpassado com plissado. Elis viu Rita vestindo-o e ficou louca para ter um igual, porque Rita tem essa porrada de estilo saindo por todos os poros. Elis vestiu um macacão semelhante assinado por Clodovil em “Trem Azul”, seu último show, em 1981, realizando a vontade de chegar próxima a estética da Rainha do Rock Brasileiro.
Eu continuo escutando e lendo Rita. Uns anos atrás, quando adotamos uma gatinha ruiva que chegou em nossa casa para nos dar muito amor e alegria, imediatamente pensei em Rita e ela ganhou o nome de Lee, que já se foi para colorir o céu dos lovecats. Rita é parte de 40 anos da minha existência e isso é muito forte e lindo. Quero continuar tendo saúde para gozar no final e, quem sabe, fugir para Shangrilá com o meu Roberto de Carvalho (Daniel Rodrigues) e brotar para um banho de Sol divino!
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FAIXAS: 1. "Lança Perfume" - 05:15 2. "Bem-Me-Quer" - 04:19 3. "Baila Comigo" (Rita Lee) - 05:30 4. "Shangrilá" - 02:53 5. "Caso Sério" - 05:31 6. "Nem Luxo, Nem Lixo" - 05:05 7. "João Ninguém" - 03:38 8. "Ôrra Meu!" (Rita Lee) - 03:56 Todas as composições de autoria de Rita Lee e Roberto de Carvalho, exceto indicadas
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“Embora ele defina grande parte de seu estilo através do chamativo 'pop' dos Estados Unidos, sua música mantém raízes nas correntes cruzadas dos ritmos africanos, ritmos extraídos de maneira incomum e com efeitos de acordes assombrosos, que são tão autenticamente brasileiros quanto os sons suaves e oscilantes que muitos fãs do gênero tradicional esperam”.
George W. Goodman, para o New York Times, em 1984
“Djavan é foda!”
Caetano Veloso
Brasileiro é, definitivamente, um bicho torto. A subserviência
ao que vem de fora e a famigerada “síndrome de vira-latas” prejudicam sobremaneira
a aceitação de uma identidade brasileira. Isso, é claro, recai sobre a cultura.
Na música, por exemplo, quantas vezes já seu viu um músico brasileiro ser
ignorado no próprio país e só passar a ser valorizado quando os gringos, livres
dessas amarras psicológicas, dão o seu aval? Outro fator determinante vem também
se aglutinar a isso: a abundância de talentos. São tantos, mas tantos talentos,
que o brasileiro, mal-aceito consigo mesmo, nem acredita. Não acredita que seus
pares são capazes, então prefere achar que o bom mesmo vem de fora. É mais
fácil. Talvez por isso artistas incríveis como Djavan, um monstro sagrado em
qualquer país em que tivesse nascido, não recebam a idolatria que mereçam
dentro de casa. Se Djavan fosse, digamos, natural da Dinamarca, ele viveria num
trono. Não precisa nem ir ao Velho Mundo, haja vista que deuses da música
como Quincy Jones e Stevie Wonder são dois dos que se renderam a Djavan
imediatamente ao escutá-lo.
Este alagoano, aliás, tem musicalidade já no nome: apenas uma
vogal, a letra “A”, a mais latina de todas, repetida duas vezes, que se
entremeia a quatro consoantes, formando uma marca altamente artística, forte e
de fácil assimilação: Djavan. Mas a sua originalidade não é só na teoria. Dono de uma
alma que transpira suingue e hábil em criar inusitadas divisões rítmicas,
carrega igualmente a precisão e a complexidade dos acordes certos da linhagem
jobiniana. Músico completo desde sempre, veio a público pelas mãos do midas da
MPB Aloysio de Oliveira, que lhe produziu o primeiro disco, em 1976, “A Voz, o
Violão, a Música de Djavan”. O canto de timbre macio e anasalado denota
profundo trabalho vocal, o qual se alia à assombrosa capacidade compositiva.
Igualmente, seu toque do violão supera a tradição do samba e o dedilhado da
bossa nova para lhe adicionar o jazz, o blues e a soul norte-americanas, além dos
ritmos latinos. E, claro, um punhado de tonalidades brasileiras: o baião, o
samba de roda, a toada, o batuque.
Em seu terceiro álbum, “Alumbramento”, que completa 40 anos
de lançamento, Djavan está mais aperfeiçoado musical e mercadologicamente,
visto que incrementa parcerias que se tornariam algumas das mais celebradas da
história da música braseira. Produzido por Mariozinho Rocha, o disco tem a
participação ainda de mestres como Aldir Blanc, Cacaso e Chico Buarque, três
dos mais importantes letristas da música brasileira, que se rendem às quebradas
rítmicas do autor de “Meu bem querer”. Esta, aliás, letra e música dele que, se
hoje é um clássico, à época foi o grande sucesso do álbum, entrando
imediatamente para o rol de clássicos do cancioneiro brasileiro.
Quanto às parcerias, Djavan se vale da saborosa pegada carioca
de Aldir em “Tem Boi Na Linha”, que abre o disco num samba suingado
irresistível e com a linguagem barroco-suburbana típica de Aldir (“Café com pão
no Vera Cruz/ Jejum limão em Japeri/ A bolsa e a vida dançam nesse trem/ Te
cuida!/ Sacola, cabaço, futuro, tutu/ Tem boi na linha, seu Honório Gurgel”).
Das ruas do Rio de Janeiro para o coração de Minas Gerais. Assim é “Lambada De
Serpente”, esta, escrita com Cacaso. Reflexiva, interiorana, muito mineira: “Cuidar do pé de milho/ Que demora na semente/
Meu pai disse: ‘meu filho/ Noite fria, tempo quente’/ Lambada de serpente/ A
traição me enfeitiçou/ Quem tem amor ausente/ Já viveu a minha dor”.
É com Chico, no entanto, que o diálogo entre músicos parece
ir ainda mais fundo. Primeiro, pela coautoria da faixa que dá título ao disco e
na qual o autor de “Olhos nos Olhos” parece querer mergulhar no universo de
Djavan. “Curioso é como a canção conta a história do alumbramento do próprio
Djavan: a descoberta da verdadeira relação de amor, que é a parceria de
trabalho, e a descoberta de uma relação mais aberta com a música brasileira,
para além do seu próprio universo poético musical”, escreveu o crítico musical
e autor da biografia de Djavan Hugo Sukman. É, de fato, uma canção especial
onde cada um dispõe um pouco de si, numa verdadeira comunhão. Djavan tira do
violão uma bossa nova vagarosa, sensual, que se esgueira em acordes de uma preguiça
satisfeita. Chico, por sua vez, lança as palavras exatas para esse universo
onírico e amoroso do tema: ”Deve ser bem morna/ Deve ser maternal/ Sentar num
colchão e sorrir e zangar/ Tapear tua mão/ Isso sim, isso não/ Deve ser bem
louca/ Deve ser animal”.
Tamanha conexão não poderia ficar em apenas uma faixa, e é
aí que entra o delicioso samba “A Rosa”. Tradução da nova e empodeirada figura
feminina a qual Chico já percebia àquela época, ambos cantam em versos hilários
(mas não menos cronistas) o encantamento incondicional de um homem por sua
musa, esta, por sua vez, totalmente independizada e emancipada das amarras
sociais que recaem sobre as mulheres. Rosa é amoral, não deve satisfação pra ninguém e comprometida consigo
mesma antes de mais nada: carinhosa, mas muda de humor e de opinião sem
constrangimento e explicação;gosta de
sexo, mas não necessariamente só com o parceiro; é “do lar” quando quer, mas
não titubeia em pegar as coisas e sair de casa sem aviso prévio. O homem, por
seu turno, totalmente desarmado, é incapaz de enxergar defeitos nela e a admira
cada vez mais. Os engraçados versos iniciais comprovam: “Arrasa o meu projeto
de vida/ Querida, estrela do meu caminho/ Espinho cravado em minha garganta/
Garganta/ A santa às vezes troca meu nome/ E some/ E some/ Nas altas da
madrugada”. Somente de Chico, a música tem tanta cara de Djavan, que é normal
confundirem se tratar de uma coautoria.
Mas quem é mestre como Djavan sabe se virar muito bem
sozinho. Sé dele são o delicado samba-canção “Sim e Não” e a lúdica “Dor e Prata”, assim como o samba sincopado de
alta maturidade melódica “Sururu de Capote”, esta última, tão
emblemática do estilo de Djavan que se tornou, a partir de então, o nome da
banda que o acompanharia nos palcos. Haveria lugar ainda para mais um samba em parceria com Aldir,“Aquele Um”, e para a influência do Clube da Esquina com "Triste Baía de Guanabara", de Casaso e Novelli.
Já no trabalho seguinte a “Alumbramento”, “Seduzir”, de um
ano adiante, Djavan seria gravado por Roberto Carlos, o que o tornaria,
definitivamente, popular em terras brasileiras. Dois anos depois, em “Luz”,
gravado em Los Angeles, Quincy Jones o produz e o mundo do jazz norte-americano
se rende a seu talento. Mas parece pouco. Mesmo com o sucesso internacional e empilhando
hits anos 80 afora, como “Samurai”, “Açaí”, “Flor de Lis”, “Lilás”, “Capim”, “Oceano”
e outros, até hoje parece haver um descompasso. É tão normal no Brasil uma obra
gigantesca em qualidade como a de Djavan considerando a
existência de vários monstros sagrados da MPB como Chico, Caetano, Gil,
Tom Jobim, Milton Nascimento e outros, que ocorre uma espécie de amortecimento.
Sabe-se da qualidade, mas não se tem condições para se admirar suficientemente.
Pelo contrário: parte do público brasileiro, incapaz de apreciar com um pouco
de profundidade, ainda imputa-lhe a pecha de inventor de letras “sem sentido”. Para
piorar a situação, o próprio Djavan recentemente veio a público manifestar-se a
favor do atual Governo, desgostando muitos fãs e contrariando toda uma
ideologia de respeito aos direitos humanos que alguém que escreveu músicas como
“Soweto” e popularizou as tranças rastafari no Brasil parecia acreditar. Mesmo assim,
nada atinge a excelência de sua música. Se fosse na Dinamarca, seu trono
estaria garantido.
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FAIXAS: 1. "Tem Boi Na Linha" (Djavan/Aldir Blanc/Paulo Emílio) - 2:39 2. "Sim ou Não" - 3:16 3. "Lambada de Serpente" (Djavan/Cacaso) - 3:27 4. "A Rosa" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:24 5. "Dor e Prata" - 2:54 6. "Meu Bem Querer" - 3:26 7. "Aquele Um" (Djavan/Aldir Blanc) - 3:07 8. "Alumbramento" (Djavan/Chico Buarque) - 3:32 9. "Triste Baía de Guanabara" - (Novelli/Cacaso) - 2:59 10. "Sururu de Capote" - 2:54 Música de autoria de Djavan, exceto indicadas
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da
história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não
terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem
espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no
Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e
beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o
tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão
neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra”
do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos
aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás
desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do
que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca
bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo
ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais
e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/
Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De
uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/
Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não
é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado
pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade
igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se
equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se
enfrentar.
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso
do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra
celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/
Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de
fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o
gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma
inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul
music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande
público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova
dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso,
Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa
nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As
harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor
estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente
ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck
ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano
sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer
decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros,
buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou
do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa
nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gilcomenta e canta"Babá Alapalá"
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FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas