Tem compromissos que são muito mais do que isso: são momentos de prazer. Imagina, então, eu, cinéfilo e apreciador de uma boa mesa, sentar pra bater um papo com amigos por quase 2 horas sobre o filme que eu mais gosto ever?! Os desejos se realizam, e foi isso que a galera do canal Cinema de Peso, comandada por meus colegas de Accirs Criba Aquino, Lauro Arreguy e Chico Izidro, me proporcionarem.
A saborosa e descontraída conversa, regada ao ótimo chop da Cervejaria Pohlmann, que nos recebeu, mais uns petiscos e uma deliciosa pizza da casa, teve como tema central o cult"Bagdad Café", do cineasta alemão Percy Adlon, meu filme preferido desde que o assisti pela primeira vez, em 1988, um ano depois de seu lançamento mundial. Como Criba bem observou, conseguimos destrinchar a obra, admirada por todos nós: direção, fotografia, trilha sonora, atuações, temática, motivações. E ainda ganhei uns mimos superlegais da galera.
Eu com os meninos: Chico, Criba e Lauro da esq. para a dir.
Uma coincidência melancólica motivou ainda mais o debate sobre "Bagdad Café" (ou "Out of Rosenheim", título alternativo dado em referência ao megasucessso da mesma época "Out of India", "Passagem para a Índia", de David Lean). Duas semanas antes da gravação - e após já ter escolhido este título para o episódio - Percy Adlon morreu. Claro que, desta forma, o encontro se tornou também uma homenagem a ele, autor de outros poucos mas belos filmes, como "Estação Doçura" e "Um Amor Diferente". Embora menos gabaritado que outros cineastas alemães (Wenders, Lang, Fassbinder, Murnau, Herzog), Adlon foi muito assertivo e dono de um belo estilo cinematográfico, que muitas vezes remete a estes conterrâneos.
Pessoalmente, o convite para participar do videocast me fez refletir sobre o porquê da prevalência justo deste pequeno conto filmado há tanto tempo em minha vida de cinefilia. O que justifica o amor a este filme mesmo tendo eu visto, conhecido e me apaixonado por tantos outros filmes ao longo destes quase 35 anos? Abismei-me com "Fahrenheit 451", "A Paixão de Joana D'Arc", "O Ano Passado em Marienbad", "A Marca da Maldade", "A Última Gargalhada", "Cabra Marcado para Morrer", "Parasita", "Sindicato de Ladrões". Pra citar apenas alguns dos que tive contato depois de "Bagdad Café", e nenhum o supera pra mim. A resposta é que não há uma explicação racional, pensada. "Bagdad Café" é aquele filme que me arrebata por todas as suas características juntas. Simples.
Mas o bate-papo foi muito mais do que isso que descrevo - ou mesmo diferente. Por isso, vale a pena assistirem. O Cinema de Peso e o filme, claro.
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Os presentinhos do Cinema de Peso, a começar por essas lindas impressões dos cartazes originais
Uma das missões de minha profissão, a de jornalista, é a de, a partir de
meu filtro capacitado e abalizado, informar as pessoas daquilo que não lhes está
evidente, ajudando-as a se elucidar e formar opinião. Quando se trata de
assuntos envolvendo cultura e arte, não é diferente. Levar-lhes o “não óbvio”,
aquilo que não conhecem, pois o que já conhecem não precisa, certo? Não exatamente.
Há tanta confusão de informação no ar (e nas redes) que o “óbvio”, por
desconhecimento ou falta de critério, mistura-se com o irrelevante ou passa até
a ser relegado. Os melhores filmes franceses de todos os tempos, por exemplo: numa
recente lista, vi apontados títulos queridinhos como “O Fabuloso Destino de
Amélie Poulin” e “Intocáveis” como sendo indispensáveis, enquanto que não
figuraram nada de Jean Vigo ou Michel Carné. Ora, convenhamos! E olha que
não estou nem falando de obras de cineastas menos conhecidos, mas igualmente merecedores,
como Sacha Guitry ou Julien Duvivier – mas aí, seria exigir demais.
O cinema francês é um dos mais ricos e referenciais da cinematografia
mundial, desde os irmãos Lumière até as escolas e movimentos que este promoveu
ao longo do tempo, como o Realismo Poético, o Cinema Vérité e a revolucionária Nouvelle
Vague. Nada contra os bons “Intocáveis” ou “Amélie Poulin” – este último, aliás,
se tivesse que escolher um de Jeunet, preferiria “Delicatessen” ou “Ladrão de
Sonhos”. Porém, basta conhecer um pouco da história do cinema do país de Victor
Hugo para enxergar o rico e numeroso universo de produções relevantes para além
desses sucessos recentes. O pioneirismo, as inovações estilísticas, as contribuições
técnicas e teóricas se deram em vários momentos da história da sétima arte.
Definitivamente, o cinema francês não deve ser reduzido a uma amostra que nem
de longe reproduza seu tamanho e importância.
Por conta disso, elaborei uma lista de 20 títulos realmente essenciais
para se compreender e admirar o cinema francês. Óbvios para mim, mas a quem não
conhece ou se enreda em avaliações mal ajuizadas, talvez não. Afora a
criteriosa tarefa de selecionar os mais relevantes entre tantos títulos ótimos,
elencá-los foi delicioso. Estão aqui mencionados, sem ordem de preferência,
clássicos que determinaram épocas, obras-primas consagradas do cinema mundial e
filmes que cumpriram papéis além do próprio cinema: tornaram-se ícones da arte
e da cultura do século XX, como “Acossado”, “A Regra do Jogo” ou “A Nós a
Liberdade. A ideia foi a de constar um de cada grande realizador, embora alguns
(Truffaut e Resnais, por exemplo) inevitavelmente haja mais tendo em vista a indispensabilidade
das realizações citadas. Também, dentro da lógica de informar a partir de meu
filtro pessoal, se perceberão toques de meu entendimento próprio. De Carné,
optei por incluir “Os Visitantes da Noite” e não o consagrado “O Boulevard do
Crime”; De Buñuel, “O Discreto Charme da Burguesia” a “Bela da Tarde”; De Godard,
“Je Vous Salue, Marie” a algum dos cult-movies
dos anos 60, como “Pierre Le Fou” ou “Alphaville”. Crítica pessoal pura, mas
que em nada prejudica a representatividade da seleção como um todo.
Claro, ficou de fora uma enormidade de coisas, como “Lacombe Lucien”,
de Malle, “Orfeu Negro”, de Camus, “Eu, um Negro”, de Rouch, “A Bele e a Fera”,
de Cocteau, ou “Napoleon”, de Gance. Privilegiou-se os essencialmente
franceses, por isso não aparecem co-produções como “O Último Tango em Paris” ou
“A Comilança”. Também não entraram nada de Maurice Pialat, Eric Rohmer,
Costa-Gavras, Jacques Demy, Jacques Rivette... Paciência. Além da impossível
unanimidade de listas, uma como esta, que represente algo tão relevante e robusto,
incorreria em incompletude. Uma coisa é certa: não perdemos tempo com
irrelevâncias. Ah, isso não. Voilà!
- “Viagem à Lua”, de Georges Méliès (“Le Voyage dans la lune”, 1902)
- “A Nós a Liberdade”, de René Clair (“À Nous la Liberté”, 1931)
- “Zero de Conduta”, de Jean Vigo (“Zéro de conduite”, 1933)
Poster original de
"Zero de Conduta"
- “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir (“La Regle Du Jeu”, 1939)
- “Os Visitantes da Noite”, de Michael Carné (“Les Visiteurs du Soir“,
1942)
- “Orfeu”, de Jean Cocteau (“Orphée”, 1950)
A visão de Cocteau para a
saga de Orfeu
- “As Diabólicas” (“Les Diaboliques”), de Henri-Georges Cluzot (1955)
- “Meu Tio”, Jacques Tati (“Mon Oncle”, 1958)
- “Os Incompreendidos”, de François Truffaut (“Les 400 Coups”, 1959)
Cena do revolucionário
"Os Incompreendidos"
- “Os Primos”, de Claude Chabrol (“Les Cousins”, 1959)
- “Hiroshima, Moun Amour”, de Alain Resnais (1959)
- “Acossado”, de Jean-Luc Godard (“À bout de souffle”, 1960)
- “O Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais (“L'Année dernière à
Marienbad”, 1961)
- ‘Jules et Jim”, de François Truffaut (1962)
- “Cleo das 5 às 7”, de Agnès Varda (“Cléo de 5 à 7”, 1962)
- “La Jetée”, de Chris
Marker (1962)
As impressionantes foos de Marker
que compõe a narrativa de "La Jetée"
- “Trinta Anos Esta Noite”, de Louis Malle (“Le feu follet”, 1963)
- “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis Buñuel (“Le charme discret
de la bourgeoisie”, 1972)
- “Je Vous Salue, Marie”, de Jean Luc Godard (1985)
"Je Vous Salue, Marie", a produção
mais recente da lista
junto com Betty Blue
- “Betty Blue”, de
Jean-Jacques Beineix (“37° le Matin”, 1986)
Será que só eu não gostei do “Cópia
Fiel” do iraniano Abbas Kiarostami?
Não, não é querer ser do contra, estar na contramão das
opiniões, ser polêmico, mas volta e meio me deparo com umas ‘unanimidades’ que,
assim, ó... vou te falar: acho que o pessoal aplaude por decreto. Porque é do fulaninho, porque é cult, porque é referência.
, fiz montes assim para o
elogiadissimo "A Rede Social", bati de frente com os defensores do
badaladíssimo "O Cisne Negro", isso só para falar de alguns, sendo que, em
especial no caso destes três, Tarantino e Fincher são dos meus diretores
preferidos dos últimos tempos. Ou seja, não trata-se de implicância, de
preconceito, ignorância (acho que não). Só não tem babação para diretores que, temos que admitir, por mais valorosos e
competentes que sejam também erram a mão.E não é que sou obrigado a avacalhar outro dos meus
favoritos? Mesmo sendo diretor de algumas das melhores obras dos últimos 20
anos como “Gosto de Cereja” e “Vida e Nada Mais”, não posso me furtar a
criticar o último filme de Abbas Kiarostami, que só tive a oportunidade de assistir
agora, ‘Cópia Fiel”, sua primeira produção fora de seu país de origem. E olha que fui com grande expectativa.
Lamento, Abbas, lamento. Sei que isso não fará nenhuma
diferença na sua vida, ainda mais considerando que crítica e público continuam
a seu lado incondicionalmente, ao que parece independentemente do que faça, mas
eu não quero ficar indiferente.
“Cópia Fiel” parte de um princípio interessantíssimo
enquanto argumento: de que uma cópia pode ter tanto valor quanto um original.
OK! Esse é o tema do livro do personagem James Miller que começa o filme
defendendo a idéia diante de uma pequena platéia no lançamento do livro
homônimo ao filme numa cidadezinha interiorana na Toscana. O desenvolvimento do
conceito é bem sustentado em princípio pelo personagem do escritor porém mal
conduzido numa discussão extremamente forçada e estereotipada, sobretudo no que
diz respeito à personagem de Juliete Binoche, uma comerciante de antiquário. A
conversa no carro embora notavelmente bem ambientada, com o reflexo da paisagem
no vidro do carro ‘participando’ da ação, por exemplo, parece um esforço do
diretor em nos apresentar dois lados sobre o assunto, porém sem paciência de
que cheguemos às conclusões sobre os dois interlocutores. Por um lado está o
escritor defendendo suas teorias, com simplicidade e sinceridade, é verdade,
mas sendo excessivamente didático às vezes; e por outro uma mulher confusa,
cética, infeliz. O papo tem algumas tiradas boas, perspicazes, engraçadas até,
como a piada da Coca-Cola, mas mostra-se no fim das contas um grande exercício
de apresentação de personalidades ao melhor estilo cinema francês, recheado de
análises filosóficas pretensiosas.
Essa caracterização excessiva não seria o suficiente para
derrubar o filme se não fosse a virada que ele dá a partir do momento em que o
casal passa a encenar uma antiga relação marido e mulher, que em determinado
momento chega a causar dúvida no expectador quanto à sua pré-existência ou não,
mas que, com a devida atenção a alguns fatos anteriores do próprio filme,
percebemos que nunca existiu. Pois é... o tal do faz-de-conta é inverossímil, é
abrupto, é ‘grande’ demais no próprio contexto, ultrapassa o limite da própria
tolerância humana de aceitar se desgastar em nome de um personagem, de defender
um conceito, de abrir a mente, etc., ainda mais diante de um estranho. É certo
que o envolvimento que começa a aparecer entre os dois estimula a farsa. Sim, é
verdade, mas em havendo um interesse mútuo como foi acontecendo, tamanha
exposição pessoal não justificariam as alterações de humor, o exercício de
infelicidade, fraquezas e tantas outras fragilidades.
Devem pensar, “mas o
cara ta pensando na trama de uma maneira muito rígida, muito linear, muito
real“. É porque o universo ao qual somos levados pelo diretor é real. Ele e
não tem nada de surreal, de fantástico, e no entanto, de repente, nos propõe a
tal ponto abandonarmos a plausibilidade do seu filme e entregar-mo-nos à mesma
ficção de seus personagens, fixando-nos apenas à frieza dos fatos, estes sim,
inegavelmente crus e fortes.
Não! Posso estar sendo muito fechado, pragmático, realista
mas não me caiu bem definitivamente o modelo de cinema adotado por Kiarostami
desta vez. Pode ter acertado na locação, nos personagens, na idéia, no tema,
mas na minha visão peca no produto final.
A seu favor, contudo, tenho a sinalizar a integração
ambiente-personagens, sempre precisa, desde um porão de antiquário cheio de cópias
de objetos de arte, passando por uma colunata de ciprestes, por becos
estreitos, e chegando a um quarto de hotel, tudo dialogando de alguma forma com
as naturezas pessoais ou com estados psicológicos correspondentes à cena ou à
situação. Também o tema, sobre os relacionamentos, o casamento, as escolhas,
que salvo o fato de propostos equivocadamente dentro do objeto filme,
mostram-se na maior parte das vezes pertinentes e bem colocados. Não se pode
deixar de elogiar a atuação de Juliette Binoche que com uma ótima interpretação
supera até mesmo a primeira parte do próprio texto que faz questão de lhe
autocarimbar na testa as alcunhas de ‘chata’, ‘estressada’, ‘intolerante’,
‘ciumenta’.
Li por aí que é obra-prima, melhor filme do diretor, melhor
dos últimos tempos... Posso estar errado, nada invalida isso, mas sinceramente
não compartilho dessas opiniões.
Kiarostami parece ter ocidentalizado rápido demais e seu
filme tem muito de cinema francês logo na primeira incursão internacional do
diretor. Chega a lembrar um pouco os Resnais, “Hiroshima, Meu Amor” com suas
discussões e reminiscências e “Ano Passado em Marienbad” com seu desencontro
amoroso de toques surreais, ambos com longas caminhadas acompanhadas de longas
conversas existencialistas. Talvez tenha servido de inspiração. Talvez a
intenção tenha sido mesmo copiar Resnais, copiar o cinema francês, o que só
reforçaria o conceito do livro do personagem Miller e do próprio filme. Se fez
parte da intenção do diretor, a meu juízo, terá sido o principal ponto a favor
do seu filme, ainda que não possa-se usar a máxima defendida por ele neste caso
de que a cópia supera o original.