Filó Machado foi uma descoberta tardia, que o POA Jazz Festival de 2014 me trouxe. Naquela edição, o show dele foi surpreendentemente o melhor da noite em que se esperava que o "bruxo"Hermeto Pascoal ocupasse esse espaço. A partir dali, passei a ter contato direto com o som e a impressionante musicalidade desse paulista genial cujo obscurantismo (ou segmentação) dentro da indústria cultural no Brasil só pode ser explicado pela incapacidade do brasileiro de assimilar suas próprias coisas boas. Afinal, surgido à mesma época que Djavan, que guarda MUITAS semelhanças com a musicalidade de Filó, a mesma indústria acabou por separá-los em caixinhas: um na popular, para rodar na mídia, e o outro no segmentação, destinado a ouvidos mais "exigentes".
Ocorre que Filó, 74 anos e carreira tão consolidada quanto robusta, vai muito além da sonoridade “djavanesca” enão é nada difícil apreciar sua música, Excelente guitarrista, é um cantor, compositor e arranjador daqueles que o Brasil deveria diariamente se orgulhar. E se os brasileiros não lhe dão o devido reconhecimento, os estrangeiros, estes sim, dão. Admirado por artistas do calibre de Michel Legrand, Jon Hendricks, John Patitucci e Warvey Waynape - além de brasileiros de alcance internacional, como Gal Costa, João Donato, Joyce e outros - Filó é ovacionado no Japão, Estados Unidos, França, Rússia, Holanda, Bélgica, Lituânia, Canadá, Equador, Croácia e mais dezenas de países. Tivemos a oportunidade Leocádia e eu de fazermos o mesmo novamente após 11 anos.
Desta vez, no entanto, foi mais especial ainda. Na nossa primeira vez no Bar Grezz, localizado na região do 4º Distrito de Porto Alegre e que fora fortemente afetada pelas enchentes de um ano atrás, pudemos ver de perto um show muito mais intimista de Filó. Ele cantou, contou histórias e emanou toda sua infinita musicalidade, que entremeia bossa nova, jazz, samba e soul com a naturalidade dos deuses negros da música. Acompanhado dos músicos locais Ras Vicente (piano), James Liberato (baixo) e Renato Popó (bateria), Filó iniciou cantando nada mais, nada menos que o samba perfeito “Acontece”, de Cartola. Só ele e o violão elétrica. Uma música que, na sua versão original, econômica e limpa, dura pouco mais de 1 min, com Filó ganhou a dimensão dramática que a própria melodia sugere. Um começo de arrepiar.
Simpático e conversador, Filó falou sobre “Jogral” antes de cantá-la. Gravada em 1981 por Djavan, então um assíduo frequentador da casa noturna onde Filó tocava em São Paulo, a história elucida de onde veio a ideia do suingue, das divisões rítmicas e das construções harmônicas que tanto caracterizaram a sonoridade do autor de “Oceano”. “Meu pensamento rodou/ Cortando o torrão nesse trem, andando bem/ Acho que a mais de cem/ De Maceió aqui parece ali”. Parece letra escrita por alguém nascido na capital do Alagoas como Djavan, né? Mas, não: é de Filó.
As lindas melodias prosseguiram: a emocionante “Por Onde Andávamos”, parceria com o célebre Sérgio Ricardo (“Por onde andávamos quando éramos estranhos/ Quem sabe estivéramos perto a ponto de nos tocar”), que fala sobre a sincronicidade da vida e do amor; a hispânica “Carmens e Consuelos”, esta com outro genial, Aldir Blanc, presente no disco mais recente de Filó, “Cisne Negro”, lançado em 2024, somente com parcerias inéditas dele com o saudoso letrista de outros clássicos da MPB como “O Bêbado e a Equilibrista” e “Delírio Carioca”; o suingado samba “Amar a Maria”, que faz um admirável jogo sonoro com as palavras (“Mas a Maria não estava nem aí/ A Maria é uma Maria se ela estivesse fora de si”); e uma das minhas preferidas dele, “Perfume de Cebola”, esta, com o poeta mineiro Casaco, que se ele não tocasse, eu ia pedir, juro.
A admirável musicalidade de Filó, seja no violão vívido e jazzístico, seja nas melodias cheias de pulsação e criatividade harmônica, também se expressava nos deliciosos melismas ao estilo George Benson em que não apenas fazia duos da voz com ao próprio violão, como, percussionista que também é, inventava solos de percussão com a boca. E que solos! Isso quando não chamava a nós da plateia para acompanhar em seus acordes, às vezes difíceis de arremedar. Rolou este expediente vocal no pot-pourri de “Je Viens te Dire la Verite”, parceria com o músico francês Michael Legrand e cantada por Filó, claro, num invejável francês, emendada com uma das composições dele e da musicista carioca Fátima Guedes, no caso, a belíssima “Blue Note”, gravada por ela em 1983.
Teve também participação do músico gaúcho de vasta experiência internacional Adriano Trindade, que tocou com o mestre e professor duas belas canções: “Canto da Senzala” (parceria com Gelson Oliveira) e uma ótima “milonga jazz”, a qual contou também com a participação de Dida Larruscaim e Pietra Keiber, chamados ao palco para uma jam.
O gaúcho Adriano Trindade tocando com uma milonga com o mestre Filó Machado
Filó reservou sabiamente para encerrar o show sua abismal versão de “Take Five”, clássico jazz modal de Dave Bruback, que ele transforma num samba-jazz visceral e muito, mas muito brasileiro! Shows de improviso, melismas e desempenho da banda. No bis, amável, Filó acatou pedidos da plateia. E que bom, pois uma das solicitadas foi a belíssima “Venha até a Minha Casa”, dele e de Judith de Souza, das joias do seu brilhante álbum “Canto Fatal”, de 1984. Surpreendendo gregos e troianos (aliás, gaúchos), ele ainda manda ver numa versão do samba do nome negro da MPG, Gelson Oliveira – que, infelizmente, me escapa o título da canção.
Um desbunde. É a melhor definição que se pode dar. Há centenas de talentos no Brasil, mas certamente poucos guardam tantas qualidades reunidas como Filó Machado. E com todo respeito e admiração a Djavan, há de se convir, depois de ouvir e ver Filó assim, tão de perto, que a sina de cada um merece, digamos, os seus devidos lugares. Como querer filonear o que há de bom – e de muito bom.
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Começa o show!
Somente Filó e seu violão tocando Cartola. Nem precisava mais
Surpresas, participações e muito jazz
Visão geral da banda no palco do Grezz
Improvisação no violão
Filó Machado esbanjando musicalidade
com seus melismas
Filó com a afiada banda de músicos gaúchos
O gigante Filó. Canto ancestral
Rolou jam com Adriano Trindade e convidadas
Mais um pouco da participação de Adriano Trindade,
aqui tocando a bela "Canto da Senzala"
Talento puro
Filó e banda se despedem do palco do Grezz
texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos:Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Canal Youtube Adriano Trindade
Estive no último final de semana em Bento Gonçalves acompanhando a segunda edição do Bento Jazz & Wine Festival, que tem a curadoria do meu amigo Carlos Badia. Depois de uma abertura festiva com o Secretário da Cultura, Evandro Soares, o ex-prefeito Guilherme Pasin e do atual Diogo Siqueira, foi feita a homenagem à pianista, tecladista e cantora Ana Mazzotti, que deu nome ao palco da Rua Coberta. Pra começar a função na sexta-feira, tivemos o Quarteto New Orleans, formado por Roberto Scopel no trompete; Luis Carlos Zeni no sax tenor; Jhonatas Soares na tuba e Edemur Pereira, na percussão. Nos moldes da POA Jazz Band, o grupo toca clássicos do dixieland, como a clássica "When The Saints Go Marching In". No final da apresentação, o Quarteto New Orleans desceu do palco e se misturou ao público, bem ao estilo da cidade americana.
Na sequência, no palco do teatro da Casa das Artes - um moderno centro cultural incrustrado na Serra - o Quartchêto iniciou as comemorações de seus 20 anos de estrada. Com sua formação inusitada de trombone, violão, acordeon e bateria e percussão, a banda desfilou composições de seus três discos com destaque para "Mas Tá Bonito". A novidade nesta apresentação foi a adição de Matheus Kleber no acordeon em substituição a Luciano Maia, que segue sua carreira solo. Como sempre, o Quartchêto demonstrou sua competência em mesclar os ritmos gaúchos à sonoridade do trombone de Julio Rizzo. Hilton Vacari mantém a base rítmica enquanto Ricardo Arenhaldt mostra todo o veneno do percussionista brasileiro.
Depois tivemos uma das surpresas do festival: o trio Blue Jasmine, formado por Fran Duarte na voz, Débora Oliveira na harmônica e Karina Komin na guitarra. As meninas fizeram um repertório de blues, R&B e rock com segurança e musicalidade. Entre as músicas apresentadas, estava "See See Rider", gravada originalmente pela blueseira Ma Rainey. A primeira noite foi fechada pelos caxienses do De Boni Quarteto. Liderada pelo acordeonista Rafael De Boni, a formação, que tem ainda Lázaro Rodrigues na guitarra, Gustavo Viegas no baixo elétrico e Cristiano Tedesco na bateria, passeia pelas sonoridades portenhas, com forte influência de Astor Piazzolla.
A El Trio, abrindo a tarde de sábado com jazz moderno
A tarde de sábado iniciou com as evoluções jazzísticas do DJ Zonatão, tocando Miles Davis, Jeff Beck e George Benson. A música ao vivo começou com El Trio, que tem Leonardo Ribeiro no violão e voz, Cláudio Sander nos saxes tenor e alto e Giovani Berti na percussão. Com forte acento nos ritmos latino-americanos, o El Trio também acerta no repertório de clássicos do jazz como "Tutu", de Miles, e "A Night in Tunisia", de Dizzy Gillespie. Leonardo mantém a harmonia e Giovani no ritmo, enquanto Sander mostra porque é um dos melhores saxofonistas do estado.
O trio de Leonardo Bitencoutrt
Seguiu-se o Mazin Silva Trio, com o guitarrista de Blumenau com um trio integrado por Caio Fernando no Baixo e o sensacional Jimi Allen na bateria. Mazin circulou pelas composições de seus inúmeros discos, com muita qualidade instrumental, mesmo que calcada nas sonoridades de Pat Metheny. Um dos grandes pianistas da novíssima geração da música gaúcha, Leonardo Bittencourt, apresentou um trio All-Star com seu colega de Marmota, André Mendonça no baixo acústico, e a revelação da bateria dos últimos anos, o riograndino Lucas Fê. Eles interpretaram standards do jazz com altíssima octanagem.
Uma das bandas mais interessantes surgidas no Rio Grande do Sul, o Quinteto Canjerana cativou o público da Rua Coberta com as músicas de seus dois discos gravados. Com Zoca Jungs na guitarra, violão e viola; Maurício Horn no acordeon, Alex Zanotelli no baixo elétrico, Maurício Malaggi na bateria e Fernando Graciola no violão, o grupo mostrou como se pode fazer música gaúcha instrumental contemporânea, dosando as sonoridades dos ritmos do Sul com uma abordagem moderna. A noite de sábado encerrou com um dos destaques de todo o festival, o violonista Lúcio Yanel. Argentino mas radicado há 38 anos aqui no Brasil, Yanel deu uma verdadeira aula do violão portenho e pampiano, passando por chacareras, milongas e valsas. Somente com seu violão, o músico conseguiu fazer com que o público ficasse hipnotizado com sua técnica exuberante.
Yanel: aula de violão portenho
O domingo começou com o trio de Bento Teia Jazz, que misturou composições próprias com standards. A proposta é interessante e mais estrada vai solidificar o som do grupo. O blues esteve representado pelo Alê Lucietto Trio que interpretou Muddy Waters, Jimi Hendrix e Eric Clapton junto com músicas da banda e animou o público com uma linguagem mais roqueira.
Um dos shows mais esperados do Bento Jazz & Wine Festival foi o de Renato Borghetti Quarteto, que mostrou uma grata surpresa: a participação de Jorginho do Trompete, substituindo o flautista e saxofonista Pedrinho Figueiredo, que estava em outro compromisso. Foi muito interessante ver e ouvir como as composições de Borghetti como "Passo Fundo" e "Milonga Para as Missões" se modificaram com a sonoridade rascante do trompete. Acompanhando os dois e mostrando suas habilidades musicais, estiveram os habituais Daniel Sá ao violão e Vitor Peixoto ao teclado.
Após a música vibrante de Borghettinho, o teatro da Casa das Artes recebeu um dos grupos mais instigantes surgidos no estado, a Marmota. Com os integrantes Leonardo Bittencourt e André Mendonça, que já haviam participado no sábado, tivemos o baterista Bruno Braga e o substituto de Pedro Moser, a revelação Lucas Brum na guitarra. Este se mostrou plenamente integrado ao intrincado e desafiador som da banda. Apresentando as músicas de seus dois discos, "Prospecto" e "À Margem", o quarteto ainda deu lugar a novas composições. O público aplaudiu de pé as evoluções instrumentais de rapaziada.
Para fechar o Bento Jazz & Wine Festival, o palco da Rua Coberta recebeu o Paulinho Cardoso Quarteto em sua formação clássica: Paulinho no aocrdeon, Zé Ramos na guitarra, Miguel Tejera no baixo e Daniel Vargas na bateria. Fazendo sua mistura bem sucedida de música regional com ritmos brasileiros, o grupo foi o perfeito fechamento para três dias de intensa atividade musical. Obrigado, Carlos Badia, e à cidade de Bento Gonçalves por abrir espaço para o instrumental, especialmente após a pandemia. Esperamos ansiosamente a terceira edição do evento em 2022.
Confira mais fotos dos shows do Bento Jazz & Wine Festival:
Embora os shows comecem a voltar presencialmente, o que acho
animador, não está nos meus planos assisti-los, assim, tão cedo, visto os riscos
que, infelizmente, ainda se correm. Enquanto não retorno com pelo menos boa
parte do prazer e despreocupação às casas de espetáculo, recordo aqui, então,
de mais um show de anos atrás que guardo com muita alegria na memória: o da
Jamiroquai. Se hoje é pouco provável a vinda de uma banda como a desses
ingleses a Porto Alegre – mesmo antes do cenário de pandemia –, há 24 anos
atrás, completos neste último dia 14, isso acontecia. E acontecia em razão de
um outro privilégio ainda maior que a capital gaúcha já teve, que era o de
receber shows do saudoso Free Jazz Festival. Recorrente no Rio de Janeiro e em
São Paulo desde 1985, o principal festival de jazz brasileiro ocasionalmente
incluía Porto Alegre no roteiro até, tristemente, encerrar por total as edições
em 2002, quando a 17ª edição foi cancelada devido à alta do dólar, que elevou
os custos a ponto de inviabilizar sua realização.
Ingresso de algum dos afortunados que assistiram o show bem de perto naquela noite
Mais do que só o privilégio e a raridade de assistir ao
maior grupo de acid jazz do planeta, a apresentação da Jamiroquai em si foi um
luxo. Repertório e produção impecáveis, músicos afiados, público sedento e um J.
Kay – a imagem da Jamiroquai, literalmente – carismático e catalisador:
cantando e performando com energia. Um showman, que dança constantemente, mas
não por isso deixa de soltar com muita técnica sua linda voz de timbre a la
Stevie Wonder. E a “cozinha” é outra maravilha à parte, sustentada pelo baixo
suingado de Stuart Zender, a bateria polirrítmica de Derrick McKenzie, os
teclados voadores de Toby Grafftey-Smith, a percussão “raiz” de Sola Akingbola
e a guitarra cheia de groove de Simon Katz. Além deles, as pick-ups do DJ D-Zire
e a linha de sopros.
A vinda do grupo, aliás, se deu justamente no momento de
maior sucesso mundial da banda, motivado pelo estouro do seu terceiro álbum, “Travelling
Without Moving”, de um ano antes. Sabe aqueles discos que mais de 80% das
faixas se tornaram hits? É o caso deste, um dos poucos casos desse fenômeno nos
anos 90, ajudado, inclusive, pela fase áurea da MTV, que rodava seus
videoclipes em looping. Resultado: uma paulada atrás da outra. "Virtual
Insanity", "Alright", "Cosmic Girl" e a faixa-título
do disco que motivou a turnê, por exemplo, incendiaram a galera, que sacolejou
aos montes mesmo espremida pelas poltronas. Isso porque, o espaço definitivamente
não foi o ideal: um Teatro do Sesi com cadeiras fixas que impediram o público
de dançar num show claramente apto a isso. Afinal, provinciana, Porto Alegre
não tinha nada melhor em termos de aparelho cultural - dois espaços que poderiam
ter recebido o show, o Teatro Bourbon Country, inaugurado em 2007, ainda nem
existia e o Araújo Vianna só seria reaberto 15 anos depois.
A grande Jamiroquai no seu auge no show de SP dias antes para o mesmo Free Jazz
Isso tirou a naturalidade da plateia, claro, mas não suficientemente para apagar
o brilho daquela noite. Afinal, Jason Kay e Cia., indiferentes a este problema,
mandaram ver numa apresentação competente e empolgante. Além dos sucessos, teve
direito a outros temas conhecidos e/ou queridos do público não apenas do disco
de então, mas também dos ótimos “Emergency On Planet Earth” (1993) e “The Return
Of The Space Cowboy” (1994), considerados por muitos dos fãs seus melhores
trabalhos. São exemplos "Space Cowboy", jazz-soul muito inspirada na brasileira
Azymuth; bem como “Hooked Up”, que abriu o show em alta numa rotação funk, e a
fantástica “Too Young To Die” (“Do-do-do-do-do, da-da-do, da-da-do-do”), ambas
do primeiro disco. Teve direito, ainda, a solo de Wallis Buchanan de didjeridu
(“Didjital Vibrations”), aquele instrumento de sopro dos aborígenes
australianos que a Jamiroquai adotou desde sempre.
Funk, jazz, AOR, disco, rap, rock, dance. A Jamiroquai é
tudo isso e mais um pouco, o que pude conferir ao vivo na minha própria cidade
em quase 2 horas incendiárias. Não lembro como foi o retorno de volta em plena
madrugada de um domingo considerando que cerca de 27 km distanciavam minha casa
do teatro e que pegar um táxi seria uma fortuna (provavelmente, mais caro do
que o próprio ingresso que havia pago). Mas cheguei em segurança, com certeza – se
não, nem estaria aqui relembrando disso tudo. Nesse aspecto, morar numa quase província haveria de ter as suas vantagens.
Jamiroquai - show completo do Free Jazz Festival (10/10/97/SP)
Se alguém me pedisse uma definição sobre o que foi a quinta
edição do POA Jazz Festival, sexta e sábado passados, no Centro de Eventos do
Barra Shopping, eu diria que os produtores e curadores Carlos Badia, Carlos
Branco e Rafael Rhoden estavam com um olho no passado e outro no futuro. E que
esta curadoria acabou, por questões financeiras, fazendo uma grande noite de
música na sexta e uma mediana no sábado.
A mirada no passado iniciou no primeiro dia com o excelente Tributo a Geraldo Flach, a cargo do
quinteto do pianista e tecladista osoriense Cristian Sperandir. Desde a morte de Geraldo, em janeiro de 2011,
suas composições estavam fora dos repertórios dos inúmeros grupos que fazem a
chamada MIG - Música Instrumental Gaúcha. Graças aos esforços da produtora e
viúva do pianista, Ângela Moreira Flach,
Sperandir ao lado de seu grupo (Antonio Flores na guitarra; Caio Maurente no
baixo; Sandro Bonato na bateria e Bruno Coelho na percussão) conseguiu não
somente resgatar a obra do mestre mas atualizá-la para a turma mais jovem que
não conhecia o trabalho de Geraldo. Para quem já conhecia, foi uma revelação
ver que a nova geração usa o passado para catapultar a música para os dias de
hoje. Destaque para o tema de abertura, “O Voo Da Águia”, uma das composições
mais conhecidas de Geraldo Flach.
Tributo a Geraldo Flach com o quinteto de Cristian Sperandir
Por outro lado, os holandeses do Jasper Blom Quartet mostraram o que é este misterioso jazz europeu,
filho dileto da sonoridade engendrada pelo produtor Manfred Eicher em sua
gravadora ECM, desde o início dos anos 70. Liderados pelo saxofonista tenor, os
três músicos de sua banda (o incrível Jesse Van Ruller na guitarra; Frans Van
Der Hoeven no baixo e Jonas Burgwinkel na bateria) apresentaram uma música
densa e consistente sem deixar de se comunicar com o público. O baterista Burgwinkel
– que já havia estado em Porto Alegre uns anos atrás como integrante do Pablo Held Trio e participado ao vivo
do Sessão Jazz na FM Cultura – apresentou um estilo levíssimo em seu
instrumento, enquanto o guitarrista Van Ruller mostrou porque é um dos mais
aclamados instrumentistas da Europa nos últimos 15 anos.
Já o grupo Silibrina,
liderado pelo pernambucano Gabriel Nóbrega – filho do violinista Antonio
Nóbrega –, mesclou a intensidade da performance com a destreza de seus músicos
e a variedade dos ritmos brasileiros. Usando seus dois discos lançados como
base do repertório (“O Raio”, de 2017 e “Estandarte”, de 2019), Nóbrega e seus
asseclas encantaram a plateia com a energia indomável de suas composições,
mostrando que seu lugar é mesmo em frente ao público.
Grande presença de público na 5ª edição do festival
O momento mais esperado desta quinta edição do POA Jazz
Festival aconteceu já na madrugada de sábado quando o grupo gaúcho Raiz De Pedra subiu ao palco.
Remanescente da época de ouro da MIG, nos anos 80, a banda trouxe quatro
integrantes da formação original (Márcio Tubino nos saxofones e flautas; Pedro
Tagliani nas guitarras e violões; Ciro Trindade nos baixo acústico e elétrico e
César Audi na bateria) mais os convidados Marcelo Nadruz e Luiz Mauro Filho no
piano e teclados e Fernando Do Ó na percussão.
O interessante é que mesmo a distância e o tempo não
engessaram a música do Raiz, que continua atual, intrincada e cheia de
dissonâncias e quebras de tempo. Meu amigo Juarez Fonseca achou que o show foi
longo demais, no que acabei concordando com ele, apesar de ficar fascinado com
tudo o que foi apresentado. Só posso desejar vida longa ao Raiz e seu retorno..
Depois desta noite memorável de sexta-feira, eu,
particularmente, tinha poucas expectativas em relação ao que iríamos presenciar
no sábado. A noite, porém, começou em alta com o choro moderno do Sexteto Gaúcho. Criado a partir das já
lendárias oficinas do gênero na cidade, os seis músicos (Elias Barbosa no
bandolim, Lucian Krolow na flauta; Matheus Kleber no acordeon; Guilherme
Sanches, o Feijão, no pandeiro; Alexandre Susin no cavaquinho e o excelente Mathias
Pinto no violão de 7) circularam pelo futuro nas composições próprias mas
sempre com um olho na tradição, destacando a linda versão de “Ternura”, de Kximbinho.
Como o choro sempre foi um gênero que exigiu de seus
instrumentistas, os músicos do Sexteto Gaúcho não deixaram dúvidas de que se
inscrevem entre os melhores do Brasil neste momento. Infelizmente, na minha modesta porém sincera opinião, houve
uma queda brusca de qualidade nas três atrações finais do festival. O grupo Rafuagi Jazz Combo prometia uma mistura
de jazz com a “modernidade” do hip-hop. Há de se convir que, mercadologicamente
– especialmente nos Estados Unidos –, o hip-hop é a bola da vez. Os artistas
mais festejados dos últimos 20 anos vem deste estilo (Jay Z, Kanye West,.
Eminem, entre outros). Aqui no Brasil, se faz cada vez mais rap e hip-hop mas
esta música fica circunscrita aos seus guetos, principalmente na periferia, com
a esmagadora maioria da massa, ouvindo “funk”, “sertanejo universitário” (!!!)
e pagode com teclado. O que se viu no palco do POA Jazz Festival foi uma
tentativa de unir estas duas linguagens, onde o “jazz” levou a pior. Ou seja,
ficou em casa, mesmo com os esforços do grupo Quarto Sensorial, que pra mim fez “indie rock” com muito noise.
Já Rafa e Ricky Rafuagi fizeram aquele discurso já conhecido mas acabaram
conquistando parte da plateia com sua adaptação do Hino Riograndense,
criticando os festejos do 20 de setembro.
Após dividir o público, se esperava uma certa calmaria com a
cantora meio francesa, meio dominicana Cyrille
Aimée e o violonista Diego
Figueiredo. Se valendo de um repertório irrepreensível, Cyrille, como boa
discípula de Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Betty Carter, mergulhou de cabeça
no scat singing (aquele shu-bi-du-ba vocal). O problema é que
tirando os excessos desta prática, pouco sobrou de personalidade na vocalista.
O exímio violonista Figueiredo se esforçou para arranjar “A Night In Tunisia”,
de Dizzy Gillespie, em bossa-nova, tentando se adequar ao estilo da cantora,
fascinada por MPB. Em outros momentos, ela conseguiu conquistar a plateia com
suas versões de “La Vie En Rose” e “Just The Two Of Us”, que foi o bis. Mas
ficou devendo um estilo e uma postura própria, o que se vê em cantoras jovens
como Cecile Mclorin Salvant e Jazzmeia Horn.
A cantora meio francesa/meio dominicana Cyrille Aimée: bom, mas nem tanto
Pra fechar, tivemos a cantora e tecladista Davina Lozier e seus Vagabonds. Seguindo a trilha já
apresentada por aqui pelos canadenses do The Shuffle Demons e pelas argentinas
do Bourbon Sweethearts, Davina faz uma música retrô, buscando os sons e os
clichês do jazz, do R&B e do rock dos anos 50. Sua banda é competente com
destaque para o trombonista Andrew Rogness. Em minha opinião, com toda a
intensidade mostrada no palco do Barra Shopping, Davina & The Vagabonds ficaram
devendo em qualidade de composição. Tanto que os dois momentos mais
interessantes e intensos do show foram as recriações de músicas de Fats Domino
e de Etta James. A própria cantora admitiu que sua versão nem chegaria aos pés
da diva falecida em 2012. Foi um final alegrinho para o festival deste ano.
Homenagem do festival ao jornalista, escritor, pesquisador e crítico musical Juarez Fonseca
Gostaria de elogiar a escolha de Juarez Fonseca como
homenageado desta edição e de Lucio Brancato como apresentador. Além de serem
meus amigos particulares, admiro o trabalho dos dois e fiquei muito feliz em
vê-los apoiando esta iniciativa bem-sucedida.
De qualquer maneira, louve-se a coragem e espírito de
coletividade que o trio Badia, Branco e Rhoden tiveram neste ano tão conturbado
para o país, de uma maneira geral, e para a cultura, especificamente, em
realizar o POA Jazz Festival. Obrigado, rapazes. Até a sexta edição!
Considerações a respeito do show de Kamasi Washington no Opinião
por Paulo Moreira
1 - Há dois anos, eu e os queridos amigos Cuscos (José Beltrame Cusco e Jucemara Beltrame) fomos ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro ver o show de lançamento de "The Epic", o álbum triplo de estreia do saxofonista Kamasi Washington. A banda era basicamente a mesma, com o acréscimo de um trompete, um sax alto e flauta (o pai de Kamasi) e até mesmo um DJ. Foi intenso e MUITO jazzístico e a cantora cantou e não fez aeróbica, como bem disse meu amigo Sérgio Karam.
2 - Desde então, Kamasi tem participado do trabalho do rapper Kendrick Lamar, que tem preponderante vínculo com a música negra, especialmente dos anos 70.
3 - O terceiro disco de Kamasi, "Heaven And Earth", já demonstra esta influência marcada da black music setentista, inclusive na canção "Fists of Fury", trilha de um filme de Bruce Lee.
Kamasi, o trombonista Ryan Porter à frente no palco do Opinião (foto: Roger Lerina)
4 - Como música é momento, o show de Kamasi de ontem apresentou todas estas influências. Em determinados momentos, me senti ouvindo um daqueles discos da CTI (soul jazz) com o fusion de Herbie Hancock e seus Headhunters mais a soul music de George Clinton e seus Parliament/ Funkadelic. As influências estavam todas à mostra. Junto com isso, pitadas de free jazza la Archie Shepp. Até um mini-moog foi ressuscitado. Uma grande mistura intensa e, como diriam os americanos, "in your face". Com esta intensidade toda, é normal que se "jogue pra torcida". Foi o que Kamasi e seu grupo fizeram. O que não quer dizer que não foi bom. Eu curti. Mas é da série: "Azar, eu gosto". Entretanto, tenho de confessar que a apresentação do Rio foi melhor.
5 - Durante o show, encontrei o Pedro Verissimo que estava curtindo. Até comentei que não era bem o estilo do pai dele, ao que retrucou: "ele quase veio....". Fiquei imaginando o Verissimo sendo assaltado por todo aquele som.
6 - Entendo o que disse o Karam mas Kamasi faz parte desta turma nova (Robert Glasper, Snarky Puppy, Thundercat) que mistura tudo numa linguagem jazzística. É jazz?? Também é!!
7 - Ah, roubei a foto do Roger Lerina. Obrigado, Roger.
8 - O Marcelo Figueiredo matou a charada!! 10 de maio tem Ron Carter no Centro de Eventos do BarraShopping no lançamento da quinta edição do POA Jazz Festival. Jazz acústico e de primeira! Todo mundo lá!!!!
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Lindeza e fúria
por Daniel Rodrigues
Parece mentira, mas um baita show que foi o de Kamasi Washington em Porto Alegre, inédito, raro, de casa cheia e da mais alta qualidade técnica, conseguiu render críticas negativas e até reclamações. Para quem estava lá sem a viseira do preconceito, a apresentação foi um arraso, garanto. O grande acontecimento do jazz na cidade em um ano, considerando o fraco line up dos últimos POA Jazz Festival e a vinda, lá em março de 2018, de John Pizzarelli à cidade, o último grande artista de jazz a tocar na cidade bem dizer.
Com uma banda afiadíssima (Ryan Porter, trombone; Brandon Coleman, teclados; Miles Mosley, baixo; Tony Austin e Ronald Bruner, baterias; e Patrice Quinn, vocal) e disposta a doar-se até o último acorde, Kamasi, grande revelação do jazz norte-americano dos últimos anos, desfilou temas do seu repertório, que passeiam pelos mais diferentes estilos jazzísticos e da música pop, do hard bop ao funk, do fusion ao trip hop, do free jazz ao rock, da vanguarda ao blues, do modal à bossa nova. Não raro, a plateia é pega ouvindo um suingue da primeira metade do século XX e, logo em seguida, a coisa evolui para heavy metal setentista. Sim! Mesmo sem guitarra, o baixo com arco de Mosley e o moog de Coleman cumpriram muito bem a ausência desse instrumento, encorpando um som a laLed Zeppelin em meio aos acordes livres do jazz.
"Muito lindo", disse o próprio Kamasi
As referências são claras a ídolos do jazz-soul dos anos 70 (Herbie Hancock, Weather Report, Stanley Clarke, George Duke, George Clinton), o que talvez para os críticos tire da obra de Kamasi a tão imputada “inovação”. Mas do que isso importa? Não seria mais fácil simplesmente ouvir e admirar? Como não se tocar pelo funk-soul “Street Fighter Mas” ou a meditativa “Truth”, épicas? Ou a suingada “The Rhythm Changes”, com o voz aveludada de Patrice? “Miss Understanding”, um retorno consciente aos mestres Dexter Gordon, John Coltrane e Pharoah Sanders? Ou “Re Run”, irresistível misto de latin jazz e funk. E o que dizer da gigante “Fists of Fury”, um soundtrack soul de arranjo elaboradíssimo? Como não se tocar por tudo isso?
Chamou-me atenção em especial, no que diz respeito às harmonias, as evoluções comandadas por Kamasi, que faz com que a música tenha, através não só dos improvisos e variações de intensidade, espécies de microriffs, os quais vão dando aos temas diferentes personalidades no seu decorrer, mas, transitando dentro da mesma escala, não menos espelhadas em sua célula matriz. Tudo sob a égide do sax alto tenor imponente mas afagador de Kamasi, tão gigante quanto aquele que o faz extrair sons. Magia pura de um coração docemente furioso. Como o emocionado Kamasi dizia repetidamente em limitado português: “Muito lindo, muito lindo”.
Li comentários pós-show de que Kamasi Washington é moderno, mas não tão inovador assim, como se ele tivesse entrado no palco e prometido que haveria inovação e não música. Li que sua performática vocalista, a quem os movimentos no palco não atrapalharam em nenhum momento o principal, o seu canto, mexia-se demais. Li que o Opinião, que sempre foi assim, não dispunha de cadeiras suficientes para se sentar. Li que a banda estava lá para tocar para a... galera (afinal, para QUEM MAIS queriam que a banda tocasse?). Li, inclusive, o descabimento de alguém dizendo que o show não foi bom mesmo sem que essa própria pessoa tivesse ido! Olha, que cidade atrasada essa Porto Alegre, irritante. Um atraso até moral, que chega ao ponto de não querer admitir que a cidade recebeu um evento empolgante, de alta qualidade e que conseguiu atrair um público maior do que somente os ardorosos fãs do gênero. Não é isso que sempre se quer para a boa arte: que mais pessoas apreciem? Eu estava lá e foi o que fiz.
Começou a 4° edição do POA Jazz Festival no Centro de Eventos do BarraShopping Sul. Como não estou envolvido profissionalmente neste ano, pude acompanhar com atenção a primeira noite. Quem abriu os trabalhos foi uma das minhas bandas favoritas da nova geração: a Marmota Jazz. Como sempre, os meninos mostraram a qualidade de sua música aliada a uma apresentação expressiva. Com o repertório calcado no segundo disco, "A Margem", os marmotas impressionaram o público do festival com suas composições cheias de passagens intrincadas e soluções rítmicas que se transformam a cada instante. O guitarrista Pedro Moser estava particularmente inspirado mas a banda inteira deu show de musicalidade. Na metade do show, entra no palco o cantor Pedro Veríssimo. O repertorio mudou, passando para a reinterpretação de standards como "The Man I Love" e "My Funny Valentine". Este encontro do cantor com a banda está rendendo bons frutos e o caminho natural para esta parceria parece ser a gravação de um disco. Pedro foi feito para cantar com a Marmota e vive-versa. A surpresa foi a inclusão de "Time of the Season", da banda roqueira sessentista The Zombies. Em tese, um corpo estranho mas que Pedro e os Marmotas se encarregaram de "transformá-la" em outro standard.
A talentosa Marmota Jazz com o convidado já parceiro Pedro Verissimo
Na sequência, veio a atração certamente mais popular de todo o festival: as argentinas Bourbon Sweethearts. Três vocalistas que emulam o som dos grupos vocais femininos das décadas de 30 e 40, como as Andrew Sisters, além de tocar trombone, violão e baixo acústico. Meu amigo Eduardo Osorio Rodrigues comparou a música das portenhas às trilhas sonoras dos filmes de Woody Allen. A gênese está ali. As Bourbon Sweetheatts tiveram grande empatia com o público, que reconheceu a música das Betty Boops argentinas como "jazz da antiga". Particularmente, neste quesito, prefiro o trabalho da POA Jazz Band, que deu show nos intervalos.
As argentinas Bourbon Sweethearts: emulando o som dos grupos vocais femininos das décadas de 30 e 40
Para encerrar, a grande atração da noite: o saxofonista alto Rudresh Mahanthappa e seu grupo Indo-Pak Coalition, formado pelo guitarrista Rez Abbasi e pelo baterista e tablista Dan Weiss. Mesclando os intrincados ritmos indianos com uma pegada elétrica que beira o jazz-rock, Mahanthappa hipnotiza o público com sua destreza. Já Abbasi se utiliza de um arsenal de efeitos e variedade de timbres em sua guitarra, fazendo com que ela soe absolutamente diferente a cada momento. O baterista Weiss merece um capítulo à parte: mestre dos polirritmos na bateria – lembrando as invenções do indiano Ranjit Barot, que toca com John McLaughlin –, Weiss demonstra domínio completo das tablas, como se fosse um nativo. Depois, adota um 4/4 básico do rock, como se fosse um John Bonham redivivo.
Mahanthappa hipnotizando o público com sua destreza
Usando loops de guitarra e saxofone – que me lembraram "Baba O'Riley", do The Who –, Mahanthappa recheia sua interpretação com climas jazzísticos, roqueiros e orientais que vão se sucedendo numa música muito particular e voltada para o futuro. Como normalmente acontece com a última atração da noite, o público mais conservador levantou e foi embora. Impressionado com a música do Indo-Pak Coalition, evoquei Caetano Veloso, imaginando o grupo "esfregando o leite mau (a música sem rótulos) na cara dos caretas".
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2ª noite – 10/11
Vitor Arantes Quarteto abrindo a segunda noite do festival
A segunda noite do 4° POA Jazz Festival no Centro de Eventos do Barra Shopping iniciou abrindo espaço para a nova geração do jazz e da música instrumental brasileira. Subiu ao palco o Vitor Arantes Quarteto, vencedor do Concurso Novos Talentos do Jazz, parceria do festival daqui com Savassi e o Sampa Jazz. Como se poderia esperar de um grupo tão jovem, a mistura de ritmos brasileiros e jazz desenvolvida pela rapaziada em suas composições próprias apresenta momentos interessantes e que certamente serão melhor explorados no futuro. Os meninos mostraram todo seu talento nas versões de "Bebê", de Hermeto Pascoal, e da clássica "My Favorite Things", do musical "A Noviça Rebelde" e que ganhou notoriedade na gravação de John Coltrane de 1961.
Na sequência, entramos na máquina do tempo e voltamos ao final da década de 50 e começo dos anos 60 com os argentinos do Mariano Loiácono Quinteto. Adotando como parâmetro musical as lendárias gravações do hard-bop da Gravadora Blue Note, o trompetista e seu grupo fizeram uma viagem para aqueles tempos de Art Blakey & The Jazz Messengers e semelhantes. Loiácono parecia um Lee Morgan ressuscitado (opinião confirmada pelo próprio Mariano depois do show). Já seu saxofonista tenor, Sebastian Loiácono, alterna passagens “coltranísticas” com os estilos de Sonny Rollins e Joe Henderson. No piano e no baixo, dois velhos conhecidos do Festival de Jazz de Canoas: Ernesto Jodos e Jerónimo Carmona. Completa o grupo o baterista Eloy Michelini. No repertório, só pérolas, entre elas duas baladas de cortar os pulsos: "You Don't Know What Love Is" e "Soul Eyes". Com tanta energia, Mariano e seu grupo conquistaram o público presente. Aliás, um parêntese: os dois grupos que mais empolgaram a plateia, depois do arrasa-quarteirão Rudresh Mahanthappa, foram os hermanos Bourbon Sweethearts – para mim, exagerado – e o quinteto do trompetista, plenamente justificado.
Uma viagem ao hard-bop anos 50 com o quinteto de Mariano Loiácono
Para encerrar a noite, uma brisa da melhor MIB (Música Instrumental Brasileira) com o grupo do baterista Edu Ribeiro, também integrante do Trio Corrente e do Vento em Madeira. Usando uma formação não usual de guitarra, trompete/flugelhorn, baixo elétrico e acordeon, Edu desfila com categoria e precisão sobre os mais variados estilos: frevo, samba, choro, baião e até mesmo o sulista chamamé. Interessante é ver o guitarrista Fernando Correia assumir o lugar do piano na harmonia, enquanto Edu, Daniel D'Alcântara no sopro e Guilherme Ribeiro no fole ficam com a improvisação. Tudo isso é mantido no lugar pelo baixo seguro de Bruno Migotto. Na apresentação, músicas do disco "Na Calada do Dia" como "O Índio Condá", "Maracatim", ambas de Edu, e "Brincando com Theo", homenagem da flautista Léa Freire ao filho dos músicos Monica Salmaso e Teco Cardoso. Nela, o guitarrista teve espaço para um solo e mostrou sua técnica apurada.
Grupo do baterista Edu Ribeiro: formação não usual que agradou
No final, o líder chama ao palco o argentino Mariano e lhe faz tocar um frevo. No papel, parece uma demasia mas Loiácono se saiu muito bem. Em resumo, uma noite de música de alta qualidade para o público que compareceu ao Centro de Eventos.
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3ª noite – 11/11
Instrumental Picumã, uma das mais interessantes bandas surgidas nos últimos tempos no RS
Pra fechar a 4ª edição do POA Jazz Festival, mais uma noite de ótima música no BarraShopping Sul. Tudo começou com os guris do Instrumental Picumã. Uma das bandas mais interessantes surgidas nos últimos tempos aqui no Estado, o Picumã faz a ponte entre a música regional gaúcha – e os ritmos do sul do mundo – com uma linguagem jazzística. Com uma formação que reúne flauta (Texo Cabral), violão (Matheus Alves) e acordeon (Paulinho Goulart) como solistas e tendo na base os baixos acústico e elétrico (Miguel Tejera) e percuteria variada (Bruno Coelho), o Picumã desfilou as músicas de seu primeiro disco e várias composições inéditas, que farão parte do próximo trabalho.
Toda a sonoridade do grupo é voltada para uma concepção acústica coletiva, o que não impede de destacarmos os trabalhos de Matheus no violão e de Bruno, se virando em vários instrumentos de percussão ao mesmo tempo. Destaque para algumas canções do primeiro CD como "Salsilla Y Scooby", "Milonguera" e "Chacareta".
Na sequência, tivemos o show mais descontraído de todo o festival: o mestre da harmônica Maurício Einhorn, acompanhado de duas feras: Nelson Faria, na guitarra, e o nosso querido gaúcho de Frederico Westphalen, Guto Wirtti, no baixo acústico. Como se estivessem na varanda, os três tocaram standards ("The Days of Wine and Roses"e "Blusette"), clássicos da bossa-nova ("Corcovado"), MPB ("Pra Dizer Adeus", numa linda versão) e as composições de Einhorn que ganharam o mundo ("Estamos Aí" e Batida Diferente"). O repertório era escolhido na hora, segundo a vontade do líder, que se esbaldou contando histórias, chamando o homenageado Zuza Homem de Mello ao palco e falando de seus amigos gaúchos. Tudo isso com o acompanhamento luxuoso de Faria e Wirtti, ambos dando um show de musicalidade. Claro que esta atmosfera relax conquistou o público, que acorreu em hordas aos bastidores após a apresentação.
Einhorn, sua harmônica e sua banda no show mais descontraído do festival
Pra fechar a noite e o festival, o piano trio de um dos maiores instrumentistas e arranjadores brasileiros: Gilson Peranzzetta. Acompanhado do mestre Zeca Assumpção no baixo acústico e do exímio baterista João Cortes, Peranzzetta mostrou as músicas que estão no disco "Tributo a Oscar Peterson". Baseando parte do show no disco "West Side Story", de 1962, o pianista deu mostras de sua técnica impecável em canções como "Somwhere", "The Days of Wine and Roses" (de novo, dando a oportunidade de comparação entre as versões mostradas no palco do BarraShopping) e "Con Alma".
O craque Peranzzetta: formação em trio que vai além da bossa-nova
A curiosidade da noite foi a versão piano solo de "Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu, que, lá pelas tantas, se transforma em "Nunca", de Lupicínio Rodrigues. Pra encerrar, outra surpresa: a clássica "Just One of Those Things" em ritmo de samba. Dentro da tradição do piano trio, Peranzzetta e seus asseclas se saíram muito bem, mostrando que o formato ultrapassa os grupos do tempo da bossa-nova e pode apontar para uma outra sonoridade. Parabéns aos curadores Carlos Badia, Rafael Rhoden e Carlos Branco pelo belo trabalho, extensivo a toda equipe técnica e de produção, em especial a este grande produtor e uma figura amada por todos chamada Bruno Melo.