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sexta-feira, 31 de maio de 2019

"O Beijo no Asfalto" de Bruno Barreto (1981) vs. "O Beijo no Asfalto" de Murilo Benício (2018)



Partamos de um fato: “O Beijo no Asfalto”, de Bruno Barreto, de 1981, é daqueles filmes perfeitos. Ou seja: muito difícil de ser batido. Mesmo que não signifique estar no nível de um “Terra em Transe” ou “Vidas Secas”, perfeitos como obra de arte até em suas "imperfeições", esta primeira versão da peça icônica do escritor Nelson Rodrigues, original de 1961, é impecável como obra cinematográfica e como adaptação audiovisual. Assim, qualquer comparação que lhe seja atribuída tende à desigualdade para com o outro lado. É como aqueles times que entram em campo com amplo favoritismo.

O raciocínio que se tem, portanto, quando se compara com a nova versão para o cinema de “O Beijo...” é de superioridade, certo? Sim, mas nem tanto assim. O jogo, que parecia ser fácil, encrespa logo que a partida começa. Surpreendentemente bem realizado, o longa assinado por Murilo Benício, em 2018, apresenta uma série de qualidades que, se não o põe na mesma altura do primeiro, ao menos rivaliza em alguns aspectos e até traz novos, que os dão personalidade como obra. Este, tive a oportunidade de assistir na seção do projeto Cinepsiquiatria, no GNC Cinemas do Praia de Belas, em Porto Alegre, que contou como debatedora convidada com a filha de Nelson, a também escritora Sônia Rodrigues.

A premissa de ambos os filmes é a mesma: o jovem recém-casado Arandir (Lázaro Ramos) presencia um acidente e, ao correr para socorrer a vítima, recebe do moribundo sujeito um último pedido: um beijo. A súplica pelo gesto de afeto é atendido, mas acaba repercutindo negativamente, o que faz com que Arandir tenha sua sexualidade e integridade questionados por sua família e pelas autoridades. Tudo se desenrola em um efeito bola de neve, fazendo com que Arandir seja transformado em inimigo do modelo de sociedade no qual vive, o que lhe custa a paz e a liberdade.

As atuações e a escolha do elenco são um ótimo exemplo da paridade entre as duas realizações, a dos anos 80 e a do ano passado. Se no filme de Barreto os personagens centrais são encenados por Tarcísio Meira, como Aprígio, Ney Latorraca, como Arandir, Christiane Torloni, como Selminha, e Oswaldo Loureiro, como Cunha, no de Benício, o pai de Selminha é feito por outro craque da antiga geração do teatro e cinema, Stenio Garcia, enquanto ela, a filha, tem uma Débora Falabella muito expressiva. O protagonista Arandir também fica no mesmo patamar ao reviver o personagem com o invariavelmente competente Lázaro Ramos. A talvez única vantagem da primeira versão é a representação do inescrupuloso e sensacionalista jornalista Amado Pinheiro, que mesmo com a ótima atuação de Otávio Müller na produção atual, não supera a de Daniel Filho, uma das mais brilhantes performances de um ator do cinema nacional. Augusto Madeira, fazendo o novo Cunha, quase desempata essa conta de tão bem que está, mas é fato que o personagem do policial corrupto não tem tamanha importância na trama quanto o de Amado.

Segundo quesito: a narrativa. O primeiro filme traz um formato linear, acompanhando a estrutura das cenas da peça. Já na nova, a história também respeita a cronologia dos acontecimentos, porém num conceito work in progress, registrando documentalmente uma leitura de atores para uma montagem da obra de Nelson que está se constituindo. Na mesa de leitura, o ator e diretor teatral Amir Haddad como ele mesmo e os próprios atores, os quais protagonizam as cenas tanto ali quanto fora, intercalando espaços com ou sem cenografia. Assim, Benício amarra com muita propriedade os universos cênicos do teatro e do cinema e o imagético, aquele da natureza interna do filme. Se Barreto obtém êxito ao contar bem uma história de forma clássica, Benício inova ao resgatar a mitologia que tanto a peça quanto, de forma indireta, o primeiro filme carregam.

"O Beijo no Asfalto", de 1981

"O Beijo no Asfalto", de 2018


Ao subverter a narrativa tradicional, Benício apresenta soluções muito interessantes às sequências, pensando de forma individualizada cada cena. O ritmo é permanentemente sustentado, mantendo o interesse do espectador e, principalmente, sem perder as conexões entre um ato e outro. Ousadia difícil de se realizar, mas obtida por Benício. Entre os trunfos dele está a presença de Fernanda Montenegro, dona das cenas em que aparece. Atuando, ela interpreta a fofoqueira vizinha Matilde, a qual, se não tem a força interpretativa de Fernanda, é feita muito bem por Thelma Reston na primeira vez.

A fotografia também tem acertos conceituais em ambas as produções. Um dos melhores fotógrafos de sua geração, Murilo Salles (que se tornaria um dos principais cineastas brasileiros a partir dos anos 80), faz transmitir na pigmentação quente e nas sombras duras a tensão e o obscurantismo daquele ambiente cotidiano aparentemente estável, mas altamente sensível, opressor e falso. O filme de Benício, no entanto, não fica para trás no aspecto visual. Outro excelente fotógrafo – e também ilustre cineasta –, Walter Carvalho, é quem assina a direção fotográfica do novo longa, o qual opta por um P&B bastante marcado e com ares noir. Se no primeiro a coloração e o figurino se adéquam à representação temporal – haja vista que o roteiro faz a história se passar no que seria um início de anos 80, época em que o filme foi rodado –, o novo é fiel à temporalidade idealizada por Nelson, anos 50/60, o que faz com que sua fotografia antiga também se justifique muito bem.

Aliás, uma pequena vantagem para o primeiro: ser um dos filmes de "resistência" em uma época de censura e Ditadura Militar no Brasil. De forma nem tão sutil, mostra a atuação criminosa da polícia tanto nos interrogatórios de Arandir e Selminha quanto, ainda mais grave, deixa bem evidente quando ela é torturada e abusada numa casa clandestina, procedimento típico da repressão militar. O filme de Benício vem num outro momento histórico do Brasil também bastante perturbado, mas respaldado pela democracia conquistada a muito custo pela geração de Barreto.

Em suma, o que diferencia os dois filmes nas qualidades que ambos têm são os roteiros. O recente, assinado pelo próprio Benício, faz o filme ganhar níveis metalinguísticos muito apreciáveis tanto nas autorreferências da própria obra quanto no que se refere à linguagem cinematográfica e sua relação intrínseca com o teatro. Assim, ao mesmo tempo em que é fiel ao texto de Nelson nas falas e diálogos, também é capaz de desconstruir a estrutura da trama.

Já no filme de 1981, o roteirista Doc Comparato acerta no equilíbrio narrativo, que mantém o espectador grudado na tela o tempo inteiro. Mais do que isso: verte com precisão o texto teatral para o formato audiovisual. Aí é que está o talvez grande diferencial do filme de Barreto: a prevalência da linguagem do cinema. Não que o atual também não tenha sucesso na abordagem escolhida, mas a perspectiva funcional que o primeiro encerra lhe dá um considerável ganho.

Esse entendimento fica muito claro nas sequências finais: enquanto o filme de Benício mantém a discussão de Arandir e Aprígio dentro do quarto do pequeno hotel, onde acontece o assassinato do protagonista, a versão de Barreto inteligentemente desloca a cena para outro espaço cênico: o meio da rua. E isso faz toda diferença! Ali transcorre-se quase o mesmo desfecho, porém sob o cenário onírico da velha e misteriosa Lapa carioca. Mas Barreto reserva um segundo e imbatível lance, como um drible inesperado. Ele e Comparato adicionam à cena um gran finale: depois de balear Arandir (Latorraca), que cai agonizante sobre as pedras cúmplices do famoso bairro sob as luzes da noite boêmia, Aprício (Tarcísio) lhe junta do chão e lhe tasca um beijo. Um único, desesperado, amaldiçoado, vingativo e apaixonado beijo.

Se o filme de Benício recorre à metalinguagem na abordagem, o de Barreto a insere no âmago da história, em seu momento mais catártico. Afinal, a que “beijo no asfalto” o título realmente se refere? Um acréscimo próprio de quem domina a arte de fazer cinema. Um final digno dos maiores de todos os tempos no cinema nacional. Considerando a já mencionada perfeita condução narrativa que antecede a cena, esta, quando chega, ganha uma nova dimensão simbólica. Com esta, Barreto faz um golaço. Um golaço de misericórdia pra passar a régua e fechar a conta.

Conceitos fotográficos diferentes: o primeiro, coloração quente e opressiva, o segundo, P&B sombrio e impessoal, ambos para expressar o angustiante labirinto social vivido pelo Arandir de Barreto (Ney Latorraca) e de Benício (Lázaro Ramos).


Com méritos, Benício ousou, porém, anos atrás, Barreto já tinha ido ainda mais fundo ao subverter uma obra que poucos teriam peito de alterar. Mesmo que o filme de Benício tenha jogado um bolão, a experiência de Barreto fez a diferença na hora certa. Como aquele jogo que se mantém de igual pra igual na maior parte do tempo, mas que, no detalhe e na qualidade individual, um deles se sobressai. Aí, não tem como segurar. Benício “pecou” justamente por se manter totalmente fiel à peça, como um time bem treinado que executa a determinação do técnico à risca, mas não tira da cartola uma solução surpreendente. Na maioria das vezes essa disciplina tática funciona, mas quando pega um adversário que o craque é capaz de definir, a “arte” decide o jogo. 





Daniel Rodrigues

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Música da Cabeça - Programa #96


Agora que Estados Unidos e Rússia inventaram de reaquecer a guerra que já foi fria, preparemos, nós, as nossas ogivas. Mas as ogivas sonoras, claro, aquelas carregadas de Ben Harper, Cartola, Os Replicantes, Brian Eno, Fernanda Abreu e muito mais. Isso e ainda nossos quadros “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e “Cabeça dos Outros”. Mísseis audíveis a longas distâncias serão lançados no Música da Cabeça de hoje, direto da usina da Rádio Elétrica, às 21h. Produção, apresentação e bombardeios: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

T-Rex - "The Slider" (1972)




A capa e seu verso,
concebidas por Ringo Starr
"Aí veio “The Slider”
e nele tinha "Metal Guru".
Foi uma música
que mudou a minha vida.
Eu nunca tinha ouvido
nada tão bonito e tão estranho,
e ainda assim tão cativante.“
Johnny Marr,
Ex-guitarrista do The Smiths




Marco do glam-rock, “The Slider”, álbum da banda britânica T-Rex confirmava uma recente idolatria em torno de seu líder, o carismático e sagaz Marc Bolan. O Tyrannossaur Rex,  nome original da banda que ficou mesmo conhecida por sua simplificação abreviada, contava, entre tantos fãs com a admiração de ninguém menos que David Bowie, fã declarado, que, de certa forma, se inspiraria em toda a proposta estético-sonora de Bolan e sua turma para construir seu ícone Ziggy Stardust.  Enquanto a produção ficava a cargo de Tony Visconti, parceiro de Bowie no álbum "Space Oddity", a arte do álbum, marcante, com Bolan usando uma cartola, foi concebida por ninguém menos que o Beatle Ringo Starr, também admirador confesso do trabalho do T-Rex. Estava mal de fãs o T-Rex? Bowie e Ringo?
A gostosa “Metal Guru” e a envolvente “Telegram Sam”, que posteriormente viria a ganhar uma versão bem interessante pela banda Bauhaus, foram os grandes sucessos do disco mas o ótimo “The Slider” não se limitava a estas duas. A faixa título é contidamente pesada, “Rock On” e “ Buick Mackane” são rocks venenosos e contagiantes, enquanto a adorável “Mystic Lady” e a balada acústica “Ballroom of Mars” são momentos mais suaves nos quais Bolan desfilava todo o potencial de seu vocal ácido e elegante.
“The Slider” é um dos discos mais importantes e um dos mais influentes da história do rock, tendo inspirado um grande número de artistas a partir de seu lançamento, tanto estética quanto musicalmente.  Que o digam Morrissey, Green Day, Bauhaus, Siouxsie, My Chemical Romance, R.E.M., só para ficar em alguns.
***************

FAIXAS:
1. "Metal Guru" (2:25)
2. "Mystic Lady" (3:09)
3. "Rock On" (3:26)
4. "The Slider" (3:22)
5. "Baby Boomerang" (2:17)
6. "Spaceball Ricochet" (3:37)
7. "Buick Mackane" (3:31)
8. "Telegram Sam" (3:42)
9. "Rabbit Fighter" (3:55)
10. "Baby Strange" (3:03)
11. "Ballrooms of Mars" (4:09)
12. "Chariot Choogle" (2:45)
13. "Main Man" (4:14)

***************** 
Ouça:



por Cly Reis

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Copa do Mundo The Smiths - Final


Chegou o grande momento!
Chegou a hora da tão  esperada final.
"Girl Afraid", canção  que oficialmente  não  saiu em álbum, mas aparece na compilação Hatful of  Hollow mas que aparece em outras coletâneas da banda de Manchester, com bravura, derrubando adversários difíceis, chega à final para encarar "There's A Light That Never GosOut", canção do clássico disco "The Queen Is Dead", considerado por muitos o melhor do grupo, e por outros tantos até mesmo, o melhor álbum de rock de todos os tempos. Será?
Mas aqui não importa fama, cartaz, favoritismo. Tudo se decide dento de campo e, como diria aquele antigo narrador, "Você quer bola rolando? Ta aí o que você queria!". 

***

GIRL AFRAID
x
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT


Fernanda Calegaro: No início, pensei que a competição acabaria em uma final sarcástica entre Heaven Knows I’m Miserable Now e This Charming Man, por exemplo. Mas nossa final transporta ao parque de diversões, sendo assim, There’s a Light That Never Goes Out desempata no início do segundo tempo e avança com dois golaços pra montanha-russa alguma ficar entediante. 5X3.
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Eduardo Almeida: E chegamos a final. Grandes equipes ficaram pelo caminho. Confesso ter ficado surpreso com essa final. Mas como já diziam: futebol é uma caixinha de surpresas. Duas equipes fortes com táticas distintas. Ritmos de jogo diferentes. E com calma, There's a Light marca seu gol e termina o primeiro tempo na frente. Pra quem achava que com seu ritmo mais acelerado, Girl Afraid não iria manter a velocidade do seu jogo, se enganou. Voltou pro segundo tempo com um ritmo mais cadenciado, e empata o jogo logo no início. Ambas as equipes tem boas oportunidades de marcar, mas suas defesas estão atentas. Até que dá um apagão na defesa de There's A Light, e Girl aproveita e vira o jogo. TIALTNGO parte pra cima, aperta GIRL, coloca duas bolas na trave, mas não tem sorte. O goleiro chega ir para a área adversária para tentar um gol que levaria a um empate e a decisão por penaltis. Mas não conseguem..... Final: Girl Afraid 2 X 1 There's A Light That Never Goes Out.
GIRL AFRAID vence!

José Júnior: Estádio lotado, garotas e garotos medrosos... chegou a grande final. Girl Afraid começa o jogo com um ataque melódico. There's A Light That Never Goes Out toma a posse da bola e começa o jogo marcando um gol de letra. GA reage empatando o placar. Dois timaços, duas músicas emblemáticas dividem a atenção da platéia, onde não há vaia, somente gritos de torcidas unidas. E a bola corre como se um caminhão de dez toneladas a mantivesse no chão. There's A Light dribla, num estilo Garrincha, e manda o gol da vitória!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Patrícia Ferreira: O jogo que tem There Is A Light That Never Goes Out com a força da torcida. Encara Girl Afraid que vai pra cima atacando com veemência. Quase há um empate ... Ops!!! Mas o tira-teima mostrou a real vencedora: There is light 😍
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Daniel Rodrigues: O placar pode até dar a entender que foi um jogo de igual pra igual. De dois adversários de qualidade, foi com certeza. “Girl”, mais que o azarão que chegou até a final depois de passar por clássicos como “The Queen is Dead” e “The Boy With The Thorn In His Side”, é, sem dúvida nenhuma, uma grande música dos Smiths. Guarda vários dos elementos essenciais da banda: guitarra original de Marr, bateria possante de Joyce, baixo surf music de Rourke e, claro, a performance e letra irrepreensíveis de Morrissey. No outro lado do campo, no entanto, tem “There’s”, das mais célebres canções da banda, um de seus hinos. Balada sensível daquelas que tocam sempre que se escuta. Como disse no início, parecia um jogo equilibrado. Foi assim que o primeiro tempo transcorreu: “There’s” larga na frente ali pelos 25 min e 10 min depois “Girl” empata. Tudo igual. Só que no segundo tempo, pesou a camiseta. Para bem e para mal. “Girl”, atrevida e de jogo contagiante, mostrou que tinha dado tudo que podia na Copa, e não conseguiu resistir ao volume de jogo coeso e bem estruturado de There’s”. O hit de “The Queen is Dead” impôs seu estilo cadenciado e marcante e guardou, aos 32 min, o gol da vitória. O gol do título. 2 x 1 para “There’s”, que se consagra a campeã da Copa Smiths!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Cly Reis: Duas grandes equipes chegam à final. Girl Afraid menos badalada quando se fala em paradas de sucesso ou predileção dos fãs, e There's A Light That Never Goes Out gozando do status de megahit e semi-hino smithiano. Nessa avaliação, vemos TIALTNGO com um leve favoritismo, mas o rock'n roll é uma caixinha de surpresas e, como já diria aquele folclórico cartola, o jogo só acaba quando termina. 
Pois bem, e não é que Girl Afraid já sai surpreendendo com um gol na primeira jogada? Aquele riffzinho inicial de Johnny Marr garante 1x0 no placar antes do primeiro minuto de jogo. Mas There's A Light não deixa por menos e também em sua primeira incursão ao ataque, aquela introdução que precede o primeiro verso de Morrissey, e que sempre me faz amolecer as pernas, garante o empate. 1x1 em menos de três minutos. Que jogo, senhoras e senhores!!!
O jogo continua com as equipes trocando ataques nas suas caraterísticas, Girl Afraid um pouco mais impetuosa, TIALTNGO mais cadenciada, mas ambas levando perigo ao gol adversário. Até que o refrão de There's A Light That Never Goes Out desequilibra: "And if a double-decker bus/ Crashes into us/ To die by your side/ Is such a heavenly way to die". Aquele desprendimento da vida em noe de ficar ao lado da pessoa amada é um golaço indefensável. Girl Afraid sente o gol, fica meio perdida em campo e na seuqência, na segunda parte do refrão, "And if a ten-ton truck/ Kills the both of us/ To die by your side/ Well, the pleasure - the privilege is mine", leva outro. É a pá de cal. There's A Light dá números finais ao jogo. 3x1. Soa o apito final e THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!



THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT
CAMPEÃ DA 
COPA DO MUNDO 
THE SMITHS



Obrigado aos convidados Patrícia Ferreira, Fernanda Calegaro, Eduardo Almeida, José Júnior, Cláudia B. Melo e João Carneiro que participaram dessa nossa brincadeira. Vocês foram demais!

terça-feira, 17 de abril de 2018

A Dona do Samba

Lembro que nas primeiras aulas de redação da faculdade de Jornalismo, meu professor Vitor Necchi nos ressaltou que a regra para se chamar pessoas num texto jornalístico era ou o nome completo ou, nas repetições do mesmo, o sobrenome para homens e o primeiro nome para mulheres. A exceção à regra eram personalidades especiais, cujo nome diferenciava-se dos outros por si. Casos em que o nome representava mais do que simplesmente uma certidão, mas, sim, um status, uma classificação, uma imposição daquilo que a pessoa se transformara e representara em vida.

Alguns exemplos, rememoro, eram Mãe Menininha do Gantois, Dona Canô e Mestre Marçal. E Dona Yvone Lara. Aos 97 anos, recém completos no último 13, praticamente a mesma idade do gênero musical que ela ajudou a forjar e desenvolver harmônica e melodicamente, o samba, Dona Yvone parte. Corpo debilitado de quem, como todo preto do subúrbio da primeira metade do século XX (e ainda, mulher), precisou trabalhar duro a vida toda – no caso dela, a enfermagem e o serviço social, que exercera durante décadas até se aposentar, sem, contudo, nunca deixar a batucada de lado. Mas a mente lúcida, criativa, incansável. Diz que levou para o céu 40 composições novas.

Mesmo a idade avançada e a saúde fraca há anos não são suficientes para amenizar o vazio que se faz presente. Vazio que toma a quadra do Império Serrano, como uma cuíca chorosa que, de repente, para de chorar, substituída pelo silêncio. Ao menos hoje, é o que se sente. Ficam vagando, no lugar, as melodias elegantes de quem estudara com Heitor Villa-Lobos ,mas que, ao natural, instintivamente, já de antes das aulas com o maestro adicionava elementos bachianos ao samba. Quem haveria de contrariar ao ouvir “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”, “Confesso”, “A Sereia Guiomar”, “Aprendi a Sofrer”? Como ela, neste sentido, só Cartola.

Acordo sempre com alguma música na cabeça. Sei que havia uma das milhares que me ocorrem ao acordar hoje, mas não lembro mais qual.  Ao saber da notícia da morte de D. Yvonne, imediatamente a esqueci, e minha mente (ou meu coração) escolheu para rodar “Força da Imaginação”, a luxuosa parceria dela com Caetano Veloso. Estão aqui seus acordes e seus versos, ainda agora, enquanto escrevo essas linhas de lamentação. Quero acreditar e acredito nos seus versos:

"Quando um poeta compõe mais um samba
Ele funda outra cidade
Lamentando a sua dor ele faz felicidade
Força da imaginação
Na forma da melodia
Não escurece a razão
E ilumina o dia-a-dia”

Parte, Dona Yvone, com a força da tua música, dos repiques do samba, das melodias bachianas, da potência de fundar uma cidade. Parte com a alcunha que poucos, pouquíssimos, tiveram e terão o merecimento de serem redigidos fora do padrão. É pra quem pode.


Recebam-na com um pagode festivo aí, amigas Jovelina e Clementina.

"Tristeza rolou dos meus olhos de um jeito que eu não queria". 

Paciência. 

Parte, Dona do Samba, com um sorriso e um abraço negro.

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"Mas quem disse que eu te esqueço" - Dona Yvone Lara

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DONA IVONE LARA
(1921-2018)

Daniel Rodrigues

sábado, 10 de março de 2018

Elas metem medo




As canadenses irmãs Soska
nomes de destaque na nova cena feminina do terror.
Durante muito tempo, devo admitir, nutri uma série de restrições a filmes dirigidos por mulheres. Com exceção de algumas diretoras como Agnés Varda, Jane Campion, Agnieszka Holland, Sophia Coppola e mais uma que outra ou alguma obra eventual, de um modo geral torcia o nariz para filmes de realizadoras. Não por julgá-las menos capazes ou talentosas para a atividade, mas muito em função da própria identidade criada em torno de suas obras, fruto das limitações ou das imposições  estabelecidas pelos estúdios e da própria expectativa comportamental apregoada pela sociedade machista, que com seus dogmas como "isso não é coisa de menina", "mulher tem que ser comportada", entre outros tantos, acabou por padronizar o produto cinematográfico feminino tornando-o, muitas vezes, previsível e enfadonho.
Mas os novos tempos, o surgimento de um novo pensamento no tocante a gêneros e uma nova atitude feminina, associada à abertura, ainda que pequena, de oportunidades e confiança por parte de produtores fez surgir uma nova geração de cineastas "de saias" cheia de ideias, vigor e talento. Desatreladas dos padrões estabelecidos como "femininos", elas abordam, sim, assuntos pertinentes à sua condição de mulher, mas o fazem de maneira mais inventiva, ousada e reflexiva. No terror, por exemplo, estilo cujos princípios básicos sempre foram veementemente apartados das mulheres desde suas infâncias ("menina não vê essas coisas", "isso é muito nojento", "tem que ver filme de princesa"...), e no qual muito raramente figuravam até dez, quinze anos atrás, parece agora encontrar uma safra criativa, madura e livre dessas amarras estéticas e morais capaz de produzir bons trabalhos e imprimir sua identidade. Selecionamos, aqui, alguns destes filmes dirigidos por mulheres que mostram que elas começam a se destacar num dos gêneros até então mais predominantemente masculinos do cinema, com bons argumentos e trabalhos muitíssimo bem realizados. Podem começar a ficar com medo porque elas estão chegando.




1. "O Babadook", de Jennifer Kent (2014) - Um dos filmes de terror mais assustadores dos últimos tempos numa história repleta de símbolos e metáforas que aborda temas como perdas, a maternidade sozinha e estados psicológicos conflitantes e relação a um filho, com muita criatividade e inteligência.
Amelia perde o marido em um acidente de carro no dia em que está para ter seu bebê e a partir dali passa a, de certa forma, responsabilizar o filho pela perda e a todos os problemas decorrentes daquela ausência, nunca dedicando o amor e a dedicação que deveria a ele. O menino Samuel, com 6 anos, tem problemas de comportamento na escola, um temperamento difícil e uma mente muito inventiva e a mãe não lida nada bem com nenhuma destas situações tratando-o com indiferença, negligência e até raiva. Num dos raros momentos em que reúne paciência para dar alguma atenção ao garoto, resolve ler para ele e encontra na estante um livro que não conhecia chamado Mister Babadook e aí que os problemas começam de verdade pois o personagem do livro, um homem de capa, cartola, corpo esticado e unhas enormes, lembrando um figura de expressionismo alemão, começa a atormentar e ameaçar o garoto e a mãe e, pelas páginas do livro anuncia que não irá deixá-los em paz.
Talvez a criatura seja somente fruto da mente confusa e inventiva de Samuel, talvez seja realmente apenas um livro do mal, talvez o pai retornando do além, ou ainda, talvez seja nada menos do que o próprio estado mental de Amelia em relação ao filho e a projeção e materialização de sua negação a ele, da qual ela só conseguirá se livrar se conseguir lidar com isso.





2. "Raw", de Julia Ducournau (2016) - Terror forte, intenso, pesado, chocante, com cenas gráficas de canibalismo mas que não deixa de trazer assuntos interessantes à tona. Maturidade, sexualidade, autodescoberta e autoaceitação são alguns dos temas presentes em "Raw" , ótimo filme da francesa Julia Ducournau de apenas 34 anos.
Uma garota vegetariana que acaba de entrar na faculdade de veterinária, Justine, em um dos trotes pesados impostos pelos veteranos é obrigada a comer rim de coelho, mudando então drasticamente seu comportamento a partir deste momento, passando não somente a comer carne como a ter atitudes estranhas e assustadoras. A carne parece ter libertado a Justine que estava presa dentro dela. A verdadeira Justine. Uma pessoa que se escondia atrás do vegetarianismo, da virgindade, da pureza, de valores que na verdade talvez não tivessem a importância que ela queria fazer crer. Uma volta ao mais primário instinto do homem. O instinto animal.






3. "Boa Noite, Mamãe", de Veronika Franz e Severin Fiala (2016) - Um dos filmes mais perturbadores que já assisti. "Boa Noite, Mamãe" é tenso do início ao fim. Sua limpidez e calmaria, sem sustos ou sobressaltos, contrasta com a tensão presente no ar o tempo inteiro. Uma mulher volta para casa depois de uma cirurgia plástica no rosto mas seus dois filhos gêmeos, Elias e Lukas, têm dúvidas se aquela mulher que retorna é mesmo sua mãe. A atadura no rosto, sua atitude ríspida, sua indiferença e uma série de outros pequenos indícios fazem com que os garotos, num primeiro momento a confrontem e adiante, a mantenham prisioneira chegando a torturá-la física e psicologicamente em busca de uma confissão e da revelação do paradeiro da verdadeira mãe.
O filme muito bem dirigido pela austríaca Veronika Franz em parceria com Severin Fiala faz questão de deixar uma série de questões em aberto de modo a manter o espectador curioso e intrigado. O que houve com a mulher para que fizesse uma cirurgia plástica? Houve um acidente? Um incêndio? Os meninos teriam algo a ver com isso? Será por isso que a "mãe" proíbe isqueiros? Será por isso que ela ignora um dos gêmeos? E será que realmente são duas crianças?... Assista e tire suas próprias conclusões.






5. "Acorrentados", de Jennifer Lynch (2002) - Essa é filha de peixe! Tem seu talento, tem seu estilo, tem suas próprias ideias mas não dá pra ignorar que ter sido criada no lar de um dos mestes do cinema contemporâneo ajuda muito na formação. E no caso de Jennifer Lynch parece que não apenas na escolha do caminho como na linguagem, uma vez que faz a linha esquisitona do pai com temas sombrios, violentos, surreais e grotescos, o que já ficava evidente em sua estreia com o bizarro "Encaixotando Helena" de 1993. Em "Acorrentados" ela volta ao maníaco obsessivo e dominador desta vez com um taxista que sequestra uma mulher e seu filho na saída do cinema. Bob, o taxista, estupra e mata a mulher mas mantém o garoto de nove anos como prisioneiro e o faz permanecer assim por muitos anos, até a adolescência, acorrentado, sempre presenciando outros sequestros e crimes contra mulheres.
A violência contra a mulher e aquela ideia que muitos homens tem que por usar determinada roupa ou agir de tal maneira a mulher "está pedindo pra ser estuprada" são assuntos evidentes na abordagem da diretora, mas temas como violência doméstica na infância e traumas psicológicos ligados à família também aparecem principalmente no que diz respeito ao vilão Bob.
Esse não é exatamente um terror, mas vindo da família Lynch, no mínimo é de mexer com a cabeça de qualquer um.






6. "Garota Sombria Caminha Pela Noite", de Ana Lily Amirpur (2014) - Uma espécie de justiceira sobrenatural que vaga pelas noites iranianas colocando machões, abusadores e traficantes no seu devido lugar e que, numa dessas perambulações noturnas, topa com Arash, um rapaz envolvido com traficantes e cujo pai é viciado, que está exatamente tentando se afastar daquele universo envenenado de Bad City, a cidade fictícia onde vivem. O encontro dos dois, criaturas que de alguma forma precisam de algo que complete ou que justifique suas vidas, parece frear um pouco os ímpetos da garota e quem sabe, amenizar sua sede de sangue.
Típico cult movie. Preto e branco, cenas longas, diálogos breves, silêncios, quadros estáticos e ação mais psicológica do que prática. Muito interessante a direção de arte que, mesmo com orçamento baixíssimo, mistura elementos dos de épocas diferentes deixando indeterminado o momento em que acontece a ação, bem como a trilha sonora que reforça essa sensação de indefinição de tempo e local, com ênfase em música americana dos anos 80, mas com momentos de música clássica e canções regionais iranianas. Embora seja cheio de referências à cultura e ao cinema americano, "Garota Sombria Caminha Pela Noite", por seu ritmo, sua estética e dinâmica é um daqueles filmes para quem está interessado numa proposta diferente como filmes de arte e "filmes cabeça".





7. "American Mary", de Jen e Sylvia Soska (2012) - Terror com toques de fetichismo. "American Mary" conta a história de uma estudante de medicina que, ainda durante o curso, decepcionada com o universo da profissão que escolhera e vendo sua situação financeira cada dia pior, ao tentar a carreira de stripper sendo que em seu primeiro dia na boate, uma circunstância inesperada faz com que tenha que pôr em prática suas habilidades médicas. a partir dali entra para o ramo de cirurgias clandestinas de modificações corporais executando algumasoperações absolutamente bizarras.
O que começa como uma necessidade financeira que ela realiza cheia de relutância e até repugnância, transforma-se numa atividade sádica e prazerosa e um objeto de vingança. 
Forte, sangrento, sádico, "American Mary" de certa forma coloca em discussão os sonhos profissionais, a ética dentro de uma atividade, os caminhos que podem levar uma pessoa a realizar algo fora de seus padrões morais e mais uma vez, os abusos sexuais contra mulheres. Uma boa mostra do cinema das promissoras irmãs Soska que, sem dúvida, tem muito mais coisas interessantes a oferecer.







8. "O Convite", de Karyn Kusama (2015) - Will e sua namorada Kyra são convidados para um jantar com amigos do tempo de colégio e faculdade na casa da ex-esposa dele, Eden, depois de anos sem se verem e de terem superado, ambos, separados, à distância, a tragédia em comum da morte de seu filho. Eden, agora com um novo marido parece refeita e animada, no entanto o convite e o jantar parece esconder algo de muito suspeito que apenas Will parece perceber mas que é ignorado e subestimado pelos demais convidados supondo que a desconfiança de Will se dê em função de todo o trauma que sofrera.
Embora não seja brilhante, o filme tem o mérito de manter essa dúvida de estar ou não acontecendo alguma coisa estranha e o espectador vai sendo absorvido e cada vez mais envolvido na trama em grande parte graças à atuação do ator Logan Marshall-Green que, sendo o centro de observações dos fatos e das ações dos outros personagens, nos transmite todas as sensações com de maneira muito convincente.
O roteiro meio que escorrega lá pela metade, a justificativa toda em si não é das mais válidas, mas a cena final do filme é simplesmente inquietante.






9. "Quando Chega a Escuridão", de Katrhyn Bigelow (1987) - Este provavelmente é o mais fraco da lista mas vai apenas para destacar a diretora que seria a primeira mulher a ganhar um Oscar de melhor direção, aqui ainda em seu segundo longa. "Quando Chega a Escuridão" é uma espécie de terror road-movie- western de vampiros. Entendeu?
Tudo começa quando um rapaz, Caleb, conhece Mae e no fim da noite ela lhe pede uma carona para casa. Só que durante o caminho ela começa a demonstrar algum pânico pela inevitável chegada da manhã e aí, né, já sabemos porquê. Ele não escapa dos dentinhos dela e é lavado até um grupo de amigos da garota, saqueadores e baderneiros, todos vampiros, é claro, onde ele terá que passar por uma prova para entrar para a gangue uma vez que não é bem-vindo. 
O filme de Bigelow se distingue de muitos do gênero pelo caráter humano que ela confere às criaturas da noite, não mencionado, por exemplo, a palavra vampiro em momento algum do filme. O roteiro se perde um pouco em alguns momentos, a trama acaba corrida demais e o final fica um pouco em desacordo com o que foi todo o resto do filme mas mesmo assim é interessante observar o crescimento do cinema da cineasta. Com certeza que valeu pela experiência e aprendizado até chegar à estatueta dourada.





10. "O Cemitério Maldito", de Mary Lambert (1989) - Esse é um bônus! Outro que não é da nova geração mas serve bem para ilustrar o trabalho das mulheres no cinema de terror.
Uma família se muda para uma nova casa na beira de uma rodovia movimentada. Lá, o gato da família morre atropelado na estrada destino que muitos outros mascotes já vieram a ter, conforme conta Ju, o vizinho ao dr. Louis Creed, o novo morador. Sensibilizado pela tristeza que a morte do bichano causaria ao menininho, filho de Louis, o velhote revela que ali perto existe um antigo cemitério indígena no qual se crê que quem for enterrado lá volta à vida. O médico usa o artifício com o gato e o resultado é positivo apenas em parte pois o bicho volta à vida mas diferente do que era, muito mais agressivo e perigoso. Vendo, logo em seguida seu filho, Gage, ter o mesmo destino na movimentada estrada, Louis não hesita em enterrá-lo no cemitério dos bichos para trazê-lo de volta mas o retorno do filho é ainda pior do que o do animalzinho de estimação. 
Baseado no romance "O Cemitério" de Stephen King e roteirizado pelo mesmo, "O Cemitério Maldito" é um clássico do terror sendo frequentemente lembrado em listas de melhores pelos cinéfilos amantes do gênero. Destaque ainda para o tema musical do filme, "Pet Sematary" dos Ramones, que além da boa história, bom roteiro, maquiagem assustadora e climão aterrorizante, é mais um ponto a seu favor.




Cly Reis

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #35


Em semana em que sir. George Harrison é pauta por mais de um motivo, fica impossível não se elevar o espírito. Assim estará nosso programa hoje: elevado. Isso porque teremos ainda no nosso quadro de entrevistas ‘Uma Palavra’ um papo-cabeça-astrológico-musical com o carioca Waldemar Falcão. O “som dos anjos” dos Cocteau Twins também vão dar o ar da graça, assim como Caetano Veloso e Jorge Mautner, Cartola e Nelson Cavaquinho e outras maravilhas igualmente elevadas. Afinal, estamos falando do Música da Cabeça, que vai ao ar às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e mapa astral, Daniel Rodrigues.


segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Gilberto Gil - "Refavela" (1977)



“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil

Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra” do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.

Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.

Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição (menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.

Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/ Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/ Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se enfrentar.

Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual, posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.

Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”. Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de “Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico, uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o farol dos olhos iluminando a visão interior.”

“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.

A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/ Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.

Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso, Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.

Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros, buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é”...

Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira, Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.

Provavelmente estarei presente no show em celebração ao aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que, cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar, isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.

Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"


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FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas

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OUÇA

por Daniel Rodrigues