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sexta-feira, 28 de junho de 2013

100 Melhores Discos de Estreia de Todos os Tempos

Ôpa, fazia tempo que não aparecíamos com listas por aqui! Em parte por desatualização deste blogueiro mesmo, mas por outro lado também por não aparecem muitas listagens dignas de destaque.
Esta, em questão, por sua vez, é bem curiosa e sempre me fez pensar no assunto: quais aquelas bandas/artistas que já 'chegaram-chegando', destruindo, metendo o pé na porta, ditando as tendências, mudando a história? Ah, tem muitos e alguns admiráveis, e a maior parte dos que eu consideraria estão contemplados nessa lista promovida pela revista Rolling Stone, embora o meu favorito no quesito "1º Álbum", o primeiro do The Smiths ('The Smiths", 1984), esteja muito mal colocado e alguns bem fraquinhos estejam lá nas cabeças. Mas....
Segue abaixo a lista da Rolling Stone, veja se os seus favoritos estão aí:

Os 5 primeiros da
lista da RS
01 Beastie Boys - Licensed to Ill (1986)
02 The Ramones - The Ramones (1976)
03 The Jimi Hendrix Experience - Are You Experienced (1967)
04 Guns N’ Roses - Appetite for Destruction (1987)
05 The Velvet Underground - The Velvet Underground and Nico (1967)
06 N.W.A. - Straight Outta Compton (1988)
07 Sex Pistols - Never Mind the Bollocks (1977)
08 The Strokes - Is This It (2001)
09 The Band - Music From Big Pink (1968)
10 Patti Smith - Horses (1975)

11 Nas - Illmatic (1994)
12 The Clash - The Clash (1979)
13 The Pretenders - Pretenders (1980)
14 Jay-Z - Roc-A-Fella (1996)
15 Arcade Fire - Funeral (2004)
16 The Cars - The Cars (1978)
17 The Beatles - Please Please Me (1963)
18 R.E.M. - Murmur (1983)
19 Kanye West - The College Dropout (2004)
20 Joy Division - Unknown Pleasures (1979)
21 Elvis Costello - My Aim is True (1977)
22 Violent Femmes - Violent Femmes (1983)
23 The Notorious B.I.G. - Ready to Die (1994)
24 Vampire Weekend - Vampire Weekend (2008)
25 Pavement - Slanted and Enchanted (1992)
26 Run-D.M.C. - Run-D.M.C. (1984)
27 Van Halen - Van Halen (1978)
28 The B-52’s - The B-52’s (1979)
29 Wu-Tang Clan - Enter the Wu-Tang (36 Chambers) (1993)
30 Arctic Monkeys - Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006)
31 Portishead - Dummy (1994)
32 De La Soul - Three Feet High and Rising (1989)
33 The Killers - Hot Fuss (2004)
34 The Doors - The Doors (1967)
35 Weezer - Weezer (1994)
36 The Postal Service - Give Up (2003)
37 Bruce Springsteen - Greetings From Asbury, Park N.J. (1973)
38 The Police - Outlandos d’Amour (1978)
39 Lynyrd Skynyrd - (Pronounced ‘Leh-‘nérd ‘Skin-‘nérd) (1973)
40 Television - Marquee Moon (1977)
41 Boston - Boston (1976)
42 Oasis - Definitely Maybe (1994)
43 Jeff Buckley - Grace (1994)
44 Black Sabbath - Black Sabbath (1970)
45 The Jesus & Mary Chain - Psychocandy (1985)
46 Pearl Jam - Ten (1991)
47 Pink Floyd - Piper At the Gates of Dawn (1967)
48 Modern Lovers - Modern Lovers (1976)
49 Franz Ferdinand - Franz Ferdinand (2004)
50 X - Los Angeles (1980)
51 The Smiths - The Smiths (1984)
52 U2 - Boy (1980)
53 New York Dolls - New York Dolls (1973)
54 Metallica - Kill ‘Em All (1983)
55 Missy Elliott - Supa Dupa Fly (1997)
56 Bon Iver - For Emma, Forever Ago (2008)
57 MGMT - Oracular Spectacular (2008)
58 Nine Inch Nails - Pretty Hate Machine (1989)
59 Yeah Yeah Yeahs - Fever to Tell (2003)
60 Fiona Apple - Tidal (1996)
61 The Libertines - Up the Bracket (2002)
62 Roxy Music - Roxy Music (1972)
63 Cyndi Lauper - She’s So Unusual (1983)
64 The English Beat - I Just Can’t Stop It (1980)
65 Liz Phair - Exile in Guyville (1993)
66 The Stooges - The Stooges (1969)
67 50 Cent - Get Rich or Die Tryin’ (2003)
68 Talking Heads - Talking Heads: 77’ (1977)
69 Wire - Pink Flag (1977)
70 PJ Harvey - Dry (1992)
71 Mary J. Blige - What’s the 411 (1992)
72 Led Zeppelin - Led Zeppelin (1969)
73 Norah Jones - Come Away with Me (2002)
74 The xx - xx (2009)
75 The Go-Go’s - Beauty and the Beat (1981)
76 Devo - Are We Not Men? We Are Devo! (1978)
77 Drake - Thank Me Later (2010)
78 The Stone Roses - The Stone Roses (1989)
79 Elvis Presley - Elvis Presley (1956)
80 The Byrds - Mr Tambourine Man (1965)
81 Gang of Four - Entertainment! (1979)
82 The Congos - Heart of the Congos (1977)
83 Erik B. and Rakim - Paid in Full (1987)
84 Whitney Houston - Whitney Houston (1985)
85 Rage Against the Machine - Rage Against the Machine (1992)
86 Kendrick Lamar - good kid, m.A.A.d city (2012)
87 The New Pornographers - Mass Romantic (2000)
88 Daft Punk - Homework (1997)
89 Yaz - Upstairs at Eric’s (1982)
90 Big Star - #1 Record (1972)
91 M.I.A. - Arular (2005)
92 Moby Grape - Moby Grape (1967)
93 The Hold Steady - Almost Killed Me (2004)
94 The Who - The Who Sings My Generation (1965)
95 Little Richard - Here’s Little Richard (1957)
96 Madonna - Madonna (1983)
97 DJ Shadow - Endtroducing ... (1996)
98 Joe Jackson - Look Sharp! (1979)
99 The Flying Burrito Brothers - The Gilded Palace of Sin (1969)
100 Lady Gaga - The Ame (2009)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Talking Heads - "Fear of Music (1979)


“Precisa perder o medo da música.”
Arnaldo Antunes



O Talking Heads sempre foi das minhas bandas preferidas. Todas as fases pelas quais o grupo passou são dignas de registro na história da música pop, desde seu primórdio punk até a derradeira fase world music. Aliás, para mim, um preceito para um grupo ser considerado importante (fora algumas exceções) é o de produzir, pelo menos, dois ou três grandes discos. Os Heads têm uns cinco: “Little Creatures” (1985), “Remain in Light” (1980) e “True Stories” (1986) são alguns. Mas antes destes, no finalzinho dos anos 70, David Byrne (guitarras, vocal), Chris Frantz (bateria), Tina Weymouth (baixo) e Jerry Harrison (teclados e guitarra) já tinham concebido sua obra-prima: “Fear of Music”.
Segundo trabalho da trilogia assinada pela banda ao lado do genial produtor inglês Brian Eno, “Fear of Music” veio com o desafio de superar o excelente “More Songs About Buildinds and Food”, de 1978, primeiro da parceria. E conseguiu. Ápice da criatividade de Byrne e Cia., o disco é resultado da releitura apurada e madura do punk rock, cena da qual a turma provinha, e das tendências da época, como a new wave, o reggae, a disco e as influências folclóricas. E tudo basicamente baixo-guitarra-bateria, com incursões de teclados e percussões muito mais para gerar climas ou completar a concepção do arranjo. Ouvindo-se “Fear” hoje é até desanimador ver bandas consideradas “do momento” soarem tão parecidas e, pior, não conseguirem acrescentar nada além do que os Heads ou grupos como Gang of Four e Polyrock já fizeram.
Mas voltando ao disco, a ótima capa, seca, parecendo uma caixa de metal preta com relevos, intui que ali dentro se encontrará um conteúdo corrosivo e desafiador. Como que provocando o ouvinte: ‘quem tem medo de abrir o invólucro’? A banda brasileira Titãs, na época de sua melhor fase, meados dos anos 80, foi uma das que enfrentaram esse temor e se inspiraram neste trabalho dos Talking Heads. Uma de suas músicas, "Medo" , do álbum “Ô Blésq Blom”, de 1989, traz no seu cerne a ideia da quebra dos preconceitos e do enfrentamento das limitações típica do punk, seja na sociedade, na arte ou na política. No cenário internacional, vários outros, como Prince, Deee Lite e Beck, também beberam na fonte do Talking Heads.
Contribui muito para o resultado final o dedo inventivo e autoral de Eno. Assim como fizera com o U2 em “Zooropa” (1996) ou com David Bowie na trilogia ““Low-Heroes-Lodger” (1977-78-79), Eno funciona mais do que como um produtor: além cantar, tocar e co-assinar composições, ele dá cores diferenciadas às músicas na mesa de mixagem, tratando-as especialmente como um microcosmo. Por isso, arrisco-me a também lhe creditar este disco. As técnicas de estúdio que Eno foi acumulando desde seu moderníssimo grupo Roxy Music, no inicio dos anos 70, passando pelos vários discos solo e produções a trabalhos de parceiros parecem ter sido todas colocadas em prática em “Fear”. Isso aparece em truques de mesa de som, afinação diferente de instrumentos ou maneiras criativas de apresentar uma faixa. Um exemplo é “Cities”, que demora a subir o som para começar e é cheia de barulhos esquisitos soltos no seu decorrer, além do vocal quase de garagem, inclusive com propositais falhas na captação do microfone, criando uma atmosfera própria. Em outra, “Mind”, a voz oscilante e esganiçada de Byrne, de repente, se mistura a outros sons. Pequenos detalhes muito bem empregados que constroem um verdadeiro manual de como produzir bem um disco de rock. Tudo muito surpreendente e orgânico.
Neste disco, os Talking Heads assumem de vez a sua postura particular dentro da cena punk. Eles sempre tiveram, de fato, cara de mais comportados do que seus contemporâneos brigões Sex Pistols ou Dead Boys, e suas músicas geralmente fugiam do padrão “1-2-3-4” tosco de um Ramones ou New York Dolls. “Mind”, “Animals” e “Cities” mostram bem isso: ritmação “torta”, melodias em contraponto, frases de guitarras que funcionam como percussão. Uma série de esquisitices que, da maneira como fazem, dá muito certo. Aliás, esta é a forma como eles se mostram criativos: era um grupo limitado tecnicamente, mas cheio de ideias na cabeça e disposto a evoluir musicalmente.
“Fear” começa com a conceitual “I Zimbra”, um pop “africanístico” com “guitarras percussivas” cantado em coro num dialeto exótico. Diferente de tudo que tinham feito até então, “I Zimbra” lança luzes ao que viria no álbum seguinte do conjunto, “Remain in Light”, caracterizado por este tipo de sonoridade world music. “Air” é outra prova da maturidade musical da banda e do acerto do casamento com Brian Eno. A linha de baixo marcada no mesmo compasso da bateria, acompanhada pelo coro feminino e da base minimalista de guitarra, são valorizadas ao máximo pelo produtor. De uma canção simples, Eno adiciona ideias que dimensionam exatamente o que há de melhor na melodia: a construção quebrada, o baixo grave e o vocal solto e brincalhão. A voz de Byrne, aqui, como em algumas outras do disco, ganha um dos “ensinamentos” de Eno assimilados em sua temporada com David Bowie. Nos momentos em que Byrne solta o gogó e o som se expande além da conta no microfone, um outro microfone dentro do estúdio é acionado, captando este “excedente” e dando uma sensação emocionante de explosão da voz.
Uma das melhores de “Fear” é “Memories Can’t Wait”. Não passa de mais um punk rock rude, como os que os Heads faziam nos seus primórdios de CBGB. Mas o ouvido apurado da galera criou, com elementos simples e criativos, uma obra-prima. Ao contrário de outras onde o baixo ou a bateria prevalecem, aqui, o volume desses instrumentos vai lá embaixo para dar lugar às guitarras. Mas não são simples guitarras: efeitos de pedal e de estúdio dão um clima psicodélico e ruidoso à musica, o que é completado pela voz cheia de ecos e alterações de frequência e volume. Matadora!
Outra maravilha é “Electric Guitar”. Nela, todos os sons parecem brigar entre si. Se noutras faixas o baixo e a bateria são amenizados, aqui eles estouram a caixa. Alto, o som distorcido do baixo de Tina dá a impressão de ser um cello. Na bateria, a caixa e os chipôs se estapeiam para ver quem ocupa mais espaço. E o vocal, ora propositalmente estourado, ora visivelmente mal modulado, é um show à parte. Não sei se deu para perceber na descrição, mas o que menos aparece em “Electric Guitar” é, justamente, a guitarra elétrica, que, já devidamente homenageada, restringe-se a uma leve base e a, no máximo, uma frase que dialoga com a voz no refrão. Tudo sob um ruído agudo (uma vibração de pedal da referida guitarra) que vai e volta, sobe e desce, e que se repete no decorrer de toda a música até, no fim, depois de todos os instrumentos se calarem, voltar para desfechar em alto estilo.
Todo grande disco começa ou termina com uma grande música e, no caso de “Fear...”, é no final que está a “cereja do bolo”. “Drugs” é um primor, com muitos méritos, novamente, a Eno. Para quem conhece um pouco de composição musical, dá para perceber que ela foi escrita no violão em cima de alguns acordes básicos. Mas o que foi parar no disco é outra coisa, muito mais rico e complexo, só usando criatividade e técnica. A começar, a melodia é “distribuída” a vários instrumentos, sem ser tocada continuamente por apenas um deles. O baixo pontuado, as batidas soltas de bateria, as várias texturas de teclado, as vozes, as incursões de percussão, os monossílabos de guitarra: todos ajudam a compassar esta espécie de “quebra-cabeças minimalista”. Os Titãs, anos antes de “Ô Blésq Blom” – e por influência dos “antenados” Arnaldo Antunes, ainda integrante da banda, e do produtor do grupo, o ex-Mutantes Liminha –, já tinham se valido dos Heads para conceber outra música: “O Quê?”, do LP "Cabeça Dinossauro" (1986). Igualmente a “Drugs”, “O Quê?” teve como ponto de partida uma base de violão que, na hora do arranjo, foi ganhando outros elementos até se tornar um dançante “funk concretista”. E como em “Fear of Music”, este famoso hit da banda brasileira também desfecha o seu disco com “chave de ouro”. Coisa de álbum clássico.
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Além da trilogia “More Songs-Fear-Remain”, a parceria Byrne-Eno rendeu ainda um quarto trabalho: o instrumental “My Life In The Bush Of Ghost”, de 1981, assinado só pela dupla, que radicaliza a sonoridade étnico-folclórica e os experimentos de estúdio, como samples e colagens. Os dois voltariam a gravar juntos em 2008 o mais pop, porém também muito bom, “Everything That Happens Will Happen Today”.


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FAIXAS:
1.I Zimbra
2.Mind
3.Paper
4.Cities
5.Life During Wartime
6.Memories Can’t Wait
7.Air
8.Heaven
9.Animals
10.Electric Guitar
11.Drugs

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Ouça

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Brian Eno - “Another Green World” (1975)

 

“Ao discutir arte, as pessoas costumam falar sobre gênios, mas assim que você começa a observar de perto como as coisas surgem, descobre que sempre há contextos e sistemas informando esse indivíduo”.

“A ciência é uma forma de descobrir coisas sobre o mundo, mas a arte nos dá a chance de explorar, através da imaginação, lugares que não existem, bem como ferramentas para lidar com o mundo em que estamos”. 
Brian Eno

Obras-de-arte comumente vêm ao mundo fora do seu tempo cronológico. Com isso, precisam que o próprio tempo passe para serem valorizadas e, principalmente, entendidas. Quanto levou-se para se assimilar a “nova poesia” de Mallarmé, hoje naturalmente reconhecida como o começo das correntes modernistas? Ou as pinceladas "borradas" dos impressionistas, taxadas de “infantis” pelos críticos da época, mas que se configuraram num passo fundamental para a ruptura com o classicismo absorvido pela arte contemporânea? 

Na música moderna, isso seguidamente ocorre. “The Velvet Underground & Nico”, primeiro disco da banda de Lou Reed e John Cale, vendeu ridículas 10 mil cópias à época de seu lançamento, em 1967, mas influenciou o mundo quase tanto quanto os Beatles. O hoje cult “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, chegou a ter devoluções nas lojas em 1972 de tão mal recebido pelo público e hoje um vinil original não custa menos do que uma pequena fortuna. Pode-se dizer que “Another Green World”, de Brian Eno, de 1975, se enquadra neste perfil de grandes discos além de seu tempo. Não por terem lhe fechado os olhos, mas por não ter sido observado como deveria. E, diferentemente de outras obras marcadamente incompreendidas, o disco do cantor, compositor e produtor inglês carrega algumas qualidades que lhe tornam quase profético. Eno intuiu elementos que só se conflagrariam tempo depois, redimensionando aquele trabalho do passado que anteviu o que pode se chamar de “era da pós-música”.

Havia sinais de que Eno estivesse sintonizado com algo de tamanha visão do futuro, mas nem por isso assim tão fáceis de se ler. Saído da glitter Roxy Music, no início dos anos 70, banda que já antecipava uma série de movimentos da música pop, Eno, que além de músico é também artista visual e professor de arte, sempre equilibrou a carreira entre essas várias vertentes. Tal versatilidade lhe fez iniciar a carreira solo com dois discos de glam rock bastante inovadores: “Here Comes the Warm Jets” e “Taking Tiger Mountain (By Strategy”), de 1973 e 74, respectivamente. Em seguida, uma guinada: Eno inventa a ambient music com “Discreet Music”, abrindo caminhos para a new age e o neo classical. Anos antes, ele já havia feito duo com Robert Fripp no experimental “No Pussyfooting” e trabalhado ao lado de Cale, Nico e Kevin Ayers, um dos fundadores do jazz-rock. Ou seja: diversas frentes, que embaralhavam ainda mais o cenário em que “Another...” foi gestado.

Por todos estes antecedentes e exemplos subsequentes – visto que Eno seguiu variando entre art rock, punk, minimalismo, afrobeat, trilhas de cinema, new age, world music e outros gêneros – a audição de “Another...” é absolutamente enigmática. E mais do que isso: o enigma não se dá em razão de uma música complexa, intrincada, mas, sim, por uma sonoridade totalmente “palatável”. Eno certamente queria dizer algo importante com isso... Quem escuta os primeiros acordes da faixa inicial, “Sky Saw”, não raro surpreende-se com o som processado e dissonante do fretless bass de Percy Jones tocando um acorde de quatro notas que visivelmente não se completa. Não se completa, mas volta a se repetir em sua incompletude, deixando claro que é mesmo aquele o “riff” da canção, se é que dá para classificar assim. Nem o show de execução do restante da banda formada por Eno com os amigos Paul Rudolph, no baixo, Phil Collins, na bateria, Rod Melvin, no piano elétrico, e Cale, na viola, faz esvair a sensação de que algo diferente contém ali. Uma abertura fascinante, mas estranha.

Se o disco larga com cargas de peculiaridade, a partir de então os enigmas começam a ficar ainda mais evidentes. À exceção de “Sky Saw” e mais outras quatro, todas as músicas das 13 que compõem o disco são como vinhetas, de poucos minutos. Nenhuma passa de 4 minutos, tempo de duração padrão de uma canção pop vendável. “Over Fire Island”, noutra performance brilhante do ainda apenas baterista Collins, traz um baixo igualmente destacado de Jones numa base meio jazzística enquanto Eno comanda sintetizadores, guitarra e colagens de fita magnética. Pura vanguarda instrumental, assim como outras duas seguintes, “In Dark Trees” e “The Big Ship”, ambas protagonizadas apenas pelo próprio Eno, que ainda toca percussão elétrica e sintetizada e um gerador de ritmo tratado, tecnologia bem avançada para a época, algo como a uma bateria eletrônica rústica. Todas instrumentais, curtas, de poucos acordes, quase sem riff. Não fosse pelas breves frases cantadas da primeira faixa e da pequena letra de outra excelente, “St. Elmo's Fire” – em que Eno comanda os instrumentos acompanhado somente da guitarra do parceiro Fripp –, poderia se dizer que se trata de um disco de música instrumental. Mas claramente diferente de “Discreet...” ou de qualquer outra peça de trabalhos anteriores. Onde Eno queria chegar com essa proposta, no mínimo, diferente?

O álbum prossegue e as respostas vão sendo colhidas aos poucos. É possível perceber, por exemplo, o embrião da generative music, outra novidade a qual Eno lançaria as bases em 1978 em “Ambient 1: Music for Airports”, termo baseados nas ideias do linguista Noam Chomsky e que descreve uma música sempre diferente, mutável e gerada por sistemas eletrônicos. A sexta faixa, “I'll Come Running”, em que conta outra vez com Melvin ao piano, Rudolph ao baixo e Fripp nas guitarras, começa a deixar mais claro o que Eno pretendia. A alternância entre músicas com uma formação um pouco maior, mas enxuta, e outras quase que totalmente artesanais – caso da seguinte, a dissonante faixa-título – denota o quanto o autor entendia que caminhos a música pop iria tomar não dali a poucos anos, mas três, quatro, cinco décadas à frente! E mais: não apenas a música popular, mas o conceito de sonoridade, a ideia de música da sociedade contemporânea.

Fica até difícil perceber o quanto o homem moderno está soterrado em mensagens sonoras, visto que estas proveem de todas as fontes e plataformas. Pelos celulares, pela TV, pela publicidade, pelos aparelhos constantemente conectados do mundo atual. Na era digital de infinitas possibilidades e constante avanço, a música, assim como qualquer outro enlatado de supermercado, vem numa esteira de ultraprocessamento à medida em que a sociedade capitalista também avança. A propaganda, com suas pesquisas e indicadores, é a nova ciência. Com isso, passa-se a utilizar a lógica de produção, inclusive para a democrática e facilmente penetrável arte. As discussões postas na mesa pela geração da pop art e do kitsch a qual Eno pertence captava a subjetivação do fazer artístico diante das possibilidades (e permissividades) do capitalismo. O que Eno sacou em “Another...”, antes de qualquer outro músico pop, era que, com a música, esse efeito de desconexão seria não somente contínuo quanto, quiçá, irreversível. Os sons aos quais todos são bombardeados ao navegar pela internet ou num simples passeio na rua ou num shopping nada mais são, hoje, que fragmentos sonoros cientificamente provocados. Pequenas células de emissão físico-acústica de onde se extrai apenas o que é necessário para a absorção funcional, superficial e fragmentada do homem atual.

Canções pop sem centro tonal, inversão dos efeitos sinestésicos, ruptura radical com o cromatismo. Aqui, faz-se necessário um parêntese temporal, e chega-se ao século XXI e seus novos gêneros: left-field, trap, wonky, vaporwave, lowwecase... Não é nem o que Chico Buarque entende como “fim da canção”, mas, mais do que isso: é a era da “não-música”. Os tempos líquidos teorizados por Baumann foram perscrutados na música em diversos momentos na modernidade. Em conceito, a The Residents não só lançou “Commercial Album”, apenas composto de músicas de 1 minuto de duração para supostos jingles publicitários, como, anos antes, fez o “não-lançamento” de “Not Avaliable”, disco que, ironizando a lógica de mercado, “não devia ser ouvido”. Sonoramente, além da eletrônica, da vanguarda, do jazz ou da new age, dissolvedores do cromatismo clássico, um artista como William Basinski, literalmente diluiu a música em sua “Watermusic”. Mas todos até então buscavam dialogar com o tom, seja pela referência, pela alusão ou pela proposital abstenção. Impreterivelmente. O que Tricky ou MFDoom desmembraram, hoje, Billie Elish faz revelar um novo estado psíquico a que a civilização se levou: a total alienação da tonalidade – menos por conhecimento do que por intenção. Seria, ao invés da música "generativa", a "degenerativa"?

Voltando a "Another...", na arábica “Sombre Reptiles”, Eno traz a alusão ao abstratismo tão presentes nas artes visuais a qual ele mesmo se alinha. Mas, para além disso, reforça a ideia de uma deformação do real. "Little Fishes" ainda mais: frases soltas, quase que apenas para sentir e não ouvir. Gostar torna-se, assim, subjetivo, pois está associado à mimese e não à assimilação por um viés artístico. Absorve-se cognitivamente e não sensorialmente. Qualquer semelhança com os estímulos sonoros de um app de smartphone ou de um vídeo do Tik Tok não é mera coincidência. Nem curtas demais, que não transmitam o efeito pretendido, nem longas demais, que acabem dispersando a atenção da geração do imediatismo.

Diminuta em construção melódica, mas gigante em qualidade é "Golden Hours", outra cantada do álbum, música que, certamente, serviria de inspiração (para não falar de “espelhamento”) a U2 quase 20 anos depois na canção “The Wonderer", que encerra o disco “Zooropa” - nada coincidentemente produzido pelo próprio Eno. É ele que volta a agir sozinho em “Becalmed” (Piano Leslie e sintetizador), talvez a mais ambient de “Another...” e de cujos traços tornaria a valer-se tanto em trabalhos solo seguintes (“Before and After Science”, “Music for Airports”) quanto na de parceiros, como no "lado B” de “Low”, do amigo David Bowie, em 1977. “Zawinul/Lava”, igualmente, remete a este Eno experimental e com o olhar para o Oriente, que aproveita um pequeno motivo sonoro provocador de sensações de contemplação e meditação. 

A bela "Everything Merges with the Night" é uma quase-canção, com a voz bonita de Eno acompanhada do baixo e pianos de Brian Turrington e de sua própria guitarra, não fosse o riff que, mais uma vez, situa-se no limiar da melodia, haja visto que sua predominante dissonância não deixa completar o ciclo sonoro natural ao ouvido. Há sempre algum "problema", seja na duração, na altura, na intensidade ou no timbre, elementos constituidores do tom. Uma provocação à biologia humana. Há um fio melódico, mas Eno deixa-o escapar deliberadamente. Magnífica, "Spirits Drifting" é a conclusão perfeita para um disco que começa esfíngico e termina agravando as próprias interrogações: instrumental, mínima, atonal. Uma combinação de acordes bonita, mas que não desfecha naturalmente, como que deixando um proposital ponto de interrogação.

A música da era da pós-verdade – num planeta das multidões de refugiados, da avançada ciência que favorece as classes dominantes, das persistentes fome e guerras, do mundo capitalista que caminha para a autodestruição ambiental – não é (não pode ser) mais música. Decreta-se a “não-música”. Talvez por isso tudo o disco de 1975 de Eno seja tão precursor e contenha um título tão utópico quanto propositivo. O tom, na concepção dele, nada mais é do que o símbolo de uma ética. Musical, em primeira observância, mas ecológica amplamente falando. Ao fincar suas bases na tradição – porém, problematizando-a –, o artista remonta a séculos de uma construção formal e estética a qual acredita fortemente que jamais deve se perder, mesmo que em um “outro mundo verde” muito disso tenha ficado para trás. Esperançoso, no entanto, o próprio Eno sustenta a ideia lançada em “Another...”: “O esforço ambiental é o maior movimento da história da humanidade; nunca houve uma única causa que uniu tantos bilhões de pessoas com um objetivo. Pode haver contradições dentro da causa; haverá emoções e derramamentos, mas esperamos que haja alguns resultados positivos para esta ação mundial”. Tomara ele tenha razão.

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FAIXAS:
1. "Sky Saw" - 3:25
2. "Over Fire Island" - 1:49
3. "St. Elmo's Fire" - 3:02
4. "In Dark Trees" - 2:29
5. "The Big Ship" - 3:01
6. "I'll Come Running" - 3:48
7. "Another Green World" - 1:38
8. "Sombre Reptiles" - 2:26
9.  "Little Fishes" - 1:30
10.  "Golden Hours" - 4:01
11. "Becalmed" - 3:56
12. "Zawinul/Lava" - 3:00
13. "Everything Merges with the Night" - 3:59
14. "Spirits Drifting" – 2:37
Todas as composições de autoria de Brian Eno

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Robert Wyatt - “Shleep” (1997)



Pela primeira vez, eu revi meu passado
e parecia tão inacessível,
e tudo o que eu tinha feito
- mesmo tendo gravado
 neste meio tempo – 
parecia tão distante do que eu era agora,
 que era a primeira experiência
que eu já tive na minha vida de nostalgia.”
Robert Wyatt,
sobre Shleep



Os Jogos Paralímpicos, ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, trouxeram à tona o velho questionamento – muitas vezes, retórico e demagogo – das dificuldades e enfrentamentos que deficientes físicos têm de passar em suas vidas. Na arte, mesmo em tempos modernos como os de hoje, as barreiras são semelhantes. Quando se pensa sobre artistas famosos com deficiência logo vem à mente Stevie Wonder e Ray Charles, dois cegos que passaram por cima de seu problema físico por mérito, perseverança e, claro, talento. Mas outra cabeça genial também se enquadra nessa lista de artistas deficientes que souberam suplantar esse aspecto tanto pela superação quanto, igualmente, pela capacidade criativa. Está se falando do inglês Robert Wyatt, fundador e integrante da Soft Machine e um dos principais representantes da chamada cena de Canterbury, grupo de bandas e músicos do final dos anos 60/início dos 70 que misturavam com muita propriedade rock progressivo, psicodelia e jazz. Mas não só isso quando se fala de um criador de alta estirpe como Wyatt.

A inventividade harmonia e rítmica que Wyatt tirava da bateria na Soft Machine já denotava algo que seria determinante em sua obra solo a partir de 1º de julho de 1973. Pois neste fatídico dia, numa festa regada a muita droga, Wyatt, numa crise depressiva, se atira do terceiro andar de um prédio. Resultado: fica paraplégico. O que seria trágico para quem tem de usar as pernas para operar seu instrumento por completo foi transformado por Wyatt. Com dor e sacrifício, ele se reinventa como pessoa e como músico. Se sua figura hoje lembra a de um mago – barba branca e espessa, sobrancelhas angulosas e olhar firme –, não é coincidência. A expressão guarda as marcas de alguém que, talvez inconscientemente, tenha tido que buscar nas profundezas mais místicas de si próprio uma forma de fazer nascer um novo homem e artista diante da condição limitadora que a cadeira de rodas impõe. Impossibilitado de tocar bateria, ele, em contrapartida, especializa-se em vários outros aparatos musicais, tornando-se multi-instrumentista. Sua musicalidade provou, assim, ir além do instrumento em si, pois é de sua natureza, independente do timbre que produza ou da técnica que precise usar. Dentro de uma extensa e profícua discografia (tanto solo quanto em outros projetos), “Shleep”, de 1997, é uma joia que condensa seus melhores predicados.

O brilhante afro-pop “Heaps Of Sheeps” abre o disco em alto nível. Uma levada de guitarra soul, um baixo bem marcado e uma base de teclados norteiam esta embalada melodia, repleta de percussões e efeitos de sintetizador. Ademais, “Shleep” conta com a produção do mais habilidoso profissional das mesas de estúdio do rock internacional: Brian Eno. Artista de formação plural, alia sua sensibilidade e conhecimento musical e artístico a serviço do conceito dos trabalhos que produz, tornando-se, não raro, um coautor não creditado como tal – assim como ocorrera em “Zooropa”, do U2, ou “Dream Theory in Malaya”, de John Hassell. Mesmo também não coassinando este, é visível sua interferência na estrutura do repertório, na arquitetura sonora e nas marcantes participações, seja de seus teclados e sintetizadores, vocais ou arranjos. Ouvindo “Heaps...”, por exemplo, é impossível não lembrar-se de outras faixas de abertura de projetos de Eno, como “Home” (em “Everything That Happens Will Happen Today”, com David Byrne), “Lay my Love” (de "Wrong Way Up", com John Cale) ou “No One Receiving” (“Before and After Science”, solo). E como não perceber no refrão o toque de Eno no coro com aquele ar étnico? O vocal de Wyatt, entretanto, é um elemento único. Sua quase sufocada voz transmite ao mesmo tempo sapiência e sofreguidão.

“Shleep” segue com a engenhosidade harmônica das duas linhas de piano de “The Duchess” – uma em tempo 1 x 2 e outra 3 x 3, mas meticulosamente dessincronizadas –, que dão-lhe um caráter quase atonal. Lembra bastante a obscuridade da The Residents – banda, aliás, bastante influenciada por Wyatt. As frases do sax de Evan Parker, combinadas com uma flauta e o violino polonês de Wyatt, ao mesmo tempo emprestam dissonância e cores a esta canção de ninar macabra, que podia tranquilamente integrar a trilha de um filme de terror com criança. A atmosfera muda totalmente em “Maryan”, quando o trompete de Wyatt, sobre o dedilhar de um violão, começa a canção serpenteando acordes hispano-árabes. O djembê africano de Gary Azukx e o violino oriental de Chikako Sato adicionam-se. World music in natura. É quando entra a intrincada melodia de voz de Wyatt, a qual inclui a da esposa e parceira musical Alfreda Benge, formando a provavelmente mais complexa e bela canção do disco. Isso sem mencionar o solo de guitarra de outro fera que participa das gravações: o mestre Phil Manzanera. Tudo, claro, orquestrado pela maestria de Wyatt.

De fato, a inteligência musical de Wyatt sempre foi além do óbvio. Ligado às artes plásticas (é de sua autoria as pinturas e desenhos que ilustram todas as capas de seus discos), sua visão de arte vai além apenas dos sons. Por isso, sua música é tão completa e complexa. Do rock progressivo ele faz suscitar o dodecafonismo e a eletroacústica; sua leitura do jazz engloba a avant-garde e projeta o pós-jazz; a psicodelia não fica somente nos clichês, mas vai em busca de texturas próximas do concretismo, do minimalismo e do microtonalismo; as referências exóticas não se restringem apenas à música indiana ou oriental, mas bebem nos timbres e ritmos da Espanha muçulmana e da África negra e egípcia. “Was A Friend”, nessa proposta politonal e polirrítimica, é um jazz dissonante que quebra novamente o ritmo da sequência de faixas, o que, em termos de conceito de obra, é um expediente empregado por Eno na construção temática dos álbuns que produz afetuosamente aos amigos (“Everything...”, com Byrne, e “Outside”, com David Bowie, por exemplo, respeitam essa ordem).

Noutro destaque, a emocionante “Free Will And Testament” (“Livre vontade e testamento”), dá para captar na voz sentida e em registro agudo de Wyatt (de difícil afinação) o sofrimento pela condição da paraplegia, bem como a culpa pelo ato suicida que ainda o rondava mesmo quase 25 anos depois do acidente. “Vou ter a minha liberdade, mas dentro de certos limites/ Eu não posso desejar para mim ilimitadas mutações/ Eu não posso saber o que eu seria se não fosse ele/ Posso apenas imaginar a mim mesmo”. Um lamento do fundo da alma que gerou uma canção excepcional. Mudando de sintonia de novo, o pós-jazz “September The Ninth” remonta a Chick Corea de "Mad Hatter", a Carla Bley de “Escalator Over the Hill” e até ao microtonalismo de Harry Partch na ópera-lóki “Revelation in the Courthouse Park”.

“Alien”, composição de Wyatt e Alfreda, tem claramente o dedo de Eno no arranjo. Basta notar os característicos teclados espaciais ao fundo, os mesmos que se ouvem lá em "Low", de Bowie, e em outros vários trabalhos de Eno, principalmente os de ambient music. Aos belos vocais longilíneos de Wyatt somam-se percussões africanas bastante rítmicas e um baixo alto e bem marcado, revelando aos poucos outra grande faixa do álbum – a qual retraz, agora, a pegada world music experimentada por Eno com os Talking Heads em "Remain In Light", de 1979.

“Out Of Season”, intensa, também interliga vários pontos díspares: música de teatro, atonalismo, Debussy, jazz modal. E como se tudo estivesse propositadamente disperso, fora da estação. Porém, na montanha-russa proposta pelo autor, logo há uma nova tentativa de encontro de um centro tonal (e emocional) mais acolhedor, o que se nota na colorida – mas não menos dispersa –  “A Sunday in Madrid”. Aqui, Wyatt narra uma onírica e viagem à capital espanhola, numa letra de grande teor literário: “Pa chega à cidade das portas fechadas/ É recebido por mineiros das Astúrias/ Sua limusine estriada guarda as últimas brilhantes gavetas-caixas gigantes/ Amontoados para o calor/ Ele é depositado em sua câmara interna/ Mais tarde, Pa encontra o urso representando uma árvore/ Para confundir sentido de cheiro dos cães dos portões do inferno...”

Mais uma ótima é “Blues In Bob Minor”, um blues embalado que é levado numa base de órgão. O canto ininterrupto de Wyatt conta outra longa história, esta da existência sem sentido dos personagens Roger e Martha em meio à célere e burocrática vida urbana. Nessa, a guitarra carregada do ex-Roxy Music Manzanera faz um duo de improviso com a jazzística de Philip Catherine, noutro momento especial do disco. “The Whole Point Of No Return”, composição do amigo Paul Weller (Jam e Style Council), é uma pequena vinheta altamente lírica que encerra o disco numa versão tão personalizada que em nada lembra a original, de 1982. A base se sustenta num coro ao estilo do canto medieval, soturno e litúrgico, assinado pelo próprio Weller. O piano de Wyatt solta notas esparsas, dando a liberdade perfeita para seu trompete solar, que desfecha “Shleep” com a mesma complexidade e beleza que o perfazem desde o início.

Da discografia de Wyatt, muitos destacariam “Rock Bottom”, de 1973, como o pesquisador musical italiano Piero Scaruffi, que o coloca como o 2º maior álbum de rock de todos os tempos e entre dos 15 trabalhos mais importantes da música mundial na segunda metade do século XX. Não é para menos: gravado imediatamente após o acidente, é um registro fiel e pungente do então novo Robert Wyatt que o destino reservara (o título, pertinentemente quer dizer “fundo do poço”). Entretanto, o também celebrado “Shleep”, além de contar com a mão mágica de Eno na produção, é resultado de um artista, então aos 52 anos, maduro, tanto no que se refere à sua música e arte quanto a ele próprio enquanto pessoa e cadeirante. “Levei muito tempo para me recuperar do acidente”, confessou em entrevista na época do lançamento de “Shleep”. As questões da depressão estão igualmente presentes, bem como a reflexão de quem se é a busca de significados maiores. Se Wyatt chegou às respostas, só ele pode confirmar. O disco, no entanto, dá pistas desse olhar autocurador que ele lançou para dentro de si. Terapêutico para ele e um deleite para quem escuta.
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FAIXAS:
1. Heaps Of Sheeps (Alfreda Benge/Robert Wyatt) - 4:56
2. The Duchess - 4:18
3. Maryan (Philip Catherine/Wyatt) - 6:11
4. Was A Friend (Hugh Hoppe/Wyatt) - 6:09
5. Free Will And Testament - 4:13
6. September The Ninth (Benge/Wyatt) - 6:41
7. Alien (Benge/Wyatt) - 6:47
8. Out Of Season (Benge/Wyatt) - 2:32
9. A Sunday In Madrid - 4:41
10. Blues In Bob Minor - 5:46
11. The Whole Point Of No Return (Paul Weller) - 1:25

todas as composições de Robert Wyatt, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:






quinta-feira, 9 de março de 2017

Brian Eno - “Before and After Science” (1977)




“Eu não sou músico.
 Meu instrumento é o estúdio.” 
Brian Eno


“A biologia sonora de Eno
disseca e remonta células do rock
 contemporâneo, e nesse aspecto
a sua mão é de um virtuoso.”
Piero Scaruffi, crítico e historiador musical




Parece estranho, mas à medida que vai se conhecendo mais a música de artistas do mundo pop, mais se conhece não as obras deles, mas sim a de Brian Eno. Profundamente influente sobre uma importante parcela de nomes referenciais do pop-rock nas últimas quase cinco décadas, Eno tem traços visíveis do seu trabalho refletidos nos de ícones como David Bowie, U2, Robert Wyatt, David Byrne, Massive Attack, Björk, Beck, entre outros. Seja na Roxy Music, nos discos solo precursores do pop anos 80 (“Taking Tiger Mountain” e “Here Comes the Warm Jets”) ou nos de ambient music, sua linguagem, que une num só tempo música a artes visuais e cênicas, formando um espectro sonoro-sensorial único, está presente em quase tudo que se ouviu em termos de música pop dos anos 70 em diante por influência direta ou indireta. Eno, mais que um músico, um “cientista”, como se autoclassifica, ditou o que é moderno ou não até hoje. Pois a grande síntese de todas essas pontas – da vanguarda ao folk, passando pelo blues, rock, progressivo, jazz e eletrônica – está em “Before and After Science”, disco que completa 40 anos em 2017.

O álbum, produzido pelo próprio autor em conjunto com Rhett Davies, antecipa e/ou reafirma uma série de conceitos utilizados por ele em produções a outros artistas e trabalhos solo. A concepção dos dois “movimentos” da obra é uma delas. A exemplo do que fizera em “Low” e “Heroes”, de Bowie (naquele mesmo 1977) e, três anos depois, em “Remain in Light”, do Talking Heads, “Before...” tem uma narrativa muito clara: um “lado A” agitado, num tom acima, e um “B” onde desacelera o ritmo e vai gradativamente baixando a tonalidade. Como uma sinfonia iniciada em alegro, o disco começa com o embalo afro-pop da estupenda “No One Receiving”. Eno comanda tudo tocando piano e cantando, além de fazer os efeitos de guitarra e manipular os sintetizadores e a programação de ritmo – as batidas que reverberam de tempos em tempos. Junto com ele está nada mais nada menos que Phil Collins na bateria, marcando o ritmo com maestria, e Paul Rudolph, que se esmera no baixo e na rhythm guitar, ao estilo Nile Rodgers. Para fechar o time, Davies no agogô e o exótico stick. Com seu tradicional canto tribal no refrão, que inspirou diretamente muita gente, é muito parecida em conceito e sonoridade com o que Eno dirigiria pouco tempo depois junto aos Heads (“I Zimbra” e “Born Under Punches”, ambas também faixas de abertura em discos produzidos por ele para a banda). Um começo arrasador.

Como é de sua especialidade, a segunda, “Backwater”, é um rock estilo anos 50 tomado de texturas eletrônicas, o que lhe confere certo precursionismo da new wave. E mais interessante: feita só com sintetizadores da época, todos ainda muito por evoluir, a sonoridade de “Backwater” jamais datou mesmo com a evidente defasagem tecnológica em relação à hoje, em que se pode fazer isso com menor risco de soar artificial. Afora isso, Eno está cantando muito bem, com voz inteira e potente. O próprio repetiria essa fórmula de canção em seu disco duo com John Cale (“Wrong Way Up”, 1989) na faixa “Crime in the Desert” e daria o “caminho das pedras” para o U2 em "The Wanderer”, cantada por Johnny Cash em “Zooropa” (1993).

A veia africana aparece noutro formato agora, mais brasileiro e “sambístico”. Trata-se de "Kurt's Rejoinder", um proto-samba eletrônico que traz novamente a profusão de estilos como essência. O amigo Wyatt aparece para fazer soar o timbal, que se soma, na percussão, com a bateria de Dave Mattacks. Pois este é um dos detalhes de “Kurt’s...”: parece um samba muito percussivo, mas a maior parte de sua timbrística está nos teclados de Eno e no baixo com delay de Percy Jones. Outro fator interessante da faixa são suas incursões de gravações e interferências, as mesmas que Eno exploraria com os Heads em “Remain...” numa das canções precursoras do sample na música pop, “Once in a Lifetime” – expediente, aliás que Eno e David Byrne usariam bastante no álbum dos dois, “My Life in the Bush of Ghosts de 1981, servindo de exemplo para outros vários artistas, como Malcom McLaren em seu aclamado “Duck Rock”.

Quebrando o ritmo quase de carnaval, a linda e introspectiva instrumental "Energy Fools the Magician" traz uma atmosfera de jazz fusion, lembrando bastante Miles Davis de “In a Silent Way” e “Bitches Brew”. Phil Collins está mais uma vez muito bem na bateria, marcando o tempo no prato mas sem deixar de executar viradas inteligentes. "Energy…” funciona como uma breve passagem para outra seção agitada, a que fecha o “1º movimento” do disco. Mas desta vez o ritmo não é de batucada e nem de new wave, mas sim o pop-rock exemplar de "King's Lead Hat". Primorosa em produção e mixagem, é daqueles exemplos de rock escrito na guitarra, ao melhor estilo hard rock. Eno e o craque Phil Manzanera dividem a rhythm guitar, mas é outro mestre do instrumento, Robert Fripp, quem comanda o solo. Com efeitos de teclados e de mesa, “King’s...”, em sua união de eletrônico e pós-punk, afina-se com o que ele e Bowie faziam naquele mesmo fatídico ano em temas referenciais como “Heroes”, “Beauty and the Beast”, “Funtime” e “Be my Wife”, influenciado grupos como Joy Division, The Cure e Bauhaus (estes últimos, que gravariam em 1982 “Third Uncle”, de Eno). Além disso, antecipa outro estilo musical que ganharia o mainstream anos mais tarde com as bandas New Order, Depeche Mode, Eurythmics, Ultarvox e outros: o synthpop.

Se a vigorosa “King’s...” termina a primeira parte de “Before...” lá no alto, o segundo ato já inicia mais leve com a melodiosa "Here He Comes". Com a bela voz de Eno cantando em overdub desde que os acordes da guitarra de Manzanera anunciam a largada, embora a melodia guarde certo embalo, já dá mostras que a rotação foi alterada para menos. O moog e o sintetizador de Eno conferem-lhe o clima espacial que se adensará na sequência em "Julie With...", esta, sim, totalmente ambient. Enquanto canta os belos versos com suavidade (“Estou em mar aberto/ Apenas vagando à medida que as horas andam lentamente/ Julie com sua blusa aberta/ Está olhando para o céu vazio...”), os teclados e sintetizadores desenham uma melodia cristalina como o céu limpo a que se refere na letra. Afora do baixo de Rudolph, Eno toca todos os outros instrumentos, inclusive a guitarra do curto mas belo solo, fazendo lembrar Fripp.

Mais uma especial (e espacial) do disco é "By This River", parceria dele com os krautrocks Moebius e Rodelius, mais conhecidos como a banda Cluster. O trio, que naquele ano havia gravado um trabalho em conjunto, o clássico “Cluster & Eno”, deixou guardada essa outra joia. De riff espiral marcado no piano, é sem dúvida a mais clássica do repertório, remetendo às bagatelas românticas, mas também à síntese formal do minimalismo. Nova instrumental, a ambient "Through Hollow Lands" é uma homenagem ao amigo e parceiro Harold Budd, com quem Eno fez diversos trabalhos desde aquela época. Não à toa, a música traz o clima introspectivo e contemplativo de Budd que tanto confere com este lado da musicalidade de Eno, neoclássico e new age.

Se como numa obra clássica “Before...” inicia com o allegro de “No One...”, prossegue variando allegretto e presto e em "Julie With..."/"By This River"/"Through...”  encontra características de lento e de adagietto, "Spider and I", de ares litúrgicos e caráter emotivo, é o finale desta grande peça num andamento adagio. E se “No One...” começa arrasando, “ “Spider...” é um desfecho digno.

O crítico musical da Rolling Stone Joe Fernbacher diz que “Before...” é o álbum perfeito da carreira de Eno. Faz sentido, pois, ativamente participante do que estava sendo produzindo de inovador naquele momento, como “The Idiot”, de Iggy Pop, “Vernal Equinox”, de Jon Hassell, e os já citados “Low” e “Heroes”, de Bowie – todas obras de 1977 e responsáveis por alguma sonoridade que ditaria as mentes musicais nas décadas seguintes –, Eno resumiu a sua contribuição para uma nova cara da música pop em “Before...”. "Apesar do formato pop do álbum”, disse outro crítico, David Ross Smith, “o som deste álbum é único e distante do mainstream". Compreendendo todas as suas vertentes musicais e artísticas, Eno compõe um trabalho que alia o agradável e o denso, o popular e o complexo, a vanguarda e o pop. Ao ouvir o disco, pode-se dizer sem erro que a música pop divide-se, literalmente, em “antes e depois da ciência”, a ciência inventada por este alquimista dos sons chamado Brian Eno.

Brian Eno - "No One Receiving"



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FAIXAS:
1. "No One Receiving" - 3:52
2. "Backwater" - 3:43
3. "Kurt's Rejoinder" - 2:55
4. "Energy Fools the Magician" - 2:04
5. "King's Lead Hat" - 3:56
6. "Here He Comes" - 5:38
2. "Julie With ..." - 6:19
3. "By This River" (Eno, Hans-Joachim Roedelius, Dieter Moebius) - 3:03
4. "Through Hollow Lands" - 3:56
5. "Spider and I" - 4:10
Todas composições de autoria de Brian Eno, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Brian Eno e John Cale - "Wrong Way Up" (1990)




“É muito fácil para mim falar de ‘Spinnig Away’, porque ela tem uma característica que eu gosto muito, e que já eu usei antes também. Eu gosto muito de ter contrastes de velocidade. Por exemplo, de ter ritmos staccato muito, muito rápidos, ritmos picotados, em que vocais muito líquidos correm por cima deles. Algo como duas qualidades bem opostas: um ritmo que é staccato e ligeiramente oscilante. Se você ouvir a forma como os tambores começam nessa música, eles têm uma sensação estranha e fora de equilíbrio. Seu som é nítido. Os vocais e os violinos, por outro lado, não são tocados com o mesmo espírito, eles estão quase em um universo musical diferente. Eles flutuam em cima deste mar de ação, esse mar de atividade. E os violinos tocam em um compasso diferente.”
 Brian Eno


“Wrong Way Up” foi uma paixão instantânea. Adquiri o CD poucos anos depois de seu lançamento, 1990, mas já o mirava desde quando li na revista Bizz que Brian Eno – de quem já gostava, pois até lhe tinha em K7 “Before and After Science”, de 1977, além de admirar as parcerias/produções a bandas e artistas que de muito já ouvia, como as com David BowieTalking HeadsU2, Devo, entre outros – e John Cale – de quem sabia em parte da importância e qualidade também pelas produções a outros artistas e pelo The Velvet Underground, obviamente, mas não tinha ainda noção de sua magnitude como hoje – haviam, finalmente, se juntado para um trabalho em comum. Os dois já tinham se pechado 16 anos antes no show ao vivo transformado em disco “June 1, 1974”, projeto conjunto com Nico e Kevin Ayers que, justamente por contar com tantos talentos juntos, não abria espaço para cada um explorar mais de si mesmos. Os dois também participavam frequentemente dos projetos de um e de outro (Cale em “Another Green Wolrd”, de Eno, de 1975; Eno em “Fear”, de Cale, de 1974), mas algo único, em par, não. “Wrong...” surgia-me, assim, com uma grande expectativa de poder ouvir reunidos aqueles que considero, juntos com Phil Spector e George Martin, os dois maiores produtores de estúdio da história, duas figuras fundamentais para o rock e com bagagens ricas, até parecidas em alguns aspectos. Britânicos (um nascido na Inglaterra, o outro no País de Gales), ambos fundaram bandas clássicas, Roxy Music e Velvet Underground, respectivamente, e foram os integrantes que saltaram fora no início (Eno, depois do primeiro disco; Cale, após do segundo) para tocarem seus projetos solo. De formação acadêmica e erudita, também sempre tiveram estilos marcantes em tudo que produziram e, muito por conta disso, preferiram trilhar por uma carreira que apontava não só para a musical, mas para outras artes, como plásticas, cinematográfica e cênica.

O que esperar, então, deste aguardado encontro? Ainda mais considerando que lhes era comum há bastante tempo o valor das parcerias, basta ver as de Eno (David Byrne, Jon Hassell, Harold Budd, Robert Fripp) e as de Cale (Nico, Terry Riley, Lou Reed). Por que nunca haviam pensado em algo próprio até então? A resposta parece nos direcionar a uma mera coincidência ou falta de oportunidade, pois o resultado é uma afinidade tamanha que chega, às vezes, a parecer que sempre compuseram juntos. Para mim, o efeito foi o que lhes disse na primeira linha deste texto: arrebatamento imediato, que perdura até hoje por um álbum que não canso de ouvir, um dos preferidos de minha discoteca.

Apesar da sugestão do nome, algo como “caminho errado ascendente”, em que se nota certa ironia por parte de dois artistas de vanguarda que sempre optaram pelo caminho autoral e não-comercial, o disco é um verdadeiro caminho fácil. Fácil de ouvir, fácil de gostar. Complexo em harmonias e arranjos, mas totalmente aprazível e saboroso aos ouvidos. Composto de 12 faixas, metade cantada por cada um e todas compostas em dupla (exceto “The River”, só de Eno), “Wrong...” tem cara de projeto artesanal, haja vista a sucintez da instrumentalização e até do projeto gráfico (do próprio Eno), mas que consegue ser universal e supermoderno sem soar pretensamente high-tech, resgatando referências folclóricas, pop e clássicas. Um resumo do que poderia ser chamado de world music. Valendo-se dos predicados de cada um, como o conhecimento apurado de ambos da mesa de estúdio, a técnica de Eno aos teclados e sintetizadores, seus cuidados com os detalhes, a pegada erudito-modernista de Cale e, claro, a criatividade absurda dos dois como compositores, “Wrong...” lhes extrai o que há de melhor. “Lay my Love”, bela e imponente, abre dando este tom: simbiose entre instrumentos eletrônicos e acústicos, polirritmia, escalas em intervalos quebrados – típico de Cale – e referências étnicas principalmente nos contracantos – típico de Eno. “Empty Frame”, um rock-soul anos 50, e “Crime in the Desert”, espécie de twist minimalista, ambas sob uma textura eletrônica e também na voz solo de Eno, trazem o mesmo conceito. 

Cale sussurra a leve “In the Backroom”, de clima árabe especialmente no andamento. O canto elegante do galês volta em “Cordoba”, estupenda, das melhores do álbum. Minimalista e propositalmente em volume mais baixo que o restante das faixas, é toda composta em detalhes de texturas e sonoridades, em que os elementos vão se incorporando um a um sobre uma base de teclados e uma batida programada. Muito cool, nela se sentem os ecos das tradições moura e.católica da histórica cidade espanhola. A sempre marcante viola de Cale tange um curto mas exuberante solo que remete à atmosfera misteriosa da região da Andaluzia.

“Spinning Away”, mais uma maravilhosa, tem visível mão dos dois. A começar pela de Cale, que pinta com o som de sua viola com cores renascentistas esta peça. Mas a melodia é bastante característica de Eno, tais como as que coescreveu com Byrne em “Remain in Light”, do Talking Heads, em 1980, ou as que já experimentava em “Before...” ("No One Receiving"), visto suas camadas de linhas vocais em tom médio lembrando cantos tribais e a base percussiva da guitarra, que se conjuga com a programação rítmica. A cara da proposta do disco. 

Mais uma linda canção e outro show de Cale aos vocais, charmoso e variante nas escalas: a enigmática “Footsteps”. Com uma aura oriental, seja nos acordes agudos de teclado-solo, seja nos adornos que adensam seu “climão” sombrio, seja no som seco da tabla tocada por Ronald Jones. Ao final da faixa, esta mesma batida amadeirada marca em três tempos espaçados o começo da seguinte e, talvez, melhor do disco – embora seja difícil a escolha. “Been There, Done That” é ritmada e num tom mais alto, o que contrasta com a gradação média para menor da soturna anterior. Nela, a ideia de percutir os fios dos instrumentos de corda aparece de novo. De refrão pegajoso (“Been there, done that/ Been there, don’t wanna go back”), é um dos melhores exemplos de pop world music que pode existir. Novamente, o entrecruzamento de cantos aproveita muito bem os timbres aveludados tanto de Eno quanto de Cale – como ocorrera em outra ótima faixa, “One World”, música de trabalho do álbum –, assemelhando-se um com o outro em vários lances.

O disco fecha com talvez a mais bonita música de todo o cancioneiro de Eno: “The River”. Balada estilo anos 50, em que o tom grave de sua voz cantando com suavidade faz-se extremamente marcante (“So deep in the water/ Sleep, dark as the night...”), é uma cantiga de ninar doce e lírica escrita para sua filha Irial no dia de seu nascimento – o que justifica ser a única sem parceria na composição. A participação do outro filho do compositor, Roger Eno, aos teclados, aumenta o clima familiar e emotivo da canção, que desfecha com o violino de Neil Catchpole desenhando o andamento de maneira lânguida e cadenciada, até sumir leve e gradualmente, caindo em um sono tranquilo.

“Wrong...” é um disco que não data, semelhante a "Nightclubbing", de Grace Jones (1981), "Low", de Bowie (1976) ou “Off the Wall”, de Michael Jackson (1979), trabalhos que souberam casar a tecnologia que suas épocas lhes disponibilizaram com uma essência tradicional, trazendo inovações de estilo e técnica, mas, principalmente, por conterem um conceito bem definido e apurado. Por isso mantêm-se frescos através do tempo, atemporais. 

Porém, mais do que a contribuição que trouxe ao universo pop, o disco é, antes de mais nada, um feliz encontro de artistas muito afins, onde fica evidente a identidade e admiração mútuas que têm um pelo outro. Tarimbados àquela altura, podiam muito bem, como vários outros veteranos já incorreram, trilhar pelo “caminho fácil”: gravar standards um de outro, intercalando-se. Cale cantaria, por exemplo, "Third Uncle" ,“Babies on Fire" e outras quatro e Eno fazia o mesmo: ficava com versões de "All Tomorrow's Parties""Heartbreak Hotel" e completava com mais quatro. Pronto: fechava um disco com 12 faixas, quando muito mais umazinha nova (a de trabalho, claro) para justificar para a mídia um reencontro. Mas estamos falando de John Cale e Brian Eno, meus caros, dois dos maiores nomes da música do século passado e que, graças!, ainda vivos e produzindo bem, continuam sendo permanentemente ascendentes anos 2000 afora e até quando existir esta fascinante arte chamada música.

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“One World” (vídeo oficial) - Brian Eno e John Cale



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FAIXAS:
1. Lay My Love - 4:44
2. One Word - 4:34
3. In the Backroom - 4:02
4. Empty Frame - 4:26
5. Cordoba - 4:22
7. Spinning Away - 5:27
8. Footsteps - 3:13
9. Been There, Done That - 2:52
10. Crime in the Desert - 3:42
11. The River - 4:23

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Ouça:
Brian Eno e John Cale_Wrong Way Up



quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Música da Cabeça - Programa #76


Como aqui ninguém é burro e nem covarde, a gente adere com todas as forças às mulheres contra “ele” e ainda sai rolando um monte de música boa pra afugentar esse inferno pra outro lugar. Espantando todo e qualquer retrocesso moral, o Música da Cabeça desta semana traz, além de seus quadros, Marina, Roxy Music, Arnaldo Antunes, Stevie Wonder, Mundo Livre S/A e muito mais. Também, um novo “Cabeça dos Outros” de fora do Brasil. Se elas se empoderam de seus papeis políticos, a gente aplaude e ainda dá uma ajudinha aqui com informação e trilha sonora. Quer entrar nessa corrente? O programa é hoje, às 21h, pela Rádio Elétrica, com produção e apresentação de Daniel Rodrigues, ok? Ah, e antes que me esqueça: #EleNão



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/