terça-feira, 2 de junho de 2015
Caetano Veloso – “Circuladô” (1991)
segunda-feira, 4 de dezembro de 2023
“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese (2023)
Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.
O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.
Llly no papel da rica indígena Mollie: atuação que comanda o filme |
Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.
A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo, 15 filmes com Scorsese |
Foto dos verdadeiros Osage usadas de forma documental no filme |
A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha.
Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.
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trailer de "Assassinos da Lua das Flores"
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Cotidianas #10 - A Letra do Morto
A LETRA DO MORTO
Por onde passo, de festas, viagens, encontros, levo alguma recordação. Não sei porquê. Talvez por medo de perder o momento.
Mas não se engane meu eventual leitor, não os roubo. Na maior parte das vezes, peço licença a um anfitrião ou conviva para levar a lembrança. A não ser quando está ali, ao dispor para que todos peguem. Como no aniversário da filha do Corrêa, onde a esposa, D. Amália, fez uns arranjos graciosos com flores e guirlanda. Vi que as mulheres, principalmente, quando prestes a irem embora levantavam e levavam os das suas mesas com a anuência de D. Amália. Percebendo que não havia mal algum, já me despedi dos anfitriões com o arranjo nas mãos.
Outro dia, devo revelar que em um desses encontros furtivos com uma amiga, antes de nos deixarmos, pedi que me desse algo para recordar nosso primeiro encontro.
Enrubesceu logo mal pensando, com certeza, ao que lha aliviei pedindo apenas o grampo que prendia a grinalda do chapéu.
Sou assim, guardo todos esses mimos. Chego a ter um quarto nos fundos, onde fora antigamente a senzala, no qual acumulo todas essas bugingangas. São broches de moças bonitas, lenços já com quase sem perfume, rosas ressequidas pelo tempo, taças de velhas comemorações, papéis de carta, brinquedos, cachimbos, pince-nezes, tudo.
Conto isto porque penso que um destes bibelots casuais tenha acabado por mudar meu destino em determinado momento. Deixe que lhes explique o porquê:
Por ocasião da morte do Seixas, colega de repartição, vítima de tuberculose, fui ao enterro no São João Batista, ali em Botafogo. Não que fosse muito chegado, muito próximo, não. Mas um pouco por respeito, um pouco porque os outros colegas podiam julgar mal minha ausência, resolvi por prestar minha última homenagem.
Também não sou daqueles nojentos e supersticiosos que não suportam cemitérios. Não. De minha parte até que se configurava um passeio assaz curioso. Perambular por entre covas, jazigos, sepulturas; cada uma com adornos mais interessantes que a outra: anjos, santos, cruzes latinas, cruzes gregas, até caveiras. Lápides das mais simples, só com mármore branco pobre, aos mausoléus mais espetaculares, com Nossa Senhora ajoelhada à beira do catre derradeiro do Filho retirado da cruz, tão perfeitos em pedra branca que se diriam ser os próprios.
Leontina das Neves, Antônio Amaro Rocha Brandão, Joaquim Maria de Alencar (saudades eternas), Quincas Lisboa de Assis (dos filhos e esposa que nunca te esquecerão). Foi assim passando os olhos pelos nomes, alguns curiosos e exóticos, outros comuns, que começou a se configurar meu infortúnio.
Ainda antes do enterro do Seixas, caminhando em direção à ala onde realizar-se-ia a cerimônia funeral, caminhando nas vielas, fiquei a pensar no que poderia eu levar dali, sem que ofendesse os mortos e que me satisfizesse a mania de colecionador. Pensei em flores mas já estavam secas e até malcheirosas, e as que estavam frescas, ora, eram ainda oferenda válida a um falecido. Uma tira de fita das corôas de flores, avaliei que seria igual despropósito. Um pedaço de mármore já meio rachado seria interessante, pensei eu, começando então a vasculhar a ver se algum estava em mau estado, quebradiço, esturricado; mas por minha má sorte, exatamente naquele trecho que percorria, todas as lápides estavam em perfeita conservação.
Temporariamente desestimulado do intento, apaguei da mente a idéia e segui em direção à saída. Tirei a mão do bolso e, como que criança, estendi um dos braços de modo a alcançar as sepulturas e roçar-lhes com as pontas dos dedos, tocando-as apenas pelo prazer de distrair as mãos com algo diferente durante aquele percurso. Nesse dedilhar de mármores e letras em relevo, uma delas, que por certo já estava meio solta, desprendeu-se então de todo da pedra com um levíssimo contato meu, desfalcando o nome que identificava o morto ali residente: JOSÉ TRANQÜILINO DE AZEVEDO _AVIER, 1854-1903.
O inusitado do incidente deixou-me com o “X” de Xavier na mão e não considerando ter cometido ilícito ou vandalismo, preferi atribuir meu benefício ao acaso, embolsando assim o souvenir sem culpa.
Mas só Deus sabe o quanto me custou alimentar meu hábito de acumulador de quinquilharias.
Como que de uma hora para outra minha sorte mudara. Logo que cruzei o portão do cemitério isto ficou claro e límpido para mim. Avaliando que não tinha eu mais o que fazer por ali e pensando que, àquelas horas, em tempo ainda poderia aproveitar minha ida a Botafogo para passar na casa do Vilela; ali no Largo dos Leões; para cobrar-lhe uns cinco mil-réis que me devia; resolvi correr para alcançar um tílburi que se afastava vazio e nesta, fui ao chão de maneira vexatória proporcionando um constrangedor espetáculo para todos que assistiam na rua. Por conta do ocorrido, humilhado pela situação, até desisti da cobrança do Vilela, subi no mesmo tílburi, que consegui fazer parar, e fui direto para minha casa. Como se não bastasse a vergonha pública, ao chegar em casa, notei que meu relógio, herança de meu avô, acabara com o vidro trincado por conta da queda. QUE AZAR!
Mas, amigos, este seria só o primeiro de muitos. Minha vida transformar-se-ia em um verdadeiro inferno. Desde então, só para enumerar, a jovem a quem eu cortejava passou a ignorar-me, assim sem mais; perdi 2 contos de réis, que não possuía, na mesa de Vinte e Um, na qual era habitual vencedor a ponto de se perguntarem meus parceiros de jogo, de onde tirava tamanha sorte; fui difamado por ocasião de um furto na repartição que, como não se esclareceu muito bem, manteve a injusta mácula do crime sobre mim, tornando-me mal-visto e disfarçadamente indesejado nas rodas sociais; enxarcaram-se meus livros em uma chuvarada que fez vazar o telhado justo sobre a biblioteca; e ainda me pegou fogo, sem motivo racional, na antiga senzala onde guardava os souvenirs.
Não sou supersticioso, como já disse mas, procurando entender porque me acometiam constantes insucessos, não pude deixar de associar o início da fase aziaga à retirada da letra da tumba. Retirada não! Nunca que a arrancara. Aquela caiu, soltara-se. Ora, mas a quem quero enganar? Não a extraí, não a broquei, é verdade, mas, sim, me aproveitei da brincadeira do destino de fazê-la soltar-se logo para mim, à minha frente, para então levá-la e poder dividir a culpa com o acaso. A quem pensava enganar? Profanara uma sepultura, brincara com os mortos, ofendera um defunto. Os céus, o mundo do além, a alma do sr. Tranqülino, deviam estar me cobrando agora tal injúria. Um Xavier sem X; ora, mas como pude? Gostaria eu, morto, que me aparecesse um João qualquer e retirasse o D, que fosse, do “descanse em paz” da minha lápide? Não, por certo.
Ponderei que o correto, para o bem de minha consciência e de modo a acalmar a fúria vingativa do falecido ultrajado, seria devolver-lhe o X. Decidido a não perder mais tempo e desfazer a maldição, corri ao São João Batista, não sem levar uma vasilha com um pouco de grude para o caso do carácter não querer fixar-se por bem.
Adentrei os mórbidos portões, que me pareceram agora mais assustadores do que nunca e dirigi-me para onde me recordava, vagamente, de ter recolhido o objeto. Andei entre as vielas, voltei, perdi-me, andei em círculos, até que, lá pelas tantas, vi-me frente a frente com a lápide aleijada do sr. Tranqüilino. Tratei logo, como que para abreviar meu sortilégio, de repor a letra no lugar. Ao contrário do que imaginava, nem precisei do grude e a peça encaixou perfeitamente como se nunca tivesse estado frouxa o suficiente para ter caído com um alisar de mãos. Pronto: estava refeito o Xavier do nome. Minha agonia acabaria. Teria o perdão silente do além. Mas não. Engano meu. Parece ter tido efeito contrário. As coisas pioraram.
Perdi muitas de minhas posses para pagar a dívida do Vinte e Um, que com o tempo só fez crescer, tive que vender a casa onde vivia na Glória e por causa do incidente do furto na repartição, nunca mais recuperei o bom olhar dos amigos que passaram, mesmo sem comprovação, a ver-me como larápio, não podendo eu contar com eles para ajudar a sanar minhas dívidas. Agora, doente,com um inexplicável mal, que nem a medicina nem curandeiros souberam explicar nem curar, me encontro entrevado nesta cama, nesta modesta pensão na Rua do Ouvidor; e a cada noite, juro-lhes amigos, todas as noites sem exceção, rogo pelo perdão do falecido, ou da casa dos mortos, ou de Deus, de quem quer que seja, pelo mero ato de ter recolhido do chão aquela letra, aquele X, que não sei até que ponto tem poder sobre tudo isso. Mas hoje, de toda feita, tudo o que me resta, e, a estas alturas, não custa tentar, é pedir perdão.
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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
"A Onda", de Dennis Gansel (2008)
Acho que tem mais méritos que defeitos mas com um pouquinho mais de “estrada” do jovem diretor, tenho a impressão que o resultado teria sido melhor ainda.
quinta-feira, 6 de abril de 2023
Aqueles 10 filmes argentinos imperdíveis
Darín, o grande astro do cinema argentino contemporâneo e presente em várias obras |
A lista, como se vê, não saiu em seguida. Voltamos do almoço para nossos postos e as obrigações nos fizeram esquecer de qualquer ludicidade. Mas os anos se passaram e o cinema da Argentina segue muy bien, gracias. Vários filmes foram produzidos neste meio tempo, inclusive dignos de comporem uma lista como esta além dos que já haviam sido realizados até então quando daquela nossa conversa. A bem da verdade, desde o brilhante “A História Oficial”, o primeiro Oscar de Melhor Filme para um argentino, em 1985, isso já se anunciava. A meu ver, no entanto, não foi com o hoje cult “Nove Rainhas”, de 2000, o start, pois o ainda considero imaturo e artificial. Porém, o filme, mesmo com suas inconsistências, já era o sinal que o curso do Rio do Prata havia sido achado. A partir dali, só foi “golazo”.
O contundente "A História Oficial": 1º Oscar da Argentina |
Mas não tem comparação: é na terra de Gardel que se atingiu um nível muitas vezes de excelência (e de exigência) técnica que contamina uma grande parte da produção cinematográfica do país. Seja nos roteiros bem escritos, seja na técnica de nível “primeiro mundo”, seja na habilidade cênica, seja no carisma e competência de símbolos desse cinema, como o principal deles: Ricardo Darín. Mas não somente ele: Oscar Martínez, Martina Gusmán, Dario Grandinetti, Leonardo Sbaraglia, María Onetto e outros que brilham nas telas. Tudo está a serviço de um cinema eficiente, que sabe contar bem (e com criatividade) uma história. Um cinema que achou o tão almejado equilíbrio entre arte e entretenimento.
E como se trata de uma produção vultosa (inclusive aqueles que eu nem assisti), teve, claro, o que ficou de fora. Mas se quiserem incluir “Leonera” (Pablo Trapero, 2008), “A Odisseia dos Tontos” (Sebastián Borensztein e Eduardo Sacheri, 2019), “Koblic” (Borensztein, 2016), “Elefante Branco” (Trapero, 2012) e “Neve Negra” (Martín Hodara, 2017), sintam-se perfeitamente à vontade, que também merecem toda audiência.
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“O Segredo de Seus Olhos”, Juan José Campanella (2009)
Não se poderia falar em lista de melhores filmes argentinos sem incluir “O Segredo...”. Afinal, não se trata apenas de um dos melhores da história de seu país, mas, tranquilamente, da década de 2000 em todo o mundo, no mesmo patamar de "Match Point", "Cidade dos Sonhos", "Elefante" e "Onde os Fracos não Tem Vez". Muito teria para se falar do filme de Campanella: a atuação sublime de Ricardo Darín, o hipnotismo que a musa Soledad Villamil causa no espectador, do merecido Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, do impressionante plano-sequência do jogo de futebol, enfim. Mas o que pauta esta grande obra é, definitivamente, sua trama, tão envolvente quanto literária, visto que extraída com maestria por Campanella do livro de Eduardo Sacheri (que, aliás, colabora com o roteiro). Thriller, romance, comédia, policial, aventura, drama. Um pouco de tudo e tudo muito bem amarrado. (Amazon Prime)
“Abutres”, Pablo Trapero (2010)
Aqui, duas recorrências próprias do atual cinema da Argentina. A primeira delas, obviamente, é Ricardo Darín, que estrela vários filmes dessa lista e muitos outros dignos de estarem aqui mencionados também. A outra repetição é Trapero, o mais talentoso cineasta de sua geração na Argentina. Em ”Abutres”, ambos dão um show. Numa trama que, como é de costume aos argentinos, envolve drama, denúncia e história de amor, o filme trata de um advogado especializado em acidentes rodoviários, que descobre um esquema de corrupção e desvio de dinheiro às custas do sofrimento de pessoas simples. A cena final, sem dar spoiler, além de um surpreendente desfecho da história, tem o recurso de plano-sequência característico aos encerramentos dos filmes de Trapero. (Star Plus)
“Medianeiras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual”, Gustavo Taretto (2011)
Comédia romântica, mas não como os enlatados de Hollywood, e sim com um olhar muito próprio da vida contemporânea na era que tudo impele a ser digital – inclusive as relações amorosas. Ganhador de melhor direção e melhor longa estrangeiro no Festival de Gramado, “Medianeiras” narra os encontros e desencontros de Martín e Mariana, os protagonistas-símbolo de uma geração emparedada pelas linhas simétricas das metrópoles. Solidão, neuroses, traumas, aflições, desilusões. Tudo sob o olhar da selva de concreto chamada Buenos Aires, que se revela como uma personagem onipresente. Para quem ama comédias românticas inteligentes como “Encontros e Desencontros”, “Bar Esperança”, e “(500) Dias com Ela”, pode por pra rodar “Medianeiras”, que o longa de Taretto é deste naipe.
“O Clã”, Pablo Trapero (2015)
Trapero de novo. E aqui impecável. A assustadora história da família acima de qualquer suspeita, os Puccio, que sequestra pessoas ricas, cobra o resgate e assassina as vítimas assim que coloca a mão no dinheiro, guarda o aspecto de crítica político-social própria do cinema argentino. Baseado num caso real, mais do que apenas evidenciar fragilidades de seu país, “O Clã” revela perversidades obscuras sorrateiramente entranhadas na sociedade platina. Afinal, como duvidar que tamanha maldade aconteça numa sociedade que, em parte, acolheu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina? Memoráveis as cenas em que "Afternoon Tea", da Kinks, rola enquanto o circo de horrores acontece e, como de praxe quando se trata deste cineasta, o plano-sequência. Vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor em Veneza, Trapero faz seu melhor filme - e isso significa bastante considerando sua filmografia quase irretocável. (Star Plus)
“Relatos Selvagens”, Damián Szifron (2014)
A tradição dos filmes de episódios dos europeus e mesmo do Brasil nos anos 60 e 70 é inteligentemente recuperado, claro, pelos argentinos. E que filme! Potente, ferino, mordaz, grotesco. "Relatos Selvagens" reúne seis histórias distintas, que se complementam entre si por um fio condutor subjetivo mas evidente: o conflito entre barbárie e civilização. E pior: a primeira, fatalmente, sempre vence de algum jeito, seja nas vias de fato após, seja com uma bomba que exploda tudo. Darín, igualmente, não poderia estar de fora, estrelando o episódio em que um engenheiro de minas que se revolta contra o sistema e resolve se vingar com aquilo que ele melhor sabe fazer: explodir bombas. Embora não tenha levado, foi selecionado para os dois maiores prêmios do cinema mundial: a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. (HBO Max e Amazon Prime)
"O Pântano”, Lucrécia Martel (2001)
Além do já mencionado Trapero, o cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.
“Um Conto Chinês”, Sebastián Borensztein (2011)
O típico filme do novo cinema da Argentina: comédia dramática, com roteiro envolvente, referência a traumas nacionais (Guerra das Malvinas), um toque de romance e, claro, a estrela de Ricardo Darín. A trama é relativamente simples, mas convidativa: o ranzinza Roberto (Darín) trabalha numa loja de ferragens e vive de maneira metódica, mas sua rotina muda quando um chinês que não fala uma palavra de espanhol aparece em seu caminho, e ele decide ajudar o adorável forasteiro. Longe de se resumir a uma fórmula como no tradicional cinema comercial, “Um Conto...” faz uso desses elementos narrativos para compor um filme divertido e delicioso de se assistir, sem deixar de propor reflexão. Diversão com cérebro. Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano. (Star Plus)
“Vermelho Sol”, Benjamín Naishtat (2019)
Esqueça o formato "diversão inteligente" de “Relatos...”, o toque romântico de “O Silêncio...” a comicidade de “Um Conto...”. “Vermelho Sol” é pura tensão e embrulho no estômago. Contando a história de um advogado arrogante, que vê sua vida perfeita desmoronar quando um detetive particular chega na sua pacata cidade para investigar um desaparecimento, o longa de Naishtat se assemelha a filmes marcantes do cinema que souberam narrar, com acuidade, o "começo do fim", como “A Fita Branca”, de Michael Haneke, para com a Primeira Guerra, ou “O Ovo da Serpente”, de Ingmar Bergman, que previa o que levou ao Holocausto. Duro, forte e absolutamente real. Afinal, por trás dos segredos dos personagens de “Vermelho...” havia uma ditadura militar se anunciando. Premiado em diversos festivais, como Toronto, Havana, San Sebastian, Rio de Janeiro e Recife.
“Nascido e Criado”, Pablo Trapero (2006)
Antes de “Leonera”, de “Abutres” e de “O Clã”, Trapero realizou está pequena obra-prima tocante e profunda sobre os limites da existência, confrontando o inato e a superfície, a natureza e a convenção social. Conta a história da família de Santiago, um jovem dedicado à decoração e à restauração de antigos objetos, que vive um repentino acidente na estrada, o qual desencadeia uma tragédia familiar e um violento giro em sua vida. Numa paisagem gelada do extremo-sul argentino, Santiago, irreconhecível, reaparece empregado num aeroporto perdido no fim de mundo. O cineasta volta sua lente para dois interiores: o humano e o das paisagens rústicas do pampa, para onde o personagem principal se refugia de si próprio. Na mesma medida, Trapero, dado a este olhar penetrante, atinge outro interior: o do espectador. (Prime Vídeo)
“Argentina, 1985”, Santiago Mitre (2022)
Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro (não levou o Oscar por pouco, pois merecia muito mais do que o badalado “Sem Novidades no Front”), "Argentina, 1985" narra a história verídica dos promotores públicos Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, que ousaram investigar e processar a ditadura militar mais sangrenta da Argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla, amparada por uma jovem equipe de universitários engajados, encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas. Não apenas Darín, que faz Strassera, mas Juan Pedro Lanzani, no papel de Ocampo, estão fenomenais. Igualmente, magnífica a cena da leitura da acusação no tribunal, um dos textos mais pungentes que o cinema latino-americano já viu. (Prime Video)
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
PIL - "Album" (1986)
Uma superbanda, um disco cujo título é seu formato, um hit com a cara dos anos 80 com refrão fácil e inconfundível e um’ frontman’ que havia sido nada mais nada menos que o rei do punk. O cara: John Lydon, ex-Johnny Rotten do Sex Pistols; o álbum: bom, o nome do álbum era “Album” mesmo. E todo o panorama em torno dele e seu lançamento pode ser justificado com o nome de outro disco da banda: “Isso é o que vocês querem, isso é o que vocês terão”. Com “Album”, John Lydon dava à industria pop o que ela queria, e o PIL, sempre avesso às regras do sistema, por sua vez aproveitava então para ganhar dinheiro com a brincadeira. E por que não?
Como o PIL na verdade é John Lydon, ou, John Lydon é o PIL (não importa), depois de brigar com um integrante aqui, dispensar outro ali, convocar outro lá, resolveu então chamar um timaço de feras para reforçar a IMAGEM PÚBLICA da banda: Ruyichy Sakamoto nos teclados; o multicolaborador de inúmeras bandas Jonas Hellborg no baixo; Steve Vai (que dispensa apresentações) nas guitarras; Tony Williams (da banda de Miles Davis) e Ginger Baker (ex-Cream) para a bateria, tudo sob a batuta do produtor Bill Laswell.
Laswell era conhecido por trabalhos de funk, ligações com o jazz tendo conduzido um trabalho interessantíssimo com Herbie Hankock pouco antes. Trabalhara também produzindo o Time Zone, parceria de Lydon com Afrika Bambaata, o suficiente para convencer o ‘anticristo’ a convidar o cara para produzir seu novo projeto. A escolha mostrou-se perfeita! Laswell dava ao projeto de Lydon o tempero que ele precisava acertando em cheio logo de cara com o sucesso “Rise” composto pelos dois. Quem não lembra daquele refrão “I could be wrong, I could be wright”?
“Album” provavelmente consegue o melhor resultado daquilo que se costuma chamar “superbanda”, normalmente grupos com muito nome, pouca qualidade e resultado bastante insuficiente. Neste não: Ginger Baker destrói na bateria, sempre soando alta e estourando, com destaque especial para “Round”que por ser enfática para a percussão permite-lhe um showzinho à parte. Sakamoto e Tony Willimas são aqueles que não aparecem muito pra torcida mas jogam um bolão; sempre discretos mas competententíssimos, sendo que o japonês pode, sim, ser destacado em “Ease”, épico que fecha o disco, na qual aliás todos matam-a-pau. Em “Ease” Ginger volta a estourar o couro da bateria, Lydon está inspirado, mas nesta especialmente Steve Vai, que na maior parte das faixas empresta seu talento com disciplina e discrição, aqui estraçalha e esmirilha num solo final arrepiante.
Se por um lado Lydon parece com “Album” ter-se rendido de vez à indústria fonográfica, dando o que ela queria; por outro mantém nas letras seu tradicional fel e violência pouco palatáveis para rádio e deixa uma dose implícita de cinismo quando, ao invés de uma capa colorida, chamativa, com a banda posando fodona, simplesmente nos apresenta uma capa branca com o nome do formato escrito grande. (Bem pouco comercial, não?) Algo como uma caixa de medicamento, uma embalagem... um produto.
Mas tal simplicidade da capa, de certa forma, se justifica plenamente: o que mais precisaria-se dizer de um disco como este, afinal?
Basta dizer apenas que é O ÁLBUM.
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(O disco efetivamente leva o nome do formato, tanto que a versão em fita chamava-se "Cassete" e o CD chama-se "Compact Disc", mas é conhecido e referido na maioria das vezes, independente da forma como se apresenta, como "ALBUM")
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- "F.F.F." (John Lydon, Bill Laswell) – 5:32
- "Rise" (Lydon, Laswell) – 6:04
- "Fishing" (Lydon, Jebin Bruni, Mark Schulz) – 5:20
- "Round" (Lydon, Schulz) – 4:24
- "Bags" (Lydon, Bruni, Schulz) – 5:28
- "Home" (Lydon, Laswell) – 5:49
- "Ease" (Lydon, Bruni) – 8:09
John Lydon - vocais
Tony Williams - bateria em "FFF", "Rise" e "Home"
Ginger Baker - bateria na "Fishing", "Round", "Bags" e "Ease"
Bernard Fowler - backing vocals em todas as faixas
Ryuichi Sakamoto - Fairlight CMI em "Rise", "Fishing", "Bags" e "Ease"
Nicky Skopelitis - guitarra em todas, exceto "Ease"
Steve Vai - guitarra em todas as faixas
Jonas Hellborg - baixo em todas as faixas
pessoal adicional
Shankar - violino elétrico de "Rise" e "Round"
Bernie Worrell - órgão em "FFF", "Round" e "Home", Yamaha DX7 em "Fishing"
Malaquias Favores - baixo acústico em "Fishing" e "Bags"
Steve Turre - didjeridu em "Ease"
Aïyb Dieng - tambores em "Round"
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Ouça:
PIL Album
segunda-feira, 8 de março de 2010
Oscar 2010 - Premiados
E "Guerra ao Terror" levou o melhor filme.
E levou melhor direção! Pela primeira vez uma mulher. (será que não teve um pouco de média pelo fato da cerimônia ser na véspera do Dia Internacional da Mulher?)
Melhor filme: "Guerra ao terror"
Melhor direção: Kathryn Bigelow, “Guerra ao terror”
Melhor atriz: Sandra Bullock, "Um sonho possível"
Melhor ator: Jeff Bridges, “Coração louco”
Melhor filme estrangeiro: “O segredo dos seus olhos” (Argentina)
Melhor edição (montagem): “Guerra ao terror”
Melhor documentário: “The cove”
Melhores efeitos visuais: “Avatar”
Melhor trilha sonora: “Up – Altas aventuras”
Melhor fotografia: “Avatar”
Melhor mixagem de som: “Guerra ao terror”
Melhor edição de som: “Guerra ao terror”
Melhor figurino: “The young Victoria”
Melhor direção de arte: “Avatar”
Melhor atriz coadjuvante: Mo’Nique, “Preciosa”
Melhor roteiro adaptado: “Preciosa”
Melhor maquiagem: “Star trek”
Melhor curta-metragem: “The new tenants”
Melhor documentário em curta-metragem: “Music by Prudence”
Melhor curta-metragem de animação: “Logorama”
Melhor roteiro original: “Guerra ao terror”
Melhor canção: “The weary kind”, de “Coração louco"
Melhor animação: “Up – Altas aventuras”
Melhor ator coadjuvante: Christoph Waltz, “Bastardos inglórios”