Eu e Marcelo na abertura da exposição
A Aventura de Criar - Galeiria Duque, maio 2015
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Acervo de Elis da CCMQ
Jornal Zero Hora - 22/09/2005
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Eu e Fernando Brant na inauguração do UBC
em Porto Alegre em 2006
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Eu e Marcelo na abertura da exposição
A Aventura de Criar - Galeiria Duque, maio 2015
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Acervo de Elis da CCMQ
Jornal Zero Hora - 22/09/2005
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Eu e Fernando Brant na inauguração do UBC
em Porto Alegre em 2006
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Acho que ninguém em perfeito juízo discorda de que Elis Regina foi uma das melhores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Logicamente, em pleno gozo de minha sanidade, me junto a esse coro quase unânime entre os apreciadores de música neste país. Embora admire seu repertório, é uma artista da qual não domino informações sobre sua obra. Talvez pelo fato de que alguns de seus clássicos apareçam em maus de um formato, em mais de um álbum, com parceiros diferentes, etc. Tem "Águas de Março", com Tom, sem Tom, ao vivo, no estúdio, alegre, emburrada..; tem "Tiro ao Álvaro", com Adoniram, sem Adoniram, no disco solo, dando risada no do programa de TV; tem "Bêbado e a Equilibrista", bêbada, sóbria, equilibrada, caindo... e nisso, ainda que idolatrando a cada uma dessas versões, cada interpretação, eu sempre tão interessado em datas, set-lists, álbuns, etc., nunca me esforcei em saber onde se localizavam essas músicas na discografia de Elis Regina.
Só que de uns tempos pra cá, vinha observando a constante referência a um álbum específico e ele, então, passou a me chamar atenção. "Falso Brilhante" era destacado em sites como um dos melhores discos de Elis, aparecia em listas de melhores discos brasileiros, era mencionado como influência por algum músico da minha preferência, era amplamente reverenciado aqui e acolá, e aí que fui atrás de mais informações sobre o tal disco.
Era o disco de "Fascinação", um dos maiores clássicos do repertório da cantora, numa interpretação inesquecível de uma delicadeza precisa e emocionante. Mas também era o disco de "Como Nossos Pais", o rock de Belchior que tentava dar uma sacudida numa juventude estagnada, e que Elis interpretava com uma força e uma intensidade absurdas. Inigualáveis! Sim era Elis cantando rock! E não era o único: "Velha Roupa Colorida", também de Belchior, e também sobre atitude, era outra canção carregada de rock'roll e que, igualmente Elis depositava garra, potência, vibração, chegando a rasgar a voz, dando tudo de si, num dos melhores momentos do álbum. Mas há outros pontos altos: "Gracias a la Vida", de Violeta Parra parece carregar a força da resistência da mulher latina contra os regimes autoritários que prevaleciam aqui e no Chile, terra da autora. Bem como "Los Hermanos", do argentino Atahualpa Yupanqui, uma espécie de convocação à união em nome da mais bela "irmã", a liberdade.
E tem ainda três de João Bosco com Aldir Blanc, "Um por todos", "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", sempre com a sonoridade rica e aquele tom ácido característico da dupla; e pra fechar ainda, uma versão de arrepiar de "Tatuagem" de Chico Buarque, numa releitura ímpar, na interpretação de Elis.
Alguns afirmam que "Falso Brilhante" seria o disco em Elis que cantava rock, e se formos parar para analisar, não está muito longe da verdade: as duas de Belchior, logo de saída; "Quero", muito Beatles; a releituras de Bosco e Blanc, pungentes e carregadas nas guitarras; e mesmo as duas versões dos hermanos, andinos e platenses, que exploram, combinam e incorporam as alternativas e possibilidades de outros ritmos e nacionalidades, como tão bem costuma fazer o rock'n roll.
Se "Falso Brilhante" é o disco rock de Elis, acho que, possivelmente, deva ser por isso que gosto tanto dele. O brilho verdadeiro de uma estrela. Um diamante cuidadosamente lapidado. Uma verdadeira joia musical.
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FAIXAS:
1. Como Nossos Pais (Belchior)A Rainha do Rock Brasileiro, que comemora 40 anos de seu "Lança Perfume" |
Elis com o figurino inspirado em Rita Lee |
Eu e minha irmã na época em que conhecemos "A Arca de Noé" |
Museu Clube da Esquinsa, entre a Paraisópolis e Divinópolis, em Santa Tereza (BH) |
Capa do livro "Coração Americano" |
Fernando Brant e Milton Nascimento à época do Clube da Esquina |
Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois.
Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.
Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali.
O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu.
Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos.
Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.
Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!
Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes.
“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.
“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.
O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.
Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.
Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito.
Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins.
O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado.
Tanto é que nós, como se parentes ou súditos muito próximos, haja vista que sua arte perfaz nossas vidas desde crianças, aqui estamos reunidos para celebrar os 80 anos deste baiano que quis falar com Deus e conseguiu. Gentes de diferentes idades, estados, profissões, mas impregnados da mesma admiração pela vasta, vastíssima obra de Gil, um autor, assim como o mano Caetano Veloso – o próximo oitentão da turma – capaz de produzir misteriosamente com uma qualidade superior por décadas a fio praticamente sem quebras neste alto padrão artístico.
O “nós” a quem me refiro, claro, inclui-me, mas vai além
disso. Somos oito seguidores da egrégora Gil das áreas do jornalismo, da arquitetura, da biblioteconomia,
da arquitetura, da produção cultural e outros e, claro, da própria música. O talentoso
músico paulista Mauricio Pereira, que já versou Gil n’Os Mulheres Negras, é um
dos que generosamente colaboram conosco elencando suas preferidas. Como ele, tivemos a árdua tarefa de escolher
cada um 10 músicas, chegando, devota e festivamente, à soma de 80, igual a suas primaveras
completas no último 26 de junho.
Creio que, daqui a 2 anos, quando Chico Buarque completar esta
mesma idade (o que todos esperamos), talvez haja comoção parecida. Mas somente
parecida. Gil guarda particularidades junto ao coração das pessoas que somente ele é capaz de provocar. Tanto que não foi assim quando Roberto chegou ao time dos oitentões, nem com Erasmo, Tom Zé, Flora, Hermeto, Donato e nenhum outro da música brasileira que já tenha rompido
a barreira das oito décadas. Além de recentemente sentar-se na cadeira da
eternidade da Academia Brasileira de Letras, ratificando o que construiu ao
longo de 60 anos de carreira, a própria imortalidade, este aniversário de Gil é
um aniversário de todos: dos fãs, dos brasileiros, da América preta e mestiça,
da África diáspora, da cultura latino-americana, da arte universal. De nós.