“Antes o golpe,
a porrada
violenta da perda de um pedaço de si
à covardia do cotidiano que mói
fantasiado
de angústia e falta de amor,
que mói numa recusa, numa cabaça baixa e num gesto
contigo.”
trecho do conto “O Açougueiro Moído”,
presente na coletânea
A proposta nasceu ousada: homenagear o norte-americano Charles Bukowski , escritor de forte influência a vários outros, de grande apelo com o público e
dono de um estilo muito peculiar, que vai da crueza de mau gosto e a putaria à
mais doce beleza sentimental. Um homem que, por detrás da obscenidade e da
contundência, era extremamente profundo, poético e comprometido com suas
verdades. Assim, a coletânea "Big Buka: para Charles Bukowski" (ed. Os Dez Melhores, 2015), da qual soube do projeto ano passado, encarou o desafio de reunir dez textos que remetessem ao
universo de Bukowski tanto em temática quanto em estilo. Para que tal
funcionasse, contudo, os contos deveriam ser muito bem selecionados, uma vez
que o risco de não corresponder à altura do mestre tornava-se um erro fácil de
cometer.
Afastados os temores, a reverência ao “velho safado” resultou feliz.
Uma garantia de qualidade eu já tinha: o conto metalinguisticamente intitulado
“O Conto Nunca Escrito”, do meu irmão, Cly Reis (na obra, assinando com o
primeiro nome original, Clayton), que meses atrás me noticiou ter sido um dos
nove selecionados – considerando que o décimo texto cabia ao próprio organizador,
o editor e também escritor gaúcho Afobório. Já havia tido a oportunidade de ler
o conto de Cly e tinha convicção desde lá que seria um dos escolhidos. Não deu
outra. Para começar, “O Conto Nunca Escrito” contém elementos clássicos do arsenal
bukowskiano: o humor sarcástico, o submundo, o personagem escritor fodido mas
genial, o editor raivoso, as bebedeiras, os botecos, as brigas e as mulheres
gostosas. Acima disso, entretanto, a história em especial é bastante atrativa
pela narrativa cíclica, que enreda o leitor, algo de Borges ou Pirandello ao
usar as entradas e saídas da consciência do protagonista. Diferente de todo o
restante, é engraçado e bem elaborado literariamente.
Afora minha ligação emocional com o livro pelo fato de incluir um conto
do meu irmão – além de criticamente também tê-lo apreciado –, os outros contos só
fui conhecer após o lançamento. E estes mantêm o bom nível que Bukowski merece.
Reunindo autores de diversas localidades do Brasil, a coletânea abrange uma
diversidade temática e narrativa bem interessante, embora todos os textos se
liguem inevitavelmente a Bukowski seja pelo coloquialismo, pelo teor subversivo,
pela ambientação urbana, os “ganchos” simbólicos ou pelos estereótipos, como os
personagens anti-heróis sempre desacordados com o sistema. O mais fiel é,
certamente, “Underwood nº 5”, do piauiense Heliton Queiroz. Na história, um escritor
alcoólatra e sem inspiração apaixonado pela ex-mulher sai para a noite à
procura de algo que o preencha. Até que encontra a própria ex... com outro cara.
E feliz. Conteúdo suficiente para, arrasado mas novamente inspirado, voltar a
escrever. As tiradas próprias de Buka (“Malditos
cães” ou “o uísque já está pela
metade e eu já havia comprado outros cigarros”) dão ao conto de Heliton o ponto
certo da reverência ao autor, porém não abrindo mão de características próprias,
principalmente na narrativa cronológica picotada.
“Charlene”, do porto-alegrense Jeremias Soares, tem grande mérito ao
valer-se da linguagem bukowskiana, geralmente na 1° voz masculina, para relatar
a vida de uma mulher de classe baixa e de meia-idade que, com sua amiga Carol,
tenta achar alguém que preste na vida, mas é bastante cética e sofrida para
acreditar nisso. Igualmente explorando uma personagem feminina, “Aquele velho”,
da também gaúcha Marina de Campos, natural de Passo Fundo, é muito bom ao
contar uma história em que praticamente nada se sucede, apenas suposições e proto-acontecimentos
que passam diretamente pela mente de uma jovem roqueira e sonhadora.
Gostei em especial de “O Açougueiro Moído”, do nova-iguaçuense (e
estreante em publicações) Rafael Simeão. Texto menos cômico e na medida certa
do drama, valendo-se com precisão das metáforas e metonímias para criar uma
simbiose funesta entre o externo e o interno do personagem. A carne que ele manipulava
no açougue era tal o seu estado psicológico: o de um homem infeliz e sem
esperanças cuja própria carne moía diariamente na sufocante vida em uma
sociedade que não o valoriza como ser humano.
Semelhante prazer tive ao ler “Em Noite de Rock, Eis os Três Desejos de
Naomi”, do mato-grossense Wuldson Marcelo, outro de narrativa madura
(adjetivações adequadas; repetições precisas; controle do suspense;
clímax/anticlímax nas horas certas) e exercita, como fizeram outros cinco no
volume, a narração em 1ª pessoa, um dos trunfos consagrados por Bukowski. Também,
“Vinte Pratas”, que termina a obra no melhor estilo: um escritor, Hank, acorda
de uma noitada de sexo e bebedeira e logo cai com seu amigo Phil nos botecos da
cidade, pois (igual aos protagonistas do conto de Cly e de Heliton) busca
inspiração nos eventos bizarros que só a noite urbana proporciona. Neste conto
do paranaense Max Moreno, é o encontro com um marido que estourara os miolos da
própria esposa e fora pedir ajuda àqueles desconhecidos para dar um fim no
cadáver. Hilária a passagem, além de típica de Bukowski:
“- Preciso me livrar do corpo! –
disse o homem, sem levantar a cabeça.
- Porra, que bela maneira de se
começar uma conversa – resmungou Phil.”
Ainda, o conto de Afobório, “Os Felinos Sacam das Coisas”, bastante
interessante ao narrar um simples e engraçado acontecimento (no apartamento de
um escritor, o resgate de um amigo bêbado por sua mulher, com quem este último
havia se desentendido) e, principalmente, ao criar simbolismo com a presença de
um gato no ambiente, animal misterioso e tradicional companheiro dos homens das
letras. Porém, o conto, do meio para o fim, entra num divagar do personagem
principal que quebra o ritmo e, finalizando-o assim, não justifica tão bem
o término. Ainda, há o bom “O Matador de Lésbicas” (do carioca Fábio Mourão) e
o que me soou como mais fraco de todos – justamente o que abre a seleção –: “A
Vizinha Reboladeira” (Willian Couto, de Minas Gerais), que, embora afim com a
temática e de bom final, é o mais modesto em estrutura e narrativa.
Num todo, entretanto, “Big Buka” é bastante interessante. Daquelas obras
que se termina rápido, dada o gosto da leitura. Mesmo com contos melhores que
outros, o nível se mantém de cabo a rabo, principalmente pela boa escolha do
organizador, fazendo com que haja uma linha condutora permanente de uma
história para a outra. Enfim, uma coletânea corajosa pela ideia do tema e que,
por sorte, encontrou dez escritores igualmente valentes que compraram o desafio.
Afinal, como disse o próprio Bukowski: “Os
verdadeiros valentes vencem a sua imaginação e fazem o que devem fazer”.
por Daniel Rodrigues