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segunda-feira, 16 de outubro de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (última parte)

 

Coutinho dirige e atua em seu "Cabra...", um dos 10
maiores e um dos 5 filmes do diretor na lista
Chegamos, enfim, ao momento mais aguardado: o final do nosso especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. Ou melhor, o início, já que seguimos uma ordem numeral inversa, partindo dos últimos da lista para, agora, os primeiros. Chegou a hora de dar fim a um dos conteúdos especiais alusivos aos 15 anos do Clyblog em 2023, iniciada em abril e publicado em cinco partes ano longo dos meses. Nossa proposta foi trazer aqui, de forma criteriosa e misturando noções de crítica e história do cinema com preferências pessoais, títulos que representassem o cinema brasileiro neste corte temporal. E justamente num ano em que o cinema brasileiro completou 125 de nascimento segundo a efeméride oficial. O que não invalida a nossa intenção, a qual teve como referência, se não a gênese da produção cinematográfica nacional, em 1898, outro marco inconteste para a história da cultura audiovisual sul-americana, que é a exibição do mais antigo filme brasileiro preservado: “Os Óculos do Vovô”, de 1913.

Embora as corriqueiras e até salutares ausências (afinal, listas servem muito para que outras também sejam compostas), o que se viu aqui ao longo da extensa classificação foram títulos da maior importância e qualidade daquilo que foi produzido no cinema do Brasil neste mais de um século. De produções clássicas, passando pela fase muda, os alternativos, o cinema da atualidade aos sucessos de bilheteria. Num país de dimensão continental, houve trabalhos do Norte ao Sul, com representantes de seis estados da nação: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. Entre as décadas, leva pequena vantagem os anos 60 sobre os 80 e 2000, com 25, 24 e 23 títulos respectivamente, dando uma boa ideia dos períodos de maior incentivo à produção 

Diretores consagrados e filmes marcantes para a cinematografia brasileira e mundial também percorreram a listagem de cabo a rabo. Nomes como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Hector Babenco, Kléber Mendonça Filho, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho e Joaquim Pedro de Andrade se fizeram presentes de forma consistente e todos com mais de um título, provando sua importância basal para a concepção formativa do cinema brasileiro. Glauber, maior cineasta brasileiro, encabeça, com seis filmes, seguido de Coutinho, com cinco, e Nelson, Leon e Babenco, com quatro cada. Porém, os novatos, nem por isso deixaram de também demarcarem seus espaços, feito talvez ainda mais louvável uma vez que, com pouco tempo de realização, já figuram entre os grandes. Caio Sóh, com “Canastra Suja”, de 2018, (107º colocado), Gustavo Pizzi, de “Benzinho” (2018), e Gabriel Martins, com “Marte Um”, de 2022 (79º) estão aí para provar.

Katia, uma das 7 cineastas
mulheres: pouca representatividade
Embora em menor número, as diretoras não deixam de contribuir com seu talento ímpar. Kátia Lund (com duas co-direções, junto a Fernando Meirelles e a João Moreira Salles), Anna Muylaert, Daniela Thomas (“Terra Estrangeira”, com Walter Salles Jr.), Sandra Kogut, Laís Bodanzky, Tatiana Issa e Suzana Amaral formam o time de sete cineastas mulheres, que dão um pouco de diversidade à lista. Muito a se evoluir? Sim. Representatividades negras, LGBTQIAPN+ e indígenas aparecem de maneira periférica, até superficial, consequência natural participação de tais minorias na economia cultural brasileira ao longo da história. Quem sabe, daqui a mais uns anos não se precise demorar tanto mais para que se incluam definitivamente entre os essenciais do cinema brasileiro?

Outro recorte que vale ser frisado são os documentários, que se estendem por todas as postagens dessa série. Além de contarem com um dos dois mais representativos realizadores, Coutinho, rivalizam muito bem com as ficções, totalizando nada mais nada menos que 13 títulos neste formato, 11,8% do geral. Enfim, análises que podem se deduzir a uma coleção de filmes tão interessantes e simbólicos de uma nação, aqui representados por aqueles mais bem colocados e, de certa forma, mais significativos. Por isso, diferentemente do que vínhamos procedendo até então, ao invés de comentarmos apenas de 5 e 5, todos desta vez merecem algumas palavras. Afinal, eles podem se vangloriar de serem os 10 melhores filmes brasileiros de todos tempos. Ao menos, nesta singela e propositiva seleção. 

************

10.
“Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (1980) 

Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassistência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.




09. “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (1981)
Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.


08. ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984) 
Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.


07“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



06. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (1965)
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima pouco lembrada.


05. 
"O Cangaceiro”, Lima Barreto (1953)
No nível do que Nelson Pereira faria com Jorge Amado e Ruy com Chico Buarque anos mais tarde, Lima Barreto teve a o privilégio de contar com diálogos escritos por Raquel de Queiroz. O que já seria suficiente ainda é completado por um filme de narrativa e condução perfeitas, com uma trilha magnífica, figurinos de Carybé, uma fotografia impecável e enquadramentos referenciados no Neo-Realismo de Vittorio De Sica e no western norte-americano de John Ford. O precursor do faroeste brasileiro ao recriar sua atmosfera e signos à realidade do nordeste. Se "Bacurau" foi aplaudido de pé em Cannes 66 anos depois, muitas dessas palmas devem-se a "O Cangaceiro", onde o filme de Barreto já havia emplacado o prêmio de Melhor Filme de Aventura e uma menção honrosa pela trilha sonora. Primeiro filme nacional a ganhar prestígio internacional, também levou os prêmios de Melhor filme no Festival de Edimburgo, na Escócia, Prêmio Saci de Melhor Filme (O Estado de S. Paulo) e Prêmio Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.




04. “Limite”, Mário Peixoto (1930)
Scorsese apontou-o como um dos mais importantes filmes do séc. XX, tanto que o restaurou e para a posteridade pela sua World Cinema Foundation. David Bowie escolheu-o como o único filme brasileiro entre seus dez favoritos da América Latina. Influenciado pelas vanguardas europeias dos anos 20, Peixoto, que rodou apenas esta obra, traz-lhe, contudo, elementos muito subjetivos, que potencializam sua atmosfera experimental. Impressionantes pelo arrojo da fotografia, da montagem, da concepção cênica. Considerado por muitos o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Um cult.


03. “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (1963)
Genial. Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia, atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes do cinema mundial, a do sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.




02. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha (1963)
A obra-prima do Cinema Novo, um dos maiores filmes do século XX. De tirar o fôlego. Sobre este, reserva-se o direito de  um post inteiro, escrito no blog de cinema O Estado das Coisas em 2010. Mais recentemente, este marcante filme de Glauber mereceu outra resenha, esta no Clyblog.



1º.
 
"O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (1960) 

Com absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito do início ao fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição, cenografia. Obra de Dias Gomes transposta para a tela com o cuidado do bom cinema clássico. Brasilidade na alma, das mazelas às qualidades. Cenas inesquecíveis, final arrepiante. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.





Daniel Rodrigues

sábado, 31 de maio de 2014

"Um Time de Primeira - Grandes Escritores Brasileiros Falam de Futebol", Vários Autores - 2014 (Ed. Nova Fronteira)



Acabei de ler agora, por esses dias, o bom livro "Um Time De Primeira", uma coletânea de textos de onze autores de épocas diferentes, praticamente desde os tempos da chegada do futebol ao Brasil até os contemporâneos. Com um time que conta com nomes como Vinicius de Moraes, Mário de Andrade, Luís Fernando Veríssimo, Lima Barreto, Rubem Fonseca, João do Rio, Antônio de Alcântara Machado, Mário Filho, Coelho Neto, Nelson Rodrigues e João Cabral de Melo Neto não dá pra esperar nada senão textos altamente qualificados. E são, efetivamente! Tem a beleza lírica dos textos de Coelho Neto, o ufanismo apaixonado de Nelson Rodrigues, o habitual bom-humor de Luís Fernando Veríssimo, a ficção envolvente de Rubem Fonseca e a incrível atualidade da crítica de Lima Barreto ao esporte e seu papel social. Textos e estilos para todos os gostos: crônica, poema, conto, matéria para jornal, resenha para revista, poema inédito, fragmento de livro. Tudo da melhor qualidade. Como o título do livro sugere, com um time como esse só poderíamos mesmo ter um livro de primeira.
Livro daqueles pra provar que futebol vai além das quatro linhas e que também é jogado assim, linha por linha.
Golaço.


Cly Reis

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

cotidianas #326 - Carmo



Nossa Senhora do Carmo no altar
Na sua acepção, o termo “milagre” quer dizer “fato sobrenatural oposto às leis da Natureza”. Ouro Preto, fruto de um “caos geológico”, é, de certa forma, provocado por um destes. Cidade secular encravada no meio de morros líticos, suporta, muito por isso, creio, tamanha energia em sua composição geológica, vegetal e espiritual que esta chega a emanar-lhe, favorecendo as manifestações excelsas dos Céus. Céus, estes, aliás, que parecem apenas ter descido alguns degraus do firmamento em direção àqueles cerca de 1200 metros de altitude para se acomodarem no solo dessa cidade de ruas íngremes e relevo complexo, haja vista toda a forte cultura devota, as numerosas e ricas igrejas, a grandiosidade de sua arte sacra, a arquitetura comovente, a fé material e imaterial do povo, as referências nascedouras e permanentes do catolicismo. E se isso não convence os mais céticos da aura divinal daquela terra, é porque tal não presenciou a bruma espessa que repousa magnânima e cinematográfica à noite, pondo, aí sim e de vez, o céu no chão. Há de se ter olhos metafísicos quando mal se vê o próprio pé para percorrer-lhe os dificultosos calçamentos, montados pedra a pedra por negrinhos filhos de escravos com senhores. Só assim para poder enxergar.
Dentre os maravilhosos e exuberantes templos a Deus e santidades com que se deparam os viventes visitantes que vão até lá, está a Igreja do Carmo. Impossível, aliás, não deparar-se com ela. A Carmo se impõe à visão de quem quer que seja, privilegiada e inteligentemente edificada justamente onde pode obter tal realce. Nossa Senhora, nas suas inúmeras formas, merece este posto, acreditaram os antigos da Vila Rica colonial. Neste caso, a do Carmo. Portugueses, africanos, índios, mulatos, cafuzos, etc. (brasileiros) ergueram a construção em louvor à santa, fosse por vontade, crença, esbanjamento ou obediência. Mas, de fato, a ergueram; e linda, deslumbrante. Privilegiada à vista.
Trata-se de um dos últimos projetos do arquiteto Manuel Francisco Lisboa, pai de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, datada de 1766 a 1772. Foi construída em estilo rococó, menos carregada de ouro e a única do estado mineiro com painéis de azulejos portugueses na capela-mor. Há nela obras do próprio Aleijadinho, negrinho filho de escrava com senhor, um “gênio da raça”, como disse Mário de Andrade. Há também afrescos de Mestre Athaíde, outra referência da arte da época. O escritor francês Dominique Fernandez, em seu livro “O Ouro dos Trópicos – Passeios pelo Portugal e o Brasil Barrocos”, suspeita seriamente como eu de que todo este conjunto de belezas da Minas colonial, algumas até sobre-humanas como a vastidão quanti e significativa da obra de um escultor portador de uma doença degenerativa e deformante, favorecem sim uma leitura de compreensões incorpóreas. “Tudo é insólito na aventura dos arquitetos e dos decoradores de Minas”, sentenciou. Quanto a Aleijadinho, Fernandez escreve que, mesmo com as incertezas quanto à sua obra (especula-se que tenha criado mais de 400 durante toda a vida) e a autoria das mesmas, “o brilho de sua obra seria suficiente para colocá-lo entre os maiores criadores de cenários de todos os tempos, entre Michelangelo, Mathias Braun, Puget, Serpotta, os irmãos Asam”. Concordo.
Mas o que se sucedeu conosco no primeiro dos três dias em Ouro Preto não foi exatamente um “milagre”. Nem tão a céu e mais à terra. Porém, também não dá pra dizer que se trata de um ocorrido comum, rotineiro, qualquer. Não, longe disso. Não diminuo o inusitado do feito. Acho, sim, que talvez tenha presenciado um... um... portento, um prodígio diferente desta realidade vulgar daqui do chão.
A começar pela direção a qual tomamos. Leocádia e eu, exaustos e felizes das horas de caminhada atenta de quem quer comer com os olhos todos os centímetros de uma novidade tão bela quanto estranhamente familiar, já restávamos com as pernas cansadas, o estômago solicitando reposição e a cabeça zonza de fascínio. Porém – e aí provavelmente começa a operar aquilo que me foge à explicação lógica e pouco virtuosa –, ao invés de dirigirmo-nos a nossos aposentos, invertemos a rumo. Não para a direita, mas para a esquerda. E isso sem nenhum comentário, sem nenhum questionamento, sem nenhum alarde. Apenas fomos, como que guiados.
Ao que se chega ao topo da Praça Tiradentes, atrás do Museu da Inconfidência, há a escadaria traseira da Igreja do Carmo. E foi com ela que nós nos demos, de portões escancarados. Evidentemente que não é nada estranho a uma cidade católica e turística os portões de uma de suas mais visitadas igrejas estar aberto, não fosse o fato de já serem, aproximadamente, 6 horas da tarde e, a este adiantado do horário, TODAS as igrejas de lá já terem fechado. Mas, estranhamente, encontrava-se descerrada, convidativa. Embora a Carmo constasse, certamente, em nosso roteiro, não a tínhamos visitado ainda; seria agenda para o dia seguinte. Então, se a chance nos surgia, o certo era seguimos. Fomos naquele passo autômato de quem o cansaço já toma conta a ponto de bloquear qualquer raciocínio racional de autopreservação – inclusive o de desperdício da própria energia corporal, visto que poderíamos bater com a cara na porta e voltar sem sucesso e ainda mais desgastados desnecessariamente. Todavia, como nada nos impedia, avançamos, porém, com a máquina fotográfica guardada na mochila; afinal, é expressamente proibido fotografar o interior das igrejas, preservadas pelo patrimônio histórico.
Ao chegar próximo do prédio duas coisas nos chamaram atenção. Primeiro, que havia uma movimentação de pessoas vestidas de preto, visivelmente trajadas assim a trabalho, entrando pela porta lateral da igreja metros adiante de nós. Suspeitamos que fossem da organização do festival que acontecia na cidade, que também trajavam roupa escura e com quem já tínhamos nos topado em vários lances durante o dia. A segunda observação foi a de que, além de perceber que a porta lateral tinha acesso à igreja naquela hora avançada – mesmo que fosse permitido somente a algumas pessoas como as que avistamos –, igualmente, havia uma peça acesa lá dentro. E tinha gente. Movimentava-se e executava ali algo. Como a janela tinha altura suficiente para uma pessoa comunicar-se com de fora para dentro, Leocádia não se fez de rogada e, aproximando a cabeça do parapeito, perguntou àquela pessoa:
- Com licença, o sr. sabe nos dizer se a igreja está aberta?
A resposta veio rápida e descomplicada:
- Já está fechada, mas vai ter uma formatura aqui mais tarde e se vocês quiserem entrar, podem entrar ali pela porta do lado. Está aberta, disse o senhor preto de estatura mediana, compleição consistente e expressão firme adiantando-se à nossa intenção e incluindo-me no questionamento feito por Leocádia por já ter-me percebido na cena.
Entramos. Lá dentro, uma equipe de fotógrafos e cinegrafistas que iriam cobrir a tal formatura. Não fosse a presença deles, naquelas vestimentas negras tão profissionais quanto simbolicamente fantasmagóricas, não teríamos nenhuma condição de estar ali àquela hora. Desnecessário relatar o deslumbre que se tem ao adentrar qualquer dessas igrejas de Ouro Preto, quanto mais, assim, à noite. Por ora, seguimos com o relato, pois o que vem a seguir tem mais a ver com o referido “prodígio”.
Admiramos os ornamentos elegantes; os desenhos arredondados do rococó; a leveza das formas; as linhas da arquitetura; a cintilação do ouro (menos exuberante que noutras igrejas, como a Nossa Senhora do Pilar ou da Nossa Senhora da Conceição, mas presente). Satisfeitos com a rara oportunidade, fomos em busca do nosso permissor para agradecer e podermos sair. Percorremos, então, o corredor lateral que dava acesso à sacristia. Outra maravilha ali se descobria. Na porta ainda, enxergamos o tal negro, vestido de calça social preta e camisa branca de mangas curtas, a qual contrastava com a calça e com sua tez. Ajeitava, com zelo e destreza, a alva do padre. Diante daquela cena angelical, ouvimos ele nos dizer:
- Podem entrar. Aqui é a sacristia. Aquela obra ali, disse, apontando o dado para um lavabo em pedra-sabão com a imagem de anjos em relevo, é do Aleijadinho. Podem entrar, repetiu.
Surpresos não só com a reação dele quanto de, principalmente, estarmos vivendo aquele momento atípico, concordamos e entramos. Continuando sua lida, ele nos disse com naturalidade:
- Eu sou o sacristão daqui. Podem ver. Esta outra [obra] aqui também é do Aleijadinho, agora direcionando o dedo para a parede exatamente oposta à do lavabo, onde se via um altar em madeira de aproximadamente 50 centímetros sobre a mesa. Formoso.
É comum em Ouro Preto a presença de guias, autônomos que conhecem a seu jeito a história da cidade e que ficam às portas das igrejas esperando serem contratados pelos turistas para uma visita guiada paga. Mas não estávamos com um guia, e sim com o próprio ajudante oficial da Igreja Nossa Senhora do Carmo! O lavabo era lindo e impressionante, principalmente pela dificuldade que se sabe de se esculpir naquele tipo de pedra e por conhecermos mais as obras em madeira de Aleijadinho. Nela, saíam duas torneiras, que servem para os padres purificarem as mãos antes das cerimônias religiosas. O altar trazia um Cristo nas características puras do mestre: rosto expressivo e sofrido, olhos amendoados, feições corporais perfeitas, coloração da pele bronzeada e uma de suas assinaturas: a barba fina saindo da parte debaixo das orelhas e das narinas.
O sacristão, com sua cabeça raspada e lustrosa, percebendo nossa admiração, parecia se satisfazer com isso. Tanto que, ao observar nosso olhar voltado apenas às duas obras que nos mostrou, chamou-nos atenção para o teto da sacristia:
. E este teto é do Mestre Athaíde. Podem ver, podem ver, falou naquela pronúncia acelerada e miudinha do mineiro.
A essas alturas, já nos beliscávamos. Mas como o surrealismo tomava conta do episódio, porque não colaborar com seu desdobramento? Com todo o respeito que me foi possível, indaguei:
- O sr. pode nos dizer um “não”, mas não custa lhe perguntar: nós podemos fotografar?
Leocádia sobressaltou-se com minha ousada investida. Não que também não quisesse tirar fotos, mas é que, visitando a cidade pela segunda vez, sabia muito melhor que eu da proibição expressa para tanto. Quiçá fosse atrevido o pedido; contudo, havia, mesmo que para um evento pago, vários fotógrafos dentro da igreja e que, muito mais do que nós, disparariam flashes contra as valiosas obras do interno e registrariam tudo aquilo que é proibido a turistas como nós. Com a máquina ainda guardada na mochila, nem deu tempo de eu receber uma negativa de Leocádia, pois o sacristão, dono de si, respondeu:
- Pode tirar foto, sim. Eu sou o sacristão, afirmou com convicção e batendo no peito.
Com os olhos arregalados, de tão surpresa que ficou Leocádia negou o pedido mesmo este já tendo sido autorizado. Titubeei também. Notando a insegurança, imediatamente ele interveio:
- Fotografa sim!, retrucou com autoridade e veemência, fazendo um gesto para que se tirasse a câmera para fora. Sou eu que mando aqui! Pode fotografar.
Fosse por gênio, birra com o padre ou por pura bondade, o fato é que a maior autoridade daquela igreja depois do sacerdote era quem nos concedia a honra. Incrédulos, então, só obedecemos. O resultado são essas lindas e improváveis fotos que podem ver a seguir.
Conta a história que, os carmelitas, eremitas devotos da Bem Aventurada Virgem do Carmo que se formaram no século XII nos arredores do monte Carmelo, na Palestina, foram obrigados a migrar para a Europa quando da perseguição a eles por parte dos muçulmanos. São Simão, um dos mais piedosos carmelitas da Inglaterra, vendo-os minguar e sofrer em decorrência da intolerância religiosa pediu socorro a Nossa Senhora do Carmo. Então, Maria Santíssima, rodeada de anjos, apareceu a ele e lhe entregou um escapulário, o qual virou símbolo da Ordem e que nunca mais lhe saiu do pescoço.
(Tínhamos no pescoço não um escapulário, mas a alça da câmera fotográfica.)
Quando se mostrou em milagre a São Simão, Nossa Senhora do Carmo ditou-lhe a seguinte oração, usada pelos seguidores até hoje: “Flor do Carmelo, vide florida. Esplendor do Céu. Virgem Mãe incomparável. Doce Mãe, mas sempre virgem. Sede propícia aos carmelitas. Ó Estrela das águas”.

A água, símbolo da vida em todas as civilizações, esteve-nos presente todo o tempo, fosse na névoa baixa que chegava a nos molhar à noite, fosse na chuva que se avizinhava a todo instante naqueles dias que paramos em Ouro Preto. Na sacristia da Igreja do Carmo, portávamos apenas a nós mesmos e a câmera de fotografia, a mesma técnica que, quando de sua descoberta, no século XIX, julgavam ser fruto de magia alguns ignorantes das possibilidades físicas. Quase saindo, o sacristão, de repente e sem explicação lógica nenhuma, abriu a torneira da fonte do lavabo, deixando a água correr numa simplicidade tamanha que chegamos a duvidar ser verdade. Perspicazes o suficiente para compreender que aquilo se tratava de uma bênção indireta, Leocádia e eu apenas nos entreolhamos com cumplicidade e, regozijados, não dissemos nada. Como aparições, as fotos talvez saibam traduzir melhor.
Altar com o Cristo em madeira do Aleijadinho

A beleza da parte interna da portada,
também creditada a Aleijadinho



A nave da igreja iluminada à noite

As curvas elegantes do mezanino

Detalhe do teto de puro rococó

O ouro da Vila Rica ornando a Igreja do Carmo

O teto da sacristia com a comovente pintura de Mestre Athaíde

Vista da janela da sacristia por onde,
de fora, falamos com o sacristão

Anda boquiabertos, nós na Igreja do Carmo, à noite   *

Eu e o lavabo em pedra-sabão de Aleijadinho,
enaquantoa fonte corre




por 
fotos:
* exceto a indicada

quarta-feira, 2 de março de 2016

cotidianas #422 - Química



No início não vimos ligações entre crimes de uma série que vinha ocorrendo. Até pela diferença de tempo entre um e outro e pelos locais onde ocorriam, em alguns casos bastante afastados um dos outros. O que chamava atenção e criava uma coincidência entre eles era a natureza bizarra de suas ocorrências, como um inflado com ar até explodir ou outro pendurado na marquise de uma loja "iluminado", por assim dizer, por causa do gás neon que fora injetado em seu sistema sanguíneo. Coisas do tipo para pior. Não vou aqui descrever todos porque além de cansativo, desgastante, inútil, alguns deles poderiam causar grande desconforto e até náuseas no leitor. O que posso dizer é que depois de 47 crimes em lugares diferentes, com espaço de tempo irregular e métodos diferentes, concluímos que inegavelmente trata-se de um assassino em série e dos mais perigosos e imprevisíveis com que já lidamos.
Sim, perdemos 47 vítimas antes de chegar a esta conclusão pois não víamos evidências claras acerca das mortes e relação lógica entre uma e outra. Veja, por exemplo, a primeira ocorrência: um homem chamado (olhe só!) Lavoziê Oliveira da Silva, homem de meia idade, aqui da cidade mesmo, pequeno empresário, casado, dois filhos, trabalhador, gente de paz, sem inimigos nem ligações suspeitas é encontrado em um depósito abandonado com o corpo solidificado como se fosse uma estátua e com algumas partes do corpo quebradas (eu disse quebradas e não mutiladas). Foi esquisito mas em princípio pensamos até mesmo em algum acidente com algum produto industrial e a investigação não foi adiante. A segunda situação ocorreu no interior do estado com um homem chamado Hélio Borges, trabalhador braçal de obra. O cara não foi trabalhar por três dias e seus colegas e empregadores deram por falta. Nos avisaram, deu-se alguma pequena investigação e nada do cara, até que eis que uma semana depois ele é encontrado preso aos fios de uma rede elétrica depois de ter flutuado como se fosse uma espécie de dirigível. Seus órgãos internos haviam sido removidos e em seu interior adaptada uma espécie de lona que fora inflada com um gás. Aquilo, tirando a sofisticação do método, parecia uma vingança sádica o que não tardamos a atribuir às dividas que o rapaz tinha com agiotas. E seguiram-se os crimes: José Berílio de Almeida, Luzia Rodrigues, Telmo Diamante, Luna Bernardes, todos com execuções estranhas ou extravagantes que ultrapassavam nossas expectativas ou compreensão. Um de nossos estagiários, ainda universitário, chamou a atenção para uma pequena coincidência que até então havia nos passado despercebida: Alguns nomes eram de elementos químicos. E eram mesmo. Carlos Ferro, Arsênio Cunha, Mário Prata, Luís Vanádio de Oliveira... Outros não eram exatamente iguais mas guardavam apenas alguma pequena variação como Germano Cavalcantti, Lídio Fonseca, Selena Marquez. Mas e Carlos Shceele, Daniel  Andrade? Especulamos então que alguns pudessem estar relacionados a pesquisadores ou descobridores do elemento. Seria isso? Algo tão complexo?
Embora, se nossa hipótese estivesse correta, fôssemos perder  mais uma vítima, precisaríamos de mais um crime para confirmar nossa teoria e, não sei se felizmente ou infelizmente o crime seguinte veio a confirmar nossas piores desconfianças: Maria Argento, caixa de um mini-mercado havia sido encontrada nua sobre a cama do próprio apartamento totalmente pintada de prata ao melhor estilo James Bond. Prata ou Argento, do latim argentum, símbolo Ag, número atômico 47. Hidrogênio (Lavoziê = Lavoisier), 1; Hélio (Hélio Borges), 2; Lítio (Lídio Fonseca), 3; Berílio (José Berílio de Almeida), 4; Boro (Davy Silva por causa do químico Humprhy Davy), 5; Carbono (Telmo Diamante), 6; e assim por diante... Agora tínhamos total certeza de que estávamos diante de um dos mais difíceis serial-killers que já havíamos encontrado.
Mas por que os elementos químicos? Porque seguir a ordem dos números atômicos? Qual a sua motivação? Seu drama? Era um professor de química frustrado? Havia sido reprovado no vestibular? Trabalhava em um laboratório e havia sido demitido? Sofrera algum acidente em algum experimento? Nossas equipes estão em plena atividade, todos empenhados no caso, investigando tudo, estudando todas as hipóteses, todas as pessoas com nomes que possam de alguma forma interessar ao nosso criminoso. é tudo o que podemos fazer  no momento. Mas enquanto não descobrirmos as respostas para, ao menos, algumas das perguntas que estão no ar, este astuto, metódico e cruel assassino continuará à solta. E o pior é que ainda há 71 elementos na tabela periódica. Isso se o assassino não resolver começar a fazer ligações e compostos. Aí sim, estaremos perdidos.



Cly Reis

quinta-feira, 12 de junho de 2014

cotidianas #301 - Franzina




Franzina,
Estrangeira, londrina,
Sobre os ombros a névoa do organdi...
Reaparecida em minha sensação!

Estávamos os dois quase juntos, juntinhos,
                 Povo
                 Parque Antárica
Insulados na multidão erva de campo indiferente
Era gostoso estar assim unidos
                                          esquecidos...
Qual o teu nome? o meu?
Seguindo a bola.
                         Campeonato.
                   APEA
             Taça
Os dois apaixonados pelo jogo.
                                   Por nós.

Falta muito?
- Dez minutos.
- Meu Deus!
- É agora!

E foi. Bianco avançou demais; Guariba... não; Netinho centrou; Mário caiu, mas Formiga emendou e a bola...
                                               Friedenreich!
                                        Goal!
                                 Delírio-vinho!
                         Alegria bacante!
                As Grandes Dionisíacas!
       Elaphebolion em dezembro!
Alle-goak, goak, goak!...

Olhaste-me brasileira
                                 Paulistano
Com duas lágrimas nas hortênsias dos teus olhos;
e teu ombro apoiou-se no meu peito de rapaz...
Asa de pomba! asa de pomba de organdi!...

Franzina,
Reapareceste-me agora na lembrança,
Doce como a pálpebra que se fecha para o sonho...
Ai! saudade de amor!
Ai! sublime tortura!
Ai! memória de peito comovido
Onde poisa macia uma asa de mulher!...

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"Franzina"
(Mário de Andrade)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

"O Time que Nunca Perdeu", de Paulo Roberto Falcão - Ed. AGE (2009)



Aproveitando a deixa do retorno de Paulo Roberto Falcão ao Internacional, para comandá-lo como técnico pela segunda vez, depois de uma exitosíssima carreira como jogador do clube, aproveito aqui então para recomendar, especialmente aos colorados, é claro, mas também, - excetuando os tricolores gaúchos - a qualquer torcedor apaixonado por futebol, o livro do próprio Rei de Roma sobre a conquista invicta do Campeonato Brasileiro de 1979 pelo Sport Club Internacional: "O Time que Nunca Perdeu".
Com uma série de relatos sobre cada um dos 22 jogadores que fizeram parte daquele grupo e daquela inigualável conquista, Falcão montou o perfil de um grupo unido, sério, maduro, sem vaidades e sobretudo extremamente qualificado, que contava com os conceitos táticos privilegiados de Ênio Andrade no comando e com a rigidez e disciplina de Gilberto Tim na preparação física.
O livro revela episódios curiosos, interessantes, dramáticos e engraçados, como o pavor de Chico Spina ao ter que substituir o ídolo colorado Valdomiro exatamente no primeiro jogo da final, no qual incrivelmente (mesmo apavorado) acabaria marcando dois gols; as frequentes multas por atraso do volante Batista cobradas pelo disciplinador líder Valdomiro; a resistência da direção em contratar o encrenqueiro Mário Sérgio e o aval de Falcão para levá-lo ao Beira-Rio; as indicações do próprio Falcão para as ascenção de Mauro Galvão dos juniores e para a contratação de Batista ainda garoto do Cruzeiro de Porto Alegre; e toda a liderança do "Bola-Bola", como também é conhecido o craque, dentro e fora do campo.
A edição ainda traz toda a campanha com detalhes e informações como locais dos jogos, públicos, renda, arbitragens, gols, etc., além de reproduções das súmulas dos principais jogos.
Um documento precioso de um episódio único na história do futebol brasileiro. Sei que atualmente com a elevação dos títulos de Taça Brasil, Robertão e coisa e tal, à condição de Campeonato Brasileiro, surgiram mais uns dois ou três 'campeões invictos', mas com todo o respeito, entraram nas semifinais e jogaram dasou quatro partidas se tanto. Campeão Brasileiro Invicto, jogando um campeonato, com fases, classificação, ida e volta, só tem um, e o único Campeão Brasileiro Invicto é, e sempre será, apenas o Sport Club Internacional.
Eu, na condição de colorado, só espero que na casamata, este grande ídolo da nossa história consiga repetir o êxito que teve com a bola nos pés e nos traga glórias do tamanho que ele merece e que o Interncional merece.
Boa sorte, Falcão!


Cly Reis