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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

CLYLIVE ESPECIAL 13 anos do ClyBlog - Hímen Elástico - Woodstock Bar - Alvorada /RS (13/08/1993)




Pedaço do cartaz do evento















O mais alto voo "hermenêutico*" 

Hímen Elástico, sexta feira 13 agosto de 1990 e poucos....
Lembro que fizemos alguns ensaios e como de costume nunca tivemos um guitarrista fixo... mas tenho dois na memória, um canhoto e o outro destro.
Sim, ser canhoto era um pré-requisito para fazer parte da banda e nem precisava tocar bem. Se fosse canhoto estava dentro! Marcelo o “Fedor” era o destro, talvez o que mais se manteve no cargo, e Thiago Newman, o canhoto, que acho que foi quem participou do show que, certamente foi a apresentação mais insana daquela noite e que, curiosamente, não começou no palco.
Saímos eu, meu irmão, Nego Lê, nosso batera Cézah, o Pereba, e mais um amigo e personagem importante dessa cruzada, Diogo, o Tantã, rumo à Intercap, em Porto Alegre, para a reunião que daria início a saga.
Logo após a janta, todos naquele alvoroço se preparando para alçar ao que talvez fosse o voo mais ousado do nosso projeto hermenêutico, lembro da minha tia Iara, mãe dos guris Clayton e Daniel, meus primos e vocais da banda, nos encher de advertências sobre o uso do casaquinho, o cuidado com as companhias e aquela coisa toda de mãe.
Então chegou a hora, a trupe toda pronta e partimos para rua. Provavelmente eu levava alguma bebida mocozada na mochila, pois não lembro de um dia que saí durante os anos noventa onde não houvesse um vinho (hehehehe), mas o fato de já ter um trago, não impediu um dos atos que seria o marco daquela cruzada. Então, surge a dúvida: quem pegou a Cachaça Polteirgeist?
Lembro de o Pereba ter tomando mas também lembro do Tantã ser o primeiro a pegar o artefato.
Estávamos nós andando, não sei se próximo ao ponto de partida, quando numa encruzilhada nos deparamos com um despacho digno de uma legião de entidades e um dos nossos heróis teve a bendita ideia de pegar a cachaça pra tomar. 
Não sei se tomei, não sei quem tomamos, mas sei que fez toda diferença pois fomos para aquele show com uma legião de seres das ruas na nossa cola.
O lance era um pico muito louco numa festa insana organizada por uma skatista amigo nosso da Osvaldo Aranha, o Miller, que hoje mora em Viamão e que simplesmente convidou todo mundo pro evento. Lembro da Free Jack , Rapcrazy, Ultramen, Groove James, Borboleta Negra, que hoje virou Comunidade Nin-Jitsu, e nós, a Hímen Elástico, é claro...
Então chegou o momento tão esperado! Lembro de ter começado com a Marcha Fúnebre, num bass distorcidão, usando o moletom, que havia sido confeccionado num tamanho descomunal, com o capuz caindo na cara, fazendo referência à morte ou a um ritual qualquer (hehehehehehe!). Logo vinha “Carolina” ("Dá um beijo no cangote, Carolina!") e “Ex” que deram o ritmo do que seria uma metralhadora de músicas que tocamos naquela noite. Sim, foi um petardo atrás do outro e lembro que meu irmão não ficou no palco pois passou o show correndo no salão, alucinado, e geral impressionada com o que estavam assistindo. (hehehehehehehe!!!) Enfim, memorável! Logo após toda aquele frenesi, fomos para Osvaldo Aranha celebrar o grande momento. Acho que foi a primeira vez que vi Clayton e Daniel por lá!!!!!!
Até hoje não sei como acabou aquela noite mas guardo na memória, mesmo que vaga, um espetáculo inesquecível.

* Hermenêutico - termo que costumávamos usar para classificar tudo relacionado à Hímem Elástico


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A dúvida que não quer calar

Bah! Baita lembrança!
Então, o que dizer daquele dia? Eu bem moleque aprendendo os passos da adolescência e tendo exemplos, tanto de vocês, meus primos, como do Lucio, meu irmão.
Lembrando desse dia, hoje em 2021, consigo ter claro o que aquele 13 de agosto significou na construção de quem sou eu hoje, mas voltando anos atrás, era tipo um filme. Expectativa como se fosse um showzaço mas foi como uma final de campeonato, desde o ponto de ônibus, de onde já saímos rindo de tudo, até descer no centro de Alvorada, adentrar aquele bar escuro e ouvir a Hímen Elástico com vocês. 
Quebramos tudo! Foi massa demais e uma experiência única. Por isso, meu lema até hoje é: seja jovem sempre e faça tudo que quiser fazer, desde que não prejudique ninguém e não ocupe o espaço de outra pessoa. 
Contudo, depois de tanto tempo uma dúvida ainda persiste: Cachorro morto ainda late**?


** nome de uma das músicas da Hímen Elástico

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Macumba, rock ‘n’ roll e cabeças cortadas

Tínhamos a melhor banda de rock do Rio Grande do Sul dos anos 90. Digo isso sem soberba, até porque, se sobrava qualidade, faltou persistência a nós para prosseguimos e provar todo esse talento. A Hímen Elástico, nossa banda, era uma mistura muito bem azeitada de todas as referências que nós, integrantes, tínhamos: punk rock, hip hop, quadrinhos, samba, poesia concreta, música clássica, revistinha adulta, skate, hardcore, desenho animado. De tudo um pouco e tudo misturado emaranhando as mentes de Clayton Reis, meu irmão e principal vocalista/letrista; Leandro Reis Freitas, o Lê, primo backing assim como eu e dono de sacadas e ideias sempre criativas; Cezar “Pereba” Castro, o melhor batera dessas bandas sulistas depois de Pezão; e o baixo, vocais, and other instruments by Lucio Agacê, irmão de Lê e também nosso primo, um turbilhão de musicalidade e o verdadeiro músico entre nós – não à toa, o cara que mais seguiu por esse caminho entre todos nós depois da “dissolução” da Hímen, como carinhosa e debochadamente nos apelidávamos,.

Compúnhamos juntos e de forma contributiva, aliás, como sempre fizemos desde a infância, crescendo juntos como guris e seres criativos. Se a sintonia entre nós era sanguínea, geracional e afetiva, na guitarra a Hímen ainda reservava um charme à parte: sempre tínhamos um guitarrista diferente. Sabe a The The, a P.I.L., a This Mortal Coil, todos com guitarristas móveis? Pois é: éramos iguais. Dependendo da ocasião, algum amigo, familiar, parceiro ou até fã nosso era contemplado – desde que soubesse minimamente tocar o instrumento, visto que nenhum de nós tinha essa capacidade.

Todas essas características faziam da Hímen uma banda sui generis, que botava no chinelo em musicalidade Comunidade Nin-Jitsu, Cidadão Quem, Papas da Língua, Tequila Baby... todas as bandas de sucesso do RS na época. E nada dessa de banda “couve”: nossas músicas eram todas escritas por nós mesmos. O que não era de nossa autoria, transformava-se assim, como as versões de Ramones e Legião Urbana, que emendávamos com uma de nossas canções, “Fórmula de Bhaskara’, ou as ousadas versões de “Ego Sum Abbas” de CarminaBurana ou da techno-punk Suicide para o formato baixo-guitarra-bateria. Tínhamos inteligência musical e repertório suficiente para gravar um disco, certamente. Mas o fato é que não tivemos muito tempo de “estrada”. Embora as músicas ainda existam, foram poucos os que, ao contrário das bandas de sucesso do rock gaúcho, bem mais persistentes, tiveram o “privilégio” de nos ouvir. A não ser numa fatídica, gélida, perigosa e memorável noite de rock ‘n’ roll que nós promovemos.

Não vou lembrar com detalhes, pois lá se vão 28 anos, mas recordo que ensaiamos algumas horas na tarde daquele 13 de agosto de 1993 num estúdio que alugamos no Bom Fim. Terminados os ensaios, ‘simbora lá pra nossa casa, meio do caminho para nosso destino final, para comer alguma coisa feita por minha mãe, dona Iara, que levou as mãos à cabeça ao saber para onde iríamos depois dali: Alvorada. E à noite! E numa sexta-feira 13! E na cidade mais perigosa do Estado! Isso porque, naquela semana, a imprensa havia noticiado, assombrada, vários assassinatos cometidos em Alvorada em que os criminosos haviam decapitado suas vítimas. Misto de irresponsabilidade e descomplicação juvenil, obviamente, fomos. Seria a primeira apresentação ao vivo da Hímen Elástico! Nossas músicas, nós no palco! Adrenalina, rock ‘n’ roll! Não íamos perder de jeito nenhum a oportunidade de fazer aquele show, nem que, para isso, cortassem nossas cabeças!

Rock a gente associa a algo quente, infernal, furioso, certo? Neste caso, porém, substitua-se o calor dos infernos por um frio dos infernos. Sim: afora todas as justificativas que inibiriam qualquer ser minimamente ajuizado de não sair de casa, fomos nós, sob uma temperatura quase negativa, pegar dois busões em direção a Alvorada para desespero de minha mãe. Além de caminhar trechos com os instrumentos nas costas, sabe como é pegar ônibus de noite num fim de semana, né? Chá de banco. E com aquele frio! Deu pra ver que a galera não tinha grana, né? Táxi? Impossível, muito caro. Carro próprio? Àquela época, nem carteira aqueles guris tinham. Mas se faltava grana, assim como para com nossas músicas, sobrava criatividade – e um bocado de ousadia, confesso. No caminho para a condução, Cezar, quieto e sempre atento, encontrou uma garrafa de cachaça inteirinha e quase intocada. Que alento para aquele frio! E tudo bem pegar a bebida numa ocasião como aquela, não fosse a cachaça ser de um despacho. E acham que a gente se intimidou com o santo? Que nada! A insolência falou mais alto. Afinal, estávamos indo para um show de rock, caramba! O NOSSO show de rock.

Foi realmente uma apresentação digna a que fizemos no Woodstock Bar. Com uma formação de guitarra, baixo, bateria, voz e backing vocals, abrimos, como numa homenagem àquela sexta-feira 13 maldita, com “A Marcha Fúnebre”, (sim: trata-se de "Sonata para piano Nº 2 em si bemol menor, Op. 35", de Chopin), que havíamos ensaiado bastante durante o dia, embasbacando quem assistia. Seguiram-se nossas músicas: “Ex”, “Grandes Lábios”, E Daí?”, “Clayton” e outras. Nossas músicas.

Voltando a memória para antes do show, lembro de minutos antes de entrar no palco – pela primeira vez. Senti aquele famoso frio na barriga que todo músico ou ator diz ter antes de começar o espetáculo. Dei mais uns goles na nossa cachaça enfeitiçada e, não sei por que cargas d’água, arranquei o lenço que eu levava na cabeça e o amarrei numa das pernas, logo acima do joelho. Depois, foi só transe. Dito assim, parece um ato infantil, sem propósito ou até irrelevante. Mas aquilo era rock, bebês. Dadas as devidas proporções (afinal, considerávamos os melhores do nosso território, mas não do planeta), é a pulseira de spike dos metaleiros; é a camiseta rasgada de Sid Vicious; é o figurino extravagante do Elton John; é o tênis All Star dos Ramones; é o crucifixo do Ozzy. Não é a música, mas faz parte. Afinal, rock não é só som: é atitude. É o momento em que se experencia algo transformador: deixa-se de ser somente a si próprio para se tornar, pelo menos por minutos, sua própria criação artística.

Com todo o cenário que se pintou, de perigos tanto do além quanto da vida real, posso afirmar que subir num palco é como ter a sua cabeça cortada e entregue numa bandeja para o público. Como no mito de Salomé, sedução e morte se amigam. É quase um milagre. Ou dá pra explicar de outra forma a voz do Clayton ter voltado perfeitamente na hora do show depois de emborcar a nossa aguardente magiada? Deus, ou melhor, o Diabo, pai do rock, fez-se presente naquele dia para ele tão especial para nos permitir que a nós também fosse. E foi.

Não eram muitos na plateia, certamente. Mas que quem esteve lá, viu uma verdadeira banda de rock, isso, viu. A melhor do Rio Grande do Sul da década de 90, o que muitos nunca souberam. Mas a gente, “hermenêuticos”, sem modéstia, sabemos que sim.



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Cachaça Poltergeist
por Cly Reis


Ninguém tocava grande coisa. Na verdade, a maioria de nós, LucioDaniel e Eu, o núcleo da Hímen Elástico, não tocava instrumento nenhum. Éramos quatro primos muito musicais e muito criativos, o que nos despertou o desejo de botar aquelas ideias musicais, às vezes muito doidas, em prática. E o meio para isso era ter uma banda. Mas como ter um grupo musical diante da situação já relatada da total inépcia instrumental dos integrantes? Ah, o Lucio, que era o único um pouco mais habilidoso tocaria contrabaixo, que era no que se saía melhor, um de seus grandes amigos, o Pereba, que tocava bateria pra diversas bandas, acrescentaria mais essa à sua lista, e eu, que tinha o desejo mas não a coordenação motora pra tocar, tinha uma guitarra que poderia servir para algum guitarrista que convidássemos e que se encaixasse. De resto, na falta de maiores talentos, todos os três restantes seriam vocalistas, ora fazendo backing-vocals, ora se alternando na voz principal, embora o posto, oficialmente, coubesse a mim, não por ser mais ter mais qualidades para tal mas, pelo contrário, exatamente por não saber fazer mais nada.
Ensaiávamos com alguma frequência, guitarristas iam e vinham no posto que nunca fora muito fixo, tínhamos um repertório interessante e consolidado e, a partir de determinado momento, começamos a ansiar por uma oportunidade de tocar em algum lugar. Numa dessas, o Lucio, que era o cara com mais contatos, mais atuação no underground de Porto Alegre e região, conseguiu um showzinho pra nós. Seria em Alvorada, um município próximo à capital, num pequeno festival, com umas quatro ou cinco bandas, num lugar chamado Woodstock Bar. O dia? Sexta-feira 13 de agosto.
Determinados a garantir um bom desempenho, uma apresentação digna, marcamos um ensaio extraordinário para o final da tarde do dia do show. O evento no bar começaria umas10h ou 11h da noite, faríamos nosso ensaio ali pelas seis da tarde, voltaríamos pra minha casa, comeríamos alguma coisa, sairíamos por volta das oito e ainda daria tempo tranquilamente. Nosso planejamento deu certo. Deu, em termos... O ensaio da tarde e, possivelmente, algum stress por ansiedade, levou embora minha voz. Me vi, a poucas horas do nosso momento mais importante, até então, sem a coisa que eu mais precisava naquela noite: a voz. Por sorte, pouco antes da nossa vez de subir no palco, um cara de uma outra banda, vendo a minha situação, recomendou que eu tomasse uma cachaça que era certo que minha voz voltaria. Não deu outra! Foi voltando, foi voltando e na hora do show, eu estava pronto.
Subimos ao palco exatamente à meia-noite da sexta-feira 13 (bom, tecnicamente, já seria dia 14, mas pra efeito da mística da ocasião, ganha mais efeito dramático se colocado assim). Pelo soturno da situação, abrimos os trabalhos com a "Marcha-fúnebre", mas já emendando com a nossa tradicional vinheta de abertura, "Carolina", que já desembocava na nossa eletrizante música de abertura, "Ex" e a partir daí foi só pancadaria. Um show bom, modéstia à parte, mas não apenas na minha opinião, uma vez que nosso som foi elogiado por integrantes de outras bandas e, de quebra, pela gatinha que eu estava azarando.
Numa noite tão envolta em elementos sombrios, uma sexta-feira caindo em13, início do show à meia-noite, marcha-fúnebre, voz indo e vindo e tudo mais, não é de se duvidar que um fato externo tenha influenciado todo o contexto daquela jornada. Ainda na nossa ida, assim que saímos da minha casa, no meu bairro, ao passarmos por uma encruzilhada, com um respeitável despacho, vasto, abastado, repleto de guloseimas, bebidas, pipocas, galinhas e tudo mais, um amigo da banda, o Tantã, sem nenhum temor, passou a mão numa garrafa de cachaça e tascou uma bela golada. O Pereba, não se fazendo de rogado, não hesitou e também caiu dentro da cachaça da macumba. Entre risos, zoeira e muita imaginação, fantasiando que as galinhas do despacho levantariam e nos perseguiriam reivindicando a oferenda roubada, seguimos dali para o local do show, no episódio que ficou conhecido entre nós como a "Cachaça Poltergeist".
Então, não é de se duvidar que, por trás de toda aquela noite mágica, mística, da própria cachaça que eu tomei no bar, estivessem agindo forças sobrenaturais, espíritos, entidades, orixás, que fizeram com que, no fim das contas, nos saíssemos bem dentro das nossas possibilidades e que tudo desse certo no lendário primeiro show da Hímen Elástico. 



Hímen Elástico - "Fita p/ Não Comprometer"



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Racionais MC’s – “Sobrevivendo no Inferno” (1997)




“Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça.” 
Salmo 23, capítulo 3


“Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano aqui desandar/ E nem sentar o dedo em nenhum pilantra/ Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei.” 
– Da letra de “Capítulo 4, versículo 3”


Era Réveillon de 1997. Após muitas cervejas, samba, risadas e conversas altas no volume típico da minha família, pouco depois da virada do ano, nas primeiras horas de 1998, meu primo-irmão Leandro “Lê” Reis Freitas me chama para dentro da casa ao lado da garagem onde todos se reuniam. Fugíamos um pouco da algazarra, pois Lê queria me mostrar algo para se ouvir com atenção. Olhando-me com convicção e euforia, ele me disse: “Dã, tu tem que ouvir isso!”. Era um disco. Um disco de rap chamado “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC’s, que completa 20 anos em 2017.

Sabia que ele curtia bastante rap, então não estranhava que quisesse me apresentar algum artista. Geralmente, não me animava tanto, admito, haja vista que o rap nacional sempre me parecia ficar bastante a dever ao dos Estados Unidos e principalmente ao Public Enemy, meus preferidos do estilo até hoje. Mas aquilo que Lê me mostrava era, definitivamente, diferente. O início salta com um “Ogunhê!”, a saudação ao orixá Ogum do Candomblé. Imediatamente, começa um rap arrastado feito sobre a base de “Ike’s Rap 2”, de Isaac Hayes – o mesmo sample usado em “Glory Box”, do Portishead, e “Hell Is Round the Corner”, do Tricky. Era uma versão originalíssima de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben. Agradou-me bastante, mas Lê me alertou: “Essa é legal, mas o melhor vem a partir de agora”.

Sim, o melhor vinha em seguida. Após um prólogo interessantíssimo, muito bem escrito e revelador (a vinheta “Gênesis”), a faixa seguinte trazia em sua letra o mais pungente e expressivo manifesto escrito no Brasil depois do Antropofágico, do Concretista e do Tropicalista. E mais: sem ter a intenção de ser um manifesto propriamente dito, o que aumenta ainda mais sua força. Ali, falava-se de algo que estava grudado na garganta há muito tempo, bem dizer, desde que os escravos vieram para o Brasil, séculos atrás. Desde que, alforriados, os negros permaneceram na miséria por descaso do estado. Num trecho, a letra diz: “Minha intenção é ruim/ Esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim/ Um, dois pra atirar/ Eu sou bem pior do que você tá vendo/ O preto aqui não tem dó/ É 100% veneno/ A primeira faz ‘bum’, a segunda faz ‘tá’/ Eu tenho uma missão e não vou parar”. Era “Capítulo 4, Versículo 3”, a brilhante canção que mostrava, com todas as letras, que os Racionais, formado pelos mc’s Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e o DJ KL Jay, realmente tinham uma missão. E que não iriam parar.

Enquanto a noite seguia animada lá fora, Lê e eu ouvíamos de cabo a rabo o longo 5º disco dos Racionais, o ápice da maturidade dos rapazes da Zona Sul paulista e o melhor disco de rap brasileiro de todos os tempos, 14º colocado na lista da revista Rolling Stone dos 100 melhores álbuns da história da música brasileira. Tínhamos a noção de que estávamos diante de algo diferenciado e revolucionário. Além da qualidade técnica nunca antes atingida no rap no Brasil, com samples bem escolhidos e elaborados, densidade sonora e produção impecável do próprio KL Jay, “Sobrevivendo...” era um grito até então ensurdecido. O grito da periferia – em sua grande parte, negra. Um grito de revolta e ressentimento pelo apartheid social brasileiro; um grito agressivo contra a desigualdade de classes; um grito de protesto contra a repressão da polícia e do estado. Mas tudo traduzido em poesia, musicalidade, criatividade. “Sobrevivendo...” propunha uma revolução ideológica.

Os anos 90, primeira década da democracia no Brasil, traziam nas rádios o samba “embranquecido” do pagode e o conveniente “rap de classe média” de Gabriel O Pensador. Ou seja: os pretos mesmo não estavam representados. Precisou que o rap levantasse a bandeira, e os Racionais MC’s cumpriram essa função abrindo definitivamente um novo paradigma para a música brasileira em temas como “Diário de um Detento”, “Mágico de Oz”, “Fórmula Mágica da Paz” e a já mencionada “Capítulo 4...”. Nelas fala-se abertamente sobre o racismo e a miséria na periferia de São Paulo, marcada pela violência e pelo crime, numa representação muito maior do que somente aquilo: era um retrato da sociedade brasileira.

Outra das melhores do disco e da banda, "Tô Ouvindo Alguém me Chamar" disseca a vida de um assaltante, homem pobre que, ao contrário do irmão advogado, escolheu o caminho do crime. A narrativa de Brown é brilhantemente contada em fluxo de consciência a partir do momento da morte do protagonista, engendrando uma sucessão de flashbacks que vão construindo a história. A batida (tirada de Charisma", de Tom Browne) ganha sons de pulso cardíaco, que dialoga metalinguisticamente com o tema. A dramaticidade da saga do marginal é uma aula de escrita. Afundado nas drogas e na criminalidade, ele é morto com a mesma arma que um dia havia presenteado seu parceiro de delinquência (o Guina, único personagem que o nome mencionado). A recorrente referência ao irmão, cuja figura se confunde com a do parceiro, com a do pai e do sobrinho, é tocante, como nesta passagem, quando o criminoso, agonizando, percebe que já está na berlinda: “Meu irmão merece ser feliz/ Deve estar a essa altura/ Bem perto de fazer a formatura/ Acho que é direito, advocacia/ Acho que era isso que ele queria/ Sinceramente eu me sinto feliz/ Graças a Deus, não fez o que eu fiz/ Minha finada mãe, proteja o seu menino/ O diabo agora guia o meu destino”.

De fato, muito dos Racionais se deve à cabeça privilegiada de Mano Brown. Ele é o rapper que superou o discurso rebelado mas geralmente pouco articulado do hip hop brasileiro, abrindo caminho para gente como Emicida e Criolo. Brown é, sem medo de errar, um dos maiores escritores brasileiros da atualidade – léguas à frente de nomes celebrados da literatura como Paulo Coelho, Fabrício Carpinejar ou Martha Medeiros. Para se ter ideia, segundo pesquisa da revista Billboard Brasil do ano passado, ele figura entre os 50 artistas mais completos do país. Suas letras trazem uma improvável e incomparável mistura de consciência social e racial e ativismo político com pitadas de religiosidade católica, evanvélica e afro misturadas ao melhor português, seja o culto ou o vulgar. Tudo como muita contundência e até agressividade. “Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”, diz um de seus versos.

Essa força expressiva está no maior clássico do disco, canção de muito sucesso à época: “Diário de um Detento”. Quase uma versão musical do livro “Estação Carandiru”, de Dráuzio Varella, a música de Brown, realista e crítica, amarra a narrativa de depoimentos do ex-presidiário Jocenir. Sobre o sample de “Easin' In”, de Edwin Starr, é uma carta que perpassa o dia anterior ao massacre do Carandiru (2 de outubro de 1992) até o dia seguinte à tragédia, 3. A abertura é inesquecível: “São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8 horas da manhã/ Aqui estou, mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar/ Com a cabeça na mira de uma HK/ Metralhadora alemã/ Ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem papel”. Uma “rima preciosa” – tipo que uniformiza palavras de idiomas distintos –, vem logo na sequência: “Na muralha, em pé, mais um cidadão José/ Servindo o Estado, um PM bom/ Passa fome, metido a Charles Bronson.  Outros trechos, cujas sentenças são verdadeiros petardos, impressionam igualmente: “Sua cara fica branca desse lado do muro” ou “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral um dia/ No Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia” ou ainda “O ser humano é descartável no Brasil/ Como Modess usado ou Bombril.”

A onomatopeia “Ratátátá”, repetida algumas vezes e que vai se avolumando no decorrer da letra, ao mesmo tempo dá a ideia do trem que passa em frente ao presídio, elemento que simboliza a tortuosa passagem do tempo na prisão, quanto o som de tiros, como um prenúncio da chacina. Ali, naquela realidade, o destino inevitável é a morte. Vendo nos noticiários as rebeliões e acontecimentos violentos ocorridos em vários presídios brasileiros nos últimos tempos, “Diário...” parece lamentavelmente atual.

Se Brown apavora com canções como esta, Edi Rock, entretanto, não fica muito para trás. Mais fraco em termos letrísticos, ele ganha na criatividade das melodias e na voz potente. “Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar)” é um caso: baseada num tema de Curtis Mayfield, sampleia uma série de outros rap’s brasileiros, como os pioneiros Thaíde e DJ Hum, Sistema Negro e MRN. Já “Rapaz Comum” tem uma pegada mais gangsta ao samplear Dr. Dre e Snoop Dogg, retrazendo o mote de “Tô Ouvindo...” ao relatar, na 1ª pessoa, os momentos de agonia de “um preto a mais no cemitério”. É dele também o ótimo instrumental e "Qual Mentira Vou Acreditar?", parceria com Brown e a faixa mais light do repertório. A letra conta as funções de festas e pegações, mas nem por isso deixa de tocar no tema do racismo, como nesta engraçada passagem em que Ice Blue relata a Edi um episódio em que levava uma “mina” no carro. “Eu ouvindo James Brown, pá.../ Cheio de pose/ Ela perguntou se eu tenho, o quê? Guns N' Roses?/ Lógico que não!/ A mina quase histérica/ Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica/ Como é que ela falou?/ Só se liga nessa/ Que mina cabulosa/ Olha só que conversa/ Que tinha bronca de neguinho de salão, (não)/ Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não)/ Aí não mano! Foi por pouco/ Eu já tava pensando em capotar no soco”.

“Mágico de Oz”, outra de Edi (“Queria que Deus ouvisse a minha voz/ E transformasse aqui no mundo Mágico de Oz”), é mais um sucesso de “Sobrevivendo...”. Evidencia o mundo desamparado da mendicância infantil e a falta de esperança e horizonte de quem nasce na pobreza. Por falar em “magia”, Mano Brown manda a última joia do disco: “Fórmula Mágica da Paz”. Espécie de autobiografia, canta a reflexão do próprio autor quando se deparou com a fronteira entre o crime ou o “caminho do bem”. Com um fluxo narrativo impressionante, Brown relembra: “Não tava nem aí, nem levava nada a sério/ Admirava os ladrão e os malandro mais velho/ Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga/ O que melhorou? Da função, quem sobrou?/ Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá/ Qual a próxima mãe que vai chorar?”. Momentos trágicos, como o de um “rapaz comum” da comunidade que morre baleado, o fazem pensar: “Na parede o sinal da cruz/ Que porra é essa? Que mundo é esse?/ Onde tá Jesus?/ Mais uma vez um emissário/ Não incluiu Capão Redondo em seu itinerário/ Porra, eu tô confuso/ Preciso pensar/ Me dá um tempo pra eu raciocinar/ Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha Ideologia enfraqueceu/ Preto, branco, polícia, ladrão ou eu”. Os questionamentos, entretanto, logo dão lugar à consciência: “Agradeço a Deus e aos Orixás/ Parei no meio do caminho e olhei pra trás/ Meus outros manos todos foram longe de mais/ ‘Cemitério São Luis, aqui jaz’.”

“Salve” repete a base de “Jorge...”, finalizando o disco de rap mais vendido da história mesmo que por um selo independente, Cosa Nostra, ou seja, sem a estrutura de uma grande gravadora por trás. Oficialmente, foram 1,5 milhão de cópias comercializadas, porém, não se contabilizam aí os outros milhões de cópias ilegais, uma vez que se estava no auge da pirataria de CD’s no Brasil à época – nós mesmos, Lê e eu, ouvíamos um pirateado naquela fatídica noite de 1º de janeiro.

Mesmo que criticável pelo discurso de “vingança racial”, pela apologia ao ódio ou até da visão machista e homofóbica por vezes, é inegável a importância do papel que cabe aos Racionais MC’s na cultura pop brasileira nesses últimos 20 anos desde que “Sobrevivendo...” foi lançado. Afinal, uma voz calada por tanto tempo e das maneiras mais cruéis que o ser humano é capaz, caso do povo africano e seus descendentes diretos, quando posta para fora, só pode vir carregada de coisas boas e ruins. A causa dos direitos humanos é mais valiosa do que qualquer coisa quando a mesma é subvertida. A única solução é a reação. Confesso que, naquela primeira audição, o discurso maniqueísta me chocara. Mas quem sou eu, um “mano” cuja história de vida sempre teve boas condições sociais (ou seja: protegido de uma série de constrangimentos e humilhações), para julgar? Neste sentido, o rap brasileiro dos anos 90, capitaneado pelos eles, alinhou-se ao que o samba do morro representou ao longo do século XX: a resistência. Se o samba agoniza mas não morre, o rap sobrevive e mata. E se hoje se fala tanto e com propriedade de “empoderamento” das minorias e “orgulho negro”, a tal missão que os Racionais se impuseram, violentamente pacífica, foi cumprida com êxito.

Racionais MC's - "Diário de um Detento"


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FAIXAS
1. Jorge da Capadócia (Jorge Ben)
2. Gênesis (Mano Brown)
3. Capítulo 4, Versículo 3 (Brown)
4. Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (Brown)
5. Rapaz Comum (Edi Rock)
6. Instrumental (Rock)
7. Diário de Um Detento (Brown/ Jocenir)
8. Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar) (Rock)
9. Qual Mentira Vou Acreditar (Brown/Rock)
10. Mágico de Oz (Rock)
11. Formula Mágica da Paz (Brown)
12. Salve (Brown)

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OUÇA O DISCO
Racionais MC's - Sobrevivendo no Inferno


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

cotidianas #181





Os vários Ajudantes-de-Papai-Noel
Estão em extinção
Por isso os Simpsons estão fazendo uma campanha
para salvar os Dinossauros do horário nobre da Globo
e as lindas pernas de Maria Tomé não continuam as mesmas
apesar do estupro anal
combinado com figurinistas da Playboy
- ejaculação precoce –
de conseguir orgasmos microvisuais
e Marieta ainda não fazendo
incestos em cestos com seu sexto pai
Por isso à Virgem Maria
É tudo pequenino
Veio a renascer e escolher como irmãozinho
Desde o início de minha carreira estudantil
Pé-de-Vento, Tonto, Macaco e Max Calon
Viriam a renascer.
Porque...
Você saca?

Dois mais dois ainda são dez.




de Leandro Reis Freitas