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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Música da Cabeça - Programa #127


Nenhum beijo será castigado, nenhum livro será proibido, nenhuma música será inaudita. O Música da Cabeça se junta à manifestação contra a censura e a imoralidade que tentam nos impor e traz aquilo que expressa o que a gente é: música. Gilberto Gil, Almir Guineto, Sean Lennon, Caetano Veloso, Pixinguinha e Plebe Rude são alguns dos que protestam junto conosco. Tem também o quadro “Música de Fato” e dobradinha de “Sete-List” e “Palavra, Lê” para lembrar o mestre Elton Medeiros, morto esta semana. Nenhum direito a menos no MDC hoje, às 21h, na Bienal do Livro da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e beijo de língua: Daniel Rodrigues. #CensuraNuncaMais



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sábado, 12 de novembro de 2016

Paulinho da Viola - “Memórias Chorando” (1976)


“’Chorando’ é um disco sonhado
por mim há muito tempo [...] 
Este trabalho não é propriamente
um disco de minhas memórias,
mas uma primeira experiência
com o gênero musical que mais me comove
dentro da nossa música popular.”
Paulinho da Viola



Paulinho da Viola é daqueles artistas que têm em sua base elementos da identidade brasileira. Filho de músico, Cesar Faria, cresceu num ambiente naturalmente musical. Na sua infância em Botafogo, bairro tradicional da zona sul do Rio de Janeiro, teve contado constante com a música através do pai, violonista integrante do conjunto Época de Ouro. Nos ensaios familiares do grupo, Paulinho conheceu os ídolos Jacob do Bandolim e Pixinguinha, entre muitos outros músicos que se reuniam para fazer choro e eventualmente cantar valsas e sambas de diferentes épocas. Mais tarde, antes mesmo de se tornar o cantor e compositor conhecido por clássicos como “Foi um rio que passou em minha vida” e “Para ver as meninas”, Paulinho, na segunda metade dos anos 60, já encabeçava um retorno triunfante do mesmo Época de Ouro, então relegado pela indústria fonográfica diante das nascentes música pop e MPB. Pois ele sempre soube valorizar a verdadeira arte, independentemente do seu período. Afinal, não lhe existe essa fronteira entre antigo e novo.

Assim, em 1976, dentro do mesmo projeto em que buscava retrazer a si sentidos do passado, deu-se a ideia de um disco inteiro de temas instrumentais de choro, um dos estilos formadores de Paulinho da Viola, tanto no modo de compor quanto de tocar violão ou cavaquinho. “Memórias Chorando”, um velho sonho do compositor, traz esse lado “chorão” de Paulinho, que regrava clássicos, redescobre preciosidades e, claro, cria as suas próprias. Além de temas seus, Paulinho vai aos grandes mestres, não se limitando aos baluartes Pixinguinha e Benedito Lacerda, mas apresentando a face desconhecida para muitos de Ary Barroso ao regravar-lhe “Chorando”, uma obra praticamente inédita.

Ele começa com o seu preferido, o genial Pixinguinha, em “Cinco Companheiros”, em que destaca o “equilíbrio formal” da melodia, “poucas vezes alcançado por um compositor num choro”, comenta. Paulinho, ao cavaquinho, tem o apoio de um grande time de músicos, aliás, um fator importante para a riqueza tanto de “Chorando” quanto de “Cantando”. Chiquinho, irmão mais novo de Paulinho, excelente no bandolim; Cristóvão Bastos, um dos maiores pianistas populares do Brasil e exímio arranjador ainda antes da Black Rio; o pai César Faria, incomparável acompanhador, perfeito nas harmonizações; Dininho, filho do histórico Dino Sete Cordas e responsável pelo baixo elétrico; Jorginho, excepcional pandeirista, irmão de Dino e tio do Dininho; Hércules Pereira, na bateria; e Chaplin, na percussão. Isso sem contar com o maestro Copinha na flauta e saxofone, e do parceiro inseparável Elton Medeiros manuseando diversos instrumentos de percussão.

A faixa-título, assim como no primeiro volume, é o segundo número do disco. Porém, desta vez não se trata de uma composição própria, mas sim do raro choro de Ary Barroso resgatado da memória afetiva de Paulinho. Trata-se de um tema gravado nos anos 50 em que seu pai, Cesar, fora o arranjador. Nela, Cristóvão abre solando por quase 2 minutos, aproximando-se do valseado que o próprio Ary forjara ao piano na versão original. Já na segunda metade, entra o restante da banda, e aí é o cavaquinho de Paulinho que domina. Excelente violonista que é, Paulinho mostra igualmente seu domínio do limitado mas formoso cavaquinho, instrumento dificílimo para o trabalho de “centro” e muito mais ainda para o de solo. “O cavaquinho ‘solado’ não é muito fácil devido aos poucos recursos que oferece”, relata Paulinho no detalhado texto do encarte. “A palhetada, tanto para solar quanto para centrar, é de muita importância, e seu completo desenvolvimento requer, às vezes, anos de experiência”.
Arte do encarte no desenho de Elifas Andreato.

A flauta de Copinha passeia pelos acordes animados de outra de Pixinguinha, “Cuidado, Colega”, compositor que também se faz presente no álbum na elegante “Cochichando”, em que o cavaquinho faz duo com a flauta, e a maxixada “Segura Ele”, outra, assim como “Cuidado...”, parceria com Benedito Lacerda. Todas canções de grande familiaridade aos ouvidos brasileiros, pois ouvi-las é dar-se conta do quanto seus acordes são parte do acervo imaterial da cultura do país.

Paulinho, entretanto, não deixa por menos quando se trata de chorar. Sabedor do desafio que se impôs, ele cria temas e recupera outros de seu repertório igualmente dignos de parearem com tais clássicos. ”Romanceando” é uma delas. Dedicado a seu pai, é um choro cadenciado de mais de 10 anos que Paulinho resgatava àquela altura. Ele e seu Cesar executam um dos mais lindos duos de violões da música brasileira de todos os tempos, em uma harmonia musical apenas explicável pelo inquestionável laço de afeto. Cristóvão e Copinha, este último ao sax agora, não ficam para trás quando, na segunda metade, exercitam solos igualmente lúcidos e sentimentais. Em clima parecido, a suplicante “Oração de Outono” é daquelas cujo arranjo faz a ponte entre chorinho e música erudita, ainda mais pelo som solene do fagote de Airton Barbosa.

Em homenagem à grande “violeira” Rosinha de Valença, com quem Paulinho tocara tal tema em parceria, “Rosinha, Essa Menina” traz ao choro um ar da guitarra nordestina, em que o solo se vale das notas mais agudas. Também em ritmo alegre, “Beliscando” retraz a atmosfera dos velhos chorões alegres e espevitados como os de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga.

“Choro de Memórias”, de estrutura formal rigorosa, é um verdadeiro exercício da modulação própria que tem o gênero, que vai da tonalidade maior à menor e vice-versa, passeando por entre ambas em seu decorrer. O encerramento do disco é romântico e intenso, como se Chopin se visse um chorista, cabendo a Cristóvão dedilhar-lhe inteira com carinho e sensibilidade. Com esta, escrita em homenagem a Jacob do Bandolim e não coincidentemente intitulada “Inesquecível”, Paulinho dá a mensagem de que jamais o choro se perderá da memória nesse vasto cancioneiro que a música do Brasil carrega como poucas nações culturais. Não se depender dele.
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FAIXAS:
1. Cinco Companheiros (Pixinguinha) - 3:16
2. Chorando (Ary Barroso) - 4:16
3. Cuidado, Colega (Benedito Lacerda, Pixinguinha) - 2:55
4. Romanceando - 4:37
5. Cochichando (Alberto Ribeiro, João De Barro, Pixinguinha) - 3:36
6. Rosinha, Essa Menina - 2:47
7. Oração de Outono - 3:55
8. Beliscando - 3:05
9. Segura Ele (Benedito Lacerda, Pixinguinha) - 2:02
10. Choro de Memórias - 2:12
11. Inesquecível - 4:10

todas composições de Paulinho da Viola, exceto indicadas.

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Ouça: 
Paulinho da Viola Memórias Chorando



por Daniel Rodrigues



Paulinho da Viola - “Memórias Cantando” (1976)



“Este trabalho reúne sambas meus e de outros
com um significado todo especial para mim [...]
Foram momentos que ficaram
em minha memória de forma viva,
 acontecimentos que têm grande importância
 naquilo que hoje faço.”
Paulinho da Viola



Paulinho da Viola não é dono de uma obra extensa. Principalmente se comparado a contemporâneos seus da música brasileira, como Gilberto GilCaetano VelosoGal Costa e Milton Nascimento, sua discografia é consideravelmente menor e na qual se nota um espaçamento maior entre um trabalho e outro, chegando a somar 20 anos sem nenhum projeto de canções inéditas como atualmente. Entretanto, e talvez por isso, a noção de tempo dele, esse misto elegante de malandro de morro com sambista clássico, chorista e bossa-novista, seja, de fato, diferente da noção da maioria. Sua apreensão dessa percepção temporal é fundamentalmente interna, subjetiva. E um dos mais fiéis recursos para a materialização desse tempo, constantemente presente e vivido, seja-lhe a memória. É no registro afetivo do passado que Paulinho da Viola cria, recria e reinventa (a si e ao que já foi).

Não é difícil deduzir porque o duo “Memórias Chorando” e “Memórias Cantando”, ambos de 1976 (ou seja, completando 40 anos) sejam talvez os grandes discos dele, um dos maiores artistas da música brasileira. Forjados para serem lançados num álbum duplo, por questões comerciais foram parar nas prateleiras das lojas separadamente. Mas lhes é visível a coesão, a começar pela arte magistral de Elifas Andreado tanto da capa, com a imagem dos “erês” brincando em um fundo branco, quanto nos encartes, quando seu desenho entrelaça vários momentos cronológicos e afetivos dele e de Paulinho. Porém, fundamentalmente, os dois discos são, parafraseando Jorge Luís Borges quando se referia aos livros, “uma extensão da memória e da imaginação”. Profundos, ambos trabalhos vão buscar, de formas diferentes, sentimentos que traduzem a personalidade de seu autor.

O volume 1, “Cantando”, é certamente um dos felizes trabalhos do samba em todos os tempos, desde sua caprichada produção, a cargo de Mariozinho Rocha e Milton Miranda, até o repertório, pinçado a dedo por Paulinho e que casa temas antigos com novas criações à época. A força das lembranças emocionais abre o disco no elegante samba-canção “Nova Ilusão”, do repertório da velha guarda da Portela em que o cavaquinho de Paulinho desenha o rico “riff” inventado por “mano” Caetano e Claudionor. Na letra, os temas que formaram a poesia de Paulinho desde sempre: as referências à passagem do tempo, os símbolos da natureza, a inter-relação do emocional com o real, a amalgamação do subjetivo com o concreto. “És um poema na terra/ Uma estrela no céu/ Um tesouro no mar/ És tanta felicidade/ Que nem a metade consigo exaltar”.

Na sequência, a faixa-título, das escritas especialmente para o disco. Relembrando uma época de inocência, Paulinho percebe o transcorrer da história pessoal do homem e coloca os sentimentos bonitos e sinceros em confronto com os amargos da vida adulta. “Lembra daquele tempo/ Quando não existia maldade entre nós/ Risos, assuntos de vento/ Pequenos poemas que foram perdidos momentos depois/ Hoje sabemos do sofrimento/ Tendo no rosto, no peito e nas mãos umas dor conhecida/ Vivemos, estamos vivendo/ Lutando pra justificar nossas vidas”. Mas, valendo-se do canto, da sua música, ele desfecha otimista e humanisticamente: ”Cantando/ Um novo sentido, uma nova alegria/ Se foi desespero hoje é sabedoria/ Se foi fingimento hoje é sinceridade/ Lutando/ Que não há sentido de outra maneira/ Uma vida não é brincadeira/ E só desse jeito é a felicidade”.

“Abre os teus olhos”, ao estilo dos sambas da Portela, narra um amor se desfazendo, ou seja, o passado que já não se faz mais presente (“Felicidade já conheceu seu momento/ Abre os teus olhos e veja o que aconteceu/ Esqueça tudo/ Porque nosso amor já morreu”). Esta antecede uma das mais belas do disco e de todo o repertório do músico: "Dívidas". Samba cadenciado e melancólico, é uma espécie de “crônica de memória”, na qual Paulinho conta um episódio cotidiano que presenciou quando criança e que lhe marcou: um vizinho seu, homem da comunidade, apertado de grana no final do mês como tantos ali, incomodou-se ele e sua esposa, a Inocência, com outro vizinho, Oliveira, que havia lhe emprestado dinheiro mas não tinha sido pago ainda. A menção aos nomes desses personagens anônimos, o relato cronológico da pequena história, dando detalhes e pontuando aspectos simbólicos importantes, como a situação econômica e a estratificação social, dão a esta canção um aspecto literário. Isso ainda ajudado pela métrica não-linear da melodia – ao estilo de outro mestre portelense, Candeia – ,que acompanha o desenrolar ondulante que da narrativa – bem diferente de outras do disco, que chegam à perfeição simétrica como “Nova...” e “Mente ao meu coração”.

Esta última, por sinal, um samba-canção de Francisco Malfitano gravado originalmente em 1938 por Silvio Caldas, é mais uma das regravações cuja melodia Paulinho puxa do fundo do seu baú de emoções. E que bela poesia: “Mente ao meu coração/ Que cansado de sofrer/ Só deseja adormecer/ Na palma da tua mão...”. Das regravações há também uma do clássico de Noel Rosa e Vadico “Pra que mentir”, em que Paulinho interpreta (não sem a influência do canto de João Gilberto) apenas sobre o classudo violão de César Farias neste samba triste e de avançada estrutura, o qual lembra, com quase duas décadas de antecedência, as harmonias dissonantes da Bossa Nova.

Mas não apenas de tristeza, desentendimento e sofrimento se compõe a memória de Paulinho da Viola. “Perdoa”, um brilhante partido-alto no qual divide o microfone com Elton, levanta o clima. Além do tom alto, que lhe empresta vivacidade, é típico da estrutura deste tipo de samba o refrão permanente (aqui: “Meu bem, perdoa/ Perdoa meu coração pecador /Você sabe que jamais eu viverei/ Sem o seu amor”), o qual, como num repente nordestino, serve de marcação de tempo para que, nas rodas de pagode, os versos das estrofes possam ser inventados na hora pelos partideiros. Outra animada, esta em clima de crônica chistosa, “O velório do Heitor“ relembra um episódio em que o “catimbeiro” Heitor era enterrado com tristeza pela família, principalmente da esposa, Nair. Acontece que a “outra” do finado aparece também para dar seu adeus, e aí teve de se chamar até a polícia, pois, como dizem os versos: ”simplesmente o velório/ Virou a maior confusão”.

Os personagens, como bem se nota, são fundamentais para a formação desse mundo afetivo de Paulinho. É o que traz também “Vela no breu”, que descreve um velho mendigo de quem se tem muito mais a aprender do que lastimar: “Joga capoeira/ Nunca brigou com ninguém/ Xepa lá na feira/ Divide com quem não tem/ Faz tudo o que sente/ Nada do que tem é seu/ Vive do presente/ Acende a vela no breu”.

Em clima de choro sincopado, “Meu novo sapato” desfecha o disco, já anunciando o segundo bolachão, “Chorando”. Entretanto, “Cantando” tem ainda antes a talvez mais bela e intensa composição de Paulinho: “Coisas do mundo, minha nêga”. Nela, a questão do tempo é mirada em seu mais irremediável e infalível instante: a morte. Paulinho conta de forma poética a missão de um santo-sambista, imperfeito como um homem e poderoso como um deus, que, com seu violão debaixo do braço, sai pelos morros salvando almas com versos e melodias, sem, contudo, deixar de sofrer com isso e de precisar do amor redentor de sua amada. Difícil não se comover em passagens como esta: “Depois encontrei Seu Bento, nêga/ Que bebeu a noite inteira/ Estirou-se na calçada/ Sem ter vontade qualquer/ Esqueceu do compromisso/ Que assumiu com a mulher/ Não chegar de madrugada/ E não beber mais cachaça/ Ela fez até promessa/ Pagou e se arrependeu/ Cantei um samba pra ele/ Que sorriu e adormeceu”. “Coisas...” é tão importante para o repertório, que, não inédita, foi resgatada do álbum de 1968, o primeiro solo do artista, para esta versão definitiva da música preferida do seu próprio autor.

Interessante notar que, embora seja a mais anedótica entre todos os temas, “Coisas...” é a que tem o ar mais autobiográfico, como se somente fosse possível alcançar o misterioso interior de Paulinho da Viola através da fantasia. O próprio diz no texto que integra o encarte: “Amo o oceano que retém no fundo os mistérios de sua natureza”. Não à toa símbolos como o mar, os ventos, as flores, enfim, o tempo, estão constantemente presente nas suas letras e universo. A sentença “Meu mundo é hoje” (título de um clássico de Wilson Batista gravada por Paulinho na mesma década de 70), exprime o artista que é Paulinho da Viola e resume os versos que encerram “Memórias Cantando”: “É um verdadeiro artista/ Não tem orgulho/ Nem tão pouco amargura/ Está voltado/ Para o futuro.”

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FAIXAS:
1. Nova ilusão (Claudionor Cruz, Pedro Caetano) - 2:57
2. Cantando - 3:30
3. Abre os teus olhos - 2:47
4. Dívidas (Élton Medeiros, Paulinho da Viola) - 3:32
5. Perdoa - 4:05
6. Mente ao meu coração (Francisco Malfitano) - 3:12
7. Pra que mentir (Vadico, Noel Rosa) - 3:33
8. O velório do Heitor - 3:25
9. O carnaval acabou - 2:25
10. Coisas do mundo, minha nêga - 3:12
11. Vela no breu (Sergio Natureza, Paulinho da Viola) - 3:17
12. Meu novo sapato - 2:45

todas composições de Paulinho da Viola, exceto indicadas.
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por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


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FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:



sexta-feira, 2 de setembro de 2011

cotidinas #102- "Dívidas"



Descendo ladeira abaixo
Uma grande correria
Só pra ver se não perdia
A primeira condução
Esqueceu de resgatar
Uma grana que devia
A um tal de Oliveira, marido da Conceição
"Favela" - Portinari, Cândido
Que pela mulher pressionado
Foi receber o dinheiro
Só encontrando a inocência
Deu início a discussão
Disse tudo que devia
Sem medir as consequências
Num bate boca danado
Diante do barracão

Quando ele voltou depois das seis, se aborreceu
Sabendo do "aperto" que a mulher atravessou
E muito magoado, saiu sem dizer nada
Achando que Oliveira esquecera da amizade
E a tudo a bem dizer, por uma nota de dez
Que o outro bem podia dispensar
Mas era fim de mês, e na quitando do Garcês
O Oliveira, precisava se explicar
E foi assim, que a demanda começou
Não aceitaram, argumentos de ninguém
Naquela noite, todo morro lamentou
Eu era menino, mas me lembro muito bem.

Descendo ladeira abaixo
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"Dívidas"
(Paulinho da Viola/ Elton Medeiros)

Ouça:
Paulinho da Viola - "Dívidas"

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tom Zé - "Estudando o Samba" (1976)



“[Tom Zé] pensou e realizou este disco, onde procurou reunir uma variedade de tipos e de formas rurais e urbanos do samba, dando a cada música a vestimenta que achou mais adequada.”
Elton Medeiros


Nos anos 90, o destino pôs diante de Tom Zé o 'talking head' David Byrne, que o trouxe do ostracismo para uma posição de artista cult e mundialmente reverenciado. Mas o início desta história hoje já conhecida nasceu de uma audição despretensiosa de um dos vários LP’s de MPB que Byrne comprara numa vinda ao Brasil. Dentre aqueles bolachões, um lhe fez a diferença. Foi este que o motivou a procurar saber quem era aquele artista e, em seguida, conhecê-lo e gravá-lo. Este álbum era “Estudando o Samba", de 1976, sem dúvida o melhor trabalho do baiano de Irará.

Metalinguístico, atonal, serialista, revisionista. Todos estes atributos “difíceis” estão certos quando creditados a “Estudando o Samba”. Mas tudo tem pouca importância quando o negócio é simplesmente ouvi-lo. Um deleite! Trata-se de um disco indiscutivelmente conceitual, o que já lhe garante certa aura de complexidade. É, talvez, o grande disco-conceito da música brasileira depois do “Coisas” do Moacir Santos, de 1965 (neste quesito, nem “Tropicália”, de 68, em que Tom Zé participa junto com toda a turma de Caetano, Gil, Gal, Nara e Mutantes, é tanto). Mas, acima de tudo, é delicioso escutar o álbum do início ao fim e curtir músicas como “Tô”, “Hein?” e “Vai”, onde Tom Zé desconstrói o gênero samba para, didaticamente, mostrá-lo de maneira híbrida em suas mais variadas vertentes.

Comecemos pelo fim. Afinal, sou daquela teoria de que todo grande disco tem uma obra-prima de desfecho, de abertura ou as duas coisas juntas. No caso de “Estudando...” a faixa final não é bem um espetáculo, mas, com certeza, original e incomum, por isso o destaque. Intitulada “Índice”, traz na letra de frases fragmentadas e de sentido vago um verdadeiro índice remissivo em que se repassam os títulos de todas as músicas anteriores. Aí o motivo tanto de a letra ser quase silábica, pois todos os títulos (exceto “A Felicidade” e a própria “índice”) são formados por palavras que não passam de quatro letras, quanto, também, do teor fortemente conceitual do disco, visto que a obra se autoreferencia a todo instante.

Se o final do disco é interessante, porém não musicalmente estonteante, o início é. “Mã”, samba modernista repleto de referências aparentemente díspares, é a tradução da obra de Tom Zé (não à toa o próprio artista a regravou com outras letras mais de uma vez depois). Num clima entre a ópera e o ritualístico, mistura batuque de terreiro, canto de trabalho das lavadeiras nordestinas, coro sacro-religioso, ruídos da São Paulo urbana, entrecruzamentos vocais ao modo das vanguardas europeias (Ligeti, Stockhausen) e riff de rock (tocado não na guitarra, mas cavaquinho de samba!). Tudo está ali: tradição e vanguarda, lundu e tropicália, popular e erudito, roça e asfalto; e de uma forma intensa, poderosa. Já tendo criado ótimas músicas até então (o samba concretista “Todos os Olhos”, o sertanejo-pop “Sabor de Burrice” ou o funk-rock “Jimi Renda-se”), “Mã” é, definitivamente, marco da maturidade musical de Tom Zé como músico.

Na sequência, a única do disco que não é de sua autoria: o clássico “A Felicidade”, de Tom e Vinícius. A escolha, claro, não foi à toa: tocada em ritmo de valsa-rancho, Tom Zé canta lindamente em tom baixo acompanhado só de violão, que sincopa o compasso. Ainda, esparsos acordes de baixo e frases de orquestra de metais ao estilo de George Martin ou Rogério Duprat. Através desta economia de elementos, Tom Zé põe a nu a belíssima estrutura melódica original da canção, homenageando não apenas a famosa dupla de autores, mas a bossa nova como um dos gêneros sambísticos. Ainda, para arrematar, depois de um dos últimos “soluços” da síncope, entra uma cozinha de pagode na diagonal do compasso, desconexão rítmica esta que não estraga a música. Pelo contrário: cai tão bem que faz deixar ainda mais clara a percepção de que os criadores da bossa nova muito se inspiraram no que vinha do morro.

Outra que merece todos os elogios é “Toc”, talvez o único samba serial da história! Próximo ao que o maestro francês Pierre Boulez inventou, o serialismo (método de composição que usa séries de notas, ordenando-as e variando suas durações, intensidades e ataques), “Toc” representa, em tese, uma sequência de sons infinitos e contínuos. Só não é assim porque, como um jogo de xadrez, o compositor “joga” com as notas e as séries sonoras, tirando-as, adicionando-as, repetindo-as, deslocando-as, num esquema matemático em que as variáveis são intermináveis. Sem nenhuma percussão, esta “brincadeira” instrumental ainda traz um dos “inventos” de Tom Zé: o agogô no esmeril, uma serra de verdade adaptada como instrumento musical, o que faz deste samba soar mais barulhento do que muito rock pesado.

“Tô” é outra pérola; das minhas preferidas. Parceria com o sambista Elton Medeiros e de letra filosófica, mas pegajosa (“Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”), é um sambão urbano a la Riachão. O disco ainda passa pelo samba brejeiro (“Ui!”), o samba minimalista (“Dói”), o samba-canção (“Só”), o samba-marchinha (“Vai”) e o samba “dor de cotovelo” (“Se”: “Ah, se maldade vendesse na farmácia/ Que bela fortuna você faria”). Tudo de forma revisitada, revisada, irônica e filtrada pelo olhar tropicalista de Tom Zé.

“Estudando o Samba” significa, na história da MPB, um passo adiante na linguagem do gênero não por inventar um novo conceito, mas por montar uma “enciclopédia do samba”, evidenciando, ao decompor a espinha-dorsal dos seus subestilos, as mil e uma possibilidades que ainda poderia vir a ser explorado. E deu certa a experiência em laboratório. Estão aí Towa Tei, Beastie Boys, Sean Lennon, Ed Motta e Fantastic Plastic Machine que não me deixam mentir. Todos adicionaram a seu paradigma de referências o samba, invariavelmente usando-o entre outros estilos. Afinal, foi Tom Zé mesmo quem disse: “estudando [o samba] pra saber ignorar”.

FAIXAS:
1. Mã
2. A Felicidade
3. Toc (Instrumental)
4. Tô
5. Vai
6. Ui!
7. Dói
8. Mãe
9. Hein?
10. Só
11. Se
12. Índice
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Ouça “Estudando o Samba”:
Tom Zé Estudando o Samba
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Além de “Estudando o Samba”, vale ouvir outros três discos super representativos da longa obra de Tom Zé: “Todos os Olhos” (1973), a “mais completa tradução” da São Paulo moderna; “The Hips of Tradition” (1992), o marcante primeiro trabalho gerado após a redescoberta por David Byrne; e a linda trilha do balé “Parabelo” (1997), composta em parceria com José Miguel Wisnik para o Grupo Corpo.

Ouça “Todos os Olhos”:
Todos os Olhos

Ouça “The Hips of Tradition”:
The Hips of Tradition

Ouça “Parabelo”:
Parabelo

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por Daniel Rodrigues