“John
McLaughlin,
este é único, é um matador.”
Miles Davis
Pessoal
que acompanha meus textos andava reclamando que eu só falava de
discos de música pop e deixava o jazz – em tese, minha
especialidade – de lado. Hoje, resolvi resgatar um disco dos meus
19 tenros anos. Mas, pra começar, uma historinha. A década de 70 no
jazz foi pródiga em manifestações das mais variadas. O selo ECM
surgiu e floresceu, o jazz alemão se desenvolveu e o
fusion
tomou conta das paradas e das mentes do novo público que veio do
rock querendo algo mais do que três acordes. A culpa toda é de
Miles Davis que, em 1969, lançou os discos
"In a Silent Way" e o
seminal “Bitches Brew”. Em suas bandas, circulavam nomes que
iriam montar seus próprios trabalhos durante a década. Entre eles,
Chick Corea, com seu “Return to Forever”, Joe Zawinul e
Wayne Shorter, com o Weather Report, e o guitarrista inglês
John
McLaughlin com a Mahavishnu Orchestra. À exceção de Zawinul,
que fez dos teclados e do som elétrico a base de seus trabalhos,
todos os outros mesclaram as sonoridades acústicas com as elétricas
em suas criações.
No
final dos anos 70, McLaughlin montou mais um de seus grupos, a One
Truth Band, trazendo o violinista L.Shankar da Índia, o
percussionista brasileiro Alyrio Lima e mais os americanos Stu
Goldberg nos teclados, Fernando Saunders no baixo elétrico e Tony
Smith na bateria. Com esta turma, gravou o disco “Electric
Dreams”, com o qual excursionou pelo mundo e, por incrível que
pareça aos mais jovens, esteve em Porto Alegre, no Gigantinho,
dividindo o palco com Egberto Gismonti & Academia de Danças.
Nesta ocasião, eu estava mergulhado totalmente no fusion e
não perdi a oportunidade de ver este espetáculo. Além de mim,
cinco mil testemunhas adoraram o que viram. Numa nota pessoal, em
2010, estive em Bremen, na Alemanha, para ver um festival de jazz, a
convite do Instituto Goethe, e a abertura era feita por McLaughlin e
seu grupo. No final, fui conversar com ele no backstage e o
guitarrista acabou me confessando que foi “o pior som que jamais
teve em um palco”. Que currículo, hein? Mas o que interessa é o
disco “Electric Dreams”, de John McLaughlin & The One Truth
Band.
A
viagem inicia com “Guardian Angel”, praticamente uma vinheta de
McLaughin no violão, Goldberg ao piano e Shankar no violino. Tão
breve que dá vontade de ouvir novamente. Depois, vem “Miles
Davis”, a homenagem de McLaughlin ao trompetista que havia lhe dado
de presente uma das músicas de “Bitches Brew”. Uma faixa
balançada com os teclados de Goldberg, a bateria de Smith e a
percussão de Alyrio fazendo o pano de fundo para os arroubos
virtuosísticos de Saunders e da guitarra de McLaughlin. Depois de
uma improvisação coletiva ao estilo dos discos elétricos de MD, a
música vira uma funkeira no clima dos trabalhos posteriores do
trompetista. Isso que estávamos em 1979. McLaughlin já esteve
prevendo o que viria na volta de Miles aos gramados.
“Electric
Dreams, Electric Sighs” começa com a guitarra improvisando sob uma
cama de teclados. O clima de balada se instala com o tema da canção,
sob o qual Shankar faz seu solo, o tecladista usa o Fender Rhodes
para as harmonias e o mini-moog para o solo e o guitarrista
larga seu instrumento e faz uma tentativa no banjo, muito bem
sucedida, aliás. Pena que ele não seguiu em frente com seus
experimentos “banjísticos”. Depois, ele retoma a guitarra para
encerrar a música.
A
faixa que fecha o lado 1 do LP é a preferida da casa: “Desire and
the Conforter”, que inicia com o triângulo de Alyrio junto ao
Rhodes de Goldberg, aos quais se juntam os pratos de Smith e o solo
de baixo elétrico fretless de Saunders. Aos quase dois
minutos, a música dá uma guinada e a guitarra de McLaughlin e o
violino de Shankar introduzem uma batida funkeada que dá segmento a
um rodízio de solos do mini-moog de Goldberg, da guitarra do
líder e do violino de Shankar. E quando todo mundo achava que a
composição terminaria aí, uma levada jazzística de Smith surge
quase do nada para carregar mais um solo de Mac com Alyrio pontuando
com seus caxixis, chocalhos, guiros e outros bichos mais. Até a
funkeira recomeçar para o final da música no qual o percussionista
brasileiro vai regulando dizendo: “segura, rapaziada, segura,
não deixa cair...”.
O Lado
2 abre com “Love and Understanding”, uma viagem mística de
McLaughlin com o violão fazendo uma base para um lindo solo de
violino. Aos poucos, os teclados tomam conta, juntamente com a
guitarra. E aí, a surpresa: o baterista Tony
Smith começa a cantar: “Love and
Understanding / Understanding love”,
seguido pelo baixista Saunders entoando: “Love
is hard to stand it... You can hear the secret sound / to be found /
so let’s see, let’s see, let’s see..”.
Pura doideira cósmica, recheada com solos em uníssono de
McLaughlin e Shankar. Até o clima místico voltar. E Smith e
Saunders continuarem cantando que “o amor é compreensão”. Nem
todo mundo concorda...
“Singing
Earth” é mais uma vinheta, agora a cargo dos teclados de Goldberg.
Quando prestamos a atenção, ela terminou. Mas a pauleira jazz-rock
vem com força total com “The Dark Prince”, faixa que poderia
estar nos dois primeiros discos da Mahavishnu Orchestra, “The Inner
Mounting Flame” ou “Birds of Fire”, sem dúvida alguma. Depois
da apresentação do tema, os solos tomam conta, com McLaughlin
mostrando aquelas notas rapidíssimas, bem ao seu estilo. Na
sequência, Stu Goldberg faz um solo de Fender Rhodes e depois de
mini-moog. Quebradeira fusion pra ninguém botar
defeito.
Pra
fechar o disco, uma balada com andamento de valsa chamada “The
Unknown Dissident”, que começa com os policiais do governo
circulando e procurando o dissidente desconhecido. Logo, McLaughlin
mostra a melodia na guitarra, seguido pelo convidado David Sanborn no
sax alto, que passa a solar. Quando o guitarrista voltar a tocar, faz
uma variação do tema principal. Assim como Sanborn, que reaparece
dividindo o espaço dos solos com o líder. No final, os dois
apresentam o tema. E os efeitos especiais retornam com uma porta
sendo aberta, o dissidente sendo levado pelos guardas, ouvindo-se os
passos até o tiro final.
Qualquer
um que vier contestar, dizendo que este não é dos melhores discos
de John McLaughlin, vou devolver a contestação. Esse é um dos meus
discos favoritos, ponto final. Ninguém tem de gostar. Só eu. E eu
gosto muito. Você também pode gostar.
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Uma
nota da época: Alyrio, entendiado no quarto de hotel, foi dar um
passeio no centro de Porto Alegre. Ao chegar na atual Esquina
Democrática, deparou-se com a loja Scarpini, “o joalheiro da
metrópole”, como dizia a propaganda. Não teve dúvidas: entrou e
pediu para ver os diamantes. Os atendentes ficaram cabreiros e
botaram o olho no rapaz. Este não pensou duas vezes e engoliu um dos
diamantes. Vigiado, Alyrio foi denunciado e a polícia foi chamada
para resolver o caso. Que teve sua solução na delegacia com um
laxante... Para quem não acredita, a saudosa Folha da Tarde publicou
esta história inclusive com foto do malfadado percussionista.
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FAIXAS:
1. Guardian Angels – 0:51
2. Miles Davis – 4:54
3. Electric Dreams, Electric Sighs – 6:57
4. Desire and the Comforter – 7:34
5. Love and Understanding – 6:36
6. Singing Earth (Stu Goldberg) – 0:37
7. The Dark Prince – 5:15
8. The Unknown Dissident – 6:16
Todas
as composições de McLaughlin, exceto indicada
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OUÇA O DISCO: