A democracia anda dando vertigem em muita gente por aí. Mas
vertiginoso mesmo é o Música da Cabeça de hoje! Sente só o que terá: Small
Faces, João Gilberto, João Cabral de Melo Neto, U2, Curtis Mayfield e mais. Tem
também “Sete-List” sobre o grande baterista Neil Peart, falecido esta semana, e
homenagem a Geraldo Azevedo. Sentiu uma tonturinha? Fica tranquilo: é só ouvir
o MDC, às 21h, na Rádio Elétrica que passa. Produção e apresentação:
Daniel Rodrigues. Foi golpe.
Enquanto a Venezuela segue ladeira abaixo e o Bozo espera sentado a indicação do Trump pra OCDE, a gente aqui curte uma boa Música da Cabeça. Nós e esse monte de artistas legais que vão pintar por aqui hoje: Seal, Curtis Mayfield, Nei Lisboa, King Crimson, New Order, Los Calvos e outros. Tem quadro "Música da Fato", "Palavra, Lê" e um "Cabeça dos Outros", quando é o ouvinte que escolhe o que ouvir. Pra curtir também, é só vir conosco na Rádio Elétrica, às 21h. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.
“Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça.”
– Salmo 23,
capítulo 3
“Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano
aqui desandar/ E nem sentar o dedo em nenhum pilantra/ Mas que nenhum filha da
puta ignore a minha lei.”
– Da letra de “Capítulo 4, versículo 3”
Era Réveillon de 1997. Após
muitas cervejas, samba, risadas e conversas altas no volume típico da minha
família, pouco depois da virada do ano, nas primeiras horas de 1998, meu primo-irmão
Leandro “Lê” Reis Freitas me chama para dentro da casa ao lado da garagem onde
todos se reuniam. Fugíamos um pouco da algazarra, pois Lê queria me mostrar
algo para se ouvir com atenção. Olhando-me com convicção e euforia, ele me disse:
“Dã, tu tem que ouvir isso!”. Era um
disco. Um disco de rap chamado “Sobrevivendo
no Inferno”, dos Racionais MC’s,
que completa 20 anos em 2017.
Sabia que ele curtia
bastante rap, então não estranhava que quisesse me apresentar algum artista. Geralmente,
não me animava tanto, admito, haja vista que o rap nacional sempre me parecia ficar
bastante a dever ao dos Estados Unidos e principalmente ao Public Enemy, meus
preferidos do estilo até hoje. Mas aquilo que Lê me mostrava era, definitivamente,
diferente. O início salta com um “Ogunhê!”, a saudação ao orixá Ogum do
Candomblé. Imediatamente, começa um rap arrastado feito sobre a base de “Ike’s
Rap 2”, de Isaac Hayes – o mesmo sample
usado em “Glory Box”, do Portishead, e “Hell Is Round the Corner”, do Tricky.
Era uma versão originalíssima de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben. Agradou-me
bastante, mas Lê me alertou: “Essa é
legal, mas o melhor vem a partir de agora”.
Sim, o melhor vinha em
seguida. Após um prólogo interessantíssimo, muito bem escrito e revelador (a
vinheta “Gênesis”), a faixa seguinte trazia em sua letra o mais pungente e
expressivo manifesto escrito no Brasil depois do Antropofágico, do Concretista
e do Tropicalista. E mais: sem ter a intenção de ser um manifesto propriamente
dito, o que aumenta ainda mais sua força. Ali, falava-se de algo que estava
grudado na garganta há muito tempo, bem dizer, desde que os escravos vieram
para o Brasil, séculos atrás. Desde que, alforriados, os negros permaneceram na
miséria por descaso do estado. Num trecho, a letra diz: “Minha intenção é ruim/ Esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim/ Um,
dois pra atirar/ Eu sou bem pior do que você tá vendo/ O preto aqui não tem dó/
É 100% veneno/ A primeira faz ‘bum’, a segunda faz ‘tá’/ Eu tenho uma missão e não
vou parar”. Era “Capítulo 4, Versículo 3”, a brilhante canção que mostrava,
com todas as letras, que os Racionais, formado pelos mc’s Mano Brown, Edi Rock
e Ice Blue e o DJ KL Jay, realmente tinham uma missão. E que não iriam parar.
Enquanto a noite seguia
animada lá fora, Lê e eu ouvíamos de cabo a rabo o longo 5º disco dos
Racionais, o ápice da maturidade dos rapazes da Zona Sul paulista e o melhor
disco de rap brasileiro de todos os tempos, 14º colocado na lista da revista
Rolling Stone dos 100 melhores álbuns da história da música brasileira.
Tínhamos a noção de que estávamos diante de algo diferenciado e revolucionário.
Além da qualidade técnica nunca antes atingida no rap no Brasil, com samples bem escolhidos e elaborados,
densidade sonora e produção impecável do próprio KL Jay, “Sobrevivendo...” era
um grito até então ensurdecido. O grito da periferia – em sua grande parte,
negra. Um grito de revolta e ressentimento pelo apartheid social brasileiro; um grito agressivo contra a
desigualdade de classes; um grito de protesto contra a repressão da polícia e
do estado. Mas tudo traduzido em poesia, musicalidade, criatividade. “Sobrevivendo...” propunha
uma revolução ideológica.
Os anos 90, primeira década da
democracia no Brasil, traziam nas rádios o samba “embranquecido” do pagode e o
conveniente “rap de classe média” de Gabriel O Pensador. Ou seja: os pretos
mesmo não estavam representados. Precisou que o rap levantasse a bandeira, e os
Racionais MC’s cumpriram essa função abrindo definitivamente um novo paradigma
para a música brasileira em temas como “Diário de um Detento”, “Mágico de Oz”,
“Fórmula Mágica da Paz” e a já mencionada “Capítulo 4...”. Nelas fala-se
abertamente sobre o racismo e a miséria na periferia de São Paulo, marcada pela
violência e pelo crime, numa representação muito maior do que somente aquilo: era um
retrato da sociedade brasileira.
Outra das melhores do disco
e da banda, "Tô Ouvindo Alguém me Chamar" disseca a vida de um
assaltante, homem pobre que, ao contrário do irmão advogado, escolheu o caminho
do crime. A narrativa de Brown é brilhantemente contada em fluxo de consciência
a partir do momento da morte do protagonista, engendrando uma sucessão de flashbacks que vão construindo a
história. A batida (tirada de “Charisma",
de Tom Browne) ganha sons de pulso cardíaco, que dialoga
metalinguisticamente com o tema. A dramaticidade da saga do marginal é uma
aula de escrita. Afundado nas drogas e na criminalidade, ele é morto com a mesma
arma que um dia havia presenteado seu parceiro de delinquência (o Guina, único personagem
que o nome mencionado). A recorrente referência ao irmão, cuja figura se
confunde com a do parceiro, com a do pai e do sobrinho, é tocante, como nesta
passagem, quando o criminoso, agonizando, percebe que já está na berlinda: “Meu irmão merece ser feliz/ Deve estar a
essa altura/ Bem perto de fazer a formatura/ Acho que é direito, advocacia/
Acho que era isso que ele queria/ Sinceramente eu me sinto feliz/ Graças a
Deus, não fez o que eu fiz/ Minha finada mãe, proteja o seu menino/ O diabo
agora guia o meu destino”.
De fato, muito dos Racionais
se deve à cabeça privilegiada de Mano Brown. Ele é o rapper que superou o discurso rebelado mas geralmente pouco
articulado do hip hop brasileiro, abrindo caminho para gente como Emicida e
Criolo. Brown é, sem medo de errar, um dos maiores escritores brasileiros da
atualidade – léguas à frente de nomes celebrados da literatura como Paulo
Coelho, Fabrício Carpinejar ou Martha Medeiros. Para se ter ideia, segundo pesquisa da revista
Billboard Brasil do ano passado, ele figura entre os 50 artistas mais completos
do país. Suas letras trazem uma improvável e incomparável mistura de consciência
social e racial e ativismo político com pitadas de religiosidade católica, evanvélica e
afro misturadas ao melhor português, seja o culto ou o vulgar. Tudo como muita
contundência e até agressividade. “Minha
palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”, diz um de seus versos.
Essa força expressiva está no
maior clássico do disco, canção de muito sucesso à época: “Diário de um
Detento”. Quase uma versão musical do livro “Estação Carandiru”, de Dráuzio
Varella, a música de Brown, realista e crítica, amarra a narrativa de
depoimentos do ex-presidiário Jocenir. Sobre o sample de “Easin' In”, de Edwin Starr, é uma carta que perpassa o
dia anterior ao massacre do Carandiru (2 de outubro de 1992) até o dia seguinte
à tragédia, 3. A abertura é inesquecível: “São
Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8 horas da manhã/ Aqui estou, mais um dia/
Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar/ Com a cabeça
na mira de uma HK/ Metralhadora alemã/ Ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem
papel”. Uma “rima preciosa” – tipo que uniformiza palavras de idiomas
distintos –, vem logo na sequência: “Na
muralha, em pé, mais um cidadão José/ Servindo o Estado, um PM bom/ Passa fome, metido a Charles Bronson”. Outros trechos, cujas sentenças são
verdadeiros petardos, impressionam igualmente: “Sua cara fica branca desse lado do muro” ou “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral um dia/ No
Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia” ou
ainda “O ser humano é descartável no
Brasil/ Como Modess usado ou Bombril.”
A onomatopeia “Ratátátá”, repetida algumas vezes e que
vai se avolumando no decorrer da letra, ao mesmo tempo dá a ideia do trem que
passa em frente ao presídio, elemento que simboliza a tortuosa passagem do
tempo na prisão, quanto o som de tiros, como um prenúncio da chacina. Ali,
naquela realidade, o destino inevitável é a morte. Vendo nos noticiários as
rebeliões e acontecimentos violentos ocorridos em vários presídios brasileiros
nos últimos tempos, “Diário...” parece lamentavelmente atual.
Se Brown apavora com canções
como esta, Edi Rock, entretanto, não fica muito para trás. Mais fraco em termos
letrísticos, ele ganha na criatividade das melodias e na voz potente. “Periferia
é Periferia (Em Qualquer Lugar)” é um caso: baseada num tema de Curtis
Mayfield, sampleia uma série de outros rap’s brasileiros, como os pioneiros
Thaíde e DJ Hum, Sistema Negro e MRN. Já “Rapaz Comum” tem uma pegada mais gangsta ao samplear Dr. Dre e Snoop Dogg,
retrazendo o mote de “Tô Ouvindo...” ao relatar, na 1ª pessoa, os momentos de
agonia de “um preto a mais no cemitério”.
É dele também o ótimo instrumental e "Qual Mentira Vou Acreditar?",
parceria com Brown e a faixa mais light
do repertório. A letra conta as funções de festas e pegações, mas nem por isso
deixa de tocar no tema do racismo, como nesta engraçada passagem em que Ice
Blue relata a Edi um episódio em que levava uma “mina” no carro. “Eu ouvindo James Brown, pá.../ Cheio de
pose/ Ela perguntou se eu tenho, o quê? Guns N' Roses?/ Lógico que não!/ A mina
quase histérica/ Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica/ Como é que ela
falou?/ Só se liga nessa/ Que mina cabulosa/ Olha só que conversa/ Que tinha
bronca de neguinho de salão, (não)/ Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí
não)/ Aí não mano! Foi por pouco/ Eu já tava pensando em capotar no soco”.
“Mágico de Oz”, outra de Edi
(“Queria que Deus ouvisse a minha voz/ E
transformasse aqui no mundo Mágico de Oz”), é mais um sucesso de
“Sobrevivendo...”. Evidencia o mundo desamparado da mendicância infantil e a
falta de esperança e horizonte de quem nasce na pobreza. Por falar em “magia”,
Mano Brown manda a última joia do disco: “Fórmula Mágica da Paz”. Espécie de
autobiografia, canta a reflexão do próprio autor quando se deparou com a
fronteira entre o crime ou o “caminho do bem”. Com um fluxo narrativo
impressionante, Brown relembra: “Não tava
nem aí, nem levava nada a sério/ Admirava os ladrão e os malandro mais velho/
Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga/ O que melhorou? Da função, quem
sobrou?/ Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá/ Qual a próxima mãe que vai
chorar?”. Momentos trágicos, como o de um “rapaz comum” da comunidade que
morre baleado, o fazem pensar: “Na parede
o sinal da cruz/ Que porra é essa? Que mundo é esse?/ Onde tá Jesus?/ Mais uma
vez um emissário/ Não incluiu Capão Redondo em seu itinerário/ Porra, eu tô
confuso/ Preciso pensar/ Me dá um tempo pra eu raciocinar/ Eu já não sei
distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha Ideologia enfraqueceu/ Preto, branco, polícia,
ladrão ou eu”. Os questionamentos, entretanto, logo dão lugar à consciência:
“Agradeço a Deus e aos Orixás/ Parei no
meio do caminho e olhei pra trás/ Meus outros manos todos foram longe de mais/ ‘Cemitério
São Luis, aqui jaz’.”
“Salve” repete a base de
“Jorge...”, finalizando o disco de rap mais vendido da história mesmo que por
um selo independente, Cosa Nostra, ou seja, sem a estrutura de uma grande
gravadora por trás. Oficialmente, foram 1,5 milhão de cópias comercializadas,
porém, não se contabilizam aí os outros milhões de cópias ilegais, uma vez que se
estava no auge da pirataria de CD’s no Brasil à época – nós mesmos, Lê e eu,
ouvíamos um pirateado naquela fatídica noite de 1º de janeiro.
Mesmo que criticável pelo
discurso de “vingança racial”, pela apologia ao ódio ou até da visão machista e
homofóbica por vezes, é inegável a importância do papel que cabe aos Racionais
MC’s na cultura pop brasileira nesses últimos 20 anos desde que
“Sobrevivendo...” foi lançado. Afinal, uma voz calada por tanto tempo e das
maneiras mais cruéis que o ser humano é capaz, caso do povo africano e seus
descendentes diretos, quando posta para fora, só pode vir carregada de coisas
boas e ruins. A causa dos direitos humanos é mais valiosa do que qualquer coisa
quando a mesma é subvertida. A única solução é a reação. Confesso que, naquela primeira
audição, o discurso maniqueísta me chocara. Mas quem sou eu, um “mano” cuja
história de vida sempre teve boas condições sociais (ou seja: protegido de uma
série de constrangimentos e humilhações), para julgar? Neste sentido, o rap brasileiro dos
anos 90, capitaneado pelos eles, alinhou-se ao que o samba do morro representou
ao longo do século XX: a resistência. Se o samba agoniza mas não morre, o rap
sobrevive e mata. E se hoje se fala tanto e com propriedade de “empoderamento”
das minorias e “orgulho negro”, a tal missão que os Racionais se impuseram,
violentamente pacífica, foi cumprida com êxito.
Racionais MC's -"Diário de um Detento"
*****************************
FAIXAS
1. Jorge da Capadócia (Jorge
Ben)
2. Gênesis (Mano Brown)
3. Capítulo 4, Versículo 3
(Brown)
4. Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (Brown)
5. Rapaz Comum (Edi Rock)
6. Instrumental (Rock)
7. Diário de Um Detento
(Brown/ Jocenir)
8. Periferia é Periferia (Em
Qualquer Lugar) (Rock)
Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos
os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava
a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um
motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não
resenhei: Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento, Paulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The Cure, The Smiths, Cocteau Twins,
Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto
admiro? Do para mim formativo punk rock
(Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no
último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse
planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do
free-jazz como uma das mais revolucionárias
obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual –
de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.
Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do
jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e
“Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio,
não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova
direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman
era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No
início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de
seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as
progressões harmônicas do be-bop, já
demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de
acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas
dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si
próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.
Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um
patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente
coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool
jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi
que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de
consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu
melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas
artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György
Ligeti.
Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da
banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos
à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos
desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística
natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto.
“Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um
ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse
brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso
discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo,
longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry,
pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta,
incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.
Na revolução do free jazz, cada
membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em
alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as
amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado
ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade
técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é
outro. Os riffs e o tom estão lá como
os do be-bop; a elegância do blues trazida
do swing também. Mas o conceito e a
dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas
tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como
praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.
Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas
logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a.
Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo
retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria
lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o
compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância
desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais
“comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um
arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode
parecer um be-bop comum, mas, ditado
pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação),
definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução
da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu
modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.
Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah
Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois
de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman
influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do
naipe de Jimi Hendrix, Don Van Vliet, Frank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte
ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido
“Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our
Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of
America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976),
recriando-se com uma música dançante e suingada.
Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o
que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz
modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e
escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”,
recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os
quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul),
colocavam os dois discos em polos opostos: free
jazzversus modal. No entanto,
como ressalta Kuhn: “No fim das contas,
Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente
opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.
Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos
atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de
também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer
quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma
obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um
Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço,
Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem
soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos
sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se
libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.
“Musicalmente
falando, eu acho que o que estou fazendo é, basicamente, a
continuação de uma estética de linguagem musical que existe no
Brasil desde os anos 60 e 70, mas que de repente ficou meio esquecida
por aqui.”
Lucas Arruda
”Esse
cara é um gênio. Para mim, ele salva esse cenário supermedíocre
de hoje”.
Ed Motta
Ano
passado publiquei aqui no Clyblog uma lista dos meus melhores discos instrumentais brasileiros de todos os tempos. Salvo a minha
ignorância de não listado a obra-prima de Robson Jorge e Lincoln
Olivetti, de 1982 (menção esta aqui com a qual me sinto agora livre
do justo espancamento), um que não incluí, pois ainda não o
conhecia nem o entendia suficientemente devido à sua recência, é
“Sambadi”, de Lucas Arruda, de 2013. Considero, no
entanto, que desfaço agora duplamente a injustiça ao sagrá-lo como
um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, tanto por destacá-lo assim, exclusivamente,
como pelo fato de ser o álbum mais recente sobre o qual já escrevi
entre os meus mais de 40 para esta seção.
O
certo é que esse destaque não se sustenta por um sentimento de
culpa. “Sambadi” é que é muito bom. Primeiro disco deste
talentoso jovem capixaba multi-instrumentista radicado no Rio de
Janeiro, é ao mesmo tempo um trabalho autoral e raro na música
brasileira dos últimos 20 anos como também uma homenagem aos ídolos
da soul music e do samba-jazz brasileiro, forte nos anos 60 e
70 mas gradativamente desvalorizado a partir dos 80. O resultado é
um disco semi-instrumental altamente sofisticado pela habilidade de
Lucas, responsável por praticamente todos os instrumentos (a
bateria, único que ele não toca, é de seu irmão, Thiago Arruda).
As referências vão dos mestres norte-americanos Stevie Wonder,
Curtis Mayfield e George Duke aos brasileiros Tamba Trio, Azimuth,
Marcos Valle, Black Rio, Sambrasa Trio, Ed Motta, os próprios Robson
Jorge, Olivetti, entre outros dentre os que dominam o legado da MPB e
o manancial estético oferecido pelo jazz e o R&B.
“Physis”
dá a cara da abertura com uma linha de sintetizador marcando acordes
que vão e voltam, acompanhados por vocalises de Lucas. Ao fundo, um
clima muito brasileiro se forma com sons da natureza de nossa flora e
fauna. Prenúncio da brasilidade que se sentirá fortemente a partir
dali. Sem dar tempo de respirar, a primeira faixa emenda com “Tamba”,
um samba-funk gostoso e sofisticado no qual Lucas manda ver em
lindos improvisos de seus teclados (piano, Fender Rhodes e
sintetizador). Nos tons médios, a guitarra, numa levada de mexer o
esqueleto, sustenta a base junto com o Rhodes e a batida sincopada da
caixa, enquanto o baixo e o bumbo mantém a seção grave. Afora a
visível homenagem ao famoso trio de bossa-jazz dos anos 60 comandado
pelo pianista Luiz Eça, a sonoridade remete mesmo durante todo o
disco fortemente à Azimuth, outra grande banda da mistura de jazz e
MPB, porém esta, já setentista, com o espírito fusion de
então.
Aliás,
a arquitetura timbrística de “Sambadi” respira o tempo todo a
Rio de Janeiro e a essa atmosfera da Azimuth, e isso por dois
motivos. Primeiro, pelo arranjo e produção serem do próprio Lucas
Arruda, que encerra todas as músicas do disco dentro do mesmo
conceito sonoro: bateria e/ou percussão e/ou programação de ritmo
(uma ou duas juntas no máximo), guitarra, baixo, piano elétrico e
sintetizador ou Fender Rhodes. Fora um ou outro instrumento ocasional
(cavaquinho, violão) ou voz, as texturas do disco são
permanentemente essas, o que lhe dá bastante coesão. E essa
sonoridade é muito Azimith, principalmente no mitológico "Light as a Feather", de 1979, porém adicionando a isso a limpidez dos estúdios digitais de hoje. Segundo: quem executa tudo é apenas um
músico: o próprio autor – fora a bateria, que também vêm de
alguém do sangue Arruda. E com tamanho talento, tudo funciona
redondinho. “Batuque” (outra referência a seus mestres, nesse
caso, o clássico “Batucada Surgiu”, dos irmãos Valle, de 1967)
acelera o ritmo mas mantém a mesma malemolência e elegância. Na
percussão, além da bateria, um agogô joga o ouvinte pra dentro de
um terreiro de samba. Nesta, Lucas investe em solos não só de seus
teclados, mas também da guitarra, tudo sob uma linha de baixo 4/4
maravilhosa a laRon Carter que lembra as realizadas pelo
baixista norte-americano nas memoráveis gravações com os
brasileiros Airto Moreira, Tom Jobim e Hermeto Paschoal.
A
black music ganha um preito especial em “Who’s that Lady”,
de autoria de O'Kelly Isley, do grupo soul norte-americano
Isley Brothers, das poucas cantadas do disco. Clima sensual e
charmoso nesse AOR que podia rodar em qualquer rádio retrô tipo
Continental que os desavisados achariam que foi gravada nos anos 70.
Sem percussão, apenas no piano elétrico e sintetizador, “Rio
Afternoon”, na sequência, é quase uma vinheta atmosférica como a
inicial “Physis”, demarcando agora o começo de uma nova seção
do disco, como se o CD tivesse o lado B do vinil. Essa segunda parte
começa com a também curta “Na Feira”, um baião hi-tech,
provando o quanto Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira são sofisticados.
Tudo
isso faz cama para a excepcional faixa-título em seus cerca de cinco
minutos de puro desenvolvimento de solos e perícia nas linhas de
base. O espírito nordestino se mantém na marcação metálica de um
triângulo, que vem com os keyboards espaciais do Rhodes e uma
rica linha de guitarra ao estilo Nile Rodgers. Uma programação
eletrônica, associada à bateria e a percussões, aponta o ritmo. O
baixo, entretanto, é um destaque à parte, denotando o quanto Lucas
é ouvinte atento de suas fontes. Com uma letra quase incidental, ele
canta versos que mais fazem dar sentido melódico à ideia de “samba
de” (“Sambadi balada/sambadi quebrada/ sambadi embolada/
sambadi linha do mar...") do que para inventar poesia. A
melodia, swingada e requintada, algo entre o samba e o funk, dá
espaço tanto para os solos quanto para floreios dos instrumentos,
principalmente da guitarra e do Rhodes.
Outra
aberta lembrança à Azimuth, “Carnival” (alusão à “Jazz
Carnival”, sucesso da banda de José Roberto Bertrami) põe ainda
mais groove no samba. Já “Alma Nova” faz cair novamente o
ritmo para aclimatar uma bela bossa-nova romântica, a última com
letra de verdade. Lucas canta com leveza e afinação sobre uma
batida de violão sincopada, característica do estilo, somada a um
acompanhamento na bateria do irmão Thiago digno de um Milton Banana
ou um João Palma. O piano e o Rhodes estão ali funcionando no
arranjo como integradores da faixa ao restante do repertório mesmo
com a estética distinta que a bossa-nova impõe. Para arrematar, uma
nova sequência de “Tamba”, finalizando o álbum novamente com um
instrumental de alto virtuosismo.
Festejado
por gente do calibre de Ed Motta, por quem a admiração é
recíproca, o surgimento de Lucas Arruda vem como um raiar de
esperança na música brasileira contemporânea tão infestada pelo
medíocre, conformada com o mediano e, quando melhor que isso, ainda
ditada por artistas de gerações (bem) anteriores. Ironicamente, o
que acontece com Lucas Arruda é a repetição do que muitas vezes já
se viu em terras tupiniquins: seu trabalho foi apreciado antes no
exterior (no caso dele, Europa e Japão) para depois receber atenção
aqui. Pouca, diga-se de passagem. E se a galera da MPB pós-bossa-bova
está toda na faixa dos 70 anos, o aparecimento de um guri de apenas
32 de idade (30 quando gravou “Sambadi”) é no mínimo alentador.
Com uma estreia luminosa como essa isso se torna ainda mais
promissor. Neste sentido, não parece coincidência que seu novo CD,
lançado em março desse ano (novamente primeiro no exterior) traga
um título consideravelmente simbólico: “Solar”.
Lucas Arruda - Sambadi(Radio Edit)
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FAIXAS:
1.
Physis - 1:15
2.
Tamba, Pt. 1 - 7:10
3.
Batuque - 5:38
4. Who's That Lady (O'Kelly Isley) - 3:40
5. Rio
Afternoon - 1:37
6. Na
Feira - 1:29
7.
Sambadi - 5:18
8.
Carnival - 3:30
9.
Alma Nova (Arruda/Fabricio Di Monaco) - 5:33
10.
Tamba, Pt. 2 - 4:41
todas
as composições de autoria de Lucas Arruda, exceto indicadas.
“Arlênio pega a pelota/ E passa
pro China/ Trindade pisa na bola/ Mas é bom menino.”
da letra de “Haddock
Lobo, Esquina com Matoso”
Ed Motta, profundo conhecedor da música soul e, além de tudo, sobrinho de Tim Maia, disse certa vez: “’Nêgo’ tá de bobeira com negócio de [Tim
Maia] Racional, muito menos musical. O lance é esse aqui.” O “lance” a que
ele se refere é “Nuvens”, que seu
tio gravara em 1982. Uma preciosidade da soul
music brasileira da fase final da era black
rio que Tim foi, se não o principal, um dos protagonistas juntamente com
Cassiano, Hyldon, Dom Salvador, Érlon Chaves, Oberdan Magalhães, Carlos Dafé,
entre outros craques. Tudo gente da maior categoria, músicos de primeira, a
quem Tim, em “Nuvens”, faz questão de reverenciar de uma forma ou de outra.
O disco, assim, é uma volta às raízes da errante carreira desse junkie total chamado Tim Maia (afinal, o
cara, cheirava, fumava, bebia e comia, tudo em excesso). Tim já era uma lenda desde
o final dos anos 50, antes mesmo apresentar seu gogó de veludo ao mundo do
entretenimento. Nos anos 60, viajou, no peito e na raça (negra), para os
Estados Unidos em plena ebulição de Luther King e Black Panthers e em uma época
que não era comum um preto sul-americano pobre fazê-lo (ainda não é...) para
viver no gueto de Nova York fazendo música “y
outras cositas mas”. Foi, evidentemente, deportado por porte de drogas... Voltou
ao Brasil, foi gravado pelo já ícone Roberto Carlos e fez dueto com outro
ícone, Elis Regina. Tudo isso antes do seu aguardado – e confirmado – debut solo, "Tim Maia" (1970) (já
resenhado aqui no ClyBlog). Entre sucessos estrondosos ao longo da década
seguinte (“Primavera”, “Não Quero Dinheiro”, “Você”, “Azul da Cor do Mar” e
mais uma dezenas de hits), Tim também
amargou fracassos homéricos, fosse pela sua inabilidade como empresário à
frente da gravadora própria, a Seroma, fosse pelo comportamento de toxicômano
ou pelo seu temperamento irascível, o que lhe indispunha diretamente com toda a
indústria fonográfica. O limite da “irracionalidade” se deu em 1975, quando, em
uma séria crise de abstinência, parou com todas as drogas químicas para se viciar
na Cultura Racional, uma espécie de seita ocultista cuja filosofia ia do nada
ao nada, mas que o motivou a gravar os dois históricos discos “Tim Maia
Racional Vol. 1” e “Vol. 2”.
Após o (óbvio) fracasso do projeto (o Racional virou cult no mundo 30 anos depois sem render,
no entanto, nenhum centavo ao bolso de Tim) e de um retorno com tudo às drogas,
ele limpou-se de novo e ainda se recuperou nas paradas no final dos anos 70,
mas tudo com mais baixos do que altos. Curiosamente, a despeito do caixa
zerado, esse período de sua carreira é extremamente rico e fértil. Maduro como
músico (tocava quase todos os instrumentos, do violão à bateria, além compor,
arranjar e de dominar a mesa de estúdio), Tim enfileira discos excepcionais,
como os homônimos de 1976 (que contém “Rodésia”) e 1978 (o todo em inglês) e
“Reencontro”, de 1979 (o da linda “Lábios de Mel”). “Nuvens”, como Ed Motta
ressalta, é o ápice dessa fase, e um dos segredos para tal êxito está
justamente na volta às origens. Tim, então chegado aos 40 anos, parecia ter compreendido
que era necessário não se afastar de todos, como fizeram na fase Racional, mas,
sim, se reaproximar (física ou espiritualmente) daqueles que construíram sua
história, expondo, assim, o que ele realmente era: um cara de talento ímpar,
excêntrico e difícil, mas generoso e amigo.
Assim, voltam à cena Hyldon, Robson Jorge e, principalmente, o “genial
Genival”: Cassiano, cuja participação já lá no primeiro álbum de Tim é
fundamental. A faixa-título e de abertura, parceria de Cassiano com o “gringo
brasileiro” Deny King, evidencia seu toque refinado. Como destaca Ed Motta: “tema do Cassiano lindaço, moderno
harmonicamente”. De fato, a harmonia bossa-novista, com sinuosidades a la Marvin Gaye, ao mesmo tempo
romântica e espacial, tem a sua cara. O paraibano contribui ainda com seu falsete
e arranjo vocal no refrão, no qual forja, numa improvável alocação, a palavra “você”
dentro de apenas meio tempo do compasso sobre um riff de metais matador. Genial. Genival. Cassiano.
O álbum segue com temas interessantíssimos: o sambão romântico “Outra
Mulher”, ao estilo “Gostava Tanto de Você”, “Réu Confesso” e “Vou Correndo te
Buscar”, característico de Tim; a foliosa “A Festa”, com uma levada de baixo em
escala que é de um groove
impressionante; a autoavaliativa “Ninguém Gosta de se Sentir Só”, cuja gostosa melodia
lembra outra de Tim, “Brother, Father, Sister and Mother” (presente em “Tim
Maia”, de 1976); e a balada quase bolero “Deixar as Coisas Tristes pra Depois”,
também com a mãozinha de Cassiano no coro. Mais uma fruto de parceria com um “brother”, Robson Jorge, “Ar Puro”, de
letra ecologicamente consciente numa época em que não era moda este termo (“Mas eis que estão matando o verde/ E o quê
irá sobrar?/ Sujando os mares e os rios/ O volume do ar/ Ar.”), é daqueles soul super dançáveis, igualmente às
versões de “O Trem”, tanto o tema instrumental (infalível em qualquer disco de
Tim) quanto o “falado”, que tem improvisos super bacanas da banda Vitória Régia.
Ainda no espírito de resgates, Tim chama Hyldon para tocar na
regravação do maior sucesso do amigo, “Na rua, na chuva, na fazenda (Casinha de
Sapê)”, em que empresta seu vozeirão com direito a ouverdub para a pegajosa letra da canção: “Jogue suas mãos para o céu/ E agradeça se acaso tiver...”. Mas para
muitos críticos e fãs é “Haddock Lobo, Esquina com Matoso” – endereço do bairro
da Tijuca, Zona Norte do Rio, ponto de encontro de uns moleques que se
tornariam algumas maiores nomes da MPB dos anos 50 até os dias de hoje – o
verdadeiro hit de “Nuvens”. “Foi lá que
toda a confusão começou”, alerta Tim! Pois foi lá que Tim formou seu
primeiro grupo musical juntamente com Roberto Carlos, Arlênio Lívio (aquele que “pega a pelota”), o “bom menino” Edson Trindade (um
dos grandes parceiros de Tim ao longo da carreira, autor do clássico “Gostava
Tanto de Você”, gravada por Tim em 1973) e Wellington Oliveira, Os Sputniks,
posteriormente, renomeado The Snakes, já sem Tim e Roberto mas com as
substituições de outro Roberto, o China, e de outro Carlos, o Erasmo. Ele recobra esta origem de subúrbio ao trazer situações e personagens,
como Jorge Ben (“A turma estava formada/
Com lindas meninas/ E o Jorge com um camarada/ Era o Babulina”) e os
próprios Roberto e Erasmo (“Erasmo, um
cara esperto/ Juntou com Roberto/ Fizeram coisas bacanas/ São lá da esquina...”).
Como se vê, uma das
lembranças gostosas desse tempo está relacionada a futebol, nas peladas que
batiam pelas ruas quando meninos. Uma menção breve acerca do esporte, mas
bastante simbólica no que se refere ao conceito de resgate emocional (Tim era
um jogador de futebol frustrado) que o disco carrega.
Depois dessa passagem
nostólgico-futebolística, merecem atenção dois funks. O primeiro, “Apesar
dos Poucos Anos”, de Tim e Cajueiro, mas que quem dá a roupagem caprichada é
Cassiano na fineza da harmonia e da linha vocal com sutilezas de Nile Rodgers e Quincy Jones. Por último, justamente a faixa que encerra o disco, “Sol
Brilhante”, uma canção, simplesmente, solar, tal seu colorido e boas energias
que transmite: “Vê que dia lindo/ Com
muito amor, viver sorrindo/ Com este sol da manhã/ Com este sol penetrante/ Sol
brilhante...”. Tudo numa execução exata da banda, num ritmo swingado e com vocal
aberto, cantado pra fora. Inspiração total. O jornalista e escritor Marcello
Campos, admirador e conhecedor da obra do artista, que diz: “’A musica do Sol’ é uma das coisas mais lindamente
felizes e inspiradoras que eu já ouvi. Lindo demais.”
Definitivamente,
“Nuvens” é um dos mais ricos e bem-acabados trabalhos da longa e sinuosa
carreira de Tim Maia, seja pelas interpretações, pelos arranjos perfeitos, pela
diversidade rítmica – percebida antes com tanta variedade, a bem da verdade,
somente nos Racional – ou pelas referências que absorve, que vão desde Banda
Black Rio até Gaye, James Brown, Curtis Mayfield e Stevie Wonder, passando
pelos companheiros de rock e soul dos anos 60-70 e o samba carioca. Tudo isso
não quer dizer, entretanto, que “Nuvens” tenha sido um sucesso. Marcello Campos
confirma isso: “Esse disco é ensolarado
como a capa, mas, por questões ‘tim-maianas’, um fracasso de mercado“. Mas,
como de costume na obra te Tim Maia, virou mitológico tempo depois. Qual a
validade disso? Em relação a Tim Maia, “só não vale dançar homem com homem e
nem mulher com mulher”. O resto vale. "Haddock Lobo, Esquina com Matoso" - Tim Maia