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quarta-feira, 10 de março de 2021

Música da Cabeça - Programa #205

 

Música é substantivo feminino não à toa. Na semana que a gente celebra as mulheres (aliás, como sempre fazemos), tem tanto elas quanto eles no MDC de hoje. Suzanne Vega abre os trabalhos ao lado de Roberto Carlos, Stevie Wonder, The Smiths, David Byrne & Brian Eno e outros. O talento feminino também domina nosso quadro especial da semana, o Cabeção, que destaca a célebre e pioneira compositora de vanguarda (e brasileira!) Jocy de Oliveira. Pode chegar sem medo, que a música, ela mesma, vai estar com a gente hoje, às 21h, na feminíssima Rádio Elétrica. Produção e apresentação dela: Daniel Rodrigues (Não tá no feminino, mas segue valendo: #ForaBolsonaro)


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/ 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Música da Cabeça - PROGRAMA ESPECIAL Nº 200

 

O q ele faz é música, mas é também arte visual, performance, cinema e teatro. "Tudo" é o que melhor define um dos artistas mais criativos e inquietos da nossa cultura: Jards Macalé, que é o entrevista do MDC ESPECIAL nº 200. No quadro "Uma Palavra", Macau nos fala sobre sua arte, suas memórias, suas percepções e sua postura diante do Brasil e do mundo. Imperdível o programa hoje, 21h, na maldita Rádio Elétrica. Produção, apresentação e negras melodias: Daniel Rodrigues. (E sem esquecer: #ForaBolsonaro)


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Ornette Coleman – “Free Jazz - A Collective Imprevisation by the Ornette Coleman Double Quartet” (1961)



“Quero expressar meus sentimentos em vez de ilustrá-los. Todo bom artista pinta o que é.“
Jackson Pollock

Dois takes. Puro improviso. Mas muito mais do que isso. Há 50 anos, o compositor de jazz (e de qualquer outro gênero intergaláctico que se queira classificar) norte-americano Ornette Coleman mudava os paradigmas do jazz e da música. E pela segunda vez. E em apenas um ano! “Free Jazz - A Collective Imprevisation by the Ornette Coleman Double Quartet”, ou simplesmente "Free Jazz", o livre e coletivo improviso produzido por ele e seus súditos, tinha na banda músicos que o acompanhavam desde o primeiro sinal desta revolução: “The Shape of Jazz to Come”, de 1959. Ali, Coleman já propunha uma revisão do blues através da reelaboração do tempo e do tom em harmonias imprevisíveis e pouco usuais, algo que apontava para outro extremo daquilo que Miles Davis trazia naquele mesmo último ano dos 50 com o jazz modal de “Kind of Blue”. Coleman provava que cabia, sim, novos olhares (e ouvidos) para o jazz, menos ilustrativos e muito mais subjetivos.

Porém, em “Free Jazz”, ia além. Afora o trompetista Don Cherry, o baterista Billy Higgins e o baixista Charlie Haden, Coleman subvertia os preceitos de toda a tradição do jazz e dobrava todos os instrumentos, mas de forma orgânica, visceral. Afinal, colocava junto a este time também Freddie Hubbard, no outro trompete; Eric Dolphy no clarinete baixo; e Scott LaFaro no segundo contrabaixo; além de Ed Blackwell, que intercala a bateria com Higgins. Nunca ninguém havia entrado em um estúdio para performar daquela maneira, nem na "música aleatória" de Cage, nem nos dodecafônicos, nem o mais radical dos dadaístas.

Lançado quase um ano depois de sua gravação pelo selo Atlantic, “Free Jazz” traz uma experiência sem igual até então. Intensa e delimitadora, numa simbiose total entre criador e criatura. Coleman, que começou como autodidata no saxofone alto aos 14 anos, vinha de um tempo em busca dessa abordagem própria que os ditos “não eruditos” têm. Depois das primeiras experiências de apresentação com bandas de rhythm-and-blues na sua cidade-natal, Forth Worth, no Texas, estabeleceu-se em Los Angeles no início dos anos 50 e concentrou nessa arqueologia sonora diferente. Era um meio de escapar dos padrões e progressões de acordes tradicionais do be-bop, o que levou músicos e críticos a lhe rejeitaram, alguns até sugerindo que ele não soubesse tocar seu instrumento. 

Genialidade irrefreável: Coleman revolucionava
o jazz e a música há 60 anos
Mas o gênio Coleman era irrefreável. Tanto foi, que ele seguiu em frente até encontrar a sua turma. Eles também entraram na onda de perscrutar o que o jazz ainda não havia explorado, fronteiras que os levaram a aproximarem-se da vanguarda e do atonalismo. O certo é que compraram a ideia das “harmonias melódicas” de Coleman, em que um elemento não prescinde do outro e se interdependem. Horizontes inexistem a um “astronauta da música”, como classificou Wayne Shorter a Coleman. Pronto: depois do swing, do be-bop e do cool, vinha uma nova forma de enxergar e entender o jazz. Uma nova tábua começava a ser escrita. E agora com total liberdade.

Essa caminhada em direção ao espaço infinito se reflete em “Free Jazz”. Como os traços de “White Light”, a linda pintura a óleo do expressionista norte-americano Jackson Pollack, que ilustra a capa do disco, o que está dentro é dotado de igual abstração. O próprio método de concepção lembra em certo aspecto o ritual caótico de produção de uma tela do artista visual símbolo de uma geração: dois quartetos tocando isolados um em cada um dos dois canais do estúdio. Isto permitia que se produzissem passagens extraordinárias de improvisação coletiva de todos os oito músicos sem que um quarteto influísse na “liberdade” do outro. 

Assim como em raros momentos na história da Arte, a música incorpora tanto o espírito de seu tempo que acaba por confundir-se com outras formas de manifestação artística. Foi assim no século XVIII na Europa quando da literatura ao teatro, passando pela poesia, pintura, escultura e, claro, a música, beberam do Romantismo para forjar os novos padrões da arte ocidental. Os quase 40 minutos de total transgressão dos padrões tornaram-se instantaneamente também  um dos mais controversos do artista e do gênero. Muitos, seja por ignorância ou inveja, torceram-lhe o nariz. Caso de Miles e Roy Eldridge. Entretanto, houve também os entusiastas que não se intimidaram diante de tanta provocação, como a Modern Jazz Quartet, Leonard Bernstein e Lionel Hampton. No entanto, amando ou odiando, o fato é que em “Free Jazz”, Ornette engendra uma nova visão para o jazz e para a música do século XX, no mesmo peso do que Schöenberg, Stravisnky, Charlie Parker ou Beatles promoveriam. Tanto que, além de redefinir os conceitos de avant-garde, como poucas obras na história da música virou mais do que um título, mas a representação de um gênero. E isso não diz pouco.

Dispersão, ordem, fúria, corrosão, poesia, figuração, expansão, anarquia, traços, paixão, introspecção... Inúmeros adjetivos podem ser usados para adjetivar “Free Jazz”. Mas nenhum consegue classificá-lo. Melhor mesmo é ouvi-lo. Afinal, cinco décadas depois de ser concebida, a obra máxima de Ornette Coleman segue desafiadora mas apaixonante. Mais dois adjetivos totalmente ineficientes diante de tamanha elevação. Afinal, só mesmo quem passeia por outros planetas para saber pintar a si mesmo.

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FAIXAS:
1. “Free Jazz” (Part 1) - 19:55
2. “Free Jazz” (Part 2) - 16:28
Todas as composições de autoria de Ornette Coleman



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Lou Reed & John Cale - "Songs for Drella" (1990)


“Lou e eu tivemos uma conversa, e se tornou muito mais importante expor o que nós dois tínhamos [de relação com Andy Warhol], criando um show com apenas duas pessoas no palco, para que todos vissem nossa história. Achei que era mais importante – quase mais importante do que a música”.
John Cale

“O que você experimenta por meio desse registro é o relacionamento entre nós e Andy. Não se trata apenas de Andy; não é apenas, ‘oh! ele fez isso, ele fez aquilo’. Quando você experimenta ‘Drella’, é sobre John e eu, é sobre mim e Andy, e é sobre John e Andy. Queremos que você conheça melhor Andy Warhol, que você o sinta como John e eu o sentimos, para que você possa vivenciar a presença dessa pessoa única e incrível e se aproximar dela.” 
Lou Reed

Há quem contradiga o ditado de que “dois raios não caem no mesmo lugar”. Se for considerar a parceria entre Lou Reed e John Cale, essa máxima realmente não se aplica. Tanto pela raridade do fenômeno quanto por sua fugacidade, em todas as ocasiões em que os dois estiveram juntos ao longo de quase quatro décadas, o céu proporcionou um espetáculo irrefreável de belezas, mas também não demorou a se precipitar com violência. E isso, não apenas uma, mas duas, três vezes pelo menos. Tal como forças da natureza semelhantes e intensamente fortes, não suportam uma a outra pela tamanha atração que exercem entre si, repelindo-se mutuamente tão logo realizem seu feito. 

Foi assim com Reed e Cale desde sempre. Dois dos maiores talentos de sua geração de prodigiosos jovens artistas nascidos no pós-Guerra, são figuras essenciais para a cena da contracultura nova-iorquina, que mudou os rumos da vida social na segunda metade do século XX. Isso, contudo, não impediu que as desavenças se manifestassem. Pelo contrário, era-lhes como dar mais munição. Já na Velvet Underground, histórica banda que cofundaram com Moe Tucker e Sterling Morrison nos anos 60 e espinha dorsal do rock junto a Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones, isso já acontecia. Mesmo com a alta sinergia artística que os unia e os colocava como o principal núcleo criativo do grupo – capaz de inventar algumas das mais elevadas obras da música contemporânea, como “Heroin”, “Venus in Furs” e “Sister Ray” –, as diferenças falavam mais alto do que as semelhanças. A Velvet continuou com Reed até este partir para sua própria carreira no início dos anos 70, mas Cale, incomodado com o parceiro, não suportou mais do que dois discos e saltou fora um ano após a estreia no clássico "Disco da Banana" para voos solo e na produção musical.

Já veteranos, os integrantes da banda promoveram uma nova aproximação somente 25 anos, em 1993, para o memorável show “Live MCMXCIII”. A turnê comemorativa, que vinha emocionando fãs por onde passava, entretanto, mal havia começado e teve de ser subitamente interrompida por causa de brigas entre os dois líderes. De novo os iluminados raios se chocavam e faziam fechar o tempo, transformando a situação festiva em um dilúvio de ferozes descargas elétricas.

A Velvet com Nico: apadrinhados por Andy
Somente um milagre da natureza para fazer com que tanto talento (e ego) pudesse permanecer minimamente em harmonia por algum tempo, mesmo que curto, sem que se provocasse imediatamente mau-tempo. Esse milagre tinha nome e lhes era um velho conhecido desde os tempos das performances multimídia da Exploding Plastic Inevitable, nos primeiros anos da Velvet. Chamava-se Andy Warhol. Fazia já três anos que o pai da pop art e padrinho artístico da turma havia dado adeus, deixando neles uma sensação de dívida para com a figura que, junto com eles – mas também abarcando-os –, havia transformado os cânones da cultura mundial para sempre com sua proposta artística ousada e conectada com a pós-modernidade. No entanto, ainda precisou que um segundo raio teimasse em se lançar no mesmo ponto: praticamente um ano depois, a cantora e modelo alemã Nico, parceira do histórico primeiro disco da Velvet e musa musical de Cale por vários anos, também morria. A despedida de Nico, que dera voz a alguns das principais composições da dupla, como “All Tomorrows Parties” e “Femme Fatalle”, deixou a Cale e Reed mais do que evidente que aquele 1990 lhes trazia um aviso do firmamento. Sim, precisavam unir-se. Foi então que, entre tempestades e quietações, nasceu “Songs for Drella”, o qual completa 30 anos de lançamento.

Precavidos do próprio histórico, a combinação foi a seguinte: por três meses, os dois – e somente os dois –, suportariam o confinamento e baixariam a cabeça para comporem conjuntamente um repertório inteiramente novo em memória a Andy. Três meses apenas. O que talvez seja muito pouco tempo para alguns, foi mais do que suficiente para que os conflituosos, mas não menos experientes e afinados companheiros, compusessem uma obra-prima única em vários aspectos. A começar pela ocasião em si, para a qual Reed e Cale conceberam também algo especial, uma vez que sabiam da responsabilidade que lhes cabia: somente eles podiam cumprir aquela tarefa. Embora a vastidão da influência de Andy para a arte, estabelecendo nesta um "antes" e um "depois" de si, eram Reed e Cale seus verdadeiros herdeiros na música. Por isso, entendiam que a homenagem a Andy pedia pompas. Afinal, somente um indivíduo ímpar na humanidade poderia juntar Drácula com Cinderella (daí, o apelido “Drella”). Com isso, “Songs” saiu não apenas um disco, mas uma ópera-rock, que respeita toda a estrutura clássica tal como o rock havia incorporado ao narrar uma história de apogeu e miséria e final necessariamente trágico. Outra excepcionalidade é ter apenas os dois no recinto tocando, cantando, gravando, mixando e produzindo a si próprios. O resultado é um disco de sonoridade minimalista mas altamente expressiva, em que não há percussão, sopros, orquestra ou outras vozes, apenas as cordas vocais dos dois falando pela de Andy e intercalando-se e a de seus instrumentos: guitarras, baixo, viola e piano/teclados.

Cale, Reed e Andy em 1976: relação antiga e muito cúmplice

Para narrar a trajetória de Andy, Cale e Reed determinam, então, 15 movimentos em que se ouvem a sofisticação do art rock, a fúria do punk, a ousadia da vanguarda, a tradição clássica europeia e o palpável da canção pop. Tudo que Andy lhes legou em ideias e conceitos, desde a Velvet até as suas carreiras solo, era revisado e revisitado de forma altamente madura e concisa, mas também emocional e devota. Num teor erudito, a provocativa “Smalltown” começa como uma espécie de minueto ternário em allegro em que a voz de Reed faz resgatar o desejo do jovem Andy antes de mudar-se para a cosmopolita Nova Yprk nos anos 50. Gay, estranho e totalmente deslocado em sua Pittsburgh natal, ele tinha uma única certeza: a de que queria sair dali. “De onde é que Picasso vem/ Não há Michelangelo vindo de Pittsburgh/ Se a arte é a ponta do iceberg/ Eu sou a parte mais ao fundo“. 

A percepção de que o destino de Andy era mudar os padrões da sociedade começa a ser desenhada a partir do momento em que ele pisa na Big Apple, mais precisamente quando “abre a casa” na 81st Street, em Manhattan, para receber toda a fauna de artistas e doidões de uma Nova York em plena ebulição criativa. Era a Factory, seu lendário estúdio de onde a arte ocidental entrou de um jeito e saiu de outro para nunca mais ser a mesma. A dupla dá a este momento ares litúrgicos e ambientais, mas ao mesmo tempo recorre ao minimalismo nas três notas repetidas que formam o núcleo melódico de "Open House", o mesmo que usaram em "Waiting for the Man", outra sua do repertório da Velvet. 

Enquanto Cale canta a busca de Andy por patrocínio junto aos mecenas endinheirados, a quem apresenta um portfólio com suas embalagens de Brillo e uma tal banda chamada Velvet Underground (“Style It Takes”), Reed, na sequência, sob um ruidoso e minimalista rock, traz o artista em atividade (“Work”) fazendo lembrar o som hipnótico e sequencial de contemporâneos de anos 60, mas estes, da cena avant-garde da Califórnia, Philip Glass e Steve Reich. Logo começam, entretanto, os problemas. “Trouble With Classicists”, numa melodia neo-renascentista quase declamada por Cale, traz as idiossincrasias entre a arte moderna e classicismo, bem como o embate com os críticos.  

A efervescência nova-iorquina agora está nas veias de Andy. A intensa “Starlight”, com as guitarras distorcidas de Reed e o toque atonal do piano de Cale, fala da casa LGBT que abrigou seus pares: Ingrid, Viva, Little Joe, Baby Jane, Eddie S. “Starlight aberto/ Luz das estrelas abre sua porta/ Isso se chama Nova York/ Com filmes na rua/ Filmes com pessoas reais/ Que você recebe é o que você vê”. Desses personagens reais surgem as famosas fotografias e serigrafias como as que imortalizou de Marylin Monroe, Elvis Presley ou Truman Capote. O genial e inquieto rapaz do interior agora se encontra totalmente consigo mesmo. Criador e criaturas se homogeneízam. Para Andy, cantado no elegante timbre de Cale numa das mais brilhantes do disco, “rostos e nomes são tudo a mesma coisa”. Kitsch, celebridades, sexo, drogas, noite, ruas. Em "Faces and Names" a arte sai pelos poros, seja pela pintura, cinema, teatro ou música. São os “15 minutos de fama” e muito mais. Andy, no auge, prossegue formando novas figuras, como Reed canta noutra maravilha de “Songs”, “Images”. A viola ao estilo La Monte Young de Cale e a guitarra com efeitos de pedal de Reed formam um corpo dissonante só para registrar que, além do figurativo, o abstrato também integra o repertório pictórico do artista visual. 

A dupla em 1990 na rara
reunião para homenagear
o pai da pop art
Tanta exposição resulta na primeira grande crise, fato presente nas cinco faixas seguintes, que é a tentativa de assassinato que Andy sofreu da feminista radical Valerie Solanas, a qual se sentira ofendida com ele em razão de um desacerto profissional. A melodiosa “Slip Away (A Warning)” fala justamente do conselho de amigos para que fizesse o movimento inverso do que vinha procedendo: ao invés de “open house”, fechar seu estúdio. Pressentimento do pior. A barra segue pesada com “It Wasn't Me”, em que Andy tenta convencer Solanas a não se suicidar e de que ele não tinha culpa. O tiro, literalmente, saiu pela culatra: em 3 de junho de 1968, ela invade a Factory armada e desfere três tiros contra Andy, o que lhe deixou sequelas físicas e emocionais para o resto da vida. “I Believe”, outra ótima, narra com detalhes e urgência a cena do atentado, da chegada dela ao local à agonia de Andy no hospital. Solanas, que passou três anos na prisão pelo ocorrido, morreria 14 meses depois de Andy (e dois antes de Nico) em abril de 1988.

O belo country “Nobody But You” versa ainda sobre o traumático episódio (“Eu realmente me importo muito/ Embora pareça que não/ Desde que eu fui baleado/ Não há ninguém além de você”), encaminhando o musical para um desfecho, como se sabe, melancólico como em todas as óperas. Na discursiva e etérea “A Dream”, Cale traz sua veia new age e neoclássica captada junto a outros parceiros, como Terry Riley, Brian Eno e Kevin Ayers. A letra é um fluxo de pensamento de Andy, cuja descrição de um sonho traça um panorama de vários momentos de sua biografia: os primeiros anos, a Velvet, pessoas de convivência, a amizade com Reed e Cale, o incidente na Factory e as feridas que a vida lhe trouxe. A indagação: “Puxa, não seria engraçado se eu morresse neste sonho antes que eu pudesse inventar outro?”, quase ao final da faixa, denota o pressentimento de que os últimos traços de um artista sublime estavam sendo dados. 

A arquitetura narrativa de “Songs” - que mantém um exemplar equilíbrio entre densidade e leveza, tonalismo e dissonâncias, agitação e calmaria, classicismo e vanguarda, agressividade e lirismo - surpreende mais uma vez na virada da contemplativa e extensa “A Dream” para o blues ultramoderno “Forever Changed”, talvez a mais impactante de todo o álbum. Ciente da proximidade da morte, Andy compreende igualmente a sina de todo grande artista: a permanência do seu legado. “Eu fui”, mas tudo “mudou para sempre”. A consciência da eternidade. Se Cale emenda as duas anteriores, é Reed quem tem o privilégio de desfechar este réquiem. Isso porque, ao invés de prosseguirem a narrativa na terceira pessoa, como que falando pela voz de Andy, são as próprias palavras de Reed que compõem a letra de“Hello It's Me” numa emocionante carta de despedida. “Andy, sou eu, não te vejo há um tempo/ Eu gostaria de ter falado mais com você quando você estava vivo”, abre dizendo na singela balada, mais uma como “Femme Fatale” e “Sunday Morning” composta pelos dois em meio aos vários proto-punks raivosos e sinfonias ruidosas dos tempos de Velvet. 

Terminada a gravação, também não durou muito a turnê de “Songs”. Após algumas apresentações, Cale e Reed separaram-se novamente, como raios excelsos que entram em choque depois de mal se aproximarem. A última ocasião, o reencontro da Velvet, três anos dali, foi sentenciada com a partida de Sterling Morrison dois mais tarde e a do próprio Reed, em 2013. Antes da tormenta, contudo, o tempo colaborou para que registrassem este impecável e sui generis disco, que evidencia o quanto figuras como Andy Warhol fazem falta sempre. E por quê? Porque, como um Michelangelo, um Mozart, um Picasso, um Shakespeare, ícones revolucionários invariavelmente deixam lacunas impreenchíveis, simplesmente. Ouvir “Songs” hoje, a três décadas de seu lançamento, dá a dimensão do que existências como as de Andy, Reed, Nico e Morrison significam depois que partem e da importância dos que ficam, como Cale e Moe. Raios muito raros que, incrivelmente, caíram no mesmo lugar. Justo por isso que o disco tenha se concluído com estes versos: “Bem, agora Andy, acho que temos que ir/ Espero de alguma forma que você goste deste pequeno show/ Eu sei que é tarde, mas é a única maneira que eu sei/ Olá, sou eu/ Boa noite, Andy”.

Show de "Songs for Drella", de Lou Reed e John Cale (1990)


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FAIXAS:
1. “Smalltown” - 2:03
2. “Open House” - 4:16
3. “Style It Takes” - 2:54
4. “Work” - 2:36
5. “Trouble With Classicists” - 3:40
6. “Starlight” - 3:26
7. “Faces And Names” - 4:11
8. “Images” - 3:28
9. “Slip Away (A Warning)” - 3:04
10. “It Wasn't Me” - 3:29
11. “I Believe” - 3:17
12. “Nobody But You” - 3:44
13. “A Dream” - 6:33
14. “Forever Changed” - 4:49
15. “Hello It's Me” - 3:03
Todas as composições de autoria de Lou Reed e John Cale

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OUÇA O DISCO:





Daniel Rodrigues

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #193


Com capas de César Villela fica fácil montar qualquer arte, inclusive a do MDC desta semana, em que homenageamos o grande designer da bossa nova. Além dele temos também reverência a outra perda, Harold Budd, no "Cabeção", mais músicas que vão de Gilberto Gil a Michael Jackson, passando por Raul Seixas, Towa Tei, PJ Harvey e outros. Arte do mais alto nível no programa hoje, 21h, na bem desenhada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e design arrojado (mas emprestado, claro): Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #187

 

ASSIM COMO NÃO EXISTE ESTUPRO CULPOSO, NÃO EXISTE MDC SEM MÚSICA BOA. NA CORRENTE DE DENÚNCIA CONTRA A VIOLÊNCIA À MULHER, VIEMOS CARREGADOS DE FORÇA COM MINISTRY, DOM UM ROMÃO, ED MOTTA, THE SMITHS E MAIS. TAMBÉM, UM "CABEÇÃO" EM HOMENAGEM AO INCLASSIFICÁVEL CABEÇÃO FRANK ZAPPA E UM "PALAVRA, LÊ" PARA NELSON MOTTA. MÚSICA DA CABEÇA #187 HOJE, 21H, NA JUSTA RÁDIO ELÉTRICA. PRODUÇÃO E APRESENTAÇÃO: DANIEL RODRIGUES. #justiçapormarianaferrer


RÁDIO ELÉTRICA:
HTTP://WWW.RADIOELETRICA.COM/


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Música da Cabeça - Programa #174


Tá aí mais uma edição do Música da Cabeça com toda a pompa, brilho e cristal que lhe é de direito. No programa de hoje, além do novo trabalho de Beyoncé, que vem gerando elogios e polêmicas, termos também Gene Page, Gabriel Yared, Elis Regina, L7, John Cale e mais. Também, um "Cabeção" sobre a world music de Jon Hassell e, claro, Música de Fato" e "Palavra, Lê". Isso às 21h, na naturalmente glamourizada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e estampa de oncinha: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/