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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

terça-feira, 1 de abril de 2014

cotidianas #282 - "O Delírio"



O DELÍRIO


"Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.(...)
Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.
— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma simples pluma. Só então, pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
— Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?
— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.(...)
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, de um riso descompassado e idiota.
— Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, talvez monótona, mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me(...)"


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Machado de Assis
"Memórias Póstumas de Brás Cubas"
(capítulo VII)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Debate filme "Bagdad Café", de Percy Adlon - Canal Cinema de Peso


Tem compromissos que são muito mais do que isso: são momentos de prazer. Imagina, então, eu, cinéfilo e apreciador de uma boa mesa, sentar pra bater um papo com amigos por quase 2 horas sobre o filme que eu mais gosto ever?! Os desejos se realizam, e foi isso que a galera do canal Cinema de Peso, comandada por meus colegas de Accirs Criba Aquino, Lauro Arreguy e Chico Izidro, me proporcionarem.

A saborosa e descontraída conversa, regada ao ótimo chop da Cervejaria Pohlmann, que nos recebeu, mais uns petiscos e uma deliciosa pizza da casa, teve como tema central o cult "Bagdad Café", do cineasta alemão Percy Adlon, meu filme preferido desde que o assisti pela primeira vez, em 1988, um ano depois de seu lançamento mundial. Como Criba bem observou, conseguimos destrinchar a obra, admirada por todos nós: direção, fotografia, trilha sonora, atuações, temática, motivações. E ainda ganhei uns mimos superlegais da galera.

Eu com os meninos: Chico, Criba e Lauro da esq. para a dir.

Uma coincidência melancólica motivou ainda mais o debate sobre "Bagdad Café" (ou "Out of Rosenheim", título alternativo dado em referência ao megasucessso da mesma época "Out of India", "Passagem para a Índia", de David Lean). Duas semanas antes da gravação - e após já ter escolhido este título para o episódio - Percy Adlon morreu. Claro que, desta forma, o encontro se tornou também uma homenagem a ele, autor de outros poucos mas belos filmes, como "Estação Doçura" e "Um Amor Diferente". Embora menos gabaritado que outros cineastas alemães (Wenders, Lang, Fassbinder, Murnau, Herzog), Adlon foi muito assertivo e dono de um belo estilo cinematográfico, que muitas vezes remete a estes conterrâneos.

Pessoalmente, o convite para participar do videocast me fez refletir sobre o porquê da prevalência justo deste pequeno conto filmado há tanto tempo em minha vida de cinefilia. O que justifica o amor a este filme mesmo tendo eu visto, conhecido e me apaixonado por tantos outros filmes ao longo destes quase 35 anos? Abismei-me com "Fahrenheit 451", "A Paixão de Joana D'Arc", "O Ano Passado em Marienbad", "A Marca da Maldade", "A Última Gargalhada", "Cabra Marcado para Morrer", "Parasita", "Sindicato de Ladrões". Pra citar apenas alguns dos que tive contato depois de "Bagdad Café", e nenhum o supera pra mim. A resposta é que não há uma explicação racional, pensada. "Bagdad Café" é aquele filme que me arrebata por todas as suas características juntas. Simples.

Mas o bate-papo foi muito mais do que isso que descrevo - ou mesmo diferente. Por isso, vale a pena assistirem. O Cinema de Peso e o filme, claro.

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Os presentinhos do Cinema de Peso, a começar por essas
lindas impressões dos cartazes originais

...bolach'e'nha...

...adesivos...

...e a caneca!


E o episódio do vídeocast do Cinema de Peso


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

cotidianas #352 - Mesa de Verdade



Eles estavam bêbados. A língua enrolava-se antes das palavras terminarem. Os pontos finais confundiam-se com vírgulas, reticências e continuações. As palavras nunca tinham fim. Interrompiam-se forçadas, uma sob as outras, naquela ânsia de gente bêbada de falar sobre o mundo inteiro no espaço de um único pensamento.

-Então tá. – Disse André. O “tá” vibrou pela sua língua. – Sentem aqui e calem a boca. – O jovem estava apoiado em uma pequena mesa de vidro localizada no centro da sala de sua casa. – Essa é a mesa da verdade.

Clara e Ian se acomodaram cada um em um lado da mesa. Em uma espécie de simbiose, uma garrafa de vinho passava de mão em mão, boca em boca, girando as cabeças, entortando as mentes e tornando o mundo um borrão divertido.

"Mesa de Verdade" - RODRIGUES, Daniel
-Que mané mesa da verdade? – Perguntou Clara rindo. Seus cabelos ruivos e suas sardas delicadas ficavam embaçadas no torpor da bebedeira dos amigos.

-Sua mãe vai nos matar se vir a gente bêbados em cima da mesa de vidro dela. – Comentou Ian.

-Ela não tá. Foi jogar bingo ou qualquer uma dessas coisas que ela finge gostar de fazer. – André bateu na mesa com força. – E essa aqui não é a mesa dela. É a mesa da verdade.

Ian fez uma careta ao sentir o álcool atingir seu cérebro. Tudo girava:

-Explica essa tal mesa da verdade. – A palidez de sua pele contrastava com o preto intenso de seu cabelo.

-Agora que vocês estão nela, vocês só podem falar a verdade. – Explicou André.

-Minha vida é um livro aberto. – Comentou Clara.

-Não só a vida. – Retribui Ian.

André caiu na gargalhada:

-Vocês são uns idiotas.

Clara rebateu:

-Você não pode mentir nessa mesa, André.

-Ok. Eu reformulo: Vocês são muito, mas muito idiotas.

A gargalhada foi geral.

-Tá. Vamos começar sério, agora. – André tentava falar de um modo sóbrio e respeitador, mas seus olhos pareciam piscar desordenadamente e isso tirava qualquer seriedade possível da sua fala. – Clara, eu acho que o seu namorado é um idiota. Sua vez.

-André, meu namorado também te acha um idiota.- Ela rebateu com uma piscada meio torta.

-Filho de uma p… – Começou André, antes de ser interrompido por Ian.

-Minha vez. – Como se fosse uma grande surpresa, anunciou. – Eu sou gay.

-Acho que só sua mãe não sabe disso, Ian. Não vale. – Clara curvou-se em direção ao amigo. – Diga algo que a gente realmente não saiba.

-Ok… – Ian já não coordenava pensamentos e palavras de modo perfeito. Os primeiros surgiam e se transformavam em falas sem qualquer controle do menino. – Acho muito sexy quando o André tá saindo da academia.

-Okeeeeeeei. – Disse Clara olhando para um André risonho. – Acho que as coisas estão ficando boas por aqui. Sua vez, André!

André levantou a camisa mostrando um pré-tanquinho:

-Cara, eu sou sexy em qualquer lugar.

-Não pode mentir nessa mesa, André! – Disse Clara.

-Eu disse que você é sexy saindo da academia. – Comentou Ian ainda mais pálido do que o costume. – Mas tudo acaba na hora que você senta pra comer aquele sanduíche de frango com maionese escorrendo!

-HAHAHAHHAHAHAHHA. – Disparou Clara em meio a outro gole de vinho.

-Minha vez, então. – André arrancou a garrafa da mão dela. – Acho sexy quando a Clara veste aquela camisa decotada preta.

-Momento das revelações. – Gritou Ian. – Até eu acharia sexy se eu gostasse de peitos.

-Vocês são uns lindos! – Devolveu Clara fazendo um coração com as mãos.

-Para de nos elogiar e fale a sua verdade! – Berrou André.

-Ok. Eu acho muito sexy quando você usa roupa social. – Disse a menina e, para a surpresa de todos, ela falava com Ian.

-Eu sei, eu sou. – Disse o jovem piscando para a garota. Reparou que a última garrafa de vinho tinha finalmente acabado. – Minha mãe acha que eu deveria namorar você.

-Eu seria uma ótima namorada. – Comentou Clara se deitando no chão e olhando o teto branco e sem vida. A garrafa vazia rolou pelo chão da sala.

André caiu na gargalhada ao ouvir a menina.

-O que foi? – Perguntou ela virando a cabeça na direção dele.

-Nada… Desculpa. Mas é que você não é um exemplo de menina e muito menos de namorada.

-Oh-oh. – Gemeu Ian, escondendo o rosto no meio dos braços cruzados apoiados na mesa.

-Você é meio impulsiva, Clara. – Continuou André. – Não dá pra saber o que você tá pensando de verdade.

-E isso só é problema pra pessoas tipo você, André. – Respondeu ela.

-Tipo, eu?

-É. Que precisam controlar tudo… Que precisam planejar tudo como se estivessem na porra de uma corrida pra ver quem vai ser o vencedor.

-Isso é verdade. – Manifestou-se Ian.

-Do que vocês estão falando?

-Você precisa sempre ganhar. Tirar as notas mais altas, ser o mais popular, ser o mais responsável… – Ian bocejou de forma brincalhona. – Chaaaaaato.

André não levou tão na brincadeira assim:

-Chato é você e suas crises existências.

-Não espero que alguém como você entenda minhas crises. – Ian sequer olhou para o amigo.

-Como eu?! – André encarou Ian de forma raivosa.

-É. Filhinho de papai que tem medo de fugir de qualquer padrão. Você é um roteiro, saca? Tá sempre dentro de um roteirinho, tentando agradar todo mundo… Você não tem cérebro, tem papel com falas pré-definidas na cabeça.

André levantou-se e, cambaleante, caiu sentando no sofá. O dedo de sua mão apontava para Ian:

-Melhor do que me fazer de vítima como você vive fazendo. – E começou a imitar a voz de Ian de um modo zombeteiro. – “Porque minha mãe não me aceita, porque o mundo está contra mim, porque eu não posso ser quem eu sou, porque sou diferente de todo mundo, porque ninguém entende que sou especial…”. – Respirou fundo e continuou. – Cara, você só sente tesão em alguém do mesmo sexo que o seu. Ponto final! – Mas ele não tinha terminado. Apontou agora para Clara. – E você, senhorita rebelde, em cada coisa que você faz ouço um grito “não me olhem, não me olhem!” tão alto só pra todo mundo olhar pra você. Quem vive em um roteiro são vocês, não eu.

-Vai se ferrar. – Clara arrotou e junto emitiu uma cara de nojo. Ninguém entendeu se era para André ou para o próprio arroto. – Você que não tem coragem de sair do padrão que essa porcaria de sociedade impôs. Você não faz nada porque você quer. Joga vôlei porque seu pai pediu. Vai fazer intercâmbio porque sua mãe quer. Quando é que o senhor bundão vai parar de fazer o que os outros querem e fazer o que gosta de verdade? Tudo bem que eu e o Ian fazemos coisas erradas e egoístas, mas fazemos isso porque a gente quer! Você nunca faz nada porque quer. É preciso ser muito homem para ser diferente. Ian é mais macho que você.

-Acho que esse papo acaba por aqui. Vocês são as eternas vítimas da sociedade. – Respondeu André.

Ian levantou-se e falou de forma baixa, mas profundamente irritada para o amigo.

-Sabe o que falta no mundo, André? Capacidade de se botar no lugar dos outros. Você sabe quantas vezes eu beijei um cara na rua, ou demonstrei carinho por um, ou só dei a mão… porque eu queria? Nenhuma. Sabe quantas vezes eu pude fazer o que eu quisesse sem as pessoas ficarem julgando a minha vida como se fosse delas? Nenhuma. Casar, beijar, me pronunciar, ir a igreja, rezar, cantar, me vestir como eu quero… Sabe quantas vezes pude fazer essas coisas sem alguém me dizer que eu estou impondo minha presença e que e eu devo apenas me contentar em fazer tudo isso em casa? Nenhuma. – Ian falava baixo, mas articulava as palavras com uma força tremenda. Respirando ofegante, voltou a sentar-se no chão, apoiado na mesa da verdade.

-Não tô dizendo que as coisas são fáceis pra vocês, tá legal? – André foi até a janela da sala e começou a olhar a rua. Falava mais para si do que para os outros. – Só que não gosto quando vocês desmerecem os meus problemas. – Finalmente voltou a olhar para os amigos. – Minha mãe passou muita merda nessa vida e eu só quero que ela tenha orgulho de mim. O que vocês pensam, caras? Que é fácil? Vocês acham que eu não gostaria de fazer o que eu quisesse, na hora que eu quisesse e dizer foda-se pra sociedade?! Eu queria! Mas minha forma de vencer o mundo é, sei lá, meio que me tornar bom em tudo que o mundo quer! Vocês acham que eu não queria berrar que eu não tenho culpa do meu pai ter sido o canalha que ele foi e que não é justo eu ter que evitar problemas porque minha mãe já sofreu demais na vida? É muito fácil não se importar com os outros, difícil mesmo é se importar com todo mundo.

Um barulho de algo quebrando atingiu feito rasgo o silêncio pós-fala de André. Clara tinha tropeçado e derrubado o vaso de uma mesinha lateral da sala. – Que merda de coisas quebráveis que ficam perto de mim! Caralho! Porra!

Os meninos olharam pra ela sem falar nada.

-O que é? Não posso usar palavões, agora?

-Minha mãe vai me matar. – Comentou André voltando a olhar a rua.

-Foda-se ela! – Resmungou Clara voltando a se sentar no sofá.

-Você precisa falar tantos palavrões, assim? – Questionou Ian, irritado.

-Que que tem?

-As palavras tem um grande poder, Clara.

-Não seja exagerado. – Pediu ela.

-Já te disseram “tenho nojo de você?”. Acho que não. Dói mais que um soco.

Clara se irritou:

-Já te disseram, Ian, coisas do tipo: meninas não devem falar palavrão, não podem beijar mais de um cara por noite e não podem se sapatão? – E começou a falar de um modo mandão, imitando alguém. – Clara, meninas devem ser educadas. Meninas não podem gostar de sexo. Meninas não podem dar pra mais de um cara. Meninas são putas e meninos são pegadores. Meninas não podem rebolar até o chão, não podem usar uma roupa justa e se usarem é porque estão pedindo pra serem assediadas…. – Respirou fundo e olhou para o amigo. – Já te disseram, Ian, que você precisa ser mãe e que só vai ser feliz com um pai de família ao seu lado? – Clara olhou de modo gelante para o amigo. – Acho que não.

-Querem saber? – André veio correndo da janela e subiu no sofá da sua mãe. – Que se foda tudo isso! A gente é ferrado e a gente é muito sortudo por isso.

-Cala a boca, André. – Disse a jovem.

-Pensa bem, Clara. Tem gente que é ferrada e nem sabe disso. Prefiro viver ciente das merdas do que numa ilusão idiota.

-Devemos celebrar, então? – Clara sorriu, achando André engraçado.

-Devemos! Brindar pela vida e por sua falta de sentido, por suas merdas e, claro, pela honra de saborear esse gosto amargo dela todos os dias!

-Pelo menos estamos sentindo algum gosto né? – Comentou Ian amenizando as feições do seu rosto.

-É! Somos fodidos, mas quem disse que pra ser feliz dependemos de coisas boas acontecendo?

– Vamos celebrar as coisas ruins da vida, então! Porra! – Berrou Clara subindo ao lado de André no sofá. – Peguem seus brindes imaginários!

Ian gritou erguendo uma mão vazia ao ar:

-Querem saber? Vocês têm razão! – E subiu no outro sofá. – Pode meter todas as merdas no meu caminho que eu vou tropeçar em todas elas e rir da sua cara ainda assim, ouviu, dona Vida?!

-A gente não liga de ser fodido, Vida! Manda mais! – Gritou Clara.

-Manda mais que a gente aguenta! – Disse Ian fazendo coro. – E se agente não aguentar, a gente não tá nem aí!

-Porque o que a gente quer é sentir tudo! Sua desgraçada! – André gritou para o teto, como se falasse com a Vida.

Depois de brindarem, os três se jogaram no sofá, rindo e ofegantes.

André olhou para os dois amigos antes de dizer:

-O que eu posso falar é que eu amo vocês, caras. Amo vocês por vocês serem quem são. Foda-se o resto! Vocês são meus amigos e eu gosto porque vocês são fodas exatamente do jeito que são.

-Falar isso bêbado não conta muito… – Disse Clara.

-O álcool segue o caminho do meu coração, Clara. – Disse André rindo.

De repente, uma voz esganiçada adentrou no ouvido dos três:

-Mas o que diabos aconteceu aqui? – Era a mãe de André, sentindo o cheiro de álcool circulando pelas correntes de ar e vendo seu precioso vaso chinês estraçalhado no chão.

– A Vida, mãe. Ela nos deixou enjoados. – E André saiu correndo. – Acho que vou vomitar.




terça-feira, 5 de março de 2019

cotidianas #621 - Carnaval de Veneza



O tombo na poça d'água só foi mais uma motivo para que as risadas dos rapazes aumentassem ainda mais. Nem a vítima da queda pareceu se importar, caindo na gargalhada pelo próprio desastre. Completamente bêbados, aqueles quatro turistas, Joe, Allan, George e Charlie, universitários americanos aproveitando férias na famosa cidade das gôndolas, meio perdidos pelas estreitas e traiçoeiras vielas da cidade tentando voltar ao hotel, tinham frouxos de riso incontidos por qualquer motivo desde que começaram a abusar do álcool no baile de máscaras na Piazza San Marco, mais cedo. Numa espécie de transe de hilaridade e ainda recuperando o fôlego pelo trambolhão do amigo Charlie, os outros três nem perceberam que um quinto elemento se juntara a eles naquela pequena travessa escura. Usava uma capa preta com capuz e um máscara branca, simplesmente branca, de uma ausência de expressão inevitavelmente perturbadora. Assim que Allan, que sentara no chão de tanto rir, percebeu o estranho entre eles, tirando a mácara e levantando-a à testa, exclamou com uma fala ébria e completamente enrolada:
- Ei,... eu acho que essa cara aí também tá perdido!
Só então todos olharam para ele e, como não fora diferente durante boa parte daquela noite, caíram na risada.
- Cara, lamento informar mas nós também estamos perdidos. -  conseguiu falar Joe à muito custo ainda ofegante. - A propósito você não saberia onde fica o Hotel Ducalle?
O homem apenas permanecia imóvel.
- Pelo jeito ele não sabe. - respondeu Allan pelo estranho, achando graça.
- Fala alguma coisa, então. - exigiu George.
Nada. Impassível, silencioso.
- Se não quer nada então cai fora, amigão.
Imóvel, estático ainda.
A atmosfera começava a perder um pouco o ar descontraído e os rapazes já começavam a se chatear e ficarem preocupados com o estranho ali parado.
- Olha só, se não quer dar o fora, a gente é que vai indo então. - decidiu George convocando os demais.
- É, vamos lá. Prazer, viu, sr. Mascarado Misterioso. - soltou Allan o mais galhofeiro, quebrando o clima tenso e fazendo os outros rirem novamente.
Foram saindo devagar, um tanto desconfiados do homem que permanecia ali em pé, imóvel, andaram alguns passos e para certificarem-se de que o estranho não os seguiria, voltaram-se mais uma vez. O homem não estava mais ali. Não tinha como ter saído dali tão rápido. Não tinha para onde ir.
- Onde é que tá o cara?
- Sei lá!
- Sumiu, evaporou.
- Cara, vamos sair daqui que isso tá muito estranho.
- Vamos, então.
- Ei, cadê o Charlie?
Um deles não estava mais ali.
- Olha, Charlie, para com essa brincadeira. Não tem graça.
- Cadê o Charlie, cadê o Charlie??? - perguntava quase histericamente Joe, agora já sendo tomado por um certo desespero.
- Deve ter ido pro hotel. Enquanto a gente se virou pra ver o cara, ele deve ter corrido. Deve ter sido isso.
- Mas a gente não viu, não ouviu os passos dele...
- Mas, sei lá, deve ter sido muito rápido...
Assim que Allan acabou a frase percebeu que, durante a rápida conversa com o nervoso Joe, George sumira também.
- Cadê o George?
- George, George!!! - gritou Joe, o mais assutado dos dois.
- Eles devem estar de sacanagem com a gente. Devem estar de combinação com aquele cara da capa. É isso mesmo: desde o início eles devem ter combinado com o cara.
- Eu sei qual é a de vocês!!! - gritou Allan ao vazio - Chega dessa palhaçada! Vamos pro hotel.
Olhando em volta, procurando os amigos, num relance avistou novamente o estranho da máscara branca. No mesmo lugar que antes. Parado, impassível.
A visão ameaçadoramente silenciosa o distraiu por um breve instante mas foi o suficiente para que, ao voltar-se novamente na direção de Joe para convocá-lo para darem o fora dali urgentemente, percebesse que estava sozinho.
Olhou novamente na direção do mascarado. Não estava mais lá.
Que diabos era aquilo? Era alguma espécie de pesadelo?
Não ficou esperando que a reposta viesse de algum lugar. Saiu em disparada pelo labirinto dos estreitos becos de Veneza mesmo não sabendo exatamente para onde estava indo.
Nunca chegou a lugar nenhum. Nunca mais foi visto, bem como seus três amigos. As famílias pediram investigações sobre o paradeiro dos filhos que já  deviam ter retornado a seu país e ligaram pela última vez de lá, de Veneza. A polícia local trabalhou duro nas investigações mas nunca foi encontrado o menor vestígio dos rapazes e nada foi descoberto sobre seu desaparecimento naquela noite de Carnaval.
No ano seguinte, um caso semelhante de desaparecimento sem pistas foi relatado. Novamente no carnaval. Desta vez se deu com três jovens garotas espanholas mas diferentemente do outro caso, uma delas reapareceu, completamente transtornada, alguns dias depois, dizendo que um homem mascarado havia levado as amigas. Apesar de uma certa desconfiança dado o estado emocional da jovem, aquela era a única pista que a polícia tinha e resolveu investir nela para chegar a alguma solução. As autoridades procuram abafar os casos e evitar que a informação sobre um maníaco de máscara se espalhe e cause pânico entre os turistas e comprometa uma das mais antigas tradições da cidade, mas já corre pela região, à boca-pequena, um burburinho a respeito de um certo misterioso mascarado no carnaval de Veneza. Hoje é carnaval. A polícia está atenta. Há homens infiltrados na multidão por todos os lados da praça. Os visitantes, turistas, aristocratas, populares exibem suas máscaras orgulhosamente por toda a parte. Engraçadas, tristonhas, elegantes, exageradas, sinistras... Ele pode estar em qualquer lugar. 



Cly Reis

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

cotidianas #460 - Churrasco



As gargalhadas cessaram e depois daquele suspiro tradicional de fim de assunto, sem dar tempo para que aquele silêncio muitas vezes incômodo chegasse a reinar, Arthur soltou a pergunta que tanto lhe inquietava e que estava entalada em sua garganta desde que chegara ali naquela manhã:
̶  Por que você me convidou?
O outro homem, George, cuja maneira como interrompeu o gole da caipirinha fazia demonstrar certa surpresa, embora devesse saber que o questionamento viria a acontecer em algum momento, apressou-se em responder:
 Encare como uma forma de me redimir. Uma maneira de selar a paz.  ̶  disse em George em tom amistoso enquanto atiçava um pouco mais o fogo na churrasqueira. Àquelas alturas o delicioso cheiro da carne na grelha já começava a exalar tentadoramente.
Ainda desconfiado, Arthur acrescentou:
̶  Mas depois de tudo aquilo? Você quase me matou...
̶  É, eu sei, eu exagerei. Eu exagero às vezes. Mas é que aquela mulher me enlouquecia, sabe? Eu morria de ciúmes dela. Achei que vocês estivessem tendo um caso e...  ̶  interrompeu-se desacelerando a fala  ̶  Olha, me desculpa por aquele dia com a arma. Eu estava fora de mim. Tudo bem?
̶  Tudo bem. – confirmou um tanto receoso.
̶  E de mais a mais a Laura já é passado. Vamos comemorar nossa renovada amizade.  ̶  propôs levantando o copo.
Arthur também ergueu o seu. Não totalmente convencido, procurou não deixar margem de dúvida quanto à atitude do, até então, desafeto.
̶  Mas como seu deu essa mudança?
̶  Do que? – quis saber George fingindo de desentendido.
̶  Do cara que invadiu minha casa com uma arma pra me matar para o que me convida para um churrasco à beira da piscina num domingo?
̶  Ah, sim. – sorriu – Grande parte da explicação você viu comigo no supermercado...
̶  A loira?
̶  Pois é. Aquela mulher me fez esquecer a Laura. E, diga-se de passagem, é um belo motivo, não? Pode falar, pode falar: não é um mulherão?
̶  É, é uma bela mulher.  ̶  confirmou o outro.
O dono da casa riu satisfeito, ambos deram mais um gole em suas bebidas e foi novamente o convidado quem quebrou o silêncio:
̶  Mas e a Laura?
̶ A Laura? Ah, acabei com ela. Quero dizer,... acabamos.  ̶  explicou-se rindo  ̶  Terminamos. Não dava mais. Não tinha confiança nela. Não foi só com você, sabe? Eu nunca tinha certeza se ela estava sendo fiel, se estava falando a verdade. Chegou uma hora que eu disse “chega”. Dei um fim.
̶  E ela onde está agora? – quis saber Arthur cercando-se de todas as garantias.
̶ Ah, deve estar com a mãe no interior ou viajando pela Ásia, pra Índia, pra esses lugares aí. Sempre foi louca por essas coisas exóticas, essas coisas tipo hindu, hare-krishna, shiva, não sabia? – fez esta última pergunta virando um pedaço de carne na churrasqueira.
̶  Não. Não sabia. – respondeu agora já começando a ficar um pouco mais convencido.
̶  Uma pena. – acrescentou o ex-marido – Tivemos momentos felizes. Era uma bela mulher. Muito gostosa.  Acho que na verdade só fiquei tanto tempo com ela por causa daquele rabo. Muito rabo. Muita carne. Meu Deus, aquilo vai ser difícil de esquecer. Era muito gostosa, né? – pedindo agora a confirmação do convidado.
̶  Imagina. Não vou falar essas coisas da sua mulher...
̶ Ih, que nada. Pode falar. Nem é mais minha mulher. E pelo que você viu comigo no supermercado, você acha mesmo que eu estou me importando com a Laura agora?
Depois de uma breve hesitação, Arthur riu e finalmente confirmou:
̶  É, era muito gostosa mesmo. – mas flagrando-se no erro, tentou corrigir – Mas nem sei por que estamos falando dela no passado, como se estivesse...
̶  É só jeito de falar. Ela deve estar meditando com uma pedrinha colada na testa montada num belo elefante indiano daqueles cheios de mãozinhas nesse momento.
Os dois riram e desta vez foi George quem se encarregou de encaminhar o assunto pós-descontração:
̶  Mas me diz uma coisa, cá entre nós. Pode falar que não tem problema. Só de curiosidade: tu comia a Laura?
̶  Que que é isso, George?
̶  Não, não. Pode falar. Tranquilo. Tu tá vendo, eu tô com aquele avião, Não dou mais a mínima pra Laura. Só não quero viver como um idiota a vida inteira. Fala aí. – estimulou o outro a falar enquanto bebia mais um gole da caipirinha.
Mais confiante pelo clima amistoso do encontro, pela cumplicidade que parecia crescer entre os dois e muito também por conta do álcool que vinha consumindo desde que a carne começara a ser preparada, Arthur enfim confessou:
̶  Tá bom, tá bom.  Eu tive um caso com a Laura. – revelou segurando um riso.
̶  Quer dizer que tu comia a minha mulher, safado? – exclamou alto o ex-marido soltando uma sonora gargalhada que praticamente autorizava o riso preso do traidor.
̶  Comia. Comia. – confirmou o ex-amante agora numa risada incontida.
George foi parando sua risada até que ela sessasse completamente, suspirou fundo e olhou mortalmente na direção do ex-amante da mulher que aos poucos também se refazia do momento de gáudio. A vontade que tinha era de matar aquele desgraçado. Mas não. Engoliria o ódio. Apenas saborearia aquele momento.
̶  Olha, – anunciou o anfitrião – a carne tá pronta. Tá bem macia. Come aí, come aí. Tá bem gostosa.



Cly Reis

terça-feira, 10 de junho de 2014

COTIDIANAS ESPECIAL nº300 - O Encadernador de Livros


O Encadernador de Livros
de Jowilton Amaral da Costa


— Bom dia. O senhor é o seu Lobato? — Perguntou Antônio, estudante de Medicina do segundo período da Universidade Federal de Sergipe. Um jovem alto, com grandes olhos azuis e cabelo loiro pixaim, com longos dreadlocks escondidos embaixo de uma touca com as cores da bandeira jamaicana. Um observador menos atento não suspeitaria minimamente do tamanho de suas madeixas. Trazia consigo, com muita dificuldade, os três volumes da última edição do Sobotta.
— Sim, sou eu mesmo. Quem é você, filho? — Falou o velho, esticando seu rosto macilento, por entre a janela, a qual o parapeito servia de mesa de trabalho, em direção ao jovem que acabara de chegar, e apertando os olhos, por de trás de duas grossas lentes de grau, rodeadas por uma medonha armação, na tentativa de enxergar melhor seu interlocutor. O velhusco se assemelhava a uma fuinha usando óculos “fundo de garrafa”. Essa imagem fez com que Antônio sufocasse uma gargalhada.
— Sou filho do doutor Porfírio. Ele me mandou aqui para deixar estes livros para o senhor encapar. — Respondeu Antônio, quase bufando, após pousar as “bíblias” no resguardo.
— Ah, sim, que honra. O seu pai é meu cliente há muitos anos. Não só ele, mas também seu avô, seu bisavô, seu... Enfim, toda a sua nobre família, meu caro. Uma linhagem de médicos respeitados em todo país. Não é mesmo?
— É. — Respondeu Antônio sem empolgação.
Justamente por causa dessa “linhagem de médicos respeitados em todo país” que Antônio estava sendo obrigado a cursar Medicina. Logo ele que não suportava ver sangue e morria de medo e asco dos cadáveres que tinha de manipular nas aulas de anatomia. Detestava biologia, detestava a medicina, detestava seu pai por interferir em suas escolhas e, principalmente, odiava a si mesmo por ser um poltrão e não enfrentar o tirano e dizer que seu sonho não era aquele. Ele sonhava em estar em cima de um palco cantando reggae. E realmente era bom nisso, verdadeiramente muito bom. Possuía todos os predicados de um líder de banda de sucesso. Tinha carisma, era bem apessoado, e dominava o público como poucos, além de ser dono de uma voz poderosa, voz de “negão”. Não obstante a sua pele alva, ele sabia que havia genes da mãe África correndo em seu sangue. Seu cabelo provava isso. E se sentia orgulhoso. No entanto, o doutor Porfírio não podia ouvir falar em reggae, muito menos imaginar que seu único filho não haveria de seguir seus passos. O cabelo à moda Rastafári foi engolido muito a contragosto, engasgadamente. Antônio teve que prometer ao pai que cortaria assim que iniciasse as disciplinas profissionalizantes.
— Então você é o Antônio. Conheci você quando ainda era um nenenzinho que apenas engatinhava e chorava. — Falou e sorriu, mostrando seus dentes enegrecidos e soltando um bafo pútrido, com odor de sangue e pus. Antônio não conteve um calafrio de repugnância. Percebeu também que não só o hálito do velho era fétido, e sim todo ele. Seu Lobato parecia estar envolto por uma redoma mal cheirosa. O jovem sentiu-se mal. Precisou respirar profundamente para controlar uma ânsia de vômito que o arrebatou.
— Sim, sou eu mesmo. — Falou apressadamente, prendendo a respiração. Desejava sair de perto daquele sujeito o quanto antes. — Meu pai pediu que o senhor o avisasse por telefone quando os livros estivessem prontos. Ele vem buscá-los pessoalmente.
— Sim, sim, está muito bem. Eu ligarei para o doutor. Ele não disse mais nada? — O velho interrogou.
— Ah, também disse que os livros deveriam ser encadernados com o material especial, e desta vez gostaria de uma cor clara.
— Pois está muito bem. Cor clara. — Concluiu encarando Antônio com uma feição de curiosidade, e emendou:
— O doutorzinho ainda não sabe de nada, não é mesmo? — Seu rosto abriu-se numa carranca esquálida e grotesca. Antônio suspeitou que aquilo fosse um tipo de risada, e não conteve outra tremedeira, desta vez de medo.
— Não sei do que o senhor está falando, seu Lobato.
— Pois muito bem, sim, sim, está tudo certo. Em breve o doutorzinho saberá. Todos de sua família sabem. Sim, sim, todos eles sabem, sabem sim... Sabem sim... —Continuou a repetir as últimas palavras como num mantra, parecendo ter entrado em transe e esquecido completamente a presença do pretenso pop star, que aproveitou para dar o fora dali o mais rápido que pôde.
Seu Lobato, ainda falando só, dirigiu-se aos fundos de sua casa, saindo da exígua sala onde trabalhava encadernando livros. Ele exercia esta profissão há muitos anos, incontáveis anos, sempre na expectativa de pedidos como aquele, que valessem a pena. Um trabalho com o material especial equivale a quase três meses de trabalho com os forros comuns. Três volumes salvariam o ano inteiro. O velhinho com cara de mamífero mustelídeo encontrava-se radiante quando abriu o alçapão ao rés do chão da cozinha e gritou, ajoelhado, olhando para baixo:
— THALES, OH THALES! — Desceu alguns degraus e chamou novamente. — THAAAALES. — Silêncio absoluto. — Não é possível que você esteja dormindo de novo, seu indolente de uma figa. — Ralhou o velho. — THALES, SEU CRETINO! APAREÇA! De repente, surge em meio às trevas do porão um sujeito muito alto, muito gordo e possuidor de uma imensa cabeça, vestido apenas com um fraldão geriátrico. Era Thales. O gigantesco homem, com mais de dois metros de altura, era portador de retardo mental, que o transformara numa criança hipercrescida. Sua idade cronológica era quarenta anos enquanto a mental não passava dos sete.
— Oi mestre. — Disse Thales, levantando uma de suas mãos rechonchudas e acenando para o homenzinho enrugado. — Depois ergueu a perna direita, virou-se de lado, apontando suas nádegas na direção de seu Lobato, fez uma cara de esforço e... “Bruuuuuu bru bru bruuuu”, soltou um sonoro gás pelo seu vaso traseiro. — Ops, desculpe mestre. — Gargalhou.
— Seu moleque malcriado. — Esbravejou o mestre encapador.
O Porão era um misto de curtume e matadouro. Peles, couros e peças de carne incomuns num açougue estavam pendurados por todos os lados. Seu Lobato encaminhou-se para a gaveta onde guardava as peles prontas para uso.
— Maldição. — Exclamou.
— O que aconteceu mestre? Perguntou Thales.
— Não temos mais peles brancas, só pardas e negras. Thales, hoje de madrugada nós sairemos para caçar. — O rosto do gigante iluminou-se.
O porão era na verdade um túnel, com vários corredores e com muitas passagens secretas para superfície. Estendia-se, em baixo do assoalho da cidade, por vários quilômetros quadrados. A antiga casa, situada na colina do Bairro Santo Antônio, próximo à igreja, era da família de seu Lobato há cento e cinquenta anos. Há um século e meio aqueles túneis eram usados em benefício da nobre e milenar arte de encadernar livros com pele humana.
Escolheram para caçada noturna um túnel que conduzia ao centro da cidade, que se exteriorizava dentro de uma casa abandonada a trezentos metros da Rua da Cultura. Aquele era o local predileto de seu Lobato para a espreita de suas vítimas. Na verdade eles estavam numa ruela, quase um beco, cercada por construções antigas em decrepitude e terrenos baldios, que cortava caminho em direção ao terminal rodoviário. Pelo o dia o atalho era muito usado, todavia, durante a noite o lugar se tornava deserto, silencioso e lúgubre. A quietude somente era cortada, aqui e acolá, pela algazarra de grupos de amigos que passavam no entorno. Contudo, sempre acontecia de alguém apressado e corajoso, ou mesmo um desavisado boêmio acabar entrando naquela sinistra passagem, vindo das festas que aconteciam nas proximidades.
Thales estava eufórico, aqueles passeios eram uma grande diversão para ele. Correr atrás das pessoas, vestido e pintado como um palhaço, segurando um enorme porrete, e assustá-las, trazia uma excitação extraordinária a sua limitada mente.
Após uma hora de espera, uma potencial presa aproximou-se. Vinha cambaleante e segurava em um das mãos uma garrafa de bebida. Parecia estar falando sozinho, com um interlocutor invisível. Ele gritava apontando o dedo para as paredes e imprecava cheio de fúria para um ouvinte imaginário. Seus longos cabelos sararás balançavam ao ritmo de sua indignação.
— É isso mesmo que o senhor ouviu, eu vou largar este maldito curso e vou fazer o que eu amo, está me ouvindo, hã? Está me ouvindo, papai? Eu vou largar aquela maldita faculdade.
Enquanto falava também dançava, dando pulinhos de um lado para o outro, jogando os braços para o alto, seguindo uma melodia que só cantava em sua cabeça, ao mesmo tempo em que vertia o líquido da garrafa em caudalosas goladas.
Logo depois da visualização da vítima, Thales saiu furtivamente do esconderijo e levou silenciosamente seu corpanzil para o fim da rua, na outra esquina. O relógio da catedral acabara de anunciar três horas da manhã. Seu coração batia descompassado de emoção. Finalmente, depois de muitos dias, ele iria brincar. Pena que durava tão pouco.
Seu Lobato ficou onde estava aguardando ansiosamente o momento oportuno. Ao ver o jovem bêbado aproximar-se de onde Thales estava, levou a boca um apito e três curtos silvos singraram no ar da madrugada: “Pii, pii, pii.”. Era a deixa que Thales esperava.
Um enorme palhaço segurando um porrete de ferro saiu das sombras e caminhou lentamente para a saída da rua, fechando a estreita passagem com seu imenso corpo, sorriu macabramente e arrastou seu bastão metálico no chão de paralelepípedos. O homem que dançava parou. Tentou acertar seu corpo entorpecido na direção do colosso bizarro a sua frente. Apertou os olhos, balançou para frente e para trás desequilibradamente e falou:
— Mas que “cabrunco” é isso!
Thales começou a andar vagarosamente de encontro a seu novo amiguinho. O pique-e-pega iria começar. A velocidade da aproximação foi aumentando gradualmente, até chegar ao ponto de uma corrida alucinada, com o porrete acima de sua cabeça, firmemente agarrado por suas enormes mãos, enquanto expelia de sua boca um som assustadoramente gutural.
Essa cena “estifenquinguiana” fez com que o ébrio despertasse. Todo o álcool que circulava por seu corpo sublimou como num passe de mágica, dissipando-se, sendo substituída por uma torrencial descarga de adrenalina. Sentiu o gosto metálico na boca, e correu em disparada sem olhar para trás. Quase no mesmo instante avistou uma pequena silhueta, escondida num terreno abandonando, cercada por madeirites, que acenava chamando-o para lá. Não pensou duas vezes e seguiu na direção da mão que balançava. Passou a toda velocidade por uma pequena porta de madeira apodrecida que foi imediatamente fechada atrás de si. Quando se virou, resfolegando, e olhou para o velhinho que lhe encarava, espantou-se e disse:
— Hei, eu conheço... “Plof”. Sua frase foi interrompida por uma machadada, habilidosamente desferida, e com uma potência incrível para um velhinho de aparência tão frágil, que dividiu seu crânio em duas partes como a uma melancia. Minutos depois Thales chegou esbaforido.
— Thales pegue o corpo. — Mandou seu Lobato.
O grandalhão agachou-se e colocou o homem morto embaixo do seu braço direito, como um menino que carrega displicentemente seu brinquedo quebrado. Thales não esboçava nenhum tipo de emoção em suas feições, talvez, apenas, um mínimo de frustração por sua diversão evanescer tão rapidamente.
O corpo foi esfolado, toda a pele retirada delicadamente e com uma precisão cirúrgica, e jogada numa bacia de zinco contendo sal é um pouco de água. Pedaços da traseira também foram salgados e penduradas num varal. Ossos, vísceras e o restante da carne do humano abatido foram jogados para serem corroídos num tonel repleto de ácido fosfórico em altíssima concentração. Todo o sangue foi congelado. O sangue das vítimas era o segredo da longevidade e da vitalidade assombrosas daquele homenzinho espetacular e de seu gigante de estimação.
A curtição de pele humana segue os mesmo passos da convencional de couro animal. No entanto, o tempo levado da pele crua humana até o ponto ideal para a arte da encadernação é muito menor.
Em apenas dois dias a pele do jovem de cabelos rastafári foi usada para encapar os livros de doutor Porfírio, que acabara de chegar de um congresso de Reumatologia na França, e embora estivesse com muita saudade de casa e de seu filho, resolveu passar no “ateliê” de seu Lobato para pegar seus livros. Ele sempre ficava excitado quando via aquela arte. Sua família, oriunda da Europa, mantinha esta tradição desde o século XVII, e ele não via a hora de contar seus segredos para Antônio.
Já com os volumes de anatomia na mão, e se despedindo do velho Lobato, disse empolgadamente:
Ah, seu Lobato, o senhor é mesmo um artista. — Elogiou doutor Porfírio, ao passo que acarinhava seus dedos pela extensão dos volumes, sem imaginar, que sua pele roçava a pele de seu próprio filho. 



Jowilton Amaral da Costa é Cirurgião-Dentista e Escritor, nascido em Fortaleza, Ceará, hoje reside em Nossa Senhora de Lourdes, Sergipe. Tem quarenta anos, é casado e tem duas filhas. Possui cinco contos já publicados (Com a Benção de Deus, O Diário de um Soldado Colérico, Os Movimentos Rápidos dos Olhos, O Amaldiçoado G. T. Sullivam e Prato Frio) em livros de antologias. E mais três a serem publicados em breve (Os Observadores, A Estranha Família K e O Planeta X) também em antologias. Escreve contos de terror, suspense e policial, além de crônicas. Divulga seus textos em sua página Loucos Pensamentos, no facebook (www.facebook.com/loupen).