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domingo, 15 de agosto de 2021

O Dia em que a Arte Dramática Brasileira Morreu

 

Em 2007, quando, com diferença de menos de 24 horas, os cineastas Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleciam, aquela fatídica virada de 29 para 30 de julho ficou conhecida como o “dia em que o cinema moderno morreu”. Semelhante sensação de perda e de triste coincidência se abateu sobre o mundo das artes dramáticas brasileira entre 11 e 12 deste mês de agosto ao despedirmo-nos de dois ícones: Paulo José e Tarcísio Meira. Poucas vezes em tão pouco tempo foi-se embora tanta beleza, tanta significância, tendo em vista a história de cada um para o cinema, a TV e o teatro brasileiros. Até mesmo na vida pessoal pareceram-se. Um, com 84, o outro, com um ano a mais. Na vida pessoal, amaram com fidelidade poucas mulheres igualmente do seu ciclo de atores: Tarcísio, casado com Glória Menezes por 61 anos; Paulo, viúvo de Dina Sfat e, posteriormente, parceiro da também atriz Zezé Polessa.

Paulo em "O Palhaço":
sensibilidade de veterano
Pertencentes a uma geração rara que forjou as artes cênicas no País, como Paulo Gracindo, Cacilda Becker, Sérgio Brito, Walmor Chagas, Bibi Ferreira e Paulo Autran, Paulo e Tarcísio, por meio desse ímpeto pioneiro, ajudaram a esculpir de certa forma o que conhecemos de Brasil. Tanto que é impensável pensar no teatro, no cinema ou na TV sem lembrar de ambos. Paulo, no teatro, criou o Teatro de Equipe, dirigiu o Teatro de Arena, encenou Guarnieri e Molière. Tarcísio, por sua vez, também forjado nos palcos e Prêmio Shell de Teatro por “O Camareiro”, ia de Shakespeare a Keiser.

Mas é no audiovisual que a carreira tanto de um quanto de outro se fez popular, por vários antagônicos motivos – o que só prova suas versatilidades. Como outro grande das artes cênicas recentemente falecido, o sueco Max Von Sydow, capaz de interpretar Jesus Cristo e um cavaleiro assombrado pelo Diabo, Tarcísio, especialmente, foi da cruz ao inferno. Assim como Sydow, o brasileiro foi o Salvador em “A Idade da Terra”, de Glauber Rocha e, noutro extremo, fez a encarnação do demônio ao interpretar o vilão Hermógenes, de “O Grande Sertão: Veredas”, série dirigida por Walter Avancini para a Globo. Com Paulo, não é tão diferente. Se viveu o angustiado religioso de “O Padre e a Moça”, também vestiu o fanfarrão “Macunaíma”, noutro marco do Cinema Novo. 

"O Padre e a Moça", com Paulo José (1966)

"O Beijo no Asfalto", com Tarcísio Meira (1980)


Tarcisão na atuação
premiada de "A Muralha"
Aliás, não faltaram grandes que os dirigissem. Tarcisão, além dos já citados Glauber e Avancini, encarnou “O Marginal” no ótimo e raro filme de Carlos Manga pós-Chanchada, e protagonizou uma das mais emblemáticas cenas da história do cinema nacional com o “beijo mortal” de “O Beijo no Asfalto”, de Bruno Barreto. Tarcísio, e mais ninguém, teria tamanha autoridade para ser D. Pedro II ou o asqueroso Dom Jerônimo Taveira de “A Muralha” ou o “regenerado” Renato Villar de “Roda de Fogo”. 

Paulo, por sua vez, esteve sob as lentes de Joaquim Pedro de Andrade, Jorge Furtado, Domingos Oliveira, Júlio Bressane... Como não lembrar de seus papéis em “Faca de Dois Gumes”, do Murilo Salles, “O Palhaço”, do Selton Mello, “O Rei da Noite”, do Babenco?... Isso quando não era ele mesmo quem dirigia! Paulo oportunizou algo que une e simboliza a obra desses dois gigantes quando dirigiu, gaúcho como era, a série “O Tempo e o Vento”, da obra de Erico Verissimo, dando a Tarcísio com sabedoria o papel de Capitão Rodrigo, aquele que talvez melhor tenha marcado o ator paulista, mas que, com seu talento, identificou-se profundamente com os gaúchos. 

Considerando que, desta geração nascida por volta dos anos 30 e que erigiu a arte de encenar no maior país da América depois dos Estados Unidos, resta apenas Fernanda Montenegro (vida longa!), não é exagero dizer que esta semana de agosto de 2021 poderá ser lembrada pelo “dia em que a arte dramática brasileira morreu”. 

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PAULO JOSÉ GÓMEZ DE SOUSA
(1937-2021)



TARCÍSIO PEREIRA DE MAGALHÃES SOBRINHO
(1935-2021)



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

"Othelo, O Grande", de Lucas H. Rossi dos Santos (2024)



Othelo, o ainda maior

Uma das características emblemáticas das personagens criadas por William Shakespeare é a profundidade existencial. Há sempre nelas uma série de sentimentos que lhes podem ser associados e, não raro, mais de um ao mesmo tempo. Inveja, rancor, ciúme, ganância, torpor, vaidade, estoicismo, insegurança, euforia, culpa. E quanto mais se leem as obras do autor inglês, mais se identificam essências do comportamento humano, como se nunca chegasse a decifrar a complexidade e a grandiosidade dessas personagens.

Não é por acaso que o maior ator brasileiro de todos os tempos tenha recebido, ainda na infância, quando começava a revelar seu talento nos palcos, uma alcunha referente a um personagem shakespeariano: Othelo. Afinal, para minimamente dimensionar o tamanho simbólico deste pequeno mineiro de extenso nome Sebastião Bernardes de Souza Prata para a arte brasileira é justo associá-lo a um personagem tão fascinante quanto controverso e cuja personalidade ainda é uma esfinge a ser decifrada mesmo 4 séculos após a estreia da peça original. 

Curiosamente, o documentário “Othelo, O Grande”, de Lucas H. Rossi dos Santos, espelha a mesma contradição: um grande filme, mas insuficiente para dar a ideia da grandiosidade de seu protagonista. Mas como classificar de "grande filme" se este aparentemente falha em expressar com inteireza exatamente o objetivo analisado? A resposta está no próprio "objeto" analisado, Grande Othelo.

A opção narrativa do filme concentra todas as explicações, das quais decorrem o que é bom e o que não é tanto assim. Construído em forma de autodepoimentos, o documentário se vale de diversas e muito bem pesquisadas entrevistas, vídeos e fotos do múltiplo Grande Othelo, ator, comediante, cantor, poeta, compositor, produtor e entrevistador. Diante do que se propõe a narrar, o material, aliás, dá conta muito bem. A começar pela impactante sequência inicial em que se escuta a voz do ator falando de si mesmo numa entrevista para o Museu da Imagem e do Som enquanto, num outro registro, este, visual, ele, à vontade no sofá de casa, mira com olhar penetrante a câmera, que o foca em zoom até fechar em seu rosto sob o som de um samba enfezado. A junção de tempos de cada material e o "descompasso" entre o que se fala e o que se cala expressam muito bem uma das ideias centrais de “Othelo, O Grande”: a dificuldade de inserção de um homem negro e fora dos padrões excludentes da sociedade em uma nação jovem e preconceituosa. Mas também, metaforicamente, acaba por simbolizar uma fragilidade do filme.

Olhar forte e penetrante do maior ator do Brasil na sequência inicial do filme

Com uma edição impecável, capaz de interligar ideias distintas da cosmologia do ator e imprimir um ritmo muito interessante à narrativa, visto que convidativo à observação e à reflexão, o filme acerta ao trazer a voz na primeira pessoa, recuperando falas de Grande Othelo como as que ele rememora a infância, a primeira experiência com a Companhia Negra de Revistas, nos anos 20, a vez em que contracenou com Josephine Baker e a admiração que despertou em Orson Welles. As falas também são contundentes, como as que reclama abertamente do racismo que sofreu, da falta de oportunidades na carreira e de ver seu talento relegado. É revelador ouvi-lo dizer, em certo momento, que a Atlântida, estúdio de cinema responsável pelo sucesso das chanchadas dos anos 40/50, tinha dois símbolos: o chafariz, que estampa sua logo, e... Oscarito. Piada, só que não. Qualquer um que minimamente conheça as comédias "teatro de revista" desta fase do cinema brasileiro se refere à dupla indistintamente como a cara da Atlântida. Na hora de assinar os contratos, no entanto, não era bem assim, visto que o ator negro entre os dois era menos valorizado.

Há uma certa melancolia e até sisudez na forma como a figura de Grande Othelo aparece, contrapondo a imagem cômica que o Brasil guardou dele do cinema ou da TV. Essa quebra ideológica, proposital e perfeitamente aceitável, abre porta, contudo, para um dos aspectos em que o filme peca, que ė não ter explorado tudo que seu protagonista ofereceu em vida. As entrevistas que Grande Othelo conduziu na TV, espaço desejado por todos os artistas da época, e as esquetes humorísticas na Globo nos anos 60 (quando batizou Antônio Carlos Bernardes Gomes de Mussum) não são visitados. Igualmente, as novelas em que brilhou, como “Feijão Maravilha” e “Uma Rosa com Amor”. Também, o lado não só sambista, mas de poeta ou o envolvimento com o comunismo, visto que mantinha amizade próxima com Luís Carlos Prestes. Aspectos que não são mencionados e que ajudariam bastante a dar maior consistência ao teor "não-satírico" proposto.

Na história da dramaturgia brasileira, a percepção de Grande Othelo mais como ator e não apenas "escada" para outros começa a mudar na segunda fase do Cinema Novo, nos anos 60. Ele relembra que foi Joaquim Pedro de Andrade que o fez, já veterano, renascer no tropicalista "Macunaíma", de 1969, uma analogia com a clássica cena do parto inicial do filme – muito bem aproveitada, aliás, sob esta perspectiva simbólica no documentário. A montagem em que faz passar da cena de Macunaíma no rio para a de “Fitzcarraldo” é digna de aplauso. Porém, novamente o diretor parece ter se preocupado em não exagerar na exemplificação da magnitude de seu protagonista. "Barão Othelo e o Barato dos Milhões", a comédia non-sense escrita especialmente por Miguel Borges para o ator em 1971, é restringida a poucas cenas ilustrativas e sem maiores créditos.

Cena de "Quilombo": ausente no filme
Outro aspecto sobre Grande Othelo ausente no filme salta aos olhos de quem se acostumou a vê-lo no cinema brasileiro dos últimos 50 anos. Sua participação em obras marcantes da cinematografia nacional, por menor que fosse, sempre teve o poder de abrilhantá-las. Poder, aliás, que atores experientes e com considerável bagagem atingem a partir de determinada fase da carreira, como Jack Nicholson em “Questão de Honra” ou Marlon Bando em "Apocalipse Now". O filme não esquece de ressaltar esse fator ao resgatar muito bem a ponta de Grande Othelo em "Fitzcarraldo", a grande produção de Werner Herzog filmada na Amazônia brasileira em 1982. No entanto, haveria mais. Othelo, quando em cena, redimensiona com sua atuação filmes como "Quilombo", em que faz o sábio Baba, "Natal da Portela" (Seu Napoleão) e "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia" (Dondinho). O filme, portanto, poderia ter trazido essa percepção exaltadora à figura de Grande Othelo, tão consciente na cultura norte-americana, dona da indústria cinematográfica mais pujante do mundo, e talvez muito pouco clara em terras tupiniquins.

Essa contradição, aliás, é desculpada até certo ponto em razão de refletir a própria vida de Grande Othelo, um artista subaproveitado. Fosse nos Estados Unidos, os diretores se estapeariam para colocá-lo em seus projetos. A se ver por Brando, cuja idolatria em seu país se assemelha a de Othelo no Brasil, não faltaram produções em que tenha protagonizado até que, por motivos próprios, se distanciasse das telas. Grande Othelo, pelo contrário, nunca o volume de convites acompanhou o reconhecimento popular. Até nisso o doc de Santos acerta indiretamente: não explora a totalidade da obra de um homem que não a teve em vida explorada em sua totalidade.

Mesmo com tudo isso, “Othelo, O Grande” é, sem dúvida, dos melhores documentários produzidos no país neste século. Excelentes edição, roteiro e condução. Entretanto, tal como o general mouro de Veneza, o Othelo do Brasil teria muito mais othelos para serem revelados, principalmente em um filme cujo título propõe, justamente, a dar a ideia do quão magnânimo é o seu homenageado. A sensação é que, mal comparando, ocorre com "Othelo,  O Grande" o mesmo que "O Palhaço" (Selton Mello): um ótimo filme que, por detalhe, perdeu a chance de ser uma obra-prima. Num documentário biográfico, não que seja obrigatório incluir tudo sobre o pesquisado, mas a impressão que fica é de que havia mais a ser dito e para conseguir amarrar tudo a seu jeito, preferiu-se omitir algumas coisas. 

O êxito da obra, embora essas lacunas, deve-se, claro, à competência de quem o dirigiu, capaz de lhe dar coesão e coerência discursiva ao que se propôs, mas também ao próprio personagem. Mesmo inexplorado, Grande Othelo garante ao espectador, principalmente, o brasileiro, o orgulho de também pertencer à mesma terra. Como falou o cineasta, professor e filósofo Dodô Oliveira: “Grande Othelo vive em mim”. Uma grandeza maior até do que aquilo que se silencia.

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trailer de "Othelo, O Grande"


"Othelo, O Gtrande"
Direção: Lucas H. Rossi dos Santos
Gênero: Documentário
Duração: 83 min.
Ano: 2024
País: Brasil
Onde encontrar: Cinemas


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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 1 de março de 2021

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 2000

 

Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade. 

Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.

Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintasCentral do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.




01 - “O Invasor”, de Beto Brant (2001) - Para começar de vez a década, nada melhor que um filme marcante. O terceiro longa de Brant avança na sua estética orgânica e tramas que dialogam com a literatura (roteiro do próprio autor Marçal Aquino) para contar a história de três amigos sócios em uma empresa, que entram em crise entre si. Para resolver uma “questão”, contratam o matador Anísio (Paulo Miklos, impecável), mas acabam por comprar uma maior ainda. Não deu outra: abocanhou vários prêmios, entre estes Melhor Filme Latinoamericano em Sundance, Melhor Filme no Festival de Recife e vários em Brasília, entre eles direção, trilha sonora, prêmio da crítica e ator revelação para Miklos. 



02 - “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (01) - Sabe o caminho para as coproduções reaberto por Carla Camuratti e os Barreto na década anterior? Resultou, entre outras obras, no divertido e brilhante “O Xangô...”, baseado no best-seller de Jô Soares. A invencionice de contextualizar um thriller de Sherlock Holmes em plena Rio de Janeiro do final do século XIX dá muito certo na adaptação de Faria Jr., que equilibra muito bem atores estrangeiros (Joaquim de Almeida, Anthony O'Donnell, Maria de Medeiros) com craques brasileiros (Marco Nanini, Cláudio Marzo, Cláudia Abreu e o próprio Jô, que faz uma ponta). Produção de um nível como raras vezes se viu no cinema brasileiro até então. Vencedor de alguns prêmios no Brasil e no exterior, com destaque para a direção de arte de Marcos Flaksman e figurino da dupla Marilia Carneiro e Karla Monteiro. 



03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.



04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.




05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios  entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.


06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.




07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



08 - “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (02) - Quando Lírio Ferreira e Paulo Caldas rodaram “Baile Perfumado”, em 1996, já era o prenúncio de uma geração pernambucana que elevaria o nível de todo o cinema brasileiro poucos anos depois. O principal nome desta turma é Cláudio Assis. Dono de uma estética altamente própria e apurada, ele expõe como somente um recifense poético e realista poderia as belezas e as feiuras da sua cidade – nem que para isso tenha que extrair beleza da feiura. Texto e atuações impactantes, que dialogam com o teatro moderno e a escola realista. Injusto destacar alguma atuação, mas podem-se falar pelo menos de Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele e Leona Cavalli. Presente nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abraccine, ainda levou Brasília, CineCeará, Toulouse e o Fórum de Cinema Novo do Festival de Berlim. Mas os pernambucanos estavam apenas começando...



09 - “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (02) - A retomada do cinema brasileiro trouxe consigo velhos militantes, como Babenco e Cacá Diegues, mas fez um bem especial ao maior documentarista do mundo: Eduardo Coutinho. O autor do melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra Marcado para Morrer”, engrena uma série de realizações essenciais para o gênero, que se redescobre pujante e capaz num Brasil plural após uma década de redemocratização. Coutinho inicia sua trajetória no então novo século com esta obra-prima, pautada como sempre por seu olhar investigativo e sensível, que dá espaço para o “filmado” sem impor-lhe uma pré-concepção. Afinal, para que, já que o próprio ato de filmar exprime esse posicionamento? Melhor doc em Gramado, Havana, Margarida de Prata, APCA e Mostra de SP.


10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros. 



11 - “Estamira”, de Marcos Prado (04) - Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.


12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.



13 - "Santiago",
de João Moreira Salles (07) - O atuante empresário e banqueiro João Moreira Salles, desde muito envolvido com cinema como o irmão Waltinho, já havia realizado aquele que poderia ser considerada a sua obra essencial, "Notícias de uma Guerra Particular", de 1999. Porém, foi quando ele voltou sua câmera para si próprio que acertou em cheio. Diz-se um olhar interior, porém, quebrando-se a "quarta parede" de forma incomum e subjetiva, uma vez que o personagem principal não é ele mesmo, mas o homem que dá título ao filme: o culto e enigmático mordomo espanhol da abastada família Salles, que cuidara dele e de seus irmãs na idílica infância. Misto de memória, confissão, resgate sentimental, registro antropológico e, claro, cinema em essência. A locução sóbria mas presente do irmão Fernando, a estética p&b, as referências ao cinema íntimo de Mizoguchi e as lembranças de um passado irrecuperável dão noção da força metalinguística que o filme carrega. 
Vários prêmios e presença nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abracine.



14 - “Estômago”, de Marcos Jorge (07) - Aquela expressão "conquistar pelo estômago" talvez não se adapte muito bem a este peculiar filme que junta suspense, drama, comédia e certa dose de escatologia. A abordagem dada por Marcos Jorge ao criativo roteiro justifica o título ao pautar as relações e as atitudes pelo instintivo, pelo animalesco. Assim, comida, sexo, sangue e poder se confundem, reelaborando a ideia de quem conquista quem. Por falar em conquista, aliás, o cineasta estreou emplacando o filme brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior em 2008-2009, vencedor de 39 prêmios, sendo 16 internacionais.


15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.



16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.



17 - “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (2007) - O cinema gaúcho da primeira década do novo século não se resumiu à entrada da turma da Casa de Cinema ao círculo de longas nacional. Surgiam novos talentos imbuídos de ideias ainda menos tradicionais e renovadoras, como Gustavo Spolidoro. Em seu primeiro e marcante longa ele capta a intensidade e a veracidade de uma Porto Alegre ainda "longe demais das capitais", mas que, como toda metrópole, não para - literalmente. O filme, um exercício ousado de plano-sequência, tem até em seus “erros” técnicos qualidades que o alçam a cult, influenciando outros realizadores como Beto Brant e cenas independentes de cinema noutros estados brasileiros. Melhor Filme em Milão e em Lima, que deu Melhor Ator (Roberto Oliveira), e Prêmio Destaque do Júri em Tiradentes. Sabe os oscarizados "Birdman" e "1917". feitos em plano-sequência? Pois é: devem a "Ainda Orangotangos" mesmo que não saibam.




18 - “Meu Nome não É Johnny”, de Mauro Lima (08) - Outra joia do cinema nacional, filme que melhor aproveita o versátil Selton, total condutor da narrativa ao interpretar o junkie “curtidor”, mas profundamente depressivo João Estrella. A história real de sexo, drogas e rock n roll (e tráfico também) remonta um período de curtição lisérgica da juventude classe média carioca dos anos 80, ora aventura, ora comédia, como a própria história mostra, envereda para o drama. Tudo na medida certa. Filme de sequências impagáveis, como a briga na cadeia com os africanos e a entrega de cocaína na repartição pública. Além de Miami, ABC, ACIE e outros, levou pra casa uma mala cheia no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.



19 - “O Mistério do Samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque (08) - O gênero documentário algumas vezes veste-se de pompas antropológicas. Como a âncora Marisa Monte diz no disco que produziu da Velha Guarda da Portela 9 anos antes deste filme, registrar a obra desses nobres artistas do subúrbio é perpetuar uma parte da cultura popular quase em extinção. Parecia premeditar que, nos anos seguintes ao filme, morreriam sete integrantes do grupo, todos de adiantada idade e vida dura, semelhantemente com o que ocorrera com os membros da banda de outro doc parecido em natureza e grandeza: "Buena Vista Social Club" (Win Wenders, 99). Na hora certa, a dupla de diretores conseguiu por suas câmeras a serviço de uma história cheia de poesia e que conta-se por si. Memoráveis cenas dos pagodes na quadra da escola, algumas das mais emocionantes do cinema brasileiro. Seleção oficial de Cannes e Grande Prêmio Vivo em 2009.



20 - “Linha de Passe”,
de Walter Salles Jr. (08) - 
Waltinho é, definitivamente, dos principais nomes do cinema brasileiro moderno. Responsável por manter o então raro alto nível da produção cinematográfica do Brasil nos anos 90, emplacando o cult “Terra Estrangeira” e o primeiro Urso de Ouro em Berlim do País com “Central do Brasil”, nos anos 2000 ele já havia chegado ao máximo que um cineasta pode alcançar: sucesso em Hollywood. Porém, a vontade de contar histórias de nobres pessoas comuns o faz voltar à terra natal para realizar essa linda trama coral, tocante e reveladora, abordando algo por incrível que pareça não tão recorrente nos enredos justo do cinema brasileiro: o futebol. Não levou Palma de Ouro, mas foi aplaudido por nove minutos durante o Festival de Cannes, além de ganhar o de melhor atriz pela atuação de Sandra Corveloni. Parte dos méritos vai pra Fátima Toledo, que aplica seu método ao elenco com alta assertividade.




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Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância: 

"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05);  “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho  (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07);  “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07);  “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).

Daniel Rodrigues