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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

"Othelo, O Grande", de Lucas H. Rossi dos Santos (2024)



Othelo, o ainda maior

Uma das características emblemáticas das personagens criadas por William Shakespeare é a profundidade existencial. Há sempre nelas uma série de sentimentos que lhes podem ser associados e, não raro, mais de um ao mesmo tempo. Inveja, rancor, ciúme, ganância, torpor, vaidade, estoicismo, insegurança, euforia, culpa. E quanto mais se leem as obras do autor inglês, mais se identificam essências do comportamento humano, como se nunca chegasse a decifrar a complexidade e a grandiosidade dessas personagens.

Não é por acaso que o maior ator brasileiro de todos os tempos tenha recebido, ainda na infância, quando começava a revelar seu talento nos palcos, uma alcunha referente a um personagem shakespeariano: Othelo. Afinal, para minimamente dimensionar o tamanho simbólico deste pequeno mineiro de extenso nome Sebastião Bernardes de Souza Prata para a arte brasileira é justo associá-lo a um personagem tão fascinante quanto controverso e cuja personalidade ainda é uma esfinge a ser decifrada mesmo 4 séculos após a estreia da peça original. 

Curiosamente, o documentário “Othelo, O Grande”, de Lucas H. Rossi dos Santos, espelha a mesma contradição: um grande filme, mas insuficiente para dar a ideia da grandiosidade de seu protagonista. Mas como classificar de "grande filme" se este aparentemente falha em expressar com inteireza exatamente o objetivo analisado? A resposta está no próprio "objeto" analisado, Grande Othelo.

A opção narrativa do filme concentra todas as explicações, das quais decorrem o que é bom e o que não é tanto assim. Construído em forma de autodepoimentos, o documentário se vale de diversas e muito bem pesquisadas entrevistas, vídeos e fotos do múltiplo Grande Othelo, ator, comediante, cantor, poeta, compositor, produtor e entrevistador. Diante do que se propõe a narrar, o material, aliás, dá conta muito bem. A começar pela impactante sequência inicial em que se escuta a voz do ator falando de si mesmo numa entrevista para o Museu da Imagem e do Som enquanto, num outro registro, este, visual, ele, à vontade no sofá de casa, mira com olhar penetrante a câmera, que o foca em zoom até fechar em seu rosto sob o som de um samba enfezado. A junção de tempos de cada material e o "descompasso" entre o que se fala e o que se cala expressam muito bem uma das ideias centrais de “Othelo, O Grande”: a dificuldade de inserção de um homem negro e fora dos padrões excludentes da sociedade em uma nação jovem e preconceituosa. Mas também, metaforicamente, acaba por simbolizar uma fragilidade do filme.

Olhar forte e penetrante do maior ator do Brasil na sequência inicial do filme

Com uma edição impecável, capaz de interligar ideias distintas da cosmologia do ator e imprimir um ritmo muito interessante à narrativa, visto que convidativo à observação e à reflexão, o filme acerta ao trazer a voz na primeira pessoa, recuperando falas de Grande Othelo como as que ele rememora a infância, a primeira experiência com a Companhia Negra de Revistas, nos anos 20, a vez em que contracenou com Josephine Baker e a admiração que despertou em Orson Welles. As falas também são contundentes, como as que reclama abertamente do racismo que sofreu, da falta de oportunidades na carreira e de ver seu talento relegado. É revelador ouvi-lo dizer, em certo momento, que a Atlântida, estúdio de cinema responsável pelo sucesso das chanchadas dos anos 40/50, tinha dois símbolos: o chafariz, que estampa sua logo, e... Oscarito. Piada, só que não. Qualquer um que minimamente conheça as comédias "teatro de revista" desta fase do cinema brasileiro se refere à dupla indistintamente como a cara da Atlântida. Na hora de assinar os contratos, no entanto, não era bem assim, visto que o ator negro entre os dois era menos valorizado.

Há uma certa melancolia e até sisudez na forma como a figura de Grande Othelo aparece, contrapondo a imagem cômica que o Brasil guardou dele do cinema ou da TV. Essa quebra ideológica, proposital e perfeitamente aceitável, abre porta, contudo, para um dos aspectos em que o filme peca, que ė não ter explorado tudo que seu protagonista ofereceu em vida. As entrevistas que Grande Othelo conduziu na TV, espaço desejado por todos os artistas da época, e as esquetes humorísticas na Globo nos anos 60 (quando batizou Antônio Carlos Bernardes Gomes de Mussum) não são visitados. Igualmente, as novelas em que brilhou, como “Feijão Maravilha” e “Uma Rosa com Amor”. Também, o lado não só sambista, mas de poeta ou o envolvimento com o comunismo, visto que mantinha amizade próxima com Luís Carlos Prestes. Aspectos que não são mencionados e que ajudariam bastante a dar maior consistência ao teor "não-satírico" proposto.

Na história da dramaturgia brasileira, a percepção de Grande Othelo mais como ator e não apenas "escada" para outros começa a mudar na segunda fase do Cinema Novo, nos anos 60. Ele relembra que foi Joaquim Pedro de Andrade que o fez, já veterano, renascer no tropicalista "Macunaíma", de 1969, uma analogia com a clássica cena do parto inicial do filme – muito bem aproveitada, aliás, sob esta perspectiva simbólica no documentário. A montagem em que faz passar da cena de Macunaíma no rio para a de “Fitzcarraldo” é digna de aplauso. Porém, novamente o diretor parece ter se preocupado em não exagerar na exemplificação da magnitude de seu protagonista. "Barão Othelo e o Barato dos Milhões", a comédia non-sense escrita especialmente por Miguel Borges para o ator em 1971, é restringida a poucas cenas ilustrativas e sem maiores créditos.

Cena de "Quilombo": ausente no filme
Outro aspecto sobre Grande Othelo ausente no filme salta aos olhos de quem se acostumou a vê-lo no cinema brasileiro dos últimos 50 anos. Sua participação em obras marcantes da cinematografia nacional, por menor que fosse, sempre teve o poder de abrilhantá-las. Poder, aliás, que atores experientes e com considerável bagagem atingem a partir de determinada fase da carreira, como Jack Nicholson em “Questão de Honra” ou Marlon Bando em "Apocalipse Now". O filme não esquece de ressaltar esse fator ao resgatar muito bem a ponta de Grande Othelo em "Fitzcarraldo", a grande produção de Werner Herzog filmada na Amazônia brasileira em 1982. No entanto, haveria mais. Othelo, quando em cena, redimensiona com sua atuação filmes como "Quilombo", em que faz o sábio Baba, "Natal da Portela" (Seu Napoleão) e "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia" (Dondinho). O filme, portanto, poderia ter trazido essa percepção exaltadora à figura de Grande Othelo, tão consciente na cultura norte-americana, dona da indústria cinematográfica mais pujante do mundo, e talvez muito pouco clara em terras tupiniquins.

Essa contradição, aliás, é desculpada até certo ponto em razão de refletir a própria vida de Grande Othelo, um artista subaproveitado. Fosse nos Estados Unidos, os diretores se estapeariam para colocá-lo em seus projetos. A se ver por Brando, cuja idolatria em seu país se assemelha a de Othelo no Brasil, não faltaram produções em que tenha protagonizado até que, por motivos próprios, se distanciasse das telas. Grande Othelo, pelo contrário, nunca o volume de convites acompanhou o reconhecimento popular. Até nisso o doc de Santos acerta indiretamente: não explora a totalidade da obra de um homem que não a teve em vida explorada em sua totalidade.

Mesmo com tudo isso, “Othelo, O Grande” é, sem dúvida, dos melhores documentários produzidos no país neste século. Excelentes edição, roteiro e condução. Entretanto, tal como o general mouro de Veneza, o Othelo do Brasil teria muito mais othelos para serem revelados, principalmente em um filme cujo título propõe, justamente, a dar a ideia do quão magnânimo é o seu homenageado. A sensação é que, mal comparando, ocorre com "Othelo,  O Grande" o mesmo que "O Palhaço" (Selton Mello): um ótimo filme que, por detalhe, perdeu a chance de ser uma obra-prima. Num documentário biográfico, não que seja obrigatório incluir tudo sobre o pesquisado, mas a impressão que fica é de que havia mais a ser dito e para conseguir amarrar tudo a seu jeito, preferiu-se omitir algumas coisas. 

O êxito da obra, embora essas lacunas, deve-se, claro, à competência de quem o dirigiu, capaz de lhe dar coesão e coerência discursiva ao que se propôs, mas também ao próprio personagem. Mesmo inexplorado, Grande Othelo garante ao espectador, principalmente, o brasileiro, o orgulho de também pertencer à mesma terra. Como falou o cineasta, professor e filósofo Dodô Oliveira: “Grande Othelo vive em mim”. Uma grandeza maior até do que aquilo que se silencia.

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trailer de "Othelo, O Grande"


"Othelo, O Gtrande"
Direção: Lucas H. Rossi dos Santos
Gênero: Documentário
Duração: 83 min.
Ano: 2024
País: Brasil
Onde encontrar: Cinemas


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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

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Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

terça-feira, 8 de julho de 2025

Claquete Especial Mês da Luta Antirracista - "A regra é o respeito"*

 

O competente e precursor De e seu Dogma Feijoada
Em 2000, o cineasta paulista Jeferson De, em colaboração com outros realizadores negros, lançava, durante o 11º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o chamado Dogma Feijoada, marco daquilo que se pode chamar de cinema negro brasileiro moderno. Embora a prática do audiovisual entre realizadores negros no Brasil se dê de muito antes, o movimento em si ainda parece bastante válido 25 anos após seu lançamento. De – que posteriormente prosseguiria contribuindo com a própria ideia de um cinema feito por negros com filmes como “Bróder”, de 2011, e “Doutor Gama”, de 2021 – apresentava um programa composto, além de outras atividades, pelo manifesto Gênese do Cinema Negro Brasileiro. Em referência ao Dogma 95, criado pelos cineastas europeus Thomas Vinterberg e Lars Von Trier cinco anos antes e que defendia a necessidade de produções mais realistas e menos comerciais, o Dogma Feijoada interrogava uma urgência histórica bem mais doméstica: “o que entendemos como cinema negro brasileiro?”

Dentre as diretrizes e exigências do manifesto, havia sete “regras” para a produção de um cinema negro: (1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; (5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; e (7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.

Tal como devem ser os manifestos políticos, o Dogma Feijoada trouxe o tema à tona de forma abertamente impositiva. Não haveria de ser de outro jeito. Afinal, estava-se, naquele momento, virada do século 20 para o 21, resgatando não apenas uma fatia econômico-produtiva dentro de uma indústria há muito existente no Brasil. Mas, sim, estava-se, ao menos no setor audiovisual, recuperando séculos de total desumanização de um povo pela prática da escravidão e outros quase 120 anos de sequestro intencional e deliberado da mão de obra negra após a Lei Áurea, de 1888, e o projeto estatal de embranquecimento e substituição dos “ex-escravos” por imigrantes europeus brancos.

"Kasa Branca!, dos exemplos da nova safra do
cinema preto brasileiro
Passadas mais de duas décadas desde a provocação de De e sua turma, a boa notícia é que, sim: avançou-se de lá para cá em termos de produção negra no cinema nacional. Senão em todos, pelo menos em vários dos requisitos elencados. Quando a Dogma Feijoada foi parar no estômago do cinema brasileiro, algumas ações na direção de uma maior equidade de oportunidades e compensação histórica estavam sendo preparadas. No Senado Federal, consolidava-se, também em 2000, o Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça. Naquele mesmo ano, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovava uma lei que reservava metade das vagas das universidades estaduais para estudantes de escolas públicas, semente do que resultaria na exitosa Lei de Cotas, conhecida também como Lei 12.711, aprovada em 2012. 

A realidade do audiovisual brasileiro mudou bastante, principalmente a partir de então. Mas é fato que ainda insuficiente para dar conta da demanda reprimida da comunidade negra. Em 2024, a Cinemateca Negra realizou um levantamento inédito, que mapeou 1.104 filmes dirigidos por pessoas negras no Brasil desde a década de 1940. O estudo revelou que 83% dessa produção surgiu, justamente, entre 2010 e 2020. Contudo, essa parcela representa somente 10% dos filmes brasileiros lançados no mesmo período.

Hoje é possível se verem filmes como “O Dia que te Conheci”, de 2024, dirigido pelo cineasta negro André Novais Oliveira e realizado pela produtora mineira Filmes de Plástico, que privilegia em suas produções personagens negros da vida real, ou seja, longe de se passarem por “super-heróis ou bandidos”. A “urgência” se evidencia ao abordar o tema da depressão e das pressões da vida social, enquanto o item da “cultura negra”, outra exigência posta em manifesto, está inserido de forma naturalizada em seus protagonistas, que tentam existir na cidade com suas ancestralidades e bagagens pessoais.

O tocante "O Dia que te Conheci": cinema negro 
em essência e na prática

Outro título emblemático para o novo cinema brasileiro é “Marte Um”, de 2022, também da Filmes de Plástico, este, dirigido pelo igualmente cineasta negro Gabriel Martins. Ao natural, também atende a todos os predicados ditados pelo Dogma Feijoada: protagonismo negro atrás e na frente da tela, representação da vida de pessoas comuns, questões sociais imperiosas, quebra dos modelos preconcebidos, projeto exequível. E o mais importante: ambos são histórias bem contadas, humanas, tocantes, que aproximam tanto o público negro da tela quanto demonstra a realizadores afrodescendentes que, sim, “nós podemos” realizar um cinema honesto e de qualidade sobre as nossas coisas.

Bulbul, figura essencial para o
cinema negro no Brasil
Se “O Dia que te Conheci”, “Marte Um” e outros filmes da atualidade (como “Kasa Branca”, “Mussum - O Films” e “Othelo, O Grande”) representam o objetivo traçado anos atrás, é evidente que, para se chegar a tal estágio, muito se precisou caminhar. Precursores do cinema negro brasileiro, como Cajado Filho e Haroldo Costa, tiveram em Zózimo Bulbul, Adélia Sampaio, Odilon Lopes e Joel Zito Araújo, principalmente, a consolidação de um cinema preto no Brasil. 

No entanto, o que pareceu escapar à ambição momentânea do grupo do Dogma Feijoada é um dos gargalos do cinema nacional atualmente: como distribuir e onde exibir tais produções? Como fazer esse cinema tão importante para a autoidentificação de um país chegar ao público de interesse? Numa busca na internet por alguns títulos nacionais que tratam das questões do negro, como “Todos Somos Irmãos” (1949) ou “Quilombo” (1984), é possível encontrá-los disponíveis no Youtube. Porém, vários outros, principalmente os mais recentes, somente nos streamings – e de forma paga. 

Com salas de cinema cada vez mais escassas, iniciativas como a 1ª Mostra de Cinema Negro na Escola, que ocorre até dia 11 na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, são louváveis. Com sessões gratuitas e uma seleção de filmes negros brasileiros, a iniciativa irá exibir filmes com temática afro-brasileira para estudantes e professores de 50 escolas estaduais e municipais da capital e da região metropolitana, atingindo cerca de cinco mil alunos e docentes.

Em um mês marcado por várias datas de combate ao racismo (Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, 3, Dia Internacional Nelson Mandela, 18, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, 25), é fundamental que iniciativas e programas públicos como este fomentem a exibição de produções pretas como forma de ampliar o acesso ao que realizadores negros têm a dizer e ao que os olhares (sejam pretos ou não) têm a enxergar. Aproximar o público daquilo que lhe interessa e pertence. A visibilidade das histórias e contribuições da comunidade negra deve proporcionar um espaço de reflexão e diálogo, tão fundamental a uma sociedade democrática que se pretende igualitária. E sem que se precise enumerar regras para isso, como a bem pouco tempo. Oxalá a única regra seja ditada por apenas uma sentença: respeito. 

*artigo originalmente publicado no Segundo Caderno do jornal Correio do Povo em 27 de junho de 2025


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Daniel Rodrigues