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terça-feira, 17 de março de 2015

ARQUIVO DE VIAGEM / Salvador


Banzo de não estar



Faz uma semana que retornei da cidade de São Salvador. Uma viagem em maravilhosa companhia de my love Daniel Rodrigues que ambos desejávamos fazer em período de férias faz muitos anos. Apesar dos sete dias terem se passado, parte de mim permanece lá. E a outra que se deslocou para o RS em estado de banzo.

Muitos diriam, mas por quê? Qual motivo disso?

Antes da viagem tive os mais variados relatos. Amor e ódio permeiam a relação dos visitantes com a cidade. Alguns não toleram ver in loco a miséria, o devaneio e o abandono de alguns cidadãos que vagueiam pela cidade. Outros se defrontam com o medo e o ódio por assaltos ou a permanente insistência dos vendedores ambulantes oferecendo colares, fitinhas, bebidas e drogas. Ainda há os que não conseguem estar senão nas praias que conquistam pela limpeza das águas, a temperatura agradável e a natureza naturalmente bela.

Minha intenção era somente estar lá. Conhecer é claro tudo o que fosse possível no curto espaço de tempo de cinco dias, permeando 500 anos de história, porque Salvador foi a primeira capital brasileira, tendo seu nascimento com a chegada das primeiras naus. Queria ser surpreendida, conquistada e envolvida pelo que até hoje repercute lá. E não falo dos tambores afro-brasileiros, não. Falo de história, de gente e de cultura do viver.

Voltei de lá com algumas vivências muito transformadoras na bagagem e com a certeza de que lá é um pouco a minha casa. Destaco alguns comentários deste que poderá ser meu lar, algum dia, como dizia Vinícius de Moraes, que viveu lá por seis anos, no bairro de Itapuã: “Meu tempo é quando.”


Largo do Cruzeiro com a Igreja
e Convento de São Francisco de Assis (ao fundo)
Fachada do solar Ferrão que abriga coleções primorosas,
datado do século XVIII foi abrigo de Jesuítas e
Centro Operário da Bahia
Vista das fitinhas da grade da Igreja Nossa Senhora do rosário dos Pretos e
acima o Museu da Bahia e a Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho
Altar de uma das lojas comerciais do Pelô
e o sincretismo histórico da Bahia


Pelourinho: os relatos sobre a marginalidade no Pelô são muitos, e, sim, há certa violência/abandono pairando no ar e na visita dos desavisados, principalmente à noite, mas nada que não haja em outras cidades ou bairros do país. Ficamos hospedados no Hostel Laranjeiras, bem situado no Pelô: vizinho do Olodum, do Museu da Música Brasileira, da antiga fábrica de camisas, da Igreja e Convento São Francisco de Assis, do Largo do Cruzeiro, do Ilê Ayê e do Museu do Ferrão, entremeados por Largos outros, Teresa Batista, Quincas Berro D´Água e Pedro Arcanjo. Perto dali, muitas opções gastronômicas e culturais. Mas estar no Pelô excede essa questão prática do que se ver e degustar. Ali, cenário antigo de atos criminosos contra escravos, maltratados e exibidos publicamente em açoites, hoje se apresenta com uma população residente peculiarmente negra que ocupa com altivez e classe todos os espaços do bairro, senhores da sua história. O Pelô é um local de resistência, cultivo e difusão da cultura e história negra. É principalmente um espaço onde povos de outras nações (franceses, alemães, coreanos e americanos) podem conhecer essa história, deparar-se com pessoas que nos recebem com tamanha amorosidade e que não precisam se autoafirmar como vítimas nem mártires, porque dentro dessa biografia tem-se um estado de ser e estar no mundo.

Os cidadãos do bairro surgem como que emoldurados por uma cortina do tempo de ontem e de hoje. Para percebê-los em meio ao ambiente vivo e intenso, tem que ter calma. Daí surgem artistas, transeuntes, habitantes das ruas, senhores dos santos, verdadeiras entidades que emocionam. Cada qual ao seu jeito, ao seu tempo, ao seu estilo e no seu turno de viver contemporâneo. Nem todos se deixam fotografar, mas parte deles esta aqui nas fotos. Outros ficarão na memória como seres saídos de uma história a que desejo retornar sempre.


Baiana moradora do Pelourinho
Comerciante do Pelourinho
Mestre Ivan do Atelier Percussivo Lua Rasta
no Pelourinho
Artista plástica do Pelourinho


Gatos: a população de felinos impressiona. Lentos mais do que o habitual, porque o calor é intenso em todas as horas do dia, eles observam o ritmo de visitantes do Pelô. Deitados, em busca de comida, em meio a brincadeiras, lá estão misturados entre os turistas, moradores e transeuntes. Não se deixam pegar, mas desfilam e posam para as fotos quando acordados é claro, rsrs. Gregório o mais jovem, encontramos no meio da rua, onde vez em quando passam carros. Ele atrás de um copo de plástico brincava sem medo. Ficamos apreensivos pelo seu porte (menos de um mês de idade) e por estar sozinho, sem a companhia de outros gatos. Mas logo vimos que era “gato safo” ao nos ver correu para a porta de um ateliê em que estava não somente sua residência como sua cuidadora. Ela nos contou sobre a chegada dele e daí ficamos sabendo seu nome. Uma figura – que não andava, mas pulava entre os paralelepípedos do Pelô.






Gregório, o gato mais jovem


Habitantes das ruas: vivem vendendo sua arte, oferendo seus colares/fitinhas ou apenas aguardando um dinheiro para consumo de drogas/afins. Conhecemos um deles, que vive acompanhado da sua cachorra Doidinha. Ele e Doidinha perambulam pelo Pelô oferecendo sua arte em azulejo. Ele as cria na hora, pinta as mãos e rosto por causa da técnica que mistura éter a tinta forte que gruda no azulejo. E quase sempre as comercializa junto aos estrangeiros, devido à insistência com que as oferece. Ficou nosso amigo depois que lhe oferecemos um prato de comida. Na realidade, ele (que não soubemos o nome) nem lembrava qual era a sua relação conosco, mas nunca nos perdeu de vista durante o tempo em que lá estivemos, sempre fazendo referência alegre ao cabelo afro do Daniel e nos chamando de “casal feliz”.

Casal de enamorados nas imediações
da Baixa do Sapateiro


Crianças e Idosos: os menores e mais jovens sempre voando pelo bairro, circulam indo para as escolas públicas ali existentes, os projetos sociais de música ou então brincando ao cair da noite – de bola, de pega-pega, de olhar o celular nas calçadas. Elas disputam o espaço democraticamente com as famílias que sentam na frente das casas e senhores de maior idade que jogam dominó até antes do anoitecer.
Menino subindo o Pelô rodopiando
Senhor nas escadarias do Pelourinho
Ciclista descansando nos bancos da Praça Senhor do Bonfim

Ciclista descansando nos bancos da Praça Senhor do Bonfim.

Perambular: caminhar nas ruas de Salvador é uma alegria. Tudo é sentido na pele: o calor, a proximidade das pessoas, o cheiro, as cores, tudo estimula os sentidos. A cidade ferve, faz muito calor, mas é seco. Por vezes a pressão cai e quase vivenciamos um estado de desmaio, mas logo passa. Um astral eleva o prana e aos poucos deixa você com um ar mais descontraído. As pessoas sorriem, conversam, dançam e cantam sem nenhum motivo aparente. Todos são autênticos. Isso é maravilhoso.


Ruazinha do Pelô
(ao fundo a Biblioteca da Faculdade de Medicina)
Baianas do comércio do Largo do Cruzeiro e imediações/
Pelourinho
Ruazinha do Pelô


Turbantes e Tambores: as baianas e os músicos encantam. Alguns parecem de mentira de tão belos. Por toda a cidade escutam-se sons. Às vezes, misturados como na saída do Elevador Lacerda, formando uma massa nem sempre agradável aos ouvidos, mas com um que de composição livre e coletiva. No Pelô, os tambores tocam cadenciados ao anoitecer, como rezas de santos, levando sua alma além dos telhados, durante o jantar. Noutras vezes, surgem com meninos em grupos aprendizes de timbau. Surpreendem num cortejo de pessoas acompanhando os tamboreiros, que invadem nossos ossos e repercutem cá dentro, chegando a nos fazer chorar de emoção. Descobri dois músicos na loja de Ademar em pleno Terreiro de Jesus, o talentoso Tiganá e o lendário Mateus Aleluia. A música de ambos arrepia e comove. Gosto muito de trazer das viagens sonoridades da região. Eles cantaram para mim, e eu os trouxe juntos. Falam com algo muito profundo da nossa essência negra. Falam com nossos mentores. Iluminam. Pretendo escrever sobre eles, aguardem. Olodum, Filhos de Gandhi, Ilê Ayê e Ballet Folclórico da Bahia vivem no Pelô. No Memorial das Baianas, nos arredores do Pelô, sabe-se da relação do turbante afro com o turbante islâmico. Algumas baianas que circulam pelo bairro, lembram grandes bonecas de santo de tão belas. Outras que circulam pela cidade ostentam seus lenços coloridos amarrados de forma muito particular, comunicando aos entendidos sua origem, sua nação, até seu orixá. Nas ruas do Pelô escuta-se um pouco de cada toque ritmado que ora pode ser uma reza, ora um ritual mas sempre um som que transforma seu estado emocional. Ninguém passa imune às baianas e aos tambores. E a pergunta: Qual seu orixá? Antes mesmo de saber o seu nome.


Loja de instrumentos de percussão
no Largo do Pelô
Turbante feito por Dona Nilzete
do Camafeu de Oxóssi
Grupo Tambores e Cores
do Pelourinho
Baiana e a abençoada água de côco
da Praça Senhor do Bonfim


A Cubana e Ribeira: no calor de Salvador uma das opções irresistíveis de sobremesa é degustar sorvetes. Entre as opções pela cidade duas são imperdíveis: A Cubana (com fábrica no Pelô, mas diversos pontos de venda pela capital) e a Sorveteria da Ribeira, que fica longe do Centro mas te arrebata independente do sabor escolhido. Todo final de tarde, a visita A Cubana do Pelô era pontual. O ambiente lembra as sorveterias antigas em azulejos, mas o que vale mesmo são os sorvetes. Meus prediletos: Menina Bonita (castanha com leite), Mangaba e Tiramissu. Outros igualmente maravilhosos: Cajá, Umbu e Cupuaçu. Ah, sempre duas bolas bem servidas!


Sorvetes A Cubana (Pelourinho) -
cada dia um novo sabor!
Cardápio de opções da sorveteria Ribeira:
difícil é escolher um!


Exu, Amado, Abelardo, Verger e Nosso Senhor do Bonfim: Bem, aqui, o devaneio é total. Admira-se ainda mais o literato e homem de religião, Jorge Amado e sua fiel companheira Zélia Gattai. Extrapola-se a admiração pelo educador e colecionador Abelardo Rodrigues, que expõe no Museu do Ferrão parte de sua Coleção de Arte Sacra que deixa alguns acervos de Minas Gerais para trás dada a seleção primorosa das peças e a abrangência de períodos e artistas. E compreende-se porque o francês mais brasileiro e soteropolitano do mundo, Pierre Verger, fotografou, morou e tornou-se um dos maiores estudiosos e práticos da religião afro. Estando em Salvador, não deixe de ir à Fundação Casa de Jorge Amado, na residência A Casa do Rio Vermelho de Jorge Amado e Zélia Gattai e na Fundação/Galeria Pierre Verger. A Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, que é uma atração distante do Centro, vale por toda a sua história, simbologia sincretista e axé. Lá no alto do morro no bairro do Bonfim ela está soberana. Rodeada de pais de santo que te dão um aconchegante axé, você pode perceber a fusão do candomblé e do catolicismo. Ah, e claro, nas ruas, sempre encontramos com os Exus ou “Esu” (Guardião das aldeias, cidades, casas e do axé, das coisas que são feitas e do comportamento humano) está onde há movimento. Vê-se em estatuetas em lojas, na entrada de centros culturais e em obras públicas antes da roda de Orixás no Dique do Tororó.

(Exu em ferro que guarda a Fundação Casa de Jorge Amado
a pedido do escritor)
(Fachada de uma casa que hoje é um bistrô mas que
foi cenário de personagens de Jorge Amado)
Espaço reservado ao Candomblé e sua relação com o escritor Jorge Amado
na Casa do Rio Vermelho
Detalhe do altar da igreja Nossa Senhora do Bonfim...
... e imagem integrante do acervo do
Memorial das Baianas que reproduz
o dia da lavagem da escadaria da Igreja.

Zélia, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Yemanjá: Zélia foi casada com Jorge Amado e além de escritora também foi fotógrafa. É dela o acervo de quase 30 mil fotografias existente da vida a dois desse casal que mesclou amor, arte e religiosidade. Em breve escreverei um pouco mais sobre ela, porque descobri uma Zélia que não conhecia; aguardem. As Igrejas em Salvador são um capítulo à parte. Visitar a todas tem sua emoção pela antiguidade, pela história e santos sincréticos. A que mais gostei foi a Igreja na base do Largo do Pelourinho: Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Ali acontecem todas as terças-feiras uma missa ecumênica. Ganhei um dos mais gostosos abraços no meio da missa! Uma das senhoras da comunidade desta Igreja e suas amigas/familiares fez questão de me abraçar e desejar as boas-vindas. O abraço dela era quem sabe como o da Mestre Indiana Amma, que é conhecida por esse acolhimento fraterno e gostoso, de abraçar com o coração. Além disso, todo o missal teve atabaques, cantos e até MPB da melhor qualidade: “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Um final de dia inesquecível, que reverenciou também Santo Antônio de Categeró através da distribuição dos pãezinhos como aqui em Porto Alegre, acontece na Igreja Pão dos Pobres. Yemanjá, a mãe de todos os orixás, como diz a Mãe de Santo Stela de Oxóssi, é a senhora de Salvador. Ela está onipresente em todos os recantos. No bairro dela, Rio Vermelho, local historicamente indígena onde desembarcou o então Caramuru, ela está presente no Largo das Mariquitas, nas embarcações beira-mar, no mar, nas imagens ou nas peças decorativas das lojas do bairro. Rio Vermelho é também o bairro mais boêmio, aquele bairro de galera, da noite cool. Yemanjá é saudada em todos os lugares de Salvador, às vezes de maneira criativa, como neste ponto comercial em pleno Pelô: Ye-Manjar, pode?

Entrada da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Jardim da Casa do Rio Vermelho onde estão as cinzas dos
escritores Jorge Amado e Zélia Gattai
Praia das Mariquitas
Missa ecumênica na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Oferendas (pãezinhos) oferecidos após a Missa
Comércio do Pelourinho


Mercado Modelo e Gastronomia: Os mercados públicos das capitais brasileiras são sempre um espaço único. Estar ali é meio que reunir o que de popular existe naquele local. Então guias, santos, axés, produtos baianos dos mais variados estão à disposição do visitante. O que se pode levar em quantidade são as pulseirinhas do Bonfim, as cocadas, as pimentas e os enfeites (colares, balagandãs, tecidos entre outros). Ali está um ponto gastronômico importante da cidade: os restaurantes conjugados: Maria de São Pedro (de 1925, com mais de 80 anos de existência e mantido pelos filhos de Dona Maria 100% baiano) e o angolano Camafeu de Oxóssi. Optamos por almoçar duas vezes no Camafeu de Oxóssi, por sua variedade de pratos e por Dona Nilzete, que nos atendeu com sua simpatia, amorosidade e alegria. Ali degustamos o melhor pastel de camarão da cidade, os melhores bolinhos de bacalhau, uma carne seca de primeira acompanhada de farofa de dendê, macaxeira e feijão fradinho. Foi lá que ganhei meu primeiro turbante feito carinhosamente por Dona Nilzete, que me deu várias dicas de como amarrá-lo. No Mercado Modelo fizemos amizade com Deco, administrador da loja Encontro com as Águas, que comercializa objetos lindos, e nos deu dicas dos passeios as ilhas mais próximas de Salvador. Com ele adquiri a guia dos Filhos de Gandhi para quem sabe num carnaval futuro, desfilar, na ala Filhas de Gandhi!

Loja Encontro das Águas - Mercado Modelo
Balagandâ (utilizado na cintura para os dias de festa pelas escravas e,
segundo os comerciantes do Mercado Modelo, ao completar todos os pingentes
recebia alforria
Comerciante do restaurante Maria de São Pedro/
Mercado Modelo com vestimenta típica
Sob as lojas do Mercado
os guardiões e os axés

Ilhas, Praias e o Mar: Ir a Salvador e não estar navegando, a beira-mar ou dentro d´água, é o mesmo que não ter ido até lá. O mar e suas belezas mais próximas do litoral soteropolitano encantam. O canto das águas nos chama a passear. Fomos então a Ilha dos Frades, Ilha de Itaparica e praias da capital, um pouco mais afastada o Farol de Itapuã. O que dizer se lá somente se pode ver, sentir e navegar? O mais apropriado é vá e conheça. O acesso é fácil, mas precisa de pelo menos um dia e meio para aproveitar um pouco.

Leme da embarcaçõa para as ilhas
Vista da Ilha dos Frades
Pesca no Farol de Itapuã
Final de tarde na orla entre as praias da Paciência e Ondina
Guardo comigo todas as imagens, todos os sabores, todas as cores, todos os cheiros, todos sons, toda atmosfera que Salvador gentilmente nos deu. Guardo o olhar direto e afetivo de seu povo. Guardo ainda aquela descontração de quem está ali essencialmente vivendo. De quem sabe o que é valoroso na vida. O que não podemos esquecer diariamente de cuidar: da integração entre corpo e mente. Da ampliação de estarmos aqui vivendo em comunhão com tudo o que nos faz sentirmos vivos. Da simplicidade de termos nossa historia, nossa fé e nossas cores, dentro e fora. De acreditar que tudo está em sintonia. De que nem tudo está dito, mas sentido. De que há muitas coisas que estão vivas entre a nossa percepção humana que não dependem do racional, mas somente do coração. Assim levo Salvador comigo. A partir de hoje, sempre, cá dentro ritmado com meu tambor cardíaco, colorido como minhas cores e vivo na historia que guarda a minha e muito de nós todos, brasileiros.

Turbante feito por Dona Luzia do Memorial das Baianas
Nas aldeias africanas situadas no Brasil quando se falava em “banzo”, a maior referência era ao sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população escravizada. A prática do banzo era uma forma de protesto caracterizado como uma greve de fome, um protesto muito sentido. Também eram comuns, como forma de resistência na época, o suicídio, o aborto, o infanticídio, as fugas individuais e coletivas e a formação de quilombos. Atualmente, nos estados da região Norte do Brasil, “banzo” também é usado de forma irônica para designar uma melancolia injustificada, sinônimo de choramingo. Deixo aqui meu choramingo verdadeiro e pontual de banzo por não mais estar lá, mas com muita vontade de voltar e, quem sabe, permanecer lá por mais tempo. Tempo suficiente de conhecer o que não foi possível, de aprofundar esses laços que mantenho bem fortemente atados em meu ser. Como diz o encantado Gil e a quem uso os versos emprestados: “Eu vim da Bahia, mas eu volto pra lá! Eu vim da Bahia mas algum dia eu volto pra lá.” Que os orixás me deixem retornar, estendendo sua licença ao entrar em terras tão fortemente iluminadas: Mojubá agô! Que assim seja.





fotos:

terça-feira, 24 de maio de 2011

Andy Warhol 16mm - Caixa Cultural - Rio de Janeiro










Começou hoje e vai até o dia 5 de junho no centro cultural da Caixa, aqui no Rio, uma mostra da obra cinematográfica de Andy Warhol em 16mm, exibida no formato original. Entre experimentações, curtas, documentários, filmes conceito e até um 'semi-pornô', por assim dizer ("I, a Man"), pode-se destacar uma apresentação dos seus afilhados do Velvet Underground em Boston e seu famoso filme "Chelsea Gilrs", que inclusive será exibido com projeção dupla (dois projetores na mesma sala), conforme sua concepção original.
Confira abaixo toda a programação:




TERÇA, 24
15H SLEEP (5 HORAS 21 MIN)

QUARTA, 25
17H CAMP (66 MIN)
18H30 MY HUSTLER (66 MIN)
20H THE LIFE OF JUANITA CASTRO (66 MIN)

QUINTA, 26 (PROJEÇÕES DUPLAS)
15H LUPE (37 MIN)
16H OUTER AND INNER SPACE (33 MIN)
17H30 THE CHELSEA GIRLS (3 HORAS 30 MIN)

SEXTA, 27
15H SCREEN TEST #1 (66 MIN)
16H30 HEDY (66 MIN)
18H30 KISS (48MIN) - SESSÃO COM MÚSICA AO VIVO
20H MARIO BANANA #1 (4 MIN) + COUCH (52 MIN) - SESSÃO COM MÚSICA AO VIVO

SÁBADO, 28
16H ROLO 26 DOS SCREEN TESTS (40 MIN)
17H ROLO 25 DOS SCREEN TESTS (40 MIN)
18H I, A MAN (95 MIN)
20H SALVADOR DALÍ (22 MIN) + THE VELVET UNDERGROUND IN BOSTON (34 MIN)

DOMINGO, 29
14H SCREEN TEST #2 (66 MIN)
15H30 BLOW JOB (36 MIN) + EAT (35 MIN)
17H THE NUDE RESTAURANT (100 MIN)
19H MY HUSTLER (66 MIN)

TERÇA, 31
13H EMPIRE (8 HORAS 5 MIN)

QUARTA, 1
16H SALVADOR DALI (22 MIN) + THE VELVET UNDERGROUND IN BOSTON (34 MIN)
17H30 LONESOME COWBOYS (109 MIN)
20H BLOW JOB (36 MIN) + EAT (35 MIN)

QUINTA, 2
16H30 I, A MAN (95 MIN)
18H30 MARIO BANANA #1 (4 MIN) + COUCH (52 MIN)
20H KISS (48 MIN)

SEXTA, 3
16H THE NUDE RESTAURANT (100 MIN)
18H SCREEN TEST #2 (66 MIN)
19H30 LONESOME COWBOYS (109 MIN)

SÁBADO, 4 (PROJEÇÕES DUPLAS)
15H30 OUTER AND INNER SPACE (33 MIN)
16H30 LUPE (36 MIN)
17H30 THE CHELSEA GIRLS (3 HORAS 30 MIN)

DOMINGO, 5
14H SCREEN TEST #1 (66 MIN)
15H30 HEDY (66 MIN)
17H THE LIFE OF JUANITA CASTRO (66 MIN)
18H30 CAMP (66 MIN)

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Andy Warhol 16mm
Local: Centro Caixa Cultural - Rio de Janeiro
Rua Almirante Barroso, 25 - junto ao Lg. da Carioca - Centro
mais informações no site do evento:
http://www.andywarhol16mm.com.br/

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Edu Lobo e Antonio Carlos Jobim - “Edu & Tom/Tom & Edu” (1981)




“Edu sabe música, orquestra,
arranja, escreve, rege,
 canta e toca violão e piano.
O Edu é um compositor fabuloso, formidável.”
Tom Jobim, sobre Edu Lobo


“Mais do que a alegria e o prazer deste trabalho,
 fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim



Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock, que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.

Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então, de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez, uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu, claro, gostou da ideia.

Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius, como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura, descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta de novo a pergunta: “Era só isso?”. Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.

Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa “Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio, que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito por ele.

Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros –, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é “Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica “Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra, igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil. Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.

Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973. Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina, lança, através de anáforas e epíforas (“Um homem pode...” e “se for por você”), versos da mais alta beleza poética: “Juntar o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.

Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius, esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.

Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult “Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as obras. “Vento virador no clarão do mar/ Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda, no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com brilhantismo.

E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom & Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”, reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira – que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito, o flugehorn impecável de Marcio Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de DebussyRavel, Bach e Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.

O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco (pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60, entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som, conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele (os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora certa às faixas.

Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que, segundo ele, emocionaram Tom. “De todos os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência, para saber definir: “Edu e Tom, Tom e Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.

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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13
2. Prá Dizer Adeus (Edu Lobo/Torquato Neto) - 4:41
3. Chovendo Na Roseira (Tom) - 3:24
4. Moto-contínuo (Chico Buarque/Edu) - 3:30
5. Ângela (Tom) - 3:10
6. Luíza (Tom) - 2:59
7. Canção Do Amanhecer (Edu/Vinicius De Moraes) - 3:30
8. Vento Bravo (Edu/Paulo César Pinheiro) - 4:16
9. É Preciso Dizer Adeus (Tom/Vinicius) - 4:18
10. Canto Triste (Edu/Vinicius) - 3:44

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