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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Melhores do Ano Accirs 2023


Como ocorre tradicionalmente, a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), da qual faço parte, elegeu os Melhores do Ano, destacados entre produções lançadas em mostras e festivais, no circuito comercial e também em plataformas de streaming. A votação é referente ao ano de 2023, quando a Associação atingiu um grande marco ao celebrar seu 15º aniversário consolidada como uma instituição cada vez mais atuante e importante no ambiente cinematográfico do Rio Grande do Sul e do país.

Dividida em dois turnos, a eleição traz os melhores longas-metragens estrangeiro, brasileiro e gaúcho, além do melhor curta gaúcho do ano. A maioria destes filmes, aliás, fomos reportando aqui no blog ao longo do ano na seção Claquete. Fora desta seleção, a premiação da Accirs entrega, desde sua primeira edição, o Prêmio Luís César Cozzatti, que reconhece filmes, projetos, instituições ou pessoas de destaque no cenário audiovisual gaúcho.

Confira os vencedores do Prêmio Accirs 2023:


Melhor curta-metragem gaúcho: 
"Centenário de Minha Bisa", de Cristyelen Ambrozio

Tocante documentário poético da realizadora indígena Cristyelen Ambrozio, confirmando a escolha da nossa associação que, em agosto, no Festival de Cinema de Gramado, concedemos-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica. O filme tece diversas camadas simbólicas, desde a visão feminina, a dos povos originários, a necropolítica, a herança cultural. Uma joia de Cristyelen, de quem se espera que rendam novos frutos.





Melhor longa-metragem gaúcho: 
"Casa Vazia", de Giovani Borba

O excelente filme de Giovani Borba, do qual tive a felicidade de participar de um debate em setembro, na Cinemateca Paulo Amorim, ao lado deste jovem realizador e da minha colega de Accirs e coordenadora da cinemateca Mônica Kanitz, era também meu preferido entre os longas gaúchos. Afinal, este thiller gaudério, misto de western e drama fantástico, pode ser visto com um marco do novo cinema no Rio Grande do Sul com obras como "Castanha" e "Mulher do Pai".



Melhor longa-metragem nacional: 
"Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho

Outro documentário entre nossos premiados, e outro documentário de um olhar muito pessoal. Mas aqui, no caso, do grande nome do cinema nacional dos últimos anos, o pernambucano Kléber Mendonça Filho. Para quem acompanha sua obra tão marcante, ver o caminho afetivo percorrido por ele para a composição de seus curtas e, principalmente, os longas urbanos "O Som ao Redor" e "Aquarius", é emocionante e revelador. Foi o filme (mal) indicado a representar o Brasil no Oscar mas, mais uma vez, não ficou entre os selecionados. Não tem mesmo o perfil, pois trata-se de uma obra muito poética para o gosto da Academia.


Melhor longa-metragem estrangeiro: 
"Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese

Ah, o velho Scorsese, hein? Já discorri mais amplamente sobre este novo filme do mestre do cinema norte-americano e mundial, mas não custa repetir, que "Assassinos..." é um dos grandes filmes de sua extensa filmografia. A visão revisionista da história "yankee" é não só mais um capítulo em seu importante papel para a reconfiguração dos mitos imperialistas como pertinente para o momento de valorização dos povos originários. Mestre.




Poster do curta "Glênio",
de Luiz Alberto Cassol e
exibido em Gramado
Prêmio Luís César Cozzatti (destaque gaúcho): 
Glênio Póvoas

Glênio Nicola Póvoas é pesquisador, professor, diretor e roteirista, Mestre em Ciências da Comunicação pela USP e Doutor em Comunicação Social pela PUC-RS. Com uma longeva carreira profissional dedicada ao cinema, em especial ao gaúcho, foi um dos principais responsáveis pelo lançamento do Portal do Cinema Gaúcho e assina a coordenação geral do projeto – um grandioso banco de dados sobre nosso cinema, apresentado em 2023. Tive o prazer de ser seu aluno na cadeira de Cinema na faculdade de Jornalismo.





Daniel Rodrigues

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Mostra de Curtas-Metragens Gaúchos - 51º Festival de Cinema de Gramado

 

Poesia que Higieniza*

A mostra de curtas-metragens gaúchos tem sido há um tempo uma atração à parte no badalado Festival de Cinema de Gramado. Vencida em sua maior parte a terrível fase da pandemia – prejudicial para produções com mais recursos, quanto mais foi para aquelas de baixo orçamento e menos experiência – os curtas produzidos no Rio Grande do Sul tornaram a tomar corpo e ganhar a devida estatura que merecem. Embora alguma desigualdade em termos de resultados finais, quando não aceitáveis deslizes técnicos, o nível dos 23 filmes concorrentes ao Prêmio Assembleia Legislativa de Cinema – Mostra Gaúcha de Curtas 2023 foi bastante satisfatório e, mais que isso, promissor.

Como vêm se adensando a cada ano, as temáticas antes “marginais”, como LGBTQIAP+, povos originários, capacitismo, xenofobia, entre outros, manifestam-se com potência junto aos realizadores. Caso de “Rasgão”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, que levou Menção Honrosa, em sua narrativa que trata da acessibilidade; ou “O Tempo”, vencedor de Melhor Trilha Sonora (Gabriel Araújo, Nina Fola e Malyck Badu) e Roteiro (Ellen Correa, também diretora), expositor de forma sutil de questões raciais e existenciais. Porém, o que mais chama atenção é o apontamento das lentes para uma visão poética do cinema, o que se observa tanto no rigor formal quanto na liberdade estética.

A intencionalidade de um cinema de poesia, dentro daquilo que Pasolini e Bressane servem de base, sustenta os curtas mais cativantes da mostra. Um deles é “Messi”, um pequeno documentário dirigido por Henrique Lahude e Camila Acosta, que traz o jovem Edu, menino pertencente a uma família moradora da cidade fronteiriça de El Soberbio, limite entre Brasil e Argentina, assistindo a um jogo das Quartas de final da Copa do Mundo 2022 em que o time do craque portenho jogava. A forma como esta tarde é contada, com suas sutilezas e percepções sensíveis, quase anulando a presença da câmera, fazem de “Messi” daqueles filmes aparentemente simples em realização, mas profundos em significados. Não à toa, recebeu o prêmio de Montagem, a cargo de André Berzagui.

"Sabão Líquido" toca em questões atuais
da sociedade gaúcha e brasileira
Outro bom exemplo de poesia cinematográfica é o conciso e forte “Sabão Líquido”, merecedor de uma das principais premiações, a de Melhor Direção para a dupla Fernanda Reis e Gabriel Faccini. Na história, um rapaz imigrante é transportado ilegalmente para o interior do Rio Grande do Sul para trabalhar na falsificação de sabão líquido. Incisivo, o filme toca em questões sociais e políticas muito presentes no Brasil (e no Rio Grande, por supuesto), como o trabalho escravo, a informalidade, a xenofobia e, principalmente, o sentimento de impunidade que o pensamento fascista concede aos exploradores. Tudo numa construção narrativa sabiamente pontual e uma rica fotografia.

Ainda, impossível não citar nesta linha de entendimento poético o belo “Fiar o Vento”, Melhor Fotografia para a também diretora Mari Moraga com suas expressivas imagens e enquadramentos da Lagoa dos Patos e da ancestral arte de fiação com lã de ovelha; e o impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio. Feminino, profundo, reflexivo. Cinema de arte. O filme trata do caminho ficcional trilhado pela própria Cristyelen – mulher indígena e egressa da primeira turma do curso superior em Tecnologia em Produção Multimídia de uma instituição pública, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) –, que redescobre sua bisavó a partir de álbuns de família. Memória e realidade se entrelaçam e se tensionam, num jogo intenso entre os elementos textuais, vídeo-artísticos e sensoriais. Com muita assertividade, a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) concedeu-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica.

trailer do impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio

De todos, no entanto, aquele que arrebatou público e crítica foi, de fato, o principal vencedor da mostra competitiva: “Concha de Água Doce”, de Lau Azevedo e João Pires. Certa unanimidade se deve, antes de mais nada, à qualidade do curta, seja em narrativa, seja na excelente montagem ou mesmo nas interpretações dos poucos personagens, uma delas o do ator Aren Gallo, que lhe rendeu o troféu de Melhor Ator. Sensível à questão da transsexualidade, o filme traz este tema como ponto central para desencadear uma travessia sem escalas no tempo físico ou emocional, o tempo que está dentro ou fora, o que se guarda no olhar ou na profundeza do mar.

O grande vencedor "“Concha de Água Doce": poesia para
tratar de questões de gênero

A se ver pelo apuro técnico, criatividade e, principalmente, pela assertiva escolha por abordagens que aproveitem as possibilidades estéticas que o cinema suscita, há de se ficar bastante satisfeito com o que o audiovisual gaúcho seguirá promovendo depois de passar por provas de fogo nos últimos anos. Como outro concorrente da mostra de curtas traz, “As Ondas”, e tal como se bradou pelos corredores do Palácio dos Festivais durante os dias de evento, é de se comemorar os novos ventos da cultura brasileira com a entrada do atual governo. A atmosfera já se mostra muito mais respirável e alentadora depois de tanto enxofre empestando o ar. Viva o cinema – e viva a poesia – para promover essa necessária higienização.

*Texto originalmente publicado no site da ACCIRS


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

COTIDIANAS ESPECIAL nº400 - A Lenda do Assubiadô



ilustração: Cly Reis
Lá é lugá de gente, mas gente de tudo qui’é feitio: gente rúim, gente humirde, trabaiadô, coroné, garimpêro, jagunço, caboclo, curandêro, ticunã, bandido, moça-da-vida. Gente do bem e otros... nem tanto. Gente viva, muito da viva, e gente que não tem nem onde caí morta, porque quando morre nem tem direito à terra pra descansá, que já não tem mais valia pra nada mêmo. E como morre gente! Ara! Gente cumo a gente que é de lá, entende, seu moço? Incrusive esse tar que o sinhô me pede pra falá. É: lá é terra de gente anssim grossêra quinem eu anssim, me adescurpe meu jeito. Gente cumo o sinhô, estudado nas estranja, conhecedô desse mundão aí fora, deve de achá inté estranho. Deve de achá que a gente é quase bicho, né? E se não é mêmo?! Anssim, quinem bicho, a gente se ‘custumô a sê tratado. Quem trabaia amarrado inté definhá pra cumê um quase-nada por dia é o quê?
Mas é terra bonita, sim sinhô! Ô, se é! Verde que não acaba mais, terra boa de se plantá. Toda a sementêra que se joga, a terra prenha. É só oiá lá as fazenda tudo. E tem de montão aquilo que os ôme mais cubiça: os ôro. Por isso, graça ao Nosso Bão Sinhô e a São Binidito, trabaio nunca fartô. Os patrão mandavo trazê gente de tudo qui’é lugá com as caçamba pra trabaiá, gente de monte quinem boiada, quinem furmiguêro, tudo amuntuado. Nem percisava de tê os dois braço. Miguelino, lá da terra do Tamborão, que diga: bão de garimpo só com uma braçada por vêiz. Será que já não definhô o pobre do Miguelino?...
Mas que bão que o sinhô me indaga essas cosa. Gosto de prosá. Anssim, a gente espanta as cosa rúim que fica grudada nos interno da gente. Não sô de protesto, não, sinhô. Ganho o meu unzinho na páiz do meu Bão Deus e na certidão que minha finada mãe me ensinô. Hoje, véio anssim, posso descansá. Mas o sinhô, vivido e entendedô, deve de sabê cumé qui’é vida de quem não tem mobral: trabaio, de bastante; mas prata, qui’é bão e de direito, um quase-nada. Por isso, lá, os trabaiadô trabaiavo tudo de cara fechada, no siso, ‘cabrunhado. Eles trabaio ainda anssim lá. Tudo brigão: se mexê, fáiz quinem carcará: bisa sem reza nem conversa. Desde de sempre foi anssim. E se não fáiz as obrigação, toma no lombo. Muita judiação, sabe, seu sinhô... Chibatada, tronco, laço de faca, de vara, taio de adaga, isso quando não é uma chupada de bala mêmo. Cosa feia de se vê. Teve um, uma vêiz, que fêiz umas marcriação e ficô dois dia no tempo dipindurado num cajueiro com os peito lambuzado de mér doce. O sinhô deve de imaginá o que as abeia fêiz com ele... Cosa do Chico Diabo, o jagunço mais marvado de lá. Ara, que esse tinha o capa-verde com ele! Mas não só ele, não! Tinha o Côsa-Feia, o Ambrosino, o Delcino Mete Bala, o Manuelzinho Bulhento, o João Tição: tudo com mardade nus’óio. Tudo cosa-rúim, tudo mafarrico, excumungado. Fêiz quarqué cosinha fora do acertado, era castigo nas carne!
Inté que um dia, um dia quarqué desses tanto, deu de aparecê pelas banda de lá um tar de Assubiadô, esse que o sinhô me apergunta. Roto, pôca carne, c’as rôpa tudo escangaiada. Cariboca feio didadó! Não prosava com ninguém. Tumbém: não sabia dizê um “ai”! Só assubiá. Nem cumê direito cumia: era só pro de si mantê di’pé e tê fortidão pra assubiá. E fazia isso com contento, sim, sinhô! A gente oiava pr’ele e ele tava com as feição dum santinho, ‘bençoado, assubiando aqueles estribio. A cara era tar a páiz de Jesuis. Ele apertava os beiço, dava um segundinho... e sortava. Um som nem fino nem grosso. Era só... bonito de se ouvi. E não digo só eu, não: todo o garimpo gostava, fosse gente ou fosse bicho. O passaredo tudo se vinha pra junto dele quando ele assubiava: aracuã, sapucaia, mutum-poranga, painho, fura-bucho, caraúna, coró-coró. Tudo, tudo se vinha pra cima das árvre cantá junto.
Fáiz muito tempo isso, seu moço. Ô, se fáiz! De primêro, ele se chegô cumo se não quisesse nada. E não queria nada mêmo. Só foi ficando pelos garimpo, ficando, assentado numa pedra, numa árvre, no mato ralo, num cabeço, assubiando. Era só o que queria. Às vêiz, usava uma fôia verde pra fazê apitá, e não é que aí era mais boniteza ainda!? Cumo não fazia mar pra ninguém – era só oiá pras feição dele que se via que não era de rinha – fôro deixando ficá ali, de garimpo em garimpo, assubiando. Quando mais qu’isso, ganhava um prato montado com os resto dus’otro. E não se quexava: cumia com gosto e com cara de ‘gradicido.
Quando o tar assubiava era cumo o canto do uirapuru no matagão fechado. Bonito cumo o cér. A gente, que vivia de cabeça quente, pela lida forçada e pela mira das espingarda, ia ouvindo aquele assubio e desmanchava um bucado da raiva, sabe? A gente ia se acarmando, acarmando, via que era milhó fazê o afazê, que se não a gente ia tá morrendo toda hora, a gente que não tinha arma de fogo e tinha poca fortidão contra os jagunço, esses, forte e gordo, que cumia as cumida boa que o patrão dava. Com o assubio do Assubiadô nos ouvido, a gente trabaiava milhó, inté com gosto, porque o tempo passava num estalo.
Mas o sinhô, seu moço, sabe que tem sempre os que não ‘guenta domá o fogo que tem no bucho, né? Pois não é que teve um jagunço que cismô com o Assubiadô? Ele, que não fazia mar pra um ramo de mureré! Isso foi logo dispois que ele se achegô por lá, e quem fêiz isso foi o Bilico Come-Dorme, jagunço do Nhô Bandêra, um gordalhão priguiçoso que só sabia cumê, durmi e inticá cuns’otro. Ele viu aquele ôme assubiando encostado no pé de um pinheiro-manso, qu’ele gostava, se achegô e foi logo destacando o punhar. “Que tu qué aqui, seu disgracento!?”, falô, arto que todo mundo escuitô. Os garimpêro tudo pararo de trabaiá; é que ninguém queria que ele morresse anssim, de faca. E dispois, ele não tava fazendo um nada! Só tava ali, assubiando cumo se nasceu nessa vida só pra fazê. Mas não é que com o punhar de fronte pr’ele o Assubiadô seguiu assubiando, carmo, na paz de Jesuis? De mó’de que ele não parô a cantiga, o capataz vortô a perguntá: “Qual tua graça? Hein, diz: qual tua graça? Não sabe fazê mais nada se não assubiá, bicho burro? Deve de sê mêmo muito burro mêmo!”, se rindo todo do Assubiadô, mas tava mêmo era com raiva dele, que não ‘parentava medo ninhum no sembrante. Cumo ele não movia uma paia, o Bilico se desgostô todo e caiu na ameaça braba: “Ah, tu não vai falá!? Qué morrê, disgracento dus’inferno?!”
Aí foi o que se assucedeu o que o sinhô quiçá nem ‘credite, que decerto só pra gente de cabeça pôca que nem a gente. É, ‘quilo foi um milagre, sim, meu sinhô, adescurpe se lhe conto o que parece troça. Mas não é, não! Por essa lúiz que me alumia! Quando o prevalecido do Bilico Come-Dorme ia lhe passá o punhar nas tripa, o Assubiadô virô os óio pr’ele, na mêma carma e... assubiô. Só assubiô. Na minha ‘gnorânça de ôme de fora, eu firmo: foi uma maravía do Nosso Sinhô. Foi cumo se o Divino que chegô naquele assopro de cantiga pro desvairido do Bilico. Não teve punhalada, nem carne rasgada. Nem mais prosa. O jagunço baixô a arma e ficô oiando nus’óio do Assubiadô, ‘dmirado. Decerto, tentando entendê o que tava se assucedendo lá no de dentro dele mêmo. Dispois, foi s’imbora pé por pé, ‘sustado, e os garimpêro, eu, ‘crusive, tudo começaro a se ri baxinho, mas que deu pra escuitá. O ôme saiu com o rabo no meio das perna, cumo se tivesse tomado uns para-te-queto do patrão!
Ô, que eu me rio todo dessas história! É bão lembrá... Só sei que dispois daquele ocurrido o tar do Bilico Come-Dorme nunca mais judiô de ninguém. Não buliu mais com ninhum trabaiadô, de móde que Nhô Bandêra lhe mandô pra imbora do garimpo pra nunca mais, que não lhe servia de nada jagunço com “modo de moça”. Foi o que me disséro – isso anos dispois –, que o Bilico tinha entrado pra igreja, e ajuda o padre numa paroquinha d’otra paragem não muito disiguar de lá. Que Deus o conduza, né mêmo, seu moço? O que eu sei é que tar do Assubiadô era um pobre que não sabia nem o seu pra-quê na vida, mas assubiava bonito as música inventada dele, e isso fazia um bem danado pros trabaiadô tudo.
E aí que começa a verdadera história desse desinfeliz de bão coração, o Assubuiadô, que o sinhô me veio de pronto indagá quem foi. Antão que chegô tão longe anssim a lenda do Assubiadô, inté lá pra suas banda, foi? Ara! Valei-me São Binidito! Foi dispois desse ocurrido com o Bilico que ele passô mêmo a sê mais um de nóis, e foi daí que ele passô a vivê com a gente, ora numa terra, ora nôtra, se ‘comodando ca’gente nas estalage, sempre assubiando seu assubio, ajudando os trabiadô a trabaiá com mais gosto. Na hora da lida, era só ele passá um meio-dia com nóis, soprando o vento pra fazê cantiga, que tudo se corria na maió das tranquilidade.
Os sim-sinhô, dono dos garimpo e das terra – o seu moço deve de imaginá –, de primêro estranharo aquilo. Querío tudo sabê quem era esse tar, por que assubiava, por que não prosava, donde saiu, essas cosa de gente desconfiada e dona dus’otro. Só que era tão meió quando ele tava, e dispois do ‘currido com o Bilico curria nos ovido que ele não bulia com ninguém, que inté os patrão não se importaro de dexá. Só ele que pudia andá por tudo, que não tinha amarração no pé quinem nóis, pro sinhô vê. Adispois, os ôme começaro a enxergá que quando o Assubiadô tava lá, assubiando enquanto os garimpêro garimpava, o trabaio rendia mais. Aí é que os patrão, que sabe ganhá as prata e usá o trabaio dus’otro, não quiséro mais que o Assubiadô fosse s’imbora.
Era tão bão quando o Assubiadô tava que os garimpo começaro a querê ele sempre, sem deixá us’otro aproveitá tumbém. Tivéro inté que se reuni o Nhô Bandêra mais o Nhô Quim, Nhô Tião, coroné Vaca-Brava, coroné Vilêga e coroné Salustiano pra mó’de organizá cada dia que o Assubiadô ia tá em que garimpo. Tudindim batido no relójo. Os jagunço já ficava esperando de banda, e quando batia a hora, pegavo o Assubiadô e levavo pr’otro garimpo. E anssim era o dia todo, zanzando pr’um e pr’otro. “E ele?”, o sinhô me apergunta? Não se desgostava. Deixavo ele assubiá, antão tava mais de bão pr’ele. Decerto, nem atinava que passô a sê mais um trabaiadô cumo nóis. Só que ao invéis de trabaiá com os braço e mercúro nas mão, ele só usava os beiço. Nem percisava de mais nada.
Anssim foi por um bão dum tempo. Foi o tempo mais bão que teve por lá, isso é acertado. Os garimpêro passaro a trabaiá mais e meió, e anssim passaro a rendê mais prata pros patrão. Os patrão, anssim, começaro a de tê mais prata que já tinho, e pra móde de não perdê o que já tava bão, passaro a dá mais prata tumbém pros garimpêro. Época boa ‘quela, seu moço! Ô, se foi! Época de pogresso. Os garimpêro não trabaiava mais de fuça cerrada, río trabaiando e fazío as cosa com gosto. Teve inté uns que queria bamburrá iguar aos patrão! Todo mundo teve menos moléstia; tomavo agora água limpa; os bodeguêro vendío muito mais quebra-goela e di-cumê. Inté as ramêra tínho mais criente pra fazê ‘quilo que os ôme e as muié gosta de fazê.
E o assubio do Assubiadô voziando tudo a gente todos dia.
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A vida de todo mundo miorô, e parecia que as cosa ío ficá daquele jeito bão que tava. Mas o sinhô sabe, né, seu moço, que nesse mundão erva má depressa cresce. Não se ademorô muito prus´ôme começá a se disintendê. Foi só o coroné Vilêga, um que falava todo ‘revezado, se apercebê que os garimpo do Nhô Quim e do Nhô Tião tava dando mais riqueza, e que os estrangêro tava começando a comprá mais deles, que as brigaiada começaro tudo de novo. Adispois, ‘inda por cima o Nhô Bandêra enfiô na cabeça que o coroné Salustiano tava mandando os garimpêro dele tirá ôro das terra que era de seu pertence. E isso era desverdade, seu sinhô. Valei-me São Benidito se eu tivé dizendo cosa errada! É que o Nhô Bandêra, sempre de ôio nas cosa dus’otro, não gostava do Salustiano, e isso era briga antiga das famía. Mas como o povo diz: “Em tempo de guerra, mintira é cumo terra”. Aí foi que se desintendêro tudo. Promessavam de morte, pararo de dá as prata boa pros garimpêro e inté as corrente vortaro pra prendê os trabaiadô. O Assubiadô, que nem sabia o que tava se assucedendo, paricia fole de oito-baxo: ia pra lá, ia pra cá. Não tinha mais paradêro. Tudo os patrão querío ele e não tinha mais combinação de relójo. Só pra móde tirá vantage um d’outro. Era a hora que eles querío e pronto!
A cosa toda foi de um jeito que se estragô o que tava bão. Ninguém trabaiava mais cum gosto nem podia comprá mais pinga nem aporveitá as noite no meretriço. Tudo vortô a sê cumo era de antes do Assubiadô chegá: cara triste, vida sofrida, tóchico, bibida, morte de arma, judiação, desatino de cabeça por causa dos mercúro. Nem o assubio dele ajudava mais os garimpêro, porque os jagunço pegavo ele toda hora toda hora. Mar dexavo ele ficá num garimpo só, e os garimpêro nem conseguia mais escuitá as cantiga de assubio dele.
Me adescurpe do que eu vô lhe falá, seu moço, mas é verdade verdadera: o bicho ôme não sabe arresorvê as cosa dotro móde que não na rinha. Foi anssim que o coroné Vaca-Brava, ôme marvado por demais, arresorveu o embaraço: se não era ele a tirá vantage, ninhum dus’otro patrão igual ele que ia tirá. Ele mandô o Chico Diabo mais trêis capanga ‘traiz do Assubiadô, tudo de cospe-fogo na mão. Não foi difícer de achá o Assubiadô. Tava ele lá, encostado no pinheiro-manso que ele gostava de se encostá pra assubiá pro ar. Não fêiz movimento ninhum quando oiô o camionetão do coroné Vaca-Brava enfreá de pertinho dele, de móde que a puêra se foi toda pra cima dele. Os capanga – gente tisnada, que Deus me aperdoe! –, descêro no depressa cumo se o pobre do Assubiadô fôsse corrê ou ameaçá eles. Óia só o sinhô, que desabsurdo! O Chico Diabo, esse sim com o cão-tinhoso por de dentro, veio carmo, mas ‘quela carma de quem tá seco pra metê bala, se lambendo, que gostava duma morte matada.
Foi antão que o Chico Diabo escarrô no chão um cuspe grosso e disse pro Assubiadô: “Vai ‘subiá pro diabo ‘agora, seu desinfeliz!”. O Assubiadô ficô só parado, sem medo ninhum, nem raiva paricia sintí. Antes de se ouvi o estampido, diz que ele esticô o braço na direção do Chico Diabo ‘ferecendo a fôia verde qu’ele fazia as música. Se fêiz ‘quele clarão. Tar um sor que se nasce e logo em siguidinha ‘noitece...
Mas o fío do tisnado do Chico Diabo não se contava cunh’essa: com a espingarda mirada, ele oiô de banda, pra que nenhum garimpêro se bobiasse em querê se provalecê ou desforrá por causa do Assubiadô. Só que quando foi oiá de novo pro cadáve... quedê? O Assubiadô: quedê? Estranhô tanto o jagunço e os ôme dele que se alevantaram tudo as arma de novo, ‘sustado que ficaro. Os garimpêro tudo parado, sem se mexê, sem dizê um “ai”, que quarqué cosinha cumia bala de novo cun’sôme naquele nervoso que tava. Foi antão que se tornô a ouvi um assubio. E era o assubio... tar e quar do Assubiadô! E vinha da árvre ‘quele som. Será que era dos passarim? Será qu’ele tava lá escundido?
Todo mundo se arvoroçô, sem ninhum entedimento, e foi aí que o Chico Diabo virô diabo mêmo! Só que de raiva. Ele cuspiu fogo pra riba, e um passarim saiu vuando do meio da copada, ‘sustadinho. Só que o assubio não parô. O Chico Diabo, sem sabê o que fazê, falô arto: “É tu que tá iscundido, disgracento?! ‘Parece! ‘Parece aqui, que eu vô te metê bala no teu bucho de novo!” Brabo que tava. O sinhô sabe qual foi o retruco? O assubio. Que continuô lindo daquele jeito que só o Assubiadô fazia. E não parava, e não parava. O Chico Diabo se vortô pra oiá se não era ninhum garimpêro que tava se engraçando em ‘remedá o assubio do Assubiadô. Mas não era, não: tava tudo de bico fechado, cun’beiço pregado de vexado que tava tudo. Devia de pensá o Chico Diabo: cumé que podia o disgracento fugi se tinha ele certidão que tinha metido bala no desinfeliz? Foi antão que o Chico Diabo, pra móde não passá vergonha na frente dos trabaiadô que ele bulia, pegô os ôme dele no ligêro e se foi-se ‘imbora no camionetão do coroné Vaca-Brava cuspindo fogo pelas venta.
Ficô tudo mundo estaqueado, sem entendê o assucedido. E o assubio do Assubiadô cismava nus’ovido da gente. Ou era os passarim das árvre que fazia? Ficô uns achando disconfiado que fosse sempre o gogó dos bichinho que assubiava, e não o Assubiadô. Pudia. Mas pudia sê tumbém que o espetro daquele ôme tivesse ido pra árvre, aquele pinhêro-manso qu’ele tanto gostava, que já era quase iguar a ele mêmo: árvre e gente. Teve inté um que disse: “É o espríto dele, cês não enxerga?” Eu, seu moço, posso lhe dizê que eu não vi espríto ninhum. Mas vai sabê se não era mêmo? Otros, inda achava que era o Assubiadô mêmo, que tava já lá no cér essas hora encostado num travissêro de núve assubiando pros lá no chão, se rindo, gracejado.
Ninguém sôbe dizê donde foi pará o cadáve do Assubiadô. Se fugiu, se saiu avoando, se entrô pra dentro da árvre. Era tão minguado o judiado que, no acertado, um tiro só serviu pra fazê ele sumi todinho duma vêiz só! Só sei lhe dizê que não que dispois desse ocurrido ninguém mais enxergô o Assubiadô, nem lá nem em lugá ninhum paricido ou desparicido c’aquele.

Quero não tê ‘borrecido o sinhô cué’ssa história toda. Foi não? Bão! Me dá sastisfação de sabê. Inda mais hoje, que vivo aqui, tão longe de lá d’onde passei tanto tempo da vida. E adispois é o sinhô que tá me fiando, o sinhô, sujeito letrado, conhecedô das cosa boa desse mundão aí. Decerto, deve de tê mêmo nessa história ‘cabrunhada que lhe prosei cosa boa tumbém, né? E adescurpre se distraí dalgum bucadim de história. Cabeça de gente véia quinem eu dêxa passá as cosa. É que já fáiz tanto tempo isso tudo! Ara, se fáiz! Me arrecordo bem sim é de quando foi esse ocurrido: otubro de doismilequinze.


A Lenda do Assubiadô
a partir do argumento original de Lucio Agacê
ilustração de Cly Reis