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terça-feira, 26 de julho de 2016

Grupo Corpo – “Parabelo" e "Dança Sinfônica” – Teatro do SESI – Porto Alegre (26/06/2016)



Plasticidade sobre o palco.
Assistir ao Grupo Corpo é sempre uma ocasião especial. Ponto. Agora, imagine um espetáculo comemorativo aos 40 anos da companhia, com sessão pré da melhor montagem deles e na companhia amorosa de Leocádia e Carolina Costa, duas costumazes espectadoras do Corpo há décadas como eu. A perfeição! Assim foi com a apresentação de “Dança Sinfônica”, que a melhor companhia de dança do Brasil (quiçá, na atualidade, do mundo) trouxe a Porto Alegre junto com o balé "Parabelo", de 1997.

Como de praxe, abre-se com o espetáculo mais antigo. No caso de “Parabelo”, a escolha por esta e não outra peça de sucesso como “Corpo” (Arnaldo Antunes, 2000) ou “Onqotô” (Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, 2005) parece bastante pontual, haja vista que, feitos quase 20 anos de sua estreia, continua dizendo muito sobre o trabalho dos Pederneiras e sua equipe. Para mim, mesmo já a tendo visto outras duas vezes anteriores nesse meio tempo, “Parabelo” é sempre uma avalanche emocional. Que belíssima montagem! Sobre músicas de Tom Zé e Wisnik, é, como disse antes, provavelmente a melhor coreografia do grupo e, igualmente, talvez a mais brilhante trilha sonora já escrita para eles – além de ser um dos grandes discos instrumentais de toda a música brasileira, certamente.

O rico e brasileiro "Parabelo" de 1997.
O esmero do material criado pela dupla, que entrelaça a cultura regional do Nordeste através dos sons e dos cantos folclóricos e antropomórficos à uma inerência da musicalidade barroca e ao atonalismo da vanguarda, dá a Rodrigo Pederneiras (coreografia), Fernando Velloso, Paulo Pederneiras (cenografia e cenografia), Freusa Zechmeister (figurino) um manancial de possibilidades de criação que sublimam muito do coração brasileiro. Ver esse espetáculo é sentir-se brasileiro e, mais do que isso, feliz por ver que se é capaz de criar algo tão bonito e rico tendo como substrato elementos que nos compõem como entes culturais. É impossível não se tocar pela beleza, pelo gingado, pela leveza (ora dureza), de momentos como do balé clássico se entremeando à realidade dura dos retirantes de “Assum Branco”, ou a apoteose “frevística” do fechamento com a faixa “Xique Xique”.

Depois do arrebatamento total advindo com “Parabelo”, a estreia de fato. A nova montagem, feita sobre trilha de um velho parceiro do Corpo, o também mineiro Marco Antônio Guimarães, tem todos os quesitos de um grande espetáculo. A música, escrita para grande orquestra – a primeira feita nesses moldes para a companhia, geralmente tomada de brasilidade temática e instrumentalização idem – retraz elementos de trilhas dele para o Corpo, como em “21” (1992), “7 ou 8 Peças para Ballet” (1994) e “Bach” (1996). Igualmente, aciona células sonoras de outros trabalhos marcantes da trajetória do grupo ("Benguelê", 1998; “Santagustin”, 2002; “Sem Mim”, 2011; “Triz”, 2013) como que prestando pequenas homenagens – típicas das obras sinfônicas –, o que aqui soa como metalinguagem também.

Metalinguagem, aliás, é a chave para esta nova montagem do Corpo. A vida dedicada aos palcos e a relação vital entre artista e obra conceituam “Dança...”. A cenografia/iluminação e os figurinos dialogam o tempo todo ao usarem o vermelho encarnado do veludo, típico das cortinas dos teatros, e o preto do fundo da caixa cênica como o elemento escuro, a não-luz. Dessa forma, o conceito coreográfico de “Dança...” se baseia todo nestas cores-elementos, nesses dois estados emocionais de vida e morte, em que os dançarinos surgem e somem de “dentro” das cortinas ou do fundo infinito do palco, como se se desprendessem dali para apresentar movimentos e, em seguida, retornarem a suas origens: o imaterial, o nada.

Saltos e esticar de pernas, lembrando o balé clássico e moderno.
Guimarães, cabeça do Uakati, vale-se, na composição, bastante do estilo “folk tropicalista” do grupo, que forma a banda principal da peça sinfônica. Eles usam instrumentos peculiares, como flauta e tambores Uakati, tubos PVC, piano sem o ataque, buzina de sopro, caxixi e castanhola. Somados à volumosa orquestra da Filarmônica de Minas Gerais, todos esses músicos dão à trilha uma textura bastante própria, que lembra em vários momentos os trabalhos do Uakati e de Philip Glass, compositor com quem coassinam a trilha de “7 ou 8...”. As coreografias de “Dança...”, por sua vez, vão de lances bastante lânguidos, referenciando o balé clássico – numa reverência à raiz da arte da dança – a gestuais peculiares da dança moderna, os quais hibridizam o folclórico aos movimentos da vida urbana, com suas assimetrias e desequilíbrios. Tudo, porém com muita leveza, haja vista os vários momentos de saltos e giros, menos comuns ao Corpo da forma tradicional como foram usados. Mesmo assim, estão presentes as jogadas de pernas, o balanço dos quadris, o corpo a corpo das duplas e as composições plástico-espaciais vistas em suas obras anteriores. Assim, a coreografia veste de forma muito competente a sonoridade proposta por Guimarães, e o que se vê em “Dança...”, universal e brasileiro na medida certa, é uma síntese de um trabalho de quatro décadas pautado pela inventividade e pelo rigor. Como dizem os próprios, uma dança sobre a memória.

Na comparação com o que se assistiu antes em “Parabelo”, entretanto, fica-se com uma sensação de “podia ser mais”. Mesmo forjando um universo mais onírico e fulgurante, acaba perdendo força diante daquela enxurrada de brasilidade, algo que marca muito a companhia nesses anos de estrada. Impossível assistir ao Corpo sem associá-los à uma tropicalidade. Isso não quer dizer que “Dança...”, enquanto proposta e realização, não tenha valido. Bem pelo contrário. É um trabalho em que se nota a simbiose entre artista e palco, vida e obra, encenação e real, luz e sombra. Uma justa homenagem que o Corpo presta ao teatro e a si mesmo enquanto artífice da arte da dança no Brasil e nas Américas. A nós, admiradores de longa data da companhia, que não só buscam não perder nenhuma estreia como ainda colecionam várias de seus CD’s (relembrando as danças a cada execução), a satisfação é completa. E com o gostinho da excitante dúvida: o que será que eles trarão daqui a dois anos na nova montagem? Isso fica para 2018.


Grupo Corpo - Dança Sinfônica






segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tom Zé - "Estudando o Samba" (1976)



“[Tom Zé] pensou e realizou este disco, onde procurou reunir uma variedade de tipos e de formas rurais e urbanos do samba, dando a cada música a vestimenta que achou mais adequada.”
Elton Medeiros


Nos anos 90, o destino pôs diante de Tom Zé o 'talking head' David Byrne, que o trouxe do ostracismo para uma posição de artista cult e mundialmente reverenciado. Mas o início desta história hoje já conhecida nasceu de uma audição despretensiosa de um dos vários LP’s de MPB que Byrne comprara numa vinda ao Brasil. Dentre aqueles bolachões, um lhe fez a diferença. Foi este que o motivou a procurar saber quem era aquele artista e, em seguida, conhecê-lo e gravá-lo. Este álbum era “Estudando o Samba", de 1976, sem dúvida o melhor trabalho do baiano de Irará.

Metalinguístico, atonal, serialista, revisionista. Todos estes atributos “difíceis” estão certos quando creditados a “Estudando o Samba”. Mas tudo tem pouca importância quando o negócio é simplesmente ouvi-lo. Um deleite! Trata-se de um disco indiscutivelmente conceitual, o que já lhe garante certa aura de complexidade. É, talvez, o grande disco-conceito da música brasileira depois do “Coisas” do Moacir Santos, de 1965 (neste quesito, nem “Tropicália”, de 68, em que Tom Zé participa junto com toda a turma de Caetano, Gil, Gal, Nara e Mutantes, é tanto). Mas, acima de tudo, é delicioso escutar o álbum do início ao fim e curtir músicas como “Tô”, “Hein?” e “Vai”, onde Tom Zé desconstrói o gênero samba para, didaticamente, mostrá-lo de maneira híbrida em suas mais variadas vertentes.

Comecemos pelo fim. Afinal, sou daquela teoria de que todo grande disco tem uma obra-prima de desfecho, de abertura ou as duas coisas juntas. No caso de “Estudando...” a faixa final não é bem um espetáculo, mas, com certeza, original e incomum, por isso o destaque. Intitulada “Índice”, traz na letra de frases fragmentadas e de sentido vago um verdadeiro índice remissivo em que se repassam os títulos de todas as músicas anteriores. Aí o motivo tanto de a letra ser quase silábica, pois todos os títulos (exceto “A Felicidade” e a própria “índice”) são formados por palavras que não passam de quatro letras, quanto, também, do teor fortemente conceitual do disco, visto que a obra se autoreferencia a todo instante.

Se o final do disco é interessante, porém não musicalmente estonteante, o início é. “Mã”, samba modernista repleto de referências aparentemente díspares, é a tradução da obra de Tom Zé (não à toa o próprio artista a regravou com outras letras mais de uma vez depois). Num clima entre a ópera e o ritualístico, mistura batuque de terreiro, canto de trabalho das lavadeiras nordestinas, coro sacro-religioso, ruídos da São Paulo urbana, entrecruzamentos vocais ao modo das vanguardas europeias (Ligeti, Stockhausen) e riff de rock (tocado não na guitarra, mas cavaquinho de samba!). Tudo está ali: tradição e vanguarda, lundu e tropicália, popular e erudito, roça e asfalto; e de uma forma intensa, poderosa. Já tendo criado ótimas músicas até então (o samba concretista “Todos os Olhos”, o sertanejo-pop “Sabor de Burrice” ou o funk-rock “Jimi Renda-se”), “Mã” é, definitivamente, marco da maturidade musical de Tom Zé como músico.

Na sequência, a única do disco que não é de sua autoria: o clássico “A Felicidade”, de Tom e Vinícius. A escolha, claro, não foi à toa: tocada em ritmo de valsa-rancho, Tom Zé canta lindamente em tom baixo acompanhado só de violão, que sincopa o compasso. Ainda, esparsos acordes de baixo e frases de orquestra de metais ao estilo de George Martin ou Rogério Duprat. Através desta economia de elementos, Tom Zé põe a nu a belíssima estrutura melódica original da canção, homenageando não apenas a famosa dupla de autores, mas a bossa nova como um dos gêneros sambísticos. Ainda, para arrematar, depois de um dos últimos “soluços” da síncope, entra uma cozinha de pagode na diagonal do compasso, desconexão rítmica esta que não estraga a música. Pelo contrário: cai tão bem que faz deixar ainda mais clara a percepção de que os criadores da bossa nova muito se inspiraram no que vinha do morro.

Outra que merece todos os elogios é “Toc”, talvez o único samba serial da história! Próximo ao que o maestro francês Pierre Boulez inventou, o serialismo (método de composição que usa séries de notas, ordenando-as e variando suas durações, intensidades e ataques), “Toc” representa, em tese, uma sequência de sons infinitos e contínuos. Só não é assim porque, como um jogo de xadrez, o compositor “joga” com as notas e as séries sonoras, tirando-as, adicionando-as, repetindo-as, deslocando-as, num esquema matemático em que as variáveis são intermináveis. Sem nenhuma percussão, esta “brincadeira” instrumental ainda traz um dos “inventos” de Tom Zé: o agogô no esmeril, uma serra de verdade adaptada como instrumento musical, o que faz deste samba soar mais barulhento do que muito rock pesado.

“Tô” é outra pérola; das minhas preferidas. Parceria com o sambista Elton Medeiros e de letra filosófica, mas pegajosa (“Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”), é um sambão urbano a la Riachão. O disco ainda passa pelo samba brejeiro (“Ui!”), o samba minimalista (“Dói”), o samba-canção (“Só”), o samba-marchinha (“Vai”) e o samba “dor de cotovelo” (“Se”: “Ah, se maldade vendesse na farmácia/ Que bela fortuna você faria”). Tudo de forma revisitada, revisada, irônica e filtrada pelo olhar tropicalista de Tom Zé.

“Estudando o Samba” significa, na história da MPB, um passo adiante na linguagem do gênero não por inventar um novo conceito, mas por montar uma “enciclopédia do samba”, evidenciando, ao decompor a espinha-dorsal dos seus subestilos, as mil e uma possibilidades que ainda poderia vir a ser explorado. E deu certa a experiência em laboratório. Estão aí Towa Tei, Beastie Boys, Sean Lennon, Ed Motta e Fantastic Plastic Machine que não me deixam mentir. Todos adicionaram a seu paradigma de referências o samba, invariavelmente usando-o entre outros estilos. Afinal, foi Tom Zé mesmo quem disse: “estudando [o samba] pra saber ignorar”.

FAIXAS:
1. Mã
2. A Felicidade
3. Toc (Instrumental)
4. Tô
5. Vai
6. Ui!
7. Dói
8. Mãe
9. Hein?
10. Só
11. Se
12. Índice
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Ouça “Estudando o Samba”:
Tom Zé Estudando o Samba
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Além de “Estudando o Samba”, vale ouvir outros três discos super representativos da longa obra de Tom Zé: “Todos os Olhos” (1973), a “mais completa tradução” da São Paulo moderna; “The Hips of Tradition” (1992), o marcante primeiro trabalho gerado após a redescoberta por David Byrne; e a linda trilha do balé “Parabelo” (1997), composta em parceria com José Miguel Wisnik para o Grupo Corpo.

Ouça “Todos os Olhos”:
Todos os Olhos

Ouça “The Hips of Tradition”:
The Hips of Tradition

Ouça “Parabelo”:
Parabelo

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por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Grupo Corpo – “Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil” – Teatro do SESI – Porto Alegre (03/11/2019)



"Confesso que recebi o convite para criar uma trilha para o Grupo Corpo com satisfação mas com preocupação também, especialmente quando eles manifestaram o desejo de denominar a peça GIL - ou seja, de concentrar a criação no conjunto, num arco que fosse o mais amplo possível do meu trabalho, que tem tantas influências baianas, do samba, da música pop em geral. De todo modo, ouvindo a trilha no final, percebo que ela tem muitos elementos da minha dimensão rítmica mesmo, com elementos da música afro-baiana". 
Gilberto Gil

O Grupo Corpo é, mais do que qualquer banda, cineasta ou outro tipo de artista no Brasil, o que mais tem o poder de me surpreender. A cada nova montagem, e até mesmo a cada repetição de alguma das antigas, a capacidade da companhia mineira de balé – sem dúvidas uma das melhores em atuação no mundo – de reinventar-se e trazer novas visões estéticas e conceituais é invejável. Não foi diferente na última apresentação deles em Porto Alegre, em razão da mais recente montagem,“Gil”, cujo nome já diz tudo: um retrospecto sintético da obra do genial músico baiano Gilberto Gil. Para arrematar, além da iluminada companhia das "Costa", Leocádia, Carolina e a amiga Amanda, a ocasião caiu justamente no dia de meu aniversário. Muita emoção envolvida.

Como disse, não só as novas montagens surpreendem. O hábito comum do grupo de trazer na primeira parte alguma de suas peças anteriores, não raro é tão estimulante quanto a estreia. Foi assim em 2015, quando trouxeram, junto à então recente “Dança Sinfônica” – com trilha de Marco Antônio Magalhães, parceiro de longa data do Corpo –, que perdeu impacto diante de sua talvez mais representativa montagem, “Parabelo” (1997, José Miguel Wisnik e Tom Zé). Desta vez, abriram com uma das que mais tinha vontade de assistir mas que nunca tivera a oportunidade: ”Sete ou Oito Peças para Ballet”, de 1994. Marco na trajetória recente da companhia de mais de 40 anos, tem trilha com arranjos e execução do grupo mineiro instrumental Uakti – liderado por Magalhães – e autoria do, assim como Gil, gênio: o norte-americano Philip Glass.

"Sete ou Oito Peças para um Ballet", com trilha de Glass: êxtase no palco
Afora a deliciosa surpresa de que a tal trilha que nunca achava para ouvir pelo nome da peça era a mesma de “Águas da Amazônia”, lançada em disco com este título anos depois da apresentação nos palcos, a coreografia é simplesmente extasiante. Aproveitando-se da construção minimalista da música, que se monta a partir de células sonoras móveis em variações de volume, intensidade e harmonia, Rodrigo Pederneiras cria uma coreografia em que extrai o máximo da trilha através de movimentos e danças, intercalando constantemente contenção e expansão. Como uma dança da natureza em que a terra determina criação e recriação. Isso auxiliado pela linda luz (Paulo Pederneiras) e pelo figurino (Freusa Zechmeister), que remetem diretamente à organicidade, e a cenografia (Fernando Velloso), igualmente inspirada na fauna e na flora brasileiras. Para mim, que ouço seguidamente “Águas...” , foi emocionante vê-la encenada, principalmente a parte final, quando uma das composições mais icônicas de Glass, “Metamorphosis”, ganha a instrumentalização característica da Uakti, de sonoridade tão brasilianista quanto de vanguarda. No encerramento, num ápice típico das composições de Glass, fica a sensação de que talvez nem precisasse de segunda parte.

Luz amarela e fendas pelo corpo: o
sertão de Gil representado
Mas precisava, sim. Afinal, era a representação em dança pelo filtro artístico do Grupo Corpo de ninguém menos que o “Buda Nagô” Gilberto Gil, talvez o mais completo músico de sua geração. Com um conceito totalmente diferente de “Sete ou Oito...”, o que fez parecer tratar-se de outra companhia, “Gil” inicia. Tons de um amarelo intenso, como um sol implacável do sertão nordestino, iluminam o tablado. Eu, fã ardoroso de Gil, mas suficientemente resistente para não buscar nenhuma informação sobre a montagem antes de assisti-la para não estragar a surpresa, pensava: “De que forma ele irá começar a trilha?” Seria com o toque de seu violão, instrumento tão simbiótico a ele? Ou acordes de sanfona, herança do baião de Luiz Gonzaga e memória de sua infância? Ou as percussões, as quais sempre fora intimamente ligado por conta das raízes da África? Eis que o mestre me surpreende emitindo os primeiros sons da peça em que ele próprio é tema com vocalizes e sons guturais reelaborados eletronicamente. O título: “Choro”. A voz, representação primeira da identidade do ser humano, do músico, do artista, do ser humano. Afinal, qual o primeiro som que emitimos quando nascemos?

Nascida a peça, a partir daí o autor constrói uma verdadeira sinfonia gilbertiana, em que traz, em uma síntese tocante, todos os elementos de sua extensa e abarcante obra: a Bahia, o candomblé, a bossa nova, o sertão, a tecnologia, o tropicalismo, o samba, o concretismo, o rock, o Oriente. E também Villa-Lobos, Beatles, SatieChico Science, Smetak, Domenico, Caymmi, Arnaldo, Caetano. João. Que tarefa difícil, visto a amplitude de sua importância como artista no mundo e o paradigma simbólico de uma obra tão representativa da cultura moderna de um país continental como o Brasil. Gil acompanhou tudo o que aconteceu em termos de movimentos musicais em mais de 60 anos para cá. Agora, foi a vez de ele mesmo fazer esse autopercurso revisitando-se para extrair uma nova compreensão de si próprio.

Gestual que lembra a performance do próprio artista
inspirador da montangem
A coreografia, também de Rodrigo Pederneiras, se vale enormemente de gestos amplos e expansivos (com referências ao frevo, ao samba, aos caboclos de lança, aos orixás, à assimetria roqueira) e não raro referindo-se aos conhecidos gestos performáticos de Gil quando no palco. O tempo todo o ritmo dos passos é marcado pela luz quente e amarelada criada por Paulo e Gabriel Pederneiras, a qual persegue em fachos os dinâmicos movimentos dos corpos. O figurino escuro, autoria de Freusa, traz estampas de colorido africano (Joana Lira) que dão, sob o jogo de luz, a impressão de porem à mostra fendas da carne corpórea. Com um conceito cenográfico bastante limpo – poucos bailarinos no palco por vez, utilizando-os muito mais como linhas ora em pequenas composições, ora individualmente –, a montagem, assim, desenha a concepção musical proposta pelo compositor: organismos que se formam (as três “Intros”), tomam fisionomia própria (“Choro nº 1”, “Seraphimu” e “Fragmento Lírico”, além do knee "Balafon"), brincam em suas existências efêmeras (os três “Improvisos”) para, na segunda metade, aí sim, ganharem concretude, ganharem corpo (“Círculo”, “Triângulo”, “Quadrado”, “Retângulo” e “Pentágono”). O final não poderia ser mais lógico e emblemático com um tema intitulado, justamente, de “Gil”.

Rica em variações, harmonias, timbres e texturas, a encadeada e emocionante trilha dá ao espetáculo coesão e dinâmica em seus quase 40 minutos de duração. “Intro”/“Choro nº 1/”Improviso”, logo nos primeiros movimentos, é especialmente marcante, pois encerra várias vertentes do universo musical do músico baiano: o chorinho, o rap, o afoxé, o samba, o eletro-pop e o baião, passando por uma seção clássica de piano até progredir na reelaboração de si mesmo e de sua música ao parafrasear "Filhos de Gandhi" (1974) e "Ela Falava Nisso Todo Dia" (1968). Outras duas, "Aquele Abraço" (1969) e "Andar com Fé" (1982) sevem de motivo para um auto-sample, em que traços minimamente reconhecíveis de suas melodias se entrecruzam - repetindo e ressignificando, aliás, as vozes fragmentadas da introdução.

Ritmo e movimento:
a Bahia africana de Gil
Já a segunda sequência, o movimento “Seraphimu”, ideia extraída de outra canção dele, "Serafim", de 1992, começa como um legítimo kraut-rock alemão em que cita o riff de “A Novidade”, para, mais adiante, dar um caráter erudito-religioso aos tambores e às percussões politonais do matiz africano fazendo da mesma "Serafim" um fio condutor ("Quando o agogô soar/ O som do ferro sobre o ferro/ Será como o berro do bezerro/ Sangrado em agrado ao grande Ogum", diz a letra original). Também, de extrema sensibilidade e responsável por um dos momentos mais belos do espetáculo, “Fragmento Lírico” é com certeza das melodias mais bonitas já criadas por Gil. Igualmente empolgante, inclusive na coreografia, o rock "Círculo", com citação a "Toda Menina Baiana", de 1979.

Além do uso intenso de percussão em vários momentos (que chama a coreografia a movimentos igualmente carregados), o trabalho de sopros é, não à toa, bem destacado, assim como os elementos eletrônicos (comandados por Domenico Lancellotti). Mas o que ganha realce é o violão de Gil, quase que seu segundo corpo. É no violão que o autor, ao compor, se materializa enquanto som, em que revive e logo se esvai a cada nota que o vento leva. E é sobre isso que, em suma, “Gil”, aborda: vida e morte. Ao varrer através do tempo a própria vida, do começo desta até o presente, Gil, com 76 anos e sapiente da maior proximidade da partida deste plano, escreve uma espécie de réquiem. Porém, diferente de Mozart, Gil a completa ainda de olhos abertos. Sente-se um olhar enevoado tanto para o passado esvaído quanto para o futuro implacavelmente cada dia mais encurtado. Tudo está embrenhado: memória, perspectivas, sentimentos, razão, espírito, matéria. Num só corpo. Por isso, os altos e baixos da narrativa, em que alegria e tristeza, luz e sombra, vida e morte, se confundem, já são a mesma coisa para Gil. A releitura desconstruída e uns dois tons abaixo na escala de “A Raça Humana” (“Triângulo”) é uma mostra “viva” disso. O que era originalmente um reggae dançante vira uma missa fúnebre, como os passos sofridos a caminho da morte dos retirantes nordestinos sob (aquele) sol calcinante.

A riqueza da obra do compositor baiano representada em gestos pelo Grupo Corpo
Nova guinada e volta animada a manipulação eletrônica da própria voz com o eletro-funk “Quadrado” emulando “Cérebro Eletrônico” (1969) e “Realce” (1979). A misteriosa e oriental “Retângulo” e a marcha “Pentágono”, com ares de jazz funeral de New Orleans, dão, como se diz na linguagem vulgar, a “morta”. Gil pronuncia, agora com a voz inteira e sem processamentos de mesa, palavras soltas. Mas não tão soltas assim, visto que simbolizam ele, a montagem e a sua arte:

“Corpo/ Carpa/ Corvo/ Cravo/ Cedro
Corpo/ Perna/ Braço/ Fauna/ Flora
Corpo/ Palco/ Pedra/ Preto/ Porco”.

Por fim, todos os metais e madeiras, um a um, dão aquilo que pode ser classificado prática e simbolicamente como o último sopro. Pois que, numa inesperada alteração de textura, timbre e sensação, Gil tira das cordas do violão, este sim, o derradeiro acorde. Dissonante, enigmático e inconcluso. Um som cuja energia vibratória tem tempo de vida de alguns segundos, desde seu ataque até sua queda, esvaindo aquilo que em música se chama justamente de “corpo”. Finda-se o som e um proposital silêncio se faz mesmo depois que as luzes se apagam, mas ainda sem o cerrar das cortinas (ou seria o fechar os olhos?). A plateia reage com estranhamento e desconforto, pois realmente a intenção era desacomodar. Se a sensação não foi de êxtase, ainda mais em comparação com a primeira parte de “Sete ou Oito...”, a proposta dos autores, Gil e Grupo Corpo, foi totalmente exitosa, visto que simbólica e profunda. E se não é tão arrebatadora a montagem, com certeza mais uma vez a companhia surpreende, ainda mais desta feita, inspirada na força criativa do autor de "Drão". Aliás, não é exagero dizer que se trata de um dos melhores trabalhos da carreira de Gilberto Gil.

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trechos de "Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil"


Daniel Rodrigues

sábado, 29 de setembro de 2012

Grupo Corpo - "Benguelê" e "Sem Mim" - Teatro do SESI - Porto Alegre (23/09/12)





"Benguelê", a tradução das imagens do Brasil 
na voz de João Bosco e na dança do Grupo Corpo (foto: Grupo Corpo)

“Sem Mim” e “Benguelê” no mesmo dia são presentes dos que recebemos a cada dois anos quando os mineiros do Grupo Corpo se apresentam em Porto Alegre. Com coreografia de Rodrigo Pederneiras, cenografia e iluminação de Fernando Velloso e Paulo Pederneiras e figurino de Freusa Zechmeister, nunca se sabe quais serão os espetáculos pares, mas desta vez, posso confessar que fiquei sem fôlego, de tanta emoção.
"Benguelê" foi o primeiro espetáculo de dança que assisti do Grupo Corpo, em 1998, quando o trouxeram conjugadamente com "Parabelo", trilha de Tom Zé. Em "Benguelê" a música de João Bosco simplesmente traduz imagens do nosso país, preservando a dignidade das vozes e corpos genuinamente negros. Escutar João parafraseando amorosamente Clementina de Jesus enquanto os bailarinos deslizam por suas travessias, seus duos e aos pulos celebram toda a genialidade do povo brasileiro, é emocionante. Sempre muito emocionante.
Aí, quando estamos mergulhados no universo-Corpo, após um intervalo de 10 minutos para todos retomarem seus fôlegos – dançarinos e plateia –, surge “Sem Mim”. Com estreia em 2011, o mais novo balé da companhia traz uma mescla de músicas sobre canções galegas de Martín Codax (artista popular que viveu entre os séculos XIII e XIV em uma região imprecisamente registrada em sua biografia, talvez na Galiza, em Vigo), está regida pelo coração sensível de José Miguel Wisnik e Carlos Núnez, e se multiplica em vozes ainda mais familiares, deixando clara a riqueza de nosso povo, misturado a tantas raças, cores e nacionalidades que, reunidas, nos fazem brasileiros.
O bailarino Uátila Coutinho em performance magnífica
no espetáculo "Sem Mim"
(foto: Grupo Corpo)
No palco, um casal de bailarinos adoça nossos corações com seu amor dançante protegido em meio a uma rede prateada. Minutos antes a bailarina Mariana do Rosário encanta com sua beleza em um solo magnífico entre rodopios de saias plissadas. O bailarino Uátila Coutinho faz emergir uma figura quase mítica do fauno, mas aqui em vestes de fiador, lembrando as atuações do mestre Nijinsky, "um gênio da dança com alma de fauno". Aos poucos as vozes de Milton Nascimento, Jussara Silveira, Monica Salmaso, Chico Buarque, Ná Ozzetti. Rita Ribeiro e do grupo vocal feminino-juvenil galego Xiradela nos comovem em sete cantigas que combinam as sonoridades medievais e galegas com a presença das violas brasileiras, dos pandeiros, do samba, entre outros.
Voltem sempre. Até breve!


abaixo, trechos dos dois espetáculos, "Benguelê" e "Sem Mim"




 por Leocádia Costa




Leocádia Costa é natural de Porto Alegre e lá reside. É formada em publicidade e propaganda pela PUC/RS, pós-graduada em arte-educação pela FEEVALE, trabalha com ações educativas, inclusivas e culturais na empresa APRATA,  é fissurada por música, dança, teatro, literatura, artes e cultura em geral, além de cantar e fotografar nas horas vagas. Já havia aparecido no blog com fotos do lançamento do livro "Anarquia na Passarela" de seu namorado e meu irmão, Daniel Rodrigues  e dos "30 Anos do Clube do Jazz" mas esta é a primeira vez que colabora efetivamente com uma postagem sua. E que venham outras.

Seja bem-vinda ao ClyBlog, Leocádia!

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Grupo Corpo – “Bach" e "Gira” – Teatro do SESI – Porto Alegre (07/10/2017)


Assistir o Grupo Corpo já de muito se tornou mais do que uma atração para mim: passou a ser uma obrigação enquanto cidadão brasileiro. Seja em Porto Alegre ou noutro lugar, desde a metade dos anos 90, quando os vi no palco pela primeira vez, de dois em dois anos – periodicidade que eles lançam novas montagens – é hora de desfazer a expectativa criada e conhecer o que irão apresentar de novo. Afinal, é sempre uma novidade a cada peça, e não raro, uma grata surpresa. Pois a companhia mineira é das poucas instituições artísticas (não só no Brasil, mas no mundo) capazes de surpreender a cada projeto mesmo o/s anterior/es tendo sido de alta qualidade. Ou seja: conseguem superar o que já é bom. Caso de “Gira”, o ousado espetáculo apresentado na nova turnê, o qual conta com a brilhante trilha sonora da banda paulista de jazz Metá Metá.

Se as duas últimas estreias, “Triz” (de 2013, trilha de Lenine) e “Dança Sinfônica” (2015, sobre composições de Marco Antônio Guimarães), foram igualmente competentes mas não necessariamente arrebatadoras, “Gira” consegue o feito de rivalizar com as melhores montagens da rica história de mais de 40 anos da companhia. E até superá-las. Inspirado nos ritos da umbanda, “Gira” traz como principal referência, além da estética do universo mágico das religiões afro-brasileiras, o orixá Exu, o dono do movimento e das transformações da vida. É ele quem liga o mundo dos humanos ao mundo das divindades. Na forma de movimentos e sons, foi exatamente isso que se viu no palco.

A estreia, como é de praxe nas apresentações do Corpo, foi antecedida por uma mais antiga: o magnífico balé “Bach”, de 1996 de forte apelo religioso e cuja leitura modernizada da obra do compositor alemão que lhe dá nome (feita pelo constante parceiro musical da companhia, Marco Antonio Magalhães) vai, literalmente, da morte à ressurreição. Da mais densa dificultação do olhar, sob as luzes ofuscantes do purgatório, até a mais límpida e dourada iluminação, encenada por movimentos graciosos de vida eterna. Impressionantes os atos da dança nas cordas, suspensas no ar e distantes cerca de 2 metros do chão.

Vídeo de "Bach", de 1996

Em "Gira", a mirada religiosa se mantém em certo aspecto, mas por uma visão totalmente distinta. Ao invés da tradição católico-cristã, são agora os ritos das religiões de matriz africana, com seu gestual, formas e sonoridades que prevalecem. Num cenário-instalação (de Paulo Pederneiras) que coloca o espectador como que num terreiro de culto, a coreografia de Rodrigo Pederneiras revela intensidade, instintividade e até certa brutalidade. Linda brutalidade, aliás, vinda da profundeza da natureza humana – e também da não humana. Rodrigo vale-se da rica base referencial dos ritos de celebração tanto do candomblé quanto da umbanda (em especial as giras de Exu) para forjar todo um poderoso glossário de gestos e movimentos. Fortes e contorcidos, dão a dimensão da natureza de Exu: um orixá mágico, de proezas inimagináveis, e cujo bem e mal andam sempre lado a lado, insolúveis. Inspirados nos gestos manifestados nos cultos, há momentos que parece que os corpos se quebram tamanho contorcimento.

Corpos que se contorcem e até parecem se quebrar
A iluminação, dura e quente (coassinada por Paulo e Gabriel Pederneiras), muda muito pouco, pois são os dançarinos e seus movimentos hipnóticos que constroem a narrativa, a qual faz uma imersão pelo universo anímico dos orixás. Como entidades incorpóreas, os bailarinos – torsos nus, com a outra metade do corpo coberta por saias brancas de corte primitivo e tecido cru, tanto de mulheres quanto de homens – entram e saem das três paredes negras da caixa-preta, criando uma ilusão quase espectral de infinito que os transforma em éter quando saem de cena. Quando reaparecem, contudo, é como se se materializassem ali na frente de quem vê, ou como se as entidades "baixassem" nos "cavalos" dos dançarinos. Dançam, simulam sexos, giram, torcem-se, alimentam-se do corpo físico e depois somem mais uma vez, como se desintegrassem.

Para acompanhar/construir toda essa representação mitológica, a trilha da Metá Metá (Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França) não poderia ser mais adequada. Diria brilhante. É visível a quem assiste, assim como noutras montagens realizadas em parceria com outros compositores (“O Corpo”, com Arnaldo Antunes, de 2000, ou “Santagustin”, de Tom Zé e Gilberto Assis, 2002), que a dança é fruto da criação musical e vice-versa, num permanente diálogo movimento/som, carne/espírito. A partir da proposta sonora, a coreografia cria soluções gestuais e rítmicas expressivas àquela ideia. O contrário, entretanto, acontece também, uma vez que o conceito de “Gira” e seus elementos são comuns e assimilados por músicos e companhia. O resultado é uma “estreita sintonia” entre os dois polos, como definiu o Dinucci, principal compositor do conjunto.

A bruta sensualidade e a ousadia dos
corpos nus
Nas melodias, a banda adensa as características da musicalidade de matriz africana, incrementando-a com elementos similares da música moderna, como o jazz avant-garde, o hip-hop, o rock e até o funk carioca. Em termos de estrutura, a polifonia e a dissonância são os conceitos sonoros encontrados para responder à complexidade do tema, forjando um tecido sonoro rico em texturas, síncopes, contraposições e volumes. Assim, lhes é possível criar enredo para os orixás, como em “Bará” (um dos nomes de Exu na África), mas para “Ogó” (bastão fálico de Exu) e “Ogun”, facilitando a sugestão para a composição coreográfica. Os temas em geral se valem de muita percussão, mas também de samples, guitarras e sopros, como o marcante sax tenor de Thiago França. A voz de Juçara Marçal, de altíssima técnica, é capaz de acompanhar as variações rítmico-harmônicas que compasso/movimento pedem. Ainda, no que se refere a vocal, a diva negra Elza Soares empresta sua robusta voz em duas essenciais participações: “Pé”, logo no início do balé, e “Okutá Yangi II”, que fecha o espetáculo num clima talvez até mais apoteótico do que em qualquer outro do Grupo. Em tom alto, severo, rascante.

Como se as entidades estivessem "baixando"
nos bailarinos
“Gira” é tão coeso que posso afirmar que é melhor ou tão bom quanto clássicas montagens do Grupo Corpo – leia-se ”Benguelê” (1998), “Sem Mim” (2011) e a já mencionada “O Corpo”. Em termos de trilha sonora, outro trunfo da companhia, além da magnífica e peculiar dança, a afirmação também vale. A Metá Metá não deixou nada a desejar diante de outros autores que já trabalharam com o Corpo, como Caetano Veloso, João Bosco, Tom Zé e Zé Miguel Wisnik. Talvez “Gira” não se assemelhe apenas à profunda emoção que a encenação de “Parabelo”, de 1997, é capaz de causar, algo tão referencial na dança moderna brasileira que foi mostrada ao mundo todo na abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, ano passado. Contudo, em termos de proposta e realização, “Gira” mostra-se, sim, a mais completa da companhia mineira, pois é fruto de maturidade artística e técnica a qual chegaram e, principalmente, da ousadia e de atitude que sempre mantiveram - ainda mais, em épocas que qualquer nu em arte é motivo de censura. Afinal, abordar um tema tão visceral e verdadeiro, mas também tão discriminado e demonizado pelos ignorantes, exige coragem..

Som é movimento e dança é vibração. Ou o contrário, tanto faz. Quando que se tem, com tamanha veracidade e poética, a oportunidade de vivenciar essas sensações tão genuínas em dança e em música ao mesmo tempo? A resposta é bienal: quando o Grupo Corpo apresenta uma nova montagem. Tão bom que a gente nem se importa de esperar mais dois anos para sentir isso tudo de novo.

Grupo Corpo - vídeo de "Gira"


Daniel Rodrigues