Como fazemos todos os anos, recapitulamos e elencamos os discos que tiveram a honra de entrar para nossa seleta lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Não tem disputa, não tem ranking mas a gente sempre gosta de saber que artista tem mais obras indicadas, qual o país tem mais discos lembrados, que ano marcou mais com discos inesquecíveis e essas coisas assim. Sendo assim, levantamos esses números e publicamos aqui, até para nossa própria curiosidade. No campo internacional, os Beatles ampliaram sua vantagem na liderança entre artistas, embora, entre os países, seja os Estados Unidos quem lideram com folga. Destaque na 'disputa' internacional para o primeiro nigeriano na lista, Fela Kuti, que aumenta o número de representantes africanos, ainda tímido, nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. O Brasil segue na segunda colocação, mesmo com a reação dos ingleses que não colocaram nenhum álbum em 2021 mas voltaram a ter destacados grandes discos em 22. Só que com três craques da música brasileira, Gil, Caetano, Paulinho e Milton, fazendo oitenta anos em 2022, ficou impossível não destacar discos deles e abrir vantagem novamente sobre os ingleses. A propósito, Milton Nascimento que, de início não tinha nenhum, depois colocou o "Clube da Esquina", com Lô Borges, depois a parceria com Criolo e agora, com os dois que emplacou nesse ano que marcou seus oitentinha, já desponta com destaque na lista nacional. Contudo, ele não era o único a completar oito décadas e Caetano Veloso, garantindo mais um na nossa lista de grandes discos, continua na liderança nacional. Em 2022, o ano que mais teve discos na nossa lista foi o de 1992, embora a década de 80 tenha colocado 8 na lista, mas ainda não o suficiente para ultrapassar a de 70 que ainda é a que lidera nesse âmbito.
Vamos, então, aos números que é o que interessa.
Confira aí abaixo como ficou a situação dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS depois da temporada 2022:
*************
The Beatles: 7 álbuns
Wayne Shorter: 5 álbuns ***
David Bowie, Kraftwerk, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis e Wayne Shorter: 5 álbuns cada
John Cale* **
Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, John Coltrane e Lee Morgan: 4 álbuns cada
Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden ,Lou Reed** e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, PJ harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beatie Boys, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale, "Songs for Drella"
*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.
PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)
Caetano Veloso: 7 álbuns*
Gilberto Gil: * **: 6 álbuns
Jorge Ben: 5 álbuns **
Tim Maia, Legião Urbana, Chico Buarque e Milton Nascimento +#: 4 álbuns
Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto* ****: 3 álbuns cada
Baden Powell***, João Bosco, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Criolo + e Sepultura : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil
**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
+ contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor"
# contando com o álbum Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"
PLACAR POR DÉCADA
anos 20: 2
anos 30: 3
anos 40: -
anos 50: 120
anos 60: 97
anos 70: 145
anos 80: 124
anos 90: 96
anos 2000: 14
anos 2010: 16
anos 2020: 2
*séc. XIX: 2 *séc. XVIII: 1 PLACAR POR ANO
1986: 22 álbuns
1977: 19 álbuns
1969, 1972, 1976, 1985, 1992: 17 álbuns
1967, 1968, 1971, 1973 e 1979: 16 álbuns cada
1970 e 1991: 15 álbuns cada
1965, 1975, 1980 e 1991: 14 álbuns
1987 e 1988: 13 álbuns
1989 e 1994: 12 álbuns cada
1964, 1966 e 1990: 11 álbuns cada
1978 e 1983: 10 álbuns
PLACAR POR NACIONALIDADE*
Estados Unidos: 201 obras de artistas*
Brasil: 145 obras
Inglaterra: 118 obras
Alemanha: 9 obras
Irlanda: 6 obras
Canadá: 4 obras
Escócia: 4 obras
Islândia, País de Gales: 3 obras
México, Austrália e Jamaica: 2 cada
Japão, Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola, Nigéria e São Cristóvão e Névis: 1 cada
*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)
“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.”
Caetano Veloso
Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem.
Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo.
“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil.
A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito.
Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso
Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious LoversPeter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).
Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”.
Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.
Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”.
Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova.
Caetano acompanhado de Brown e Moreno na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).
Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.
Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou.
********
FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas
Retomada das atividades? Aqui no MDC a gente não para nunca! Hoje, mais um programa repleto daquilo que a gente mais gosta: música. E também não tem essa de restrição a nenhum segmento! Aqui, entra todo mundo. Pois tem o tropicalismo de Caetano e Gil, o rock indie da Th’ Faith Healers, o samba-canção de Gal Gosta, a soul de Ike White, o pós-punk da Public Image Ltd. e a batucada de Carmen Miranda. Ainda, para completar, a vanguarda eletrônica de Delia Derbyshire, no quadro “Cabeção” e muito mais. Vem por teu EPI – quer, dizer fone de ouvido – e retomar as atividades ouvindo o programa às 21h, na desinfectada Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Estamos contigo, Marrom.
"Posso dizer que Gil e Caetano são gênios. Eu, na verdade, sou um trabalhador contumaz, sou obsessivo. Aí, quando entra o Milton e o Criolo, pronto."
Tom Zé
Confesso que resisti um pouco a Criolo. Em 2011, por sugestão de meu primo-brother Lúcio Agacê, ouvi o então recém-lançado “Nó na Orelha” e me impressionei de cara. Conhecendo-me bem, Lucio acertara que eu iria gostar de um rapper de São Paulo até então chamado Criolo Doido, que tinha tomado um “banho de loja” e produzira um disco de se prestar atenção. Como sempre, fui na dele, que nunca dá dica furada. E, caramba: que musicalidade era aquela?! Ao mesmo tempo em que destrincha hip hop com estilo próprio de letras incomuns e rimas ligeiras, forjando quase uma nova linguagem que junta o vocabulário da periferia com um entendimento profundo do português culto, também mandava ver com naturalidade outros ritmos (às vezes, mesclando a este rap tão original), como samba, afrobeat, reggae e soul.
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Ney Matogrosso, Tom Zé, Martinho da Vila e Milton Nascimento – ou seja, a nata da MPB – o elogiavam. Era tão legal, que cheguei a desconfiar. Pensei em escrever sobre o disco no calor do impacto, mas meu cérebro buscou comparações e parâmetros que, embora não devessem ter nada a ver com o simples ato de gostar, foram suficientes para, preconceituosamente, rechaçar a minha ideia de imediato. Para ajudar, um infeliz tributo a Tim Maia ao lado de Ivete Sangalo, no qual Criolo se sujeitou a participar, em 2015, ajudou a alimentar minha antipatia por ele.
Entretanto, “Nó...” resistiu a mim. Por isso, faço aqui o que não tive coragem seis anos atrás depois daquela primeira audição. Afinal, o disco se mantém intacto em sua qualidade, simbolizando aquilo que na época já era uma certeza: a chegada do maior artista da música brasileira dos últimos tempos. Com a luxuosa produção e arranjos de Daniel Ganjaman (Planet Hemp, Sabotage, Otto,Racionais MC’s, Nação Zumbi, entre outros, no currículo) e poucas mas preciosas participações (como da excelente cantora Juçara Marçal, da Metá Metá, nos backings), “Nó...” traz essa originalidade letrística e sonora, algo evidenciado já na faixa de abertura, “Bogotá”. Um ritmo latino com beats e sopros afiados muito bem cantado com a voz melodiosa e agradável de Criolo. Não é rap, mas namora com o estilo na força da mensagem e no approuch, mostrando o quanto o artista, já no segundo disco, havia ampliado sua musicalidade.
Avança-se somente mais um pouco para provar definitivamente esta afirmação em “Subirusdoistiuzin”. Este, sim, um rap, com direito aos tradicionais beats funk, scratches e samples. Mas cheio de groove, numa atmosfera de jazz-soul – adensada pelo elegante trompete de Rubinho Antunes e o baixo acústico de Marcelo Costa, coarranjador do disco. Novamente muito bem cantada por Criolo, destaca-se, antes de mais nada, pela letra de rimas improváveis e pela divisão silábica quebrada, como bem fazem Tom Zé e Marlui Miranda. E o que dizer desses versos? “Mandei falá/ Pra não arrastá/ Não botaram fé/ Subirusdoistiozin/ O baguio é loco/ O sol tá de rachá/ Vários de campana aqui na do campin/ Má quem quer preta/ Má quem qué branca/ Todo azule/ Requer seu rejuntin/ Pleno domingão/ Flango ou macalão/ Se o negócio é bão/ Cê fica é chineizin/ Cença aqui patrão/ Aqui é a lei do cão/ Quem sorri por aqui/ Quer ver tu cair/ É, é... justo é Deus/ O homem não/ Ouse me julgá/ Tente a sorte, fi”.
Na sequência, um dos motivos da reverência dos papas da música brasileira: “Não Existe Amor em SP”. Cantada por seu autor ao lado de Caetano no Video Music Awards daquele ano numa apresentação que “chancelara” a posição de Criolo no rol da MPB, a canção, contundente e melodiosa, já se tornou naturalmente um clássico e um novo hino popular sobre a cidade paulistana. O título, cuja menção à grande metrópole brasileira é pronunciada na forma de sigla (“essepê”), desvenda a mensagem: “Um labirinto místico/ Onde os grafites gritam/ Não dá pra descrever”. Lembra, em poética e raciocínio, outro talentoso rapper de Sampa, o amigo Mano Brown, nos versos de “Vida Loka nº 1”, dos Racionais MC’s, quando diz “em São Paulo, Deus é uma nota de 100”, principalmente comparada com esta parte da música de Criolo: “Os bares estão cheios de almas tão vazias/ A ganância vibra, a vaidade excita/ Devolva minha vida e morra/ Afogada em seu próprio mar de fel/ Aqui ninguém vai pro céu/ Não precisa morrer pra ver Deus”.
“Mariô” vem dar ainda mais sentido à ideia jazzística lançada em “Bogotá” e “Subirusdoistiuzin”, uma vez que intensifica a pegada de jazz moderno, haja vista que é coescrita com Kiko Dinucci, o principal compositor da Metá Metá, a inovadora banda paulistana do novo jazz brasileiro. Emulando sons e vocabulários do matiz africano, típico da musicalidade de Dinucci, remonta ao “pop nagô” de Marku Ribas pela mistura de sonoridades funk, soul, samba e batuque de terreiro.
Surpreendendo novamente, Criolo traz o bolero "Freguês da Meia-Noite". Balada brega ao estilo Nelson Ned e Reginaldo Rossi, contextualiza mais uma vez a São Paulo urbana, aqui no clima decadente e rasgado da boemia noturna. “Meia Noite/ Em pleno Largo do Arouche/ Em frente ao Mercado das Flores/ Há um restaurante francês/ E lá te esperei”. Já “Samba Sambei”, embora o título faça supor o estilo musical, é, na verdade, um reggae, engendrando a tirada metalinguística de canções como “Samba da Minha Terra”, de Dorival Caymmi, na versão heavy dos Novos Baianos, o rock-exaltação “A Bossa Nova é Foda”, de Caetano, ou “Amigo Punk”, a milonga (e não um punk-rock) do grupo gaúcho Graforréia Xilarmônica.
Claro, a raiz de Criolo não poderia deixar de estar presente. Com a mesma desenvoltura que passeia por outras formas musicais, o artista também articula seu inato rap. Caso de "Grajauex", com os criativos versos rimados em “écs” (“É o play 3 na golfera te sai, chanex/ É o ouro branco o pó mágico e o poder de Rolex/ Na favela com fome atrás dos Nike Air Max/ Os canela cinzenta que não tem nem cotonets/ Os Mc das antiga é dinossauro T-Rex/ Pra fazer bobaginha cole ali com Jontex/ Pra zoar na rua com os cachorro é pex pex/ E as princesinha na nóia de um papel faz bo...”); "Sucrilhos", crítica social em que exercita sua poética sui generis (“Calçada pra favela/ Avenida pra carro/ Céu pra avião/ E pro morro descaso/ Cientista social/ Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella”); e "Lion Man", de excelente construção melódica e harmônica.
“Nó...” encerra revelando outra habilidade que Criolo traria mais vezes a partir de então – inclusive em parcerias com Martinho da Vila e Tom Zé –, que é o domínio do samba. Partido alto estiloso, que lembra os bambas da velha guarda, "Linha de Frente" faz uma brincadeira com os nomes dos personagens da Turma da Mônica, inserindo-os na realidade do tráfico de drogas na periferia. Os versos iniciais dizem: “O nó da tua orelha ainda dói em mim/ E Cebolinha mandou avisar/ Que quando a ‘fleguesa’ chegar/ Muitos pãezinhos há de degustar”. O refrão é ainda mais interessante: “O dinheiro vem pra confundir o amor/ O santo pesado que tá sem andor/ Na Turma da Mônica do asfalto/ Cascão é rei do morro e a chapa esquenta fácil”.
Dentre as várias qualidades de “Nó...” está a que o trabalho trouxe de vez a turma do rap para o patamar dos músicos, vencendo a pecha de meros “coladores de música dos outros” ou de “vozes da favela”. Criolo representa a nova geração mestiça brasileira, saída das classes baixas e sintonizada com a política, com a produção cultural e com a realidade social, personalidades que têm (e se põem no) compromisso de pensar o Brasil. Além disso, o convencimento de que rapper não sabe (e nem precisa) só fazer rap. Mas mesmo com toda a diversidade sonora e de referências conceituais que carrega, “Nó...” é, contudo, um disco saboroso de se ouvir, mesmo que desafiador – desafio este que, de pronto, não me permiti vencer em relação a Criolo. Mais do que a “repaginada” a qual meu primo se referiu ao me indicar a audição, o disco é a afirmação de um artista que tem muito a dizer e que veio para ficar. Talvez por tudo isso, o disco tenha dado em meu pretenso conhecimento e gosto musical um verdadeiro nó na orelha. Acho que, com todas estas linhas escritas, eu agora tenha desenosado.
FAIXAS: 1. "Bogotá" - 4:40 2. "Subirusdoistiozin" - 3:33 3. "Não Existe Amor em SP" - 4:40 4. "Mariô" - 3:37 5. "Freguês da Meia-Noite" - 4:09 6. "Grajauex" - 2:36 7. "Samba Sambei" - 3:42 8. "Sucrilhos" - 4:00 9. "Lion Man" - 3:25 10. "Linha de Frente" - 4:30 Todas as composições de Criolo, exceto “Mariô”, de Criolo e Kiko Dinucci
Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a
recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida.
Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na
doce e astral companhia das hermanasLeocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na
cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo
incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências
artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos;
a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a
poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias
entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário
sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um
marco só por sua realização.
Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada
na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório
escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos.
Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter
assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas
primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco
tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014
(Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993,
a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com
duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do
disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem
no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um
panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do
tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.
E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo
tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu
do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um
que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o
espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock
‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70,
na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que
aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de
identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show –
aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que
aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um
período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória
afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à
época), em 1966: “Coração Vagabundo”.
Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas
duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram
dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão
acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e
a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil,
magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et
Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir
Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/
Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”
Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a
bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os
vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando
da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de
Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram
a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar
uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.
Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show,
eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita
em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São
Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham
escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e
filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher,
como dizem os versos, “as camélias da
Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de
boicote do ex-Pink Floyd, Roger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando
da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando
as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico
de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces
meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo
do Leblon/ Brandir.”
Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma
complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez.
Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”,
talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe
superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com
seus traços árabes e folks. Enquanto
Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do
pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o
arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola,
o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral
de Gil. De arrepiar.
Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine
Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em
Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do
visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo
sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a
castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina
Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos
tão próximos dos irmãos portenhos.
Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova
“Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos
mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção.
Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus,
começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga
a voz e é aplaudido.
Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma
série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia.
Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de
esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às
repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos
deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”,
do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com
“Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao
tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a
gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto.
Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis.
Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê
reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do
show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso
2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos
acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No
embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.
Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô
Menino” é a única do set-list
composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente
desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de
louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São
João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A
crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na
mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das
melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil.
Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem
estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a
canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração
aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/
Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).
O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e
Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo
Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já
mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa
gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente
para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da
plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz
daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree
Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro
Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando
Caetano, o “silêncio sorridentede Porto Alegre” de quem não quer
admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento
provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel
(muitos pensaram alarmados: “Nossa, um
estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela
polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se
dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista”
de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do
seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a
turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração
que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este
(que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista
brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver
algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela
cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre
não faz jus à sentença de que a “verdadeira
Bahia é o Rio Grande do Sul”.
De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se
repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio
que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas,
como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas
das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et
Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de
carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável
condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a
riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos,
na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.
**************
Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015