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segunda-feira, 21 de março de 2016

Cinema Marginal


"Quando a gente não pode fazer nada,
a gente avacalha
e se esculhamba."
O Bandido da Luz Vermelha


É com grande satisfação que a hoje iniciamos uma nova série de cinema na seção CLAQUETE do ClyBlog. Vagner Rodrigues desta vez vai nos falar sobre o Cinema Marginal Brasileiro, essa forma anárquico-artística que deu mais uma reviravolta na linguagem da sétima arte produzida no Brasil e que deixou sua marca, mesmo que à força, no cinema nacional. Conheceremos melhor os filmes, seus diretores, estrelas às vezes improváveis, as particularidades, curiosidades, lendas por trás das câmeras, as inspirações e pirações que envolveram suas obras de estética e linguagem ousadas, para muitos, de gosto constestável e duvidoso. Mas enfim, vai aqui uma breve introdução, um retrato mais amplo do cinema marginal só para aquecer, para esperar pelos próximos que virão dissecando cada uma das obras marcantes deste movimento que na verdade mão era exatamente um movimento, não era exatamente cinema, não era exatamente... nada, era uma grande e admirável esculhambação.
Cly Reis
editor-chefe



Os anos 60 foram uma época de surgimento de novos cinemas de vanguarda e mudanças. A Europa como um todo passou fortemente por isso e o movimento mais famoso foi sem dúvida a "nouvelle vague". O Brasil também teve seu "cinema novo", que impulsionado por alguns conflitos ideológicos gerou outro interessante movimento o Cinema Marginal.
Mestre Sganzerla
Na metade dos anos 60 houve essa ruptura de cinemas no Brasil, o momento em que acaba amizade entre Bressane e Glauber Rocha, apos este último acusar o filme "O Anjo Nasceu"(1969) de Bressane de ter plagiado seu filme "Câncer" que fora filmado em 1968 e finalizado em 1972 (Ratinhooooo!!!). O país passava por um forte cerceamento politico, o AI-5 chegava com força, e o "cinema marginal" surgia como resposta contra essa opressão. Ele não foi um movimento organizado, os cineastas não fizeram uma reunião e decidiram criar o "cinema marginal", o nome inclusive foi dado de maneira pejorativa de modo a diminuir os filmes e atingir seus idealizadores. "Não somos marginais, fomos marginalizados" foi, inclusive, uma frase de Carlos Reichenbach, em uma entrevista quando questionado sobre o nome do movimento.
Se o Cinema Novo era popular e seus idealizadores tinham muita força na época, devido esse rixa, o "cinema marginal" foi extremamente rejeitado e boicotado, chegando ao ponto dos filmes serem impedidos de participarem de alguns festivais. A maioria das obras "marginais" só tiveram seu reconhecimento recentemente, assim, somente agora, tardiamente tivemos a oportunidade de ver toda a força de um cinema radical que existiu no Brasil na década de 60.
Como falei no inicio, não foi um movimento organizado, foram diversos focos de novos cineastas que buscavam um novo caminho cinematográfico espalhados por diversos cantos do Brasil,com destaque,é claro, para o Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, berço da turma da Boca do Lixo.
Um avacalho de tão bom
que é esse filme.
O filme que é dado como o primeiro "marginal" e também o primeiro da Boca do Lixo é "A margem"(1967) de Ozualdo Candeias. O filme feito com baixíssimo orçamento, narra a história de personagens pobres e excluídos, como bêbados, prostitutas e loucos, que vivem na margem do Rio Tietê mas que também vivem à margem da sociedade. No ano seguinte, 1968, o "cinema marginal" e a boca do lixo, produziram o que para muitos foi o maior filme deste movimento, o clássico "O Bandido da Luz Vermelha" de Rogério Sganzela. Esta obra contém todos os elementos que marcaram o "cinema marginal", um filme de manifesto, questionamento de ordem política, uma estética diferente e bela, (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo, "quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba", frase dita pelo Bandido durante o filme mas que serviu como um lema do "cinema marginal".
Depois do sucesso do seu primeiro longa, Sganzela produziu seu próximo filme, "A Mulher de Todos"(1969), dando continuidade ao estilo cinema mal comportado, com clara influencia Godardiana. O longa marcou o surgimento da musa Helena Ignez, interpretando Angela Carne e Osso, a inimiga número 1 dos homens. Uma personagem que daria muito orgulho ao movimento feminista que temos atualmente pois, sim, ela transava com todo mundo mas queria, tinha autonomia do próprio corpo e, não, não a confunda com uma personagens de pornochancada, "Agora só tenho tempo para os boçais" clássica frase da personagem Angela Carne e Osso.
Esse período foi o momento de maior sucesso popular do cinema marginal, além dos dois filmes de Sganzela, as obras "O Pornógrafo"(1970) de João Callegaro e "As Libertinas"(1968) filme em episódico dirigido por João Callegaro, Carlos Reichenbach e Antônio Lima, também foram muito bem aceias pelo publico.
Helena Ignez, muito mais que simplesmente
a musa do 'Cinema Marginal'.
Nos anos 70 esse cinema mais questionador começou a perder forçar no mercado que passava a voltar-se naquele momento mias para o cinema erótico. Alguns diretores não fizeram mais longas após essa época como João Callegaro, por exemplo, outros tentaram colocar um pouco de suas e ideias e críticas em filmes eróticos como Carlos Reichbach e Ozualdo Candeias e alguns se distanciaram ao máximo das pornochanchadas e continuaram produzindo na Boca do Lixo como foi o caso de Candeias
Extremamente influenciados pela obra do poeta modernista Oswald de Andrade, muitos diretores do movimento faziam referencias a seu textos e poemas sendo Júlio Bressane o mais oswaldiano entre eles. Um exemplo é seu filme " Uma Família do Barulho"(1970) que alguns críticos consideram uma adaptação cinematográfica livre do "Manifesto Pau-Brasil" de Oswald de Andrade. O filme é anárquico, liberal e repleto de um erotismo inegavelmente oswaldiano.
Muito influenciados por esse espirito, Rogério Sganzela, Julio Bressane e Helena Ignez fundaram no inicio dos anos 70 produtora de filme Belair, que produziu 6 longas em 3 meses. Além de confrontar o AI-5 a Belair batia de frente com a Embrafilme, mostrando que e ainda se podia fazer um cinema questionador no pais, que era possível "fazer cinema do jeito que se pode fazer".
Glauber, herói e inimigo do cinema marginal
Entre os filmes da Belair estão "Copacabana Mon amour", "Sem Essa Aranha" e "Carnaval Na Lama" (filme perdido) de Sganzela, "Cuidado Madame", "Barão Olavo, O Horrível" e o já mencionado "Uma Família do Barulho", de Bressane. Foram obras mais radicais, com violência exagerada, cenas de tortura, frases constantemente repetidas, um uso bem irresponsável da câmera na mão, trilhas sonoras sendo feitas durante a filmagem, um diálogo muito próximo ao do teatro, o que alguns críticos apontam como um exagero de vômitos náuseas e cuspes e arrotos. Mas por outro lado foi da Belair o filme  "marginal" mais bem acabado, a obra mais refinada entre todas da produtora, e um dos grandes clássicos da filmografia brasileira, o já referido "O Bandido da Luz Vermelha", consolidando assim, de uma forma ou de outra, a Belair como um dos marcos mais importante do movimento "marginal e sem dúvida do cinema nacional.
Com a ameaça de prisão dos seus fundadores, que tiveram que se exilar fora do Brasil, depois de apenas 4 meses de funcionamento a Belair acabou fechando. Apos o encerramento de suas atividades o cinema marginal perdeu suas forças e nunca mais consegui voltar. Mas deixou sua marca no cinema brasileiro sendo um dos movimentos mais referenciados dentro do circuito nacional até hoje.
Um fato importante que marca o fim de uma era mas por outro lado também uma reconciliação importante e indispensável para o cinema nacional foi a morte de Glauber Rocha que, apesar de todas as divergências que tinha com a turma da 'boca do lixo' era muito repeitado por estes e considerado o pai do cinema "câmera na mão", sendo sua morte muito sentida pelos fundadores da Belair mesmo tendo sido smpre um dos principais adversários e críticos do cinema marginal. Logo após a sua morte Bressane escreveu um belo texto em sua homenagem, chamado "Da Fome da Estética do Amor" que reatou os laços do cinema novo com cinema marginal. O cinema brasileiro estava em paz de novo.







segunda-feira, 28 de setembro de 2020

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 90


Há cinco anos, publicávamos aqui no Clyblog uma série de três longas matérias com listas dos filmes essenciais para se entender o cinema brasileiro do século XX, fazendo um recorte de suas três principais décadas produtivas: 60, 70 e 80. Por motivos óbvios, os desfalcados anos 90 não entraram nessa primeira série, haja vista a impossibilidade de se equiparar em importância com estas outras décadas uma vez que seu esforço foi muito menos pela manutenção da qualidade obtida anteriormente do que, principalmente, pela sobrevivência do audiovisual brasileiro. A puxada de tapete do governo Collor ao destruir a exitosa Embrafilme não ofereceu nenhuma alternativa substitutiva à altura que garantisse a continuidade do trabalho de milhares de profissionais e da importante arte cinematográfica brasileira.

Porém, os anos se passaram aqui no blog e, com eles, chegamos ao final da década de 2010, em que o cinema brasileiro, devidamente retomado de seus percalços (será?!), torna a ganhar o circuito internacional com filmes não apenas bem realizados, como essenciais para a nova cinematografia mundial, caso de "Cidade de Deus", "Tropa de Elite" e, mais recentemente, “Bacurau”. Mesmo que o correto seja compreender o final da década assim que concluir o ano em que estamos, e só começar a contar uma nova década a partir de 2021, quem imaginaria que viria a Covid-19 para congelar tudo, afetando, principalmente, o setor cultural e, com ele, a produção cinematográfica? Se havia ainda alguma esperança de que novos títulos se somassem aos produzidos nos últimos 9 anos para cá, a pandemia, bastante ajudada pela política inimiga da cultura do atual governo brasileiro, forçou para que se acabasse de vez a década.

Entre a última década do século passado e a que estamos, restam, claro, os primeiros 10 anos do novo século. Vamos reconstruir, então, a essência do que foi produzido no cinema brasileiro nos últimos 30 anos, começando pelos 90. Se a recorrente falta de prioridade para com a cultura e a arte da política brasileira fez de tudo para acabar com o cinema nacional, fique esta sabendo que não conseguiu. Produções escassas, mirradas, prejudicadas, mas mesmo assim, resistentes. Deste modo, selecionamos aqui 20 títulos essenciais para entender esta década que, com todos estes percalços, ainda assim mantém qualidade suficiente para não deverem nada a títulos de outras décadas mais abastadas. Uma exceção fazemos aqui, no entanto: não apenas por contar fatalmente de menos filmes classificáveis, os anos 90 são sinônimo de “retomada” para o cinema no Brasil, fase a qual se encerraria apenas com o marco “Cidade de Deus”, de 2002, um ano depois da instituição da Ancine. Então, coerentemente com a construção histórica do novo cinema brasileiro, incluímos as produções do ano de 2000 nesta primeira listagem. A partir dali, uma nova era viria.





1 - “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, de Carla Camurati (95): O filme de estreia de Camurati é o marco de resistência do cinema brasileiro pós-Collor, quase um manifesto, que bradava: “É possível, mesmo com toda a dificuldade, fazer cinema autoral no Brasil!”. Cheio de hiatos e desconexões (propositais ou não), tem, além desta simbologia (que já lhe seria suficiente para integrar esta lista), o mérito de trazer algumas características que se consolidariam no cinema brasileiro nas décadas seguintes: a coprodução com países estrangeiros, a linguagem cômica, a edição ágil e a abordagem crítica.






2 - “O Quatrilho”, de Fábio Barreto (95): Há quem torça o nariz para certa pasteurização do filme rodado no interior do Rio Grande do Sul sobre a obra de José Clemente Pozzenatto, mas é fato que, com ele, os Barreto reabriram as portas do Brasil para o mercado internacional com a inédita indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na história do cinema brasileiro – feito que ocorreria apenas mais duas vezes. E isso num momento em que jamais se esperaria algum reconhecimento vindo de um ainda agonizante cinema pela quebra da Embrafilme. Um bom romance, com seus méritos.





3 - “O Mandarim”, de Julio Bressane (95): Enquanto os Barreto encabeçavam uma nova investida na internacionalização do cinema brasileiro e Camurati tentava redirecionar os rumos das coisas por aqui, o bom e velho transgressor Julio Bressane aperfeiçoava seu cinema-poesia. Assim como em “Tabu”, “Brás Cubas” e os “Os Sermões”, a música é quase um personagem, neste caso, para contar a proto-biografia de Mário Reis (Fernando Eiras), mas não sem o “auxílio luxuoso” de Caetano Veloso, Chico Buarque (fazendo eles mesmos), Gilberto Gil (encarnando Sinhô) e Edu Lobo (fazendo as vezes de Tom Jobim). Tudo de forma artesanal, barata e genial.




4 - “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (96): O filme de Waltinho e Daniela tem o poder de vencer a contramaré vivida pelo cinema nacional àqueles idos a ponte de tornar-se um dos mais importantes filmes da cinematografia nacional. Tanto que está na lista da Abraccine dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma história sobre solidão e resgate das próprias raízes motivado justamente pelo confisco promovido pelo mesmo presidente Collor que extinguiu tanto o dinheiro do brasileiro quanto o da Embrafilme. Fotografia impecável p&b de Walter Carvalho, trilha excelente de Zé Miguel Wisnik e até dedo de Millôr Fernandes nos diálogos. Um luxo em época de vacas magras.







5 - “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (96): Na esteira da mais revolucionária cena cultural do Brasil dos últimos 30 anos, o mangue beat, o filme marco da retomada do cinema pernambucano, retraz questões formativas da cultura nordestina (o cangaço, o “Ciclo do Recife” dos anos 20, os superoitistas dos anos 70, o sotaque, a antropomorfia) com uma roupagem moderna. Se não é necessariamente um filme bom, é altamente representativo e indispensável para se entender o cinema brasileiro de então, visto que abriu portas para a entrada de talentos de outros pernambucanos como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Marcelo Lordello.







6 - “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende (96): Afeito aos temas da História do Brasil, Rezende, após realizar seu grande filme, “O Homem da Capa Preta”, em 86, viu-se, assim como seus pares, totalmente descapitalizado para realizar seu trabalho. O que não foi motivo para abandonar o projeto sobre a real história do líder Antônio Conselheiro e a sangrenta guerra contra as forças do Império extraída do épico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Wilker, que já havia protagonizado “O Homem...”, está brilhante no papel principal. Produção cara que, mesmo os justificáveis defeitos de produção, não apagam o brilho.







7 - “Tieta do Agreste”, de Cacá Diegues (96): O tarimbado Cacá foi dos que sofreu bastante com a quase inviabilização do cinema no Brasil da era Collor. Após o paupérrimo longa de episódios “Veja Esta Canção”, de 94, parecia que nunca mais viriam grandes produções de outrora como “Quilombo” ou “Xica da Silva”. Mas o sempre obstinado cineasta surpreende com um filme recheado de qualidades: texto baseado e revisado pelo próprio Jorge Amado, Sônia Braga brilhante como Tieta, Chico Anysio tornando a fazer cinema como o velho Zé Esteves, trilha de Caetano, fora outras. Uma delícia de filme.





8 - “A Ostra e o Vento”, de Walter Lima Jr. (97): Assim como Cacá e Bressane, Walter é outro experiente realizador nascido no Cinema Novo. Porém, tem como característica o empreendimento de projetos muito peculiares, como esta bela adaptação do romance de Moacir C. Lopes, que conta com roteiro dele e de Flávio Tambellini (que se tornaria um dos cineastas de vulto no cinema nacional), fotografia de Pedro Farkas, música de Wagner Tiso e a linda canção original de Chico. Lima Duarte, Castrinho e Fernando Torres excelentes, além da jovem Leandra Leal, estreando na tela grande com uma inesquecível atuação sobre um tema raramente explorado com tanta assertividade: o florescer da sexualidade feminina.






9 - “Os Matadores”, de Beto Brant (97): Fala-se muito de “O Invasor”, de 2002, mas em “Os Matadores”, primeiro longa do talentoso paulista Beto Brant, ele já introduzia sua contribuição ao cinema brasileiro com um estilo autoral, de forte apelo literário, com histórias inspiradas na realidade em diálogo com o tempo presente e onde o ator tem espaço para contribuir na narrativa. Além disso, em resposta à falta de perspectivas vivida pela classe cinematográfica brasileira no início dos anos 90, trazia um conceito “enxuto”: projetos racionalizados sob o ponto de vista da produção, com equipes de trabalho formadas por amigos, que se transformam em parceiros constantes. Na sua estreia, Brant já saiu abocanhando o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema de Gramado.






10 - “O Que é Isso, Companheiro?”, de Bruno Barreto (97): Criado em 91 como mecanismo do incentivo à cultura, a Lei Rouanet começou a, de fato, render frutos anos depois. Após emplacar a inédita disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com “O Quatrilho”, um ano depois o Brasil colocava outro candidato à estatueta: o bom “O Que...”, baseado no Best-seller biográfico de Fernando Gabeira. Novamente, são os Barreto os responsáveis pelo feito. Além das excelentes atuações de Pedro Cardoso, Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, o filme avança no espaço aberto por “Carlota Joaquina” no sentido da coprodução estrangeira, o que resulta nas participações do craque Alan Arkin no elenco e da excelente trilha do ex-Police Stewart Copeland.





11 - “Pequeno Dicionário Amoroso”, de Sandra Werneck (97): A Globo Filmes, a partir da década seguinte, vulgarizaria o estilo comédia feita com atores da emissora, lançando aos montes subproduções sem nenhuma qualidade, quanto menos pretensão cinematográfica. Mas isso ainda cabia naquele sétimo ano da década de 90, quando Sandra realizou esta comédia romântica deliciosa. Aquele final com “Futuros Amantes” do Chico é de arrebentar o coração até do mais insensível espectador. Atuações ótimas de Andrea Beltrão, Daniel Dantas, Glória Pires e Tony Ramos – estes dois últimos, que fariam dupla noutra comédia (um pouco menos) romântica “Se Eu Fosse Você” anos mais tarde.





12 - “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (98): É só deixar solto, que o sobrevivente cinema brasileiro se supera e, logo em seguida, se agiganta. Sete anos após a instituição da Lei Rouanet e minimamente restabelecido o mercado do audiovisual brasileiro, Waltinho vem com aquele que é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, certamente o melhor da década de 90. Tocante, envolvente, denunciador, poético, revelador. Um filme perfeito em tudo: fotografia, trilha, montagem, arte e, principalmente, a direção de atores. “Central...” traz algumas das mais célebres atuações do cinema brasileiro numa mesma obra: Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nasctergaele, o pequeno Vinícius de Oliveira e, claro, a deusa Fernanda Montenegro, que, assim como o filme, o último concorrente ao Oscar de Filme Estrangeiro do cinema nacional, também disputou a estatueta – perdendo, junto com Meryl Streep e Cate Blanchett, para Gwyneth Paltrow. No entanto, levou Berlim de Melhor Atriz e Melhor Filme.




13 - “São Jerônimo”, de Julio Bressane (98): O hermético e experiente Bressane é original não apenas na narrativa e no seu inconfundível estilo pessoal, mas também nos temas que escolhe para filmar. Ao abordar a história do santo e obscuro intelectual do século IV autor da edição e da tradução completa da Bíblia, a chamada Vulgata, Bressane dava sua definitiva contribuição para a retomada provando que em cinema (principalmente, no Brasil) é possível conjugar estética exigente e verba exígua, poesia arrojada em prazo concentrado. Como São Jerônimo, Bressane operava milagres.




14 - “Estorvo”, de Ruy Guerra (98): Em 1991, emputecido com a vitória da velha política de Collor na primeira eleição democrática para presidente do Brasil (e a derrota da “nova” por parte do correligionário Lula), Chico Buarque lançava seu pequeno, mas potente primeiro romance, “Estorvo”, um sucesso que ganharia Jabuti. Mas para levar à tela um enredo tão subjetivo, somente alguém muito conhecedor da obra do autor de “Vai Passar”. Ninguém melhor, então, que o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, companheiro de velhos tempos de Chico, seja no teatro, na música ou no próprio cinema. O clima perturbador da obra se potencializa nas tomadas distorcidas, na câmera nervosa, na montagem ousada e até no off com a voz do próprio Ruy, cujo sotaque arrevesado impõe a estranheza que a narrativa merece. Filme difícil, mas essencial.



15 - “A Causa Secreta”, de Sérgio Bianchi (96): O cinema deste paranaense radicado em Sampa nunca fez concessões. Desde o curta “Mato Eles?”, de 1982, quando denunciava o descaso com os índios, seu discurso é apontado para a crítica e toda a narrativa se mobiliza neste sentido. Em “A Causa Secreta”, o cineasta se vale de todas as suas armas para evidenciar a podridão moral da sociedade brasileira. E o faz com alto poder mimético, numa construção narrativa incomum, atuações e situações que incomodam de tão reais e agudas. Como outros filmes da década, peca por certo – e compreensível – déficit técnico, mas supera as dificuldades com a coesão da obra, essencial para entender o país em recente caminhada democrática e todos os problemas que ainda iria demorar a se livrar.




16 - “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (99): Filho da Boca do Lixo carioca, o gaúcho Carlão, mesmo à época das famigeradas pornochanchadas dos anos 70/80, produzia com qualidade, fosse na fotografia, a qual era um ótimo técnico, fosse na própria direção. Nos anos 90, já havia realizado o emocionante “Alma Corsária”, mas nada se compara tanto em emoção quanto em acerto com “Dois Córregos”. Um romance que envolve política, história e reminiscências do próprio cineasta, que filmou cenas na praia de Cidreira, no litoral do seu estado de origem. E tem trilha magnífica de Ivan Lins pra arrematar.





17 - “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky (2000): Entramos na leva de filmes de 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. E não se poderia iniciar com um título mais emblemático que esta estreia da talentosa Laís Bodanzky. Símbolo da retomada, é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Além disso, também está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.





18 - “Tolerância”, de Carlos Gerbase (00): O Rio Grande do Sul também é um dos protagonistas dessa virada do cinema brasileiro para a modernidade, e o responsável por isso é o primeiro e melhor longa do "replicante" Gerbase. Uma “história de sexo e violência” num thriller ao estilo do cineasta: trama envolvente, roteiro impecável e atuações conduzidas pela mão de quem carrega a experiência superoitista e da cena curta-metragem, que salvou na raça o cinema brasileiro quando nenhum longa era possível de ser feito. Maitê Proença, linda, está brilhante. 






19 - “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (00): Outro marcante filme "

00", este tocante, mas ao mesmo tempo divertido e denunciador romance, marca a entrada de vez de Andrucha no mundo da tela grande, ele consagrado como diretor de videoclipes célebres de artistas da música brasileira e realizador do acanhado “Gêmeas”, de um ano antes. A trilha de Gil cumpre um papel fundamental, amarrando a narrativa tanto em suas novas e antigas composições, quanto nas versões de Gonzagão. Grande Prêmio Cinema Brasil de Filme, Fotografia, Montagem e Atriz para Regina Casé, maravilhosa, assim como seus “maridos”: Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos.






20 - “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (00): O cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 18 de julho de 2016

Cinema Marginal #4 - "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane (1969)



Desta vez trago para vocês um filme mais "simples": "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane, de 1969. A historia é bem descomplicada e sua narrativa é bastante linear, mas é claro que seus personagens são cheios de alegorias e o espectador deve estar preparado para mais uma obra amoral (ou nem tanto).
Dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de violência. Santamaria (Hugo Carvana), místico que acredita que com seus atos está se aproximando de um anjo que lhe limpará a alma; e Urtiga (Milton Gonçalves), um marginal ingênuo que segue os passos do amigo acreditando também, por sua ingenuidade, no anjo da salvação.
Qual a chance de salvação 
destes dois marginais?
Não é a primeira vez nem a ultima vez que falo isso sobre os filmes marginais mas não é um filme que vá agradar todo mundo. Há cenas de violência bem fortes, violência contra mulher, violência contra homossexuais, existe toda uma crítica religiosa e dependendo de como você receber o filme tudo isso pode não soar muito legal. A qualidade da imagem e som também são fatores que se deve superar ao assistir o filme mas essa era exatamente a proposta estética do cinema marginal.
As cenas do sequestro são bastante fortes bem como  as atuações
dos atores principais. Esse momento, especificamente, é fabuloso.
Apesar de ser uma quase antiestética, ela é muito bem utilizada por Bressane e seus planos longos (ou exageradamente longos) funcionam bem criando grande dramaticidade uma tensão nas cenas. É uma obra bem silenciosa mas em muitos momentos deste silêncio que muita coisa é dita.  A brincadeira visual que o filme faz com as placas que aparecem "incidentalmente" é genial em muitos momentos, como por exemplo, próximo ao final, quando os bandidos estão em um circo e ao fundo pode ver-se uma placa com dizeres "O encontro com a morte", e também no momento onde vão até um cinematógrafo e a câmera permanece durante algum tempo, uns vários segundos em close na placa "Cinematographo". Genial essa brincadeira toda. A crítica mais evidente do filme é a pessoas que cometem atos brutais buscando uma suposta salvação de suas almas, que buscam na religião a desculpa para seus atos e independente da crença, seita, doutrina ou seja lá o que for, isso fica claro no longa.
A minha cena favorita no filme é quando os dois bandidos, Urtiga e Santamaria,  estão comendo na mesa juntamente com a dona da casa ondes estão se escondendo, quando Santamaria expõe para a dona da casa sua maneira de pensar que é na verdade um perfeito resumo da proposta do filme e de certa forma, por extensão, do cinema marginal, "O que está certo é o errado... E o que está errado, pra mim é o certo".
Uma obra fantástica pela maneira como foi feita e pela ideia que transmite, tudo com muita criatividade utilizando bem as técnicas cinematográficas para, mesmo com pouco recurso, fazer muita coisa. Sua ambição claramente não era grandiosa mas vê-se as ferramentas cinematográficas sendo usadas de uma maneira tão inteligente que o exagero teatral dos personagens acabam fazendo sentido e tornando-se necessários, tamanho a grandiosidade artística da obra, que é forte, crua e real.
A placa ao fundo "Encontro com a morte".



terça-feira, 15 de outubro de 2024

Capas de VHS II - "Os Sermões"







 

RODRIGUES, Daniel
"Os Sermões"
Arte para VHS doméstico sobre o filme de Júlio Bressane, de 1989, Série "Grandes Diretores - Júlio Bressane"
Recorte, impressão jato de tinta, colagem e fontes transferíveis sobre papel
26 x 21 cm
Anos 2000


segunda-feira, 19 de junho de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 3)


Grande Otelo em "Rio, Zona Norte" com o seu realizador, 
Nelson Pereira dos Santos, que chega para ficar
Chegamos à terceira parte de nossa lista dos 110 melhores filmes brasileiros, em comemoração aos 110 anos do primeiro filme realizado no Brasil, “Os Óculos do Vovô”. E justo naquele em que é celebrado o Dia do Cinema Brasileiro! E podemos dizer que a coisa está ficando cada vez mais séria. Não que os primeiros-últimos da ordem já não garantissem uma qualidade excepcional. Afinal, separar APENAS 110 títulos entre tantos memoráveis foi tarefa não só difícil como incompleta. Porém, é óbvio que, à medida que vai se avançando na classificação, também se intensifica a importância das obras.

É bem o caso do nosso novo recorte, que vai do 70º ao 51º posto. E em verdade vos digo: só tem filmão! Se nos 40 títulos anteriores já figuravam grandes realizadores, como Eduardo Coutinho, Glauber Rocha, Hector Babenco e Humberto Mauro, agora entram no páreo outras referências indeléveis do cinema nacional, como Leon Hirzsman, Nelson Pereira dos Santos e Kleber Mendonça Filho com seus primeiros listados. Por que, claro, todos eles voltarão mais pra frente com mais obras. Mesmo caso de Cláudio Assis, aqui com “A Febre do Rato”, e Ruy Guerra, já mencionado com seu "Os Cafajestes" (102º) e agora representado por um dos raros musicais de toda a seleção: “Ópera do Malandro”. Como Guerra, Walter Avancini, Julio Bressane, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr. e Rogério Sganzerla, já presentes, voltam à carga com todo merecimento. 

Entre as mulheres, se até então apareceram apenas filmes de Suzana Amaral, Laís Bodanzky e Tatiana Issa, Sandra Kogut amplia a representatividade feminina trazendo uma obra-prima da recente cinematografia brasileira: “Três Verões”. Por falar em época, ao contrário do recorte imediatamente anterior, onde calhou de não haver nenhuma produção dos anos 80, nesta, pelo contrário, elas são maioria entre as décadas, com 8 títulos, 4 a mais que a segunda com mais filmes, os anos 60. Este é um dos retratos de momentos importantes do audiovisual brasileiro que uma lista de teor histórico como esta pode suscitar. A constatação é uma mostra (à exceção de “Morte e Vida Severina”, teledrama da TV Globo) do quanto a Embrafilme, bem estruturada nos anos 80, rendeu ao cinema brasileiro frutos muito qualificados e duradouros. A mesma Embrafilme desmontada nos anos 90 por Collor... Mas isso é outra história.

Confiram, então, mais uma parte da lista destes filmes que, se não são necessariamente todos os melhores, infalivelmente guardam qualidades que os credenciam a estarem aqui.

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70.
“O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (1981) 

A forte e memorável atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme, que conta a história do poeta popular nordestino Deraldo. Ele quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers, é daquelas corajosas realizações  ficcionais, mas abertamente realista que quase documental, e de extrema importância para o período de abertura política no Brasil após os Anos de Chumbo da Ditadura Militar.



69. “Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (1970) 
68. “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (1982) 
67. “Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro”, José Padilha (2010)
66. “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (1986) 
65. “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins (1968)



64. “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (1966)
63. “Três Verões”, Sandra Kogut (2020)
62. “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr. (1987) 
61. “A Pedreira de São Diogo”, Leon Hirzsman (1962) 

 
60.
“Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (1980) 


Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que produz coisas às vezes intragáveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.





59. “O Mandarim”, de Julio Bressane (1995)
58. “Morte e Vida Severina”, Walter Avancini (1981)
57. “Casa Grande”, Fellipe Gamarano Barbosa (2014)
56. “A Febre do Rato”, Cláudio Assis (2011)
55. “O Romance da Empregada”, Bruno Barreto (1888)



54. “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (1989)
53. “Rio, Zona Norte”, Nelson Pereira dos Santos (1957)
52. “Aquarius”, Kleber Mendonça Filho (2016)
51. “Blá Blá Blá”, Andrea Tognacci (1968)


Daniel Rodrigues

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Mostra de Curtas-Metragens Gaúchos - 51º Festival de Cinema de Gramado

 

Poesia que Higieniza*

A mostra de curtas-metragens gaúchos tem sido há um tempo uma atração à parte no badalado Festival de Cinema de Gramado. Vencida em sua maior parte a terrível fase da pandemia – prejudicial para produções com mais recursos, quanto mais foi para aquelas de baixo orçamento e menos experiência – os curtas produzidos no Rio Grande do Sul tornaram a tomar corpo e ganhar a devida estatura que merecem. Embora alguma desigualdade em termos de resultados finais, quando não aceitáveis deslizes técnicos, o nível dos 23 filmes concorrentes ao Prêmio Assembleia Legislativa de Cinema – Mostra Gaúcha de Curtas 2023 foi bastante satisfatório e, mais que isso, promissor.

Como vêm se adensando a cada ano, as temáticas antes “marginais”, como LGBTQIAP+, povos originários, capacitismo, xenofobia, entre outros, manifestam-se com potência junto aos realizadores. Caso de “Rasgão”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, que levou Menção Honrosa, em sua narrativa que trata da acessibilidade; ou “O Tempo”, vencedor de Melhor Trilha Sonora (Gabriel Araújo, Nina Fola e Malyck Badu) e Roteiro (Ellen Correa, também diretora), expositor de forma sutil de questões raciais e existenciais. Porém, o que mais chama atenção é o apontamento das lentes para uma visão poética do cinema, o que se observa tanto no rigor formal quanto na liberdade estética.

A intencionalidade de um cinema de poesia, dentro daquilo que Pasolini e Bressane servem de base, sustenta os curtas mais cativantes da mostra. Um deles é “Messi”, um pequeno documentário dirigido por Henrique Lahude e Camila Acosta, que traz o jovem Edu, menino pertencente a uma família moradora da cidade fronteiriça de El Soberbio, limite entre Brasil e Argentina, assistindo a um jogo das Quartas de final da Copa do Mundo 2022 em que o time do craque portenho jogava. A forma como esta tarde é contada, com suas sutilezas e percepções sensíveis, quase anulando a presença da câmera, fazem de “Messi” daqueles filmes aparentemente simples em realização, mas profundos em significados. Não à toa, recebeu o prêmio de Montagem, a cargo de André Berzagui.

"Sabão Líquido" toca em questões atuais
da sociedade gaúcha e brasileira
Outro bom exemplo de poesia cinematográfica é o conciso e forte “Sabão Líquido”, merecedor de uma das principais premiações, a de Melhor Direção para a dupla Fernanda Reis e Gabriel Faccini. Na história, um rapaz imigrante é transportado ilegalmente para o interior do Rio Grande do Sul para trabalhar na falsificação de sabão líquido. Incisivo, o filme toca em questões sociais e políticas muito presentes no Brasil (e no Rio Grande, por supuesto), como o trabalho escravo, a informalidade, a xenofobia e, principalmente, o sentimento de impunidade que o pensamento fascista concede aos exploradores. Tudo numa construção narrativa sabiamente pontual e uma rica fotografia.

Ainda, impossível não citar nesta linha de entendimento poético o belo “Fiar o Vento”, Melhor Fotografia para a também diretora Mari Moraga com suas expressivas imagens e enquadramentos da Lagoa dos Patos e da ancestral arte de fiação com lã de ovelha; e o impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio. Feminino, profundo, reflexivo. Cinema de arte. O filme trata do caminho ficcional trilhado pela própria Cristyelen – mulher indígena e egressa da primeira turma do curso superior em Tecnologia em Produção Multimídia de uma instituição pública, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) –, que redescobre sua bisavó a partir de álbuns de família. Memória e realidade se entrelaçam e se tensionam, num jogo intenso entre os elementos textuais, vídeo-artísticos e sensoriais. Com muita assertividade, a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) concedeu-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica.

trailer do impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio

De todos, no entanto, aquele que arrebatou público e crítica foi, de fato, o principal vencedor da mostra competitiva: “Concha de Água Doce”, de Lau Azevedo e João Pires. Certa unanimidade se deve, antes de mais nada, à qualidade do curta, seja em narrativa, seja na excelente montagem ou mesmo nas interpretações dos poucos personagens, uma delas o do ator Aren Gallo, que lhe rendeu o troféu de Melhor Ator. Sensível à questão da transsexualidade, o filme traz este tema como ponto central para desencadear uma travessia sem escalas no tempo físico ou emocional, o tempo que está dentro ou fora, o que se guarda no olhar ou na profundeza do mar.

O grande vencedor "“Concha de Água Doce": poesia para
tratar de questões de gênero

A se ver pelo apuro técnico, criatividade e, principalmente, pela assertiva escolha por abordagens que aproveitem as possibilidades estéticas que o cinema suscita, há de se ficar bastante satisfeito com o que o audiovisual gaúcho seguirá promovendo depois de passar por provas de fogo nos últimos anos. Como outro concorrente da mostra de curtas traz, “As Ondas”, e tal como se bradou pelos corredores do Palácio dos Festivais durante os dias de evento, é de se comemorar os novos ventos da cultura brasileira com a entrada do atual governo. A atmosfera já se mostra muito mais respirável e alentadora depois de tanto enxofre empestando o ar. Viva o cinema – e viva a poesia – para promover essa necessária higienização.

*Texto originalmente publicado no site da ACCIRS


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 60



Outro dia, logo após postar no Facebook que havia revisto um dos meus filmes favoritos da cinematografia nacional, “Bye Bye Brasil” (sobre o qual comentarei melhor em um próximo post), surtiram, como geralmente ocorre, alguns comentários. Na ocasião, entretanto, um dos que comentou foi meu primo e colaborador do ClyBlog (especialmente para da seção ClaqueteVagner Rodrigues. Amante de cinema, ele revelou não apenas querer conhecer o filme em questão quanto se aprofundar mais no cinema brasileiro das décadas de 60, 70 e 80.

Dispus-me, então, a elencar para ele títulos que dessem um panorama da produção de cada década no combalido e combativo cinema no Brasil. Até aí, nada incomum, considerando que gosto de compartilhar conhecimento sempre que posso e o considero suficiente para tal. O que eu mesmo não esperava era que, ao comentar brevemente cada filme somente de forma a justificar ao Vágner o porquê de sua presença numa classificação tão seleta, fui me empolgando não apenas com cada anotação, como, principalmente, com a seleção em si. Tanto que, somando-se os três períodos, cheguei a 55 títulos!

Afora a trabalheira prazerosa que sei que dei ao meu primo, acabaram surgindo três listas bem interessantes que dão a dimensão da qualidade, importância, versatilidade e profundidade artística, estilística, sociológica e política do cinema brasileiro em cada uma destas décadas, sem dúvida as melhores em nível qualitativo em toda a história dessa arte no Brasil (e olha que tem como concorrentes os fortes anos 50 e a primeira década do séc. XXI). Ao mesmo tempo, juntos, dão uma mostra bem real do quanto já foi muito mais difícil fazer cinema no Brasil, tanto pela questão técnica (produções quase sem recurso, tecnologia defasada e falta de mão de obra) quanto, principalmente nos 60 e 70, pelo cenário político, tendo em vista que muitos desses filmes – mesmo os corajosamente denunciadores – sofreram com a censura do governo militar antes, durante ou depois de lançados.

Comecemos, então, com a melhor de todas: a década de 60, marcada pelo boom do Cinema Novo – que revelou os gênios Glauber Rocha e Julio Bressane, mestres como Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá Diegues e técnicos de primeira linha como Dib Lufti e Eduardo Escorel – mas que presenciou, tanto quanto, obras memoráveis não necessariamente ligadas ao movimento. Enfim, uma seleção de 20 títulos com seus respectivos diretores e em ordem cronológica de ano que me deram muito trabalho para escolher, mas que dão uma ideia legal da produção da época pelo filtro daquilo que gosto e acredito como arte – a sétima, neste caso.



1 - "O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (60) – Com absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito do início a fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição, cenografia. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que venceu AntonioniPasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.






2 – “Barravento”, Glauber Rocha (62) – Primeiro filme do Glauber, coloca-se num ponto entre o Neo-Realismo e o Cinema Novo. Extremamente poético, é o filme que melhor retrata o universo místico do candomblé e da vida dos pescadores do interior, aqueles que raramente temos acesso no mundo urbano. Venceu prêmio na República Checa e tem montagem do Nelson Pereira, quer mais?










3 - “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (62) – Outro daqueles filmes essenciais. O Roberto Faria sempre fez filmes com arte e apelo popular. Esse é bem assim: com uma cara ainda de Atlântida dos anos 40/50, mas com um pé no Neo-Realismo. Atuações fantásticas do irmão Reginaldo Faria, do Grande Otelo e do ator principal, Eliezer Gomes, como o inesquecível Tião Medonho.










4 - “Os Cafajestes”, Ruy Guerra (62) – Clássico do Cinema Novo, tem toda a questão da câmera na mão, do enquadramento intuitivo, do aspecto documental, da inspiração estética e temática na nouvelle vague. Fala sobre a decadência da burguesia, pondo em evidência seu vazio e a falta de sentido. Daniel Filho e Jece Valadão ótimos. E ainda tem o primeiro nu frontal da história do cinema, e quando a Norma Bengell era tri gata!







5 - “Cinco Vezes Favela”, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges, Leon Hirzsman e Marcos Farias (62) – Filme de episódios (5, obviamente), todos retratando algum aspecto das então pouquíssimo retratadas favelas, papel de denúncia que o Cinema Novo foi hiperimportante. O do Cacá, embora ainda cru em termos de estilo, é bem interessante, pois fala sobre uma escola de samba e os problemas da comunidade num dia de carnaval. “Couro de Gato”, do Joaquim Pedro, chegou a ganhar Cannes. O de Leon também é incrível, “Pedreira de São Diogo”, sobre trabalhadores da pedreira que são obrigados a fazer implosões perto de uma comunidade que iria para os ares. O do Miguel Borges, sobre um lixão, é claramente uma das inspirações do “Lixo Extraordinário” e com o recente britânico-brasileiro “Trash”.







6 – “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (63) - Genial. Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia, atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes que já vi, a o sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.










7 - “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha (63) - A obra-prima do Cinema Novo, um dos maiores filmes do século XX. De tirar o fôlego. Sobre este, me reservo o direito de indicar um post inteiro que escrevi sobre ele em meu blog de cinema: http://oestadodascoisascine.wordpress.com/2010/11/09/a-terra-do-homem-e-o-mito-da-morte/









8 - “Os Fuzis”, Ruy Guerra (64) – Um soco no estômago. Sobre um cerco militar que se forma numa cidade do sertão nordestino, pondo à mostra toda a miséria social e moral gerada pelo Estado, quase um presságio do derramamento de sangue que ocorreria com os que combateriam a ditadura militar, então recém-iniciada. Dos filmes preferidos de gente como Gustavo Spolidoro e Eduardo Valente, foi Urso de Prata em Berlim em Direção.








9“Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (64) – O Khouri sempre teve o seu jeito de fazer cinema, abordando temas como a depressão das altas classes, o vazio existencial, a anestesia da vida moderna, e bastante inspirado em Antonioni. “Noite Vazia”, no entanto, não é uma cópia brasileira de “A Noite”: é um filme com personalidade e referencial. Trilha do Duprat, tá louco! E concorreu a Palma de Ouro. Depois, o Khouri só se repetiu, mas esse é demais.










10 - “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (65) – Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima pouco lembrada.








11 – “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (65) – Outro clássico. Walmor Chagas tá ótimo. Na linha d’”Os Cafajestes”, mas sob outra ótica, mostra a asfixia da classe média (paulistana, no caso), imersa na impessoaliadade da vida industrial e maquinal da grande cidade. Recebeu prêmios na Itália, México e São Paulo. Muito atual.








12 – “O Desafio”, Paulo César Saraceni (65) – Parece loucura, mas o diretor fez um filme sobre a ditadura em plena ditadura. Haja peito! E mostra em detalhes a vida daqueles que não se enquadram naquilo, a tristeza de ver seu país tomado sem lado para correr. É um filme revoltado, corajoso e triste com todos os elementos de Cinema Novo: câmera na mão, fotografia natural, improvisação, tom documental, trilha sonora da MPB combativa da época.








13 - “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (66) - Lindo. Primeira ficção do Joaquim Pedro, que foi um contista de mão cheia. Sobre um padre (o maravilhoso Paulo José) que se apaixona por uma moça de família no interior. Claro que dá merda, né? Fotografia PB rigorosa e pouco diálogo, que dá um clima sufocante à história. Indicado ao Urso de Ouro em Berlim.







14 – “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (67) – Filme de tribunal sobre uma história real de um julgamento injusto ocorrido no interior de Minas na Era Vargas envolvendo os tais irmãos da família Naves. Super bem narrado e fotografado. Alto nível. Interpretações, idem. Interessante que, por se passar em uma época antiga, o filme passou pela censura, é os militares burros não perceberam ser uma baita crítica ao governo. Até torturas mostra... Venceu Brasília (Roteiro e Atriz Coadjuvante) e foi indicado em Moscou.







15 - "Terra em Transe", Glauber Rocha (67) - Pra muitos, o melhor do Glauber. Também altamente referencial do que foi o Cinema Novo e a visão dos artistas daquela época no Brasil. Algumas das cenas – captadas pela câmera-personagem de Dib Lufti – e ícones do movimento estão diretamente ligadas a essa filme. Premiado em Cannes, Locarno e Havana. Não menos que genial.








16 - “O Dragão da Maldade Conta o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (68) - Espécie de continuação do “Deus e o Diabo...”, porém num outro conceito e contexto. Altamente Teatro de Arena e Teatro Oficina, considero-o uma “ópera do Sertão” em cores, uma tragédia shakesperiana nordestina. Texto incomparável. Filme amado por Scorsese. Metafórico e forte. Melhor Direção em Cannes.






17 - “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins (68) – O genial Mojica traz indiretamente seu célebre personagem, que não aparece mas “representa” os 3 episódios que compõem o longa. Sua melhor produção, que mostra o quanto ele, um dos maiores mestres do terror trash mundial, ao lado de ArgentoCarpenter e Bava, é capaz de fazer miséria com um pouquinho mais de recurso.








18 - “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (68) – Se existe cinema marginal, é “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir. Grande vencedor do Festival de Brasília daquele ano. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.










19 – “O Anjo Nasceu”, Julio Bressane (69) – Gênio do cinema autoral da atualidade (haja vista que é vivo e segue produzindo), junto com Sganzerla originou o chamado cinema “udigrudi”, o underground brasileiro, que subvertia ainda mais a estética e narrativa do que o Cinema Novo. Segundo filme dele, que, embora tenha um pouco mais de história (o que o diretor praticamente abandonou a partir do final dos 70), é tomado de simbologias e metáforas, que, por sinal, embaralharam a cabeça dos militares, que o proibiram sem saber porquê.






20 – “Brasil Ano 2000”, Walter Lima Jr. (69) – Fala-se muito do “Macunaíma” (referencial certamente, mas um filme confuso), mas esse do Walter Lima é exemplar no que seria um cinema “tropicalista” e “antropofágico”. É um musical com trilha original do Gilberto Gil cujos temas são muito bem integrados à história, pois se trata de uma ficção surrealista inteligente e engraçada. Muita criatividade com pouco.