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sábado, 30 de março de 2013

The Velvet Underground - "White Light / White Heat" (1968)



“ ‘White Light/White Heat’ é tão escuro como encarte do álbum.”
Jason Thompson



O The Velvet Underground conseguiu um feito que pouquíssimos artistas do rock alcançaram: tornar praticamente toda sua discografia essencial. Tá certo que gravaram poucos discos de estúdio, mas em sua absoluta maioria imprescindíveis. Poderiam entrar tranquilamente nessa lista “The Velvet Underground”, de 1969, “Loaded”, de 1970, e até o póstumo “V.U.”, de 1984, sem falar, claro, de seu primeiro e histórico trabalho, The Velvet Undeground and Nico, de 1967, já constante entre os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS deste blog. Depois de uma estreia tão marcante como a deste “divisor de águas” da música moderna do século XX, o grupo, até então apadrinhado por Andy Wahrol, que lhes coordenava toda a parte artística – influindo, inclusive, no conceito e repertório –, tinha à frente duas das mais geniais cabeças que o rock já conheceu: Lou Reed e John Cale. E quem tem uma dupla desse calibre não iria ficar muito tempo associado à figura de outro artista, por mais que a amizade se mantivesse – como, de fato, ocorreu. Foi assim que Reed e Cale pensaram ao criar o ousado, selvagem e brilhante “White Light/White Heat”.


Neste disco, gravado ao vivo no estúdio, o Velvet manda às favas as pré-concepções intelectualódes que vinham sendo atribuídas a eles e fazem um álbum de puro rock ’n’ roll. Eles se despem de toda a aura de sofisticação, da elegância cool da ex-integrante Nico e do colorido da pop art para gerar uma obra suja e corrosiva. Algo ruidoso e psicodélico como jamais registrado antes. Nunca se tinha ouvido tanta distorção de guitarra, tanto ruído. Parece uma demo! E o mais incrível: conseguem um resultado tão vanguarda e sofisticado quanto, só que de outra forma. Ao limparem sua estética de todos os floreios, extraíram a musicalidade mais bruta e seminal possível, atingindo, por esse viés, níveis sonoros que vão do free-jazz ensandecido de Ornette Coleman à atonalidade de Shöenberg, passando pela multiplicidade timbrística de Mahler e pelo folk-rock rural de Hank Williams e à aleatoriedade dissonante de Cage ou à “música mântrica” de Stockhausen.


 A começar pela capa: no lugar da “banana artística” de Warhol, um design mínimo e seco: fundo preto e letras em fonte simples. Só. O que importava era o “recheio”. E que recheio! Voltando no trabalho anterior, que termina no mar de ruídos e improvisos de “European Son”, “WL/WH” inicia com essa pegada em sua faixa-título, um rockabilly fenomenal em que a voz de Reed faz tabelinha com o coro, e todas as outras faixas seguem nesta linha até o fim. O som, tosco e tomado de distorções de pedal, parece rasgar a caixa, e uma visível (e proposital) equalização estourada, formando uma massa sonora densa. Tudo está sobreposto: baixo, guitarras, bateria, órgão, vozes. E a letra, mais corrosiva impossível: narra a experiência de um tratamento de choque a que Reed foi submetido aos 17 anos na tentativa de “curar-lhe” do homossexualismo. Recado dado, vem “The Gift”, tribal e minimalista, que conta pela primeira vez na obra do Velvet com a elegante voz de Cale. O galês recita uma extensa história sobre um homem que queria assassinar seu desafeto escondido dentro de uma caixa de presente, mas ele é quem acaba morto.

 A terceira é uma das melhores músicas da banda: “Lady Godiva’s Operation”. Ao estilo das clássicas “All Tomorrow’s Parties” e “Venus in Furs”, traz uma composição soturna e sensorial com influências da música medieval para contar sobre uma cirurgia de troca de sexo em uma drag queen, que tem o nome da histórica personagem anglo-saxã do séculos I e II. Além da instrumentação crua sobre uma melodia rebuscada, a harmonia envolve o ouvinte de tal forma que parece criar um mantra. Também cantada por Cale, lá pelas tantas Reed começa a entrar progressivamente, até formar com o parceiro o mais psicodélico dueto já visto no rock, em que um solta uma palavra enquanto o outro emite sons guturais e onomatopeias, e vice-versa. Nada menos que incrível.

 A melodiosa “Here She Comes Now” dá uma pequena aliviada na pauleira, até entrar “I Heard Her Call My Name”, que retorna à alta voltagem. Altíssima, no caso. Fico imaginando o choque que foi isso em plenos anos 60, que, mesmo respirando contarcultura e rebeldia jovem por todos os lados, nunca tinha visto tamanha radicalidade. Levei os 20 primeiros segundos da música para entender o seu centro tonal, seu riff. Mas não é só barulho, não.  Em meio a microfonias e urros de guitarra, descobre-se uma bela canção. Impossível não se lembrar do épico "Psyco Candy" , do Jesus and Mary Chain,  claramente inspirado nessa fórmula e conceito.

 O disco termina com a clássica “Sister Ray”, uma performance protocênica de 17 minutos tal como a banda fizera várias vezes para as projeções audiovisuais de Warhol ou para trilhas do cinema alternativo norte-americano. A base, simples e muito punk, é desenhada pelos improvisos de vocal de Reed e sua guitarra junto com a de Sterling Morrison, além das inteligentes variações de ritmo de Moe Tocker na bateria e pelo órgão tresloucado de Cale. Segundo o crítico e historiador musical italiano Piero Scaruffi, “Sister Ray” é “uma peça épica que rivaliza com as sinfonias de Beethoven e as improvisações metafísicas de John Coltrane”.

 “WL/WH” é, assim, o primeiro disco genuinamente punk da história, antes mesmo do debut de Stooges e MC5, ambos em 1969, e mais ainda de RamonesSex Pistols ou The Clash, que nem pensavam em tanger seus primeiros acordes. Não só pela sonoridade, mas também por introduzir de vez a postura do “faça você mesmo”, seja na produção deliberadamente desleixada, seja na execução ao vivo no estúdio sem esconder possíveis erros, seja na secura da arte gráfica. Um disco que, completando 45 anos de seu lançamento, é um marco em estética e plasticidade. Punks, new-waves, ingleses dos ‘80, grunges e indies até hoje deitam e rolam nessa viagem subterrânea do Velvet, pois “WL/WH” é exemplo de que basta iniciativa e um sentimento genuíno para fazer rock ’n’ roll. E que bom rock ’n’ roll!
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FAIXAS:

1. "White Light/White Heat" (Reed) - 2:47
2. "The Gift" (Reed, Morrison, Cale, Tucker) - 8:18
3. "Lady Godiva's Operation" (Reed) - 4:56
4. "Here She Comes Now" (Reed, Morrison, Cale) - 2:04
5. "I Heard Her Call My Name" (Reed) - 4:38
6. "Sister Ray" (Reed, Morrison, Cale, Tucker) - 17:28

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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Brian Eno e John Cale - "Wrong Way Up" (1990)




“É muito fácil para mim falar de ‘Spinnig Away’, porque ela tem uma característica que eu gosto muito, e que já eu usei antes também. Eu gosto muito de ter contrastes de velocidade. Por exemplo, de ter ritmos staccato muito, muito rápidos, ritmos picotados, em que vocais muito líquidos correm por cima deles. Algo como duas qualidades bem opostas: um ritmo que é staccato e ligeiramente oscilante. Se você ouvir a forma como os tambores começam nessa música, eles têm uma sensação estranha e fora de equilíbrio. Seu som é nítido. Os vocais e os violinos, por outro lado, não são tocados com o mesmo espírito, eles estão quase em um universo musical diferente. Eles flutuam em cima deste mar de ação, esse mar de atividade. E os violinos tocam em um compasso diferente.”
 Brian Eno


“Wrong Way Up” foi uma paixão instantânea. Adquiri o CD poucos anos depois de seu lançamento, 1990, mas já o mirava desde quando li na revista Bizz que Brian Eno – de quem já gostava, pois até lhe tinha em K7 “Before and After Science”, de 1977, além de admirar as parcerias/produções a bandas e artistas que de muito já ouvia, como as com David BowieTalking HeadsU2, Devo, entre outros – e John Cale – de quem sabia em parte da importância e qualidade também pelas produções a outros artistas e pelo The Velvet Underground, obviamente, mas não tinha ainda noção de sua magnitude como hoje – haviam, finalmente, se juntado para um trabalho em comum. Os dois já tinham se pechado 16 anos antes no show ao vivo transformado em disco “June 1, 1974”, projeto conjunto com Nico e Kevin Ayers que, justamente por contar com tantos talentos juntos, não abria espaço para cada um explorar mais de si mesmos. Os dois também participavam frequentemente dos projetos de um e de outro (Cale em “Another Green Wolrd”, de Eno, de 1975; Eno em “Fear”, de Cale, de 1974), mas algo único, em par, não. “Wrong...” surgia-me, assim, com uma grande expectativa de poder ouvir reunidos aqueles que considero, juntos com Phil Spector e George Martin, os dois maiores produtores de estúdio da história, duas figuras fundamentais para o rock e com bagagens ricas, até parecidas em alguns aspectos. Britânicos (um nascido na Inglaterra, o outro no País de Gales), ambos fundaram bandas clássicas, Roxy Music e Velvet Underground, respectivamente, e foram os integrantes que saltaram fora no início (Eno, depois do primeiro disco; Cale, após do segundo) para tocarem seus projetos solo. De formação acadêmica e erudita, também sempre tiveram estilos marcantes em tudo que produziram e, muito por conta disso, preferiram trilhar por uma carreira que apontava não só para a musical, mas para outras artes, como plásticas, cinematográfica e cênica.

O que esperar, então, deste aguardado encontro? Ainda mais considerando que lhes era comum há bastante tempo o valor das parcerias, basta ver as de Eno (David Byrne, Jon Hassell, Harold Budd, Robert Fripp) e as de Cale (Nico, Terry Riley, Lou Reed). Por que nunca haviam pensado em algo próprio até então? A resposta parece nos direcionar a uma mera coincidência ou falta de oportunidade, pois o resultado é uma afinidade tamanha que chega, às vezes, a parecer que sempre compuseram juntos. Para mim, o efeito foi o que lhes disse na primeira linha deste texto: arrebatamento imediato, que perdura até hoje por um álbum que não canso de ouvir, um dos preferidos de minha discoteca.

Apesar da sugestão do nome, algo como “caminho errado ascendente”, em que se nota certa ironia por parte de dois artistas de vanguarda que sempre optaram pelo caminho autoral e não-comercial, o disco é um verdadeiro caminho fácil. Fácil de ouvir, fácil de gostar. Complexo em harmonias e arranjos, mas totalmente aprazível e saboroso aos ouvidos. Composto de 12 faixas, metade cantada por cada um e todas compostas em dupla (exceto “The River”, só de Eno), “Wrong...” tem cara de projeto artesanal, haja vista a sucintez da instrumentalização e até do projeto gráfico (do próprio Eno), mas que consegue ser universal e supermoderno sem soar pretensamente high-tech, resgatando referências folclóricas, pop e clássicas. Um resumo do que poderia ser chamado de world music. Valendo-se dos predicados de cada um, como o conhecimento apurado de ambos da mesa de estúdio, a técnica de Eno aos teclados e sintetizadores, seus cuidados com os detalhes, a pegada erudito-modernista de Cale e, claro, a criatividade absurda dos dois como compositores, “Wrong...” lhes extrai o que há de melhor. “Lay my Love”, bela e imponente, abre dando este tom: simbiose entre instrumentos eletrônicos e acústicos, polirritmia, escalas em intervalos quebrados – típico de Cale – e referências étnicas principalmente nos contracantos – típico de Eno. “Empty Frame”, um rock-soul anos 50, e “Crime in the Desert”, espécie de twist minimalista, ambas sob uma textura eletrônica e também na voz solo de Eno, trazem o mesmo conceito. 

Cale sussurra a leve “In the Backroom”, de clima árabe especialmente no andamento. O canto elegante do galês volta em “Cordoba”, estupenda, das melhores do álbum. Minimalista e propositalmente em volume mais baixo que o restante das faixas, é toda composta em detalhes de texturas e sonoridades, em que os elementos vão se incorporando um a um sobre uma base de teclados e uma batida programada. Muito cool, nela se sentem os ecos das tradições moura e.católica da histórica cidade espanhola. A sempre marcante viola de Cale tange um curto mas exuberante solo que remete à atmosfera misteriosa da região da Andaluzia.

“Spinning Away”, mais uma maravilhosa, tem visível mão dos dois. A começar pela de Cale, que pinta com o som de sua viola com cores renascentistas esta peça. Mas a melodia é bastante característica de Eno, tais como as que coescreveu com Byrne em “Remain in Light”, do Talking Heads, em 1980, ou as que já experimentava em “Before...” ("No One Receiving"), visto suas camadas de linhas vocais em tom médio lembrando cantos tribais e a base percussiva da guitarra, que se conjuga com a programação rítmica. A cara da proposta do disco. 

Mais uma linda canção e outro show de Cale aos vocais, charmoso e variante nas escalas: a enigmática “Footsteps”. Com uma aura oriental, seja nos acordes agudos de teclado-solo, seja nos adornos que adensam seu “climão” sombrio, seja no som seco da tabla tocada por Ronald Jones. Ao final da faixa, esta mesma batida amadeirada marca em três tempos espaçados o começo da seguinte e, talvez, melhor do disco – embora seja difícil a escolha. “Been There, Done That” é ritmada e num tom mais alto, o que contrasta com a gradação média para menor da soturna anterior. Nela, a ideia de percutir os fios dos instrumentos de corda aparece de novo. De refrão pegajoso (“Been there, done that/ Been there, don’t wanna go back”), é um dos melhores exemplos de pop world music que pode existir. Novamente, o entrecruzamento de cantos aproveita muito bem os timbres aveludados tanto de Eno quanto de Cale – como ocorrera em outra ótima faixa, “One World”, música de trabalho do álbum –, assemelhando-se um com o outro em vários lances.

O disco fecha com talvez a mais bonita música de todo o cancioneiro de Eno: “The River”. Balada estilo anos 50, em que o tom grave de sua voz cantando com suavidade faz-se extremamente marcante (“So deep in the water/ Sleep, dark as the night...”), é uma cantiga de ninar doce e lírica escrita para sua filha Irial no dia de seu nascimento – o que justifica ser a única sem parceria na composição. A participação do outro filho do compositor, Roger Eno, aos teclados, aumenta o clima familiar e emotivo da canção, que desfecha com o violino de Neil Catchpole desenhando o andamento de maneira lânguida e cadenciada, até sumir leve e gradualmente, caindo em um sono tranquilo.

“Wrong...” é um disco que não data, semelhante a "Nightclubbing", de Grace Jones (1981), "Low", de Bowie (1976) ou “Off the Wall”, de Michael Jackson (1979), trabalhos que souberam casar a tecnologia que suas épocas lhes disponibilizaram com uma essência tradicional, trazendo inovações de estilo e técnica, mas, principalmente, por conterem um conceito bem definido e apurado. Por isso mantêm-se frescos através do tempo, atemporais. 

Porém, mais do que a contribuição que trouxe ao universo pop, o disco é, antes de mais nada, um feliz encontro de artistas muito afins, onde fica evidente a identidade e admiração mútuas que têm um pelo outro. Tarimbados àquela altura, podiam muito bem, como vários outros veteranos já incorreram, trilhar pelo “caminho fácil”: gravar standards um de outro, intercalando-se. Cale cantaria, por exemplo, "Third Uncle" ,“Babies on Fire" e outras quatro e Eno fazia o mesmo: ficava com versões de "All Tomorrow's Parties""Heartbreak Hotel" e completava com mais quatro. Pronto: fechava um disco com 12 faixas, quando muito mais umazinha nova (a de trabalho, claro) para justificar para a mídia um reencontro. Mas estamos falando de John Cale e Brian Eno, meus caros, dois dos maiores nomes da música do século passado e que, graças!, ainda vivos e produzindo bem, continuam sendo permanentemente ascendentes anos 2000 afora e até quando existir esta fascinante arte chamada música.

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“One World” (vídeo oficial) - Brian Eno e John Cale



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FAIXAS:
1. Lay My Love - 4:44
2. One Word - 4:34
3. In the Backroom - 4:02
4. Empty Frame - 4:26
5. Cordoba - 4:22
7. Spinning Away - 5:27
8. Footsteps - 3:13
9. Been There, Done That - 2:52
10. Crime in the Desert - 3:42
11. The River - 4:23

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Ouça:
Brian Eno e John Cale_Wrong Way Up



terça-feira, 22 de julho de 2014

Humberto Gessinger - "Insular" (2013)





Resolvi assumir o nome solo

pois não usei uma banda fixa na gravação do "Insular",
convidei vários músicos que admiro,
usei várias formações.
Mas não houve ruptura na maneira como escrevo e toco,
só amadurecimento"
Humberto Gessinger




Humberto Gessinger finalmente lança um disco com seu nome. O que na realidade não muda muita coisa pois ele sempre foi O Engenheiro do Hawaii. O que na realidade muda muita coisa, pois quem acompanhou a trajetória dele como compositor e letrista sabe que desde o primeiro disco e ao longo dos outros existia uma vertente gauchesca bem consistente. Não se deram conta ? Escutem então a milonga "Longe Demais das Capitais" do primeiro disco e que se repete com mais acento gauchesco no disco "Alívio Imediato". Outra canção com esta temática é a regravação de "O Herdeiro da Pampa Pobre" no "Várias Variáveis". No disco "GLM", temos a "Pampa no Walkman", no "Simples de Coração" tem uma música com a temática da erva-mate, a "Ilex Paraguariensis", no "Minuano" temos a "Deserto Freezer", um xote moderno agauderiado, enfim, ao logo da trajetória, virava e mexia aparecia esta referência fosse para marcar posição, dizer de onde vinha. E penso que o Humberto queria dar o recado semelhante ao do Brizola quando falava: “Eu venho de longe...”. "Insular" vêm a consolidar apresentar um Humberto maduro seja na composição, na letras e nas temáticas do disco, possui consistência, peso quando necessário e delicadeza de quem sabe que muitas vezes mais é menos. Possui parcerias com o Bebeto Alves (esse sim, veio de longe, lá de Uruguaiana) na música "A Ponte para o Dia", que termina com a velha milonga. Lá pelas tantas Humberto “joga o osso” e dá suerte. Parceria muito boa com Luiz Carlos Borges, gaiteiro de longa data de serviços prestados ao nativismo na música muito boa chamada "Recarga". Não por acaso, emenda na "Milonga do Xeque-Mate" com pontuação precisa e característica da guitarra do Frank Solari. E segue com a referência à cultura gaúcha citando a "Prenda Minha" na música delicadíssima "Essas Vidas da Gente" que têm um baixo muito envolvente emoldurando a canção. Podia ter terminado por aí o disco mas ainda tem uma música sobre o passar do tempo com a participação primorosa e certeira do Nico Nicolaievsky que diz “Que susto quando olhei no espelho, caralho, como estou ficando velho...”. Será este um disco sobre o passar do tempo, sobre o envelhecimento, sobre a experiência ? Será por isto que eu gostei e achei fundamental ? Pode ser hein !
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FAIXAS:
01. Terei Vivido
02. Sua Graça
03. Bora
04. A Ponte Para o Dia (participação de Bebeto Alves nos vocais)
05. Tchau Radar, A Canção (participação de Rodrigo Tavares nos vocais)
06. Tudo Está Parado
07. Recarga (participação de Luis Carlos Borges no acordeon e vocais)
08. Milonga do Xeque-Mate (participação de Frank Solari na guitarra)
09. Insular
10. Essas Vidas da Gente
11. Segura a Onda, DG (participação de Nico Nicolaiewsky)
12. Plano B


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Ouça:


quarta-feira, 12 de novembro de 2008

As Melhores Capas de Discos








Grandes capas de discos. Aqui vai uma seleção das 10 melhores capas de discos, na minha modesta opinião.
No topo da minha lista está o Joy Division e seu "Unknown Pleasures" com sua capa minimalista, enigmática, que é na verdade um medidor de pulsos de uma estrela, em uma concepção de Peter Saville que aparece novamente na lista com a ótima capa de "Power, Corruption & Lies" do New Order, banda fruto do Joy, da qual o designer sempre foi colaborador.Outro que faz "dobradinha na minha lista é Andy Wahrol com a famosa capa do Velvet e com a provocante "Sticky Fingers" dos Stones.
Capas como as do PIL (Public Image Ltd.) "Metalbox" e a do Marley em seu "Catch a Fire" podem parecer muito simples numa primeira olhada mas sua concepção, conceito e formato as justificam. "Metalbox" vinha, efetivamente, em uma caixa de metal. O LP ficava em uma lata tipo rolo de filme que funcionava quase que como "proteção" ao ouvinte quanto ao material contido ali. "Catch a Fire", caso não dê pra notar, imita um isqueiro e aí, quanto ao conceito, em tratando-se de Bob Marley, não precisa falar mais nada. Uma curiosidade é que, assim como o álbum do PIL, este foi concebido para o formato vinil e sua capa abria como se fosse o isqueiro, mesmo, para cima.
A do Alice Cooper também pode se enquadrar nessas aparentemente comuns, mas note que a capa imita uma carteira de couro e as do "Sgt. Peppers..." e do "Dark Side..." dispensam comentários.

Dêem uma olhada na lista e se quiserem deixem a sua também.

Menções honrosas também para "Physical Graffiti" do Led com sua capa cheia de janelas, símbolos e enigmas, também para "Mezzanine" do Massive Attack, "Bandwagonesque" do Teenage Funclub, "Highway to Hell do ACDC, "Number of the Beast" do Iron, "In the court of King Crimson", "The Queen is Dead" dos Smiths, "Songs to Learn and Sing" do Echo com foto de Anton Corbjin e "Violator" do Depeche, concebida pelo mesmo, e ainda para a demoníaca "Live Evil" do Black Sabath com suas figuras simbolizando cada um dos seus clássicos.
ABAIXO, AS MINHAS 10 MELHORES:


1. Joy Division, "Unknown Pleasures"; 2. The Velvet Underground and Nico, "The Velvet Underground and Nico; 3. Nirvana, "Nevermind"; 4. PIL, "Metal Box"; 5. The Beatles, "Sargent Pepper's lonely Hearts Club Band"; 6. Alice Cooper, "Billion Dollar Babies; 7. bob Marley and the Wailers, "Catch a Fire"; 8. New Order, "Power, Corruption and Lies"; 9. Pink Floyd, "The Dark Side of the Moon"; 10. The Rolling Stones, "Sticky Fingers"

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Brian Eno - “Another Green World” (1975)

 

“Ao discutir arte, as pessoas costumam falar sobre gênios, mas assim que você começa a observar de perto como as coisas surgem, descobre que sempre há contextos e sistemas informando esse indivíduo”.

“A ciência é uma forma de descobrir coisas sobre o mundo, mas a arte nos dá a chance de explorar, através da imaginação, lugares que não existem, bem como ferramentas para lidar com o mundo em que estamos”. 
Brian Eno

Obras-de-arte comumente vêm ao mundo fora do seu tempo cronológico. Com isso, precisam que o próprio tempo passe para serem valorizadas e, principalmente, entendidas. Quanto levou-se para se assimilar a “nova poesia” de Mallarmé, hoje naturalmente reconhecida como o começo das correntes modernistas? Ou as pinceladas "borradas" dos impressionistas, taxadas de “infantis” pelos críticos da época, mas que se configuraram num passo fundamental para a ruptura com o classicismo absorvido pela arte contemporânea? 

Na música moderna, isso seguidamente ocorre. “The Velvet Underground & Nico”, primeiro disco da banda de Lou Reed e John Cale, vendeu ridículas 10 mil cópias à época de seu lançamento, em 1967, mas influenciou o mundo quase tanto quanto os Beatles. O hoje cult “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, chegou a ter devoluções nas lojas em 1972 de tão mal recebido pelo público e hoje um vinil original não custa menos do que uma pequena fortuna. Pode-se dizer que “Another Green World”, de Brian Eno, de 1975, se enquadra neste perfil de grandes discos além de seu tempo. Não por terem lhe fechado os olhos, mas por não ter sido observado como deveria. E, diferentemente de outras obras marcadamente incompreendidas, o disco do cantor, compositor e produtor inglês carrega algumas qualidades que lhe tornam quase profético. Eno intuiu elementos que só se conflagrariam tempo depois, redimensionando aquele trabalho do passado que anteviu o que pode se chamar de “era da pós-música”.

Havia sinais de que Eno estivesse sintonizado com algo de tamanha visão do futuro, mas nem por isso assim tão fáceis de se ler. Saído da glitter Roxy Music, no início dos anos 70, banda que já antecipava uma série de movimentos da música pop, Eno, que além de músico é também artista visual e professor de arte, sempre equilibrou a carreira entre essas várias vertentes. Tal versatilidade lhe fez iniciar a carreira solo com dois discos de glam rock bastante inovadores: “Here Comes the Warm Jets” e “Taking Tiger Mountain (By Strategy”), de 1973 e 74, respectivamente. Em seguida, uma guinada: Eno inventa a ambient music com “Discreet Music”, abrindo caminhos para a new age e o neo classical. Anos antes, ele já havia feito duo com Robert Fripp no experimental “No Pussyfooting” e trabalhado ao lado de Cale, Nico e Kevin Ayers, um dos fundadores do jazz-rock. Ou seja: diversas frentes, que embaralhavam ainda mais o cenário em que “Another...” foi gestado.

Por todos estes antecedentes e exemplos subsequentes – visto que Eno seguiu variando entre art rock, punk, minimalismo, afrobeat, trilhas de cinema, new age, world music e outros gêneros – a audição de “Another...” é absolutamente enigmática. E mais do que isso: o enigma não se dá em razão de uma música complexa, intrincada, mas, sim, por uma sonoridade totalmente “palatável”. Eno certamente queria dizer algo importante com isso... Quem escuta os primeiros acordes da faixa inicial, “Sky Saw”, não raro surpreende-se com o som processado e dissonante do fretless bass de Percy Jones tocando um acorde de quatro notas que visivelmente não se completa. Não se completa, mas volta a se repetir em sua incompletude, deixando claro que é mesmo aquele o “riff” da canção, se é que dá para classificar assim. Nem o show de execução do restante da banda formada por Eno com os amigos Paul Rudolph, no baixo, Phil Collins, na bateria, Rod Melvin, no piano elétrico, e Cale, na viola, faz esvair a sensação de que algo diferente contém ali. Uma abertura fascinante, mas estranha.

Se o disco larga com cargas de peculiaridade, a partir de então os enigmas começam a ficar ainda mais evidentes. À exceção de “Sky Saw” e mais outras quatro, todas as músicas das 13 que compõem o disco são como vinhetas, de poucos minutos. Nenhuma passa de 4 minutos, tempo de duração padrão de uma canção pop vendável. “Over Fire Island”, noutra performance brilhante do ainda apenas baterista Collins, traz um baixo igualmente destacado de Jones numa base meio jazzística enquanto Eno comanda sintetizadores, guitarra e colagens de fita magnética. Pura vanguarda instrumental, assim como outras duas seguintes, “In Dark Trees” e “The Big Ship”, ambas protagonizadas apenas pelo próprio Eno, que ainda toca percussão elétrica e sintetizada e um gerador de ritmo tratado, tecnologia bem avançada para a época, algo como a uma bateria eletrônica rústica. Todas instrumentais, curtas, de poucos acordes, quase sem riff. Não fosse pelas breves frases cantadas da primeira faixa e da pequena letra de outra excelente, “St. Elmo's Fire” – em que Eno comanda os instrumentos acompanhado somente da guitarra do parceiro Fripp –, poderia se dizer que se trata de um disco de música instrumental. Mas claramente diferente de “Discreet...” ou de qualquer outra peça de trabalhos anteriores. Onde Eno queria chegar com essa proposta, no mínimo, diferente?

O álbum prossegue e as respostas vão sendo colhidas aos poucos. É possível perceber, por exemplo, o embrião da generative music, outra novidade a qual Eno lançaria as bases em 1978 em “Ambient 1: Music for Airports”, termo baseados nas ideias do linguista Noam Chomsky e que descreve uma música sempre diferente, mutável e gerada por sistemas eletrônicos. A sexta faixa, “I'll Come Running”, em que conta outra vez com Melvin ao piano, Rudolph ao baixo e Fripp nas guitarras, começa a deixar mais claro o que Eno pretendia. A alternância entre músicas com uma formação um pouco maior, mas enxuta, e outras quase que totalmente artesanais – caso da seguinte, a dissonante faixa-título – denota o quanto o autor entendia que caminhos a música pop iria tomar não dali a poucos anos, mas três, quatro, cinco décadas à frente! E mais: não apenas a música popular, mas o conceito de sonoridade, a ideia de música da sociedade contemporânea.

Fica até difícil perceber o quanto o homem moderno está soterrado em mensagens sonoras, visto que estas proveem de todas as fontes e plataformas. Pelos celulares, pela TV, pela publicidade, pelos aparelhos constantemente conectados do mundo atual. Na era digital de infinitas possibilidades e constante avanço, a música, assim como qualquer outro enlatado de supermercado, vem numa esteira de ultraprocessamento à medida em que a sociedade capitalista também avança. A propaganda, com suas pesquisas e indicadores, é a nova ciência. Com isso, passa-se a utilizar a lógica de produção, inclusive para a democrática e facilmente penetrável arte. As discussões postas na mesa pela geração da pop art e do kitsch a qual Eno pertence captava a subjetivação do fazer artístico diante das possibilidades (e permissividades) do capitalismo. O que Eno sacou em “Another...”, antes de qualquer outro músico pop, era que, com a música, esse efeito de desconexão seria não somente contínuo quanto, quiçá, irreversível. Os sons aos quais todos são bombardeados ao navegar pela internet ou num simples passeio na rua ou num shopping nada mais são, hoje, que fragmentos sonoros cientificamente provocados. Pequenas células de emissão físico-acústica de onde se extrai apenas o que é necessário para a absorção funcional, superficial e fragmentada do homem atual.

Canções pop sem centro tonal, inversão dos efeitos sinestésicos, ruptura radical com o cromatismo. Aqui, faz-se necessário um parêntese temporal, e chega-se ao século XXI e seus novos gêneros: left-field, trap, wonky, vaporwave, lowwecase... Não é nem o que Chico Buarque entende como “fim da canção”, mas, mais do que isso: é a era da “não-música”. Os tempos líquidos teorizados por Baumann foram perscrutados na música em diversos momentos na modernidade. Em conceito, a The Residents não só lançou “Commercial Album”, apenas composto de músicas de 1 minuto de duração para supostos jingles publicitários, como, anos antes, fez o “não-lançamento” de “Not Avaliable”, disco que, ironizando a lógica de mercado, “não devia ser ouvido”. Sonoramente, além da eletrônica, da vanguarda, do jazz ou da new age, dissolvedores do cromatismo clássico, um artista como William Basinski, literalmente diluiu a música em sua “Watermusic”. Mas todos até então buscavam dialogar com o tom, seja pela referência, pela alusão ou pela proposital abstenção. Impreterivelmente. O que Tricky ou MFDoom desmembraram, hoje, Billie Elish faz revelar um novo estado psíquico a que a civilização se levou: a total alienação da tonalidade – menos por conhecimento do que por intenção. Seria, ao invés da música "generativa", a "degenerativa"?

Voltando a "Another...", na arábica “Sombre Reptiles”, Eno traz a alusão ao abstratismo tão presentes nas artes visuais a qual ele mesmo se alinha. Mas, para além disso, reforça a ideia de uma deformação do real. "Little Fishes" ainda mais: frases soltas, quase que apenas para sentir e não ouvir. Gostar torna-se, assim, subjetivo, pois está associado à mimese e não à assimilação por um viés artístico. Absorve-se cognitivamente e não sensorialmente. Qualquer semelhança com os estímulos sonoros de um app de smartphone ou de um vídeo do Tik Tok não é mera coincidência. Nem curtas demais, que não transmitam o efeito pretendido, nem longas demais, que acabem dispersando a atenção da geração do imediatismo.

Diminuta em construção melódica, mas gigante em qualidade é "Golden Hours", outra cantada do álbum, música que, certamente, serviria de inspiração (para não falar de “espelhamento”) a U2 quase 20 anos depois na canção “The Wonderer", que encerra o disco “Zooropa” - nada coincidentemente produzido pelo próprio Eno. É ele que volta a agir sozinho em “Becalmed” (Piano Leslie e sintetizador), talvez a mais ambient de “Another...” e de cujos traços tornaria a valer-se tanto em trabalhos solo seguintes (“Before and After Science”, “Music for Airports”) quanto na de parceiros, como no "lado B” de “Low”, do amigo David Bowie, em 1977. “Zawinul/Lava”, igualmente, remete a este Eno experimental e com o olhar para o Oriente, que aproveita um pequeno motivo sonoro provocador de sensações de contemplação e meditação. 

A bela "Everything Merges with the Night" é uma quase-canção, com a voz bonita de Eno acompanhada do baixo e pianos de Brian Turrington e de sua própria guitarra, não fosse o riff que, mais uma vez, situa-se no limiar da melodia, haja visto que sua predominante dissonância não deixa completar o ciclo sonoro natural ao ouvido. Há sempre algum "problema", seja na duração, na altura, na intensidade ou no timbre, elementos constituidores do tom. Uma provocação à biologia humana. Há um fio melódico, mas Eno deixa-o escapar deliberadamente. Magnífica, "Spirits Drifting" é a conclusão perfeita para um disco que começa esfíngico e termina agravando as próprias interrogações: instrumental, mínima, atonal. Uma combinação de acordes bonita, mas que não desfecha naturalmente, como que deixando um proposital ponto de interrogação.

A música da era da pós-verdade – num planeta das multidões de refugiados, da avançada ciência que favorece as classes dominantes, das persistentes fome e guerras, do mundo capitalista que caminha para a autodestruição ambiental – não é (não pode ser) mais música. Decreta-se a “não-música”. Talvez por isso tudo o disco de 1975 de Eno seja tão precursor e contenha um título tão utópico quanto propositivo. O tom, na concepção dele, nada mais é do que o símbolo de uma ética. Musical, em primeira observância, mas ecológica amplamente falando. Ao fincar suas bases na tradição – porém, problematizando-a –, o artista remonta a séculos de uma construção formal e estética a qual acredita fortemente que jamais deve se perder, mesmo que em um “outro mundo verde” muito disso tenha ficado para trás. Esperançoso, no entanto, o próprio Eno sustenta a ideia lançada em “Another...”: “O esforço ambiental é o maior movimento da história da humanidade; nunca houve uma única causa que uniu tantos bilhões de pessoas com um objetivo. Pode haver contradições dentro da causa; haverá emoções e derramamentos, mas esperamos que haja alguns resultados positivos para esta ação mundial”. Tomara ele tenha razão.

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FAIXAS:
1. "Sky Saw" - 3:25
2. "Over Fire Island" - 1:49
3. "St. Elmo's Fire" - 3:02
4. "In Dark Trees" - 2:29
5. "The Big Ship" - 3:01
6. "I'll Come Running" - 3:48
7. "Another Green World" - 1:38
8. "Sombre Reptiles" - 2:26
9.  "Little Fishes" - 1:30
10.  "Golden Hours" - 4:01
11. "Becalmed" - 3:56
12. "Zawinul/Lava" - 3:00
13. "Everything Merges with the Night" - 3:59
14. "Spirits Drifting" – 2:37
Todas as composições de autoria de Brian Eno

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

cotidianas #391 - Ildo e a Porto Alegre que está se indo



Ildo, o garçom mais querido da cidade.
Não sou um andarilho de Porto Alegre. Já fui, não sou mais. O perímetro limitador do círculo casa-trabalho ajuda a isso. Mas não SÓ por isso. Cada vez mais desinteressada consigo, minha cidade vem ficando cada vez mais desinteressante para os outros. Políticas públicas burras, mal pensadas, não planejadas, intransigentes e corruptas a acinzentam diariamente. É resultado visível o atraso econômico, social e cultural a cada meio-fio sem pintura, a cada negócio de anos que fecha as portas, a cada buraco que aniversaria, a cada reestreia de peça teatral igual há 30 anos, a cada mão de via pública invertida sem por que. Não que deixe de circular e ir a lugares, teatros, museus, parques, shows, restaurantes, bares, etc. Faço; entretanto, em virtude de alguma atração ou programação prévia. Ir pelo prazer de ir, deriva, raramente.

Essa “desidentidade” que a cidade Porto Alegre (ou seria uma “des-cidade”?) vem sofrendo de mais de uma década para cá (assim como o Estado gaúcho, haja vista esse atual governo, a institucionalização do escapismo) com certeza é o que vem me afastando dela mesma. Adoro suas ruas, sua luminosidade subtropical, seu céu de azul paralelo 30, a beleza inequívoca de suas gentes, sua infinita e mal aproveitada capacidade intelectual. No entanto, de lugares, pontos-chave da urbanidade porto-alegrense, aqueles que são sinônimos e se confundem com a urbe, poucos se salvaram da despersonalização. Poucos, cabem nos dedos, mas existem. E a Lancheria do Parque é um deles, graças a Deus.

Por essas coisas que talvez somente Ele possa explicar (se quiseres, estou aqui de ouvidos atentos, combinado?), estávamos livres Leocádia, Carolina e eu antes do show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, no Araújo Vianna, quase ali de fronte para a Lancheria. A conclusão foi óbvia: paramos antes na “Lanchéra” e depois “s’imbora pro show!”. Além do mais, fazia anos que cada um de nós não voltava lá. Desavisados de que um fato importante ocorreria dali a horas (menos de 48), sentamos no aperto das mesas e pedimos a um dos garçons mais novos xis e um balde de suco a preço de um copo cada um, como todo bom frequentador dali faz.
A emblemática Lancheria, de tão homogeneizada com o Bom Fim, com as imediações da Redenção, com a cidade de uma forma geral, parece existir ali desde que éramos ainda a Porto dos Casais (Não é essa a impressão que lhes dá também?). QG dos alternativos, cozinha dos moradores do bairro, ponto de encontro e turístico. Circulam ali jovens, velhos, crianças, hippies, punks, rajneeshes e até gente normal. E todo mundo convive todos os dias, como se o exótico não fosse exótico aos normais e como se os normais não fossem normais aos exóticos. Ou vice-versa. Essa naturalidade é tão mais democrática e simbólica do que qualquer protocultura de CTG nativista, muitas vezes segregadora e sexista. Uma Porto Alegre que tenta dar certo.

Histórias dali? Eu, como qualquer jovem porto-alegrense e roqueiro, tenho. Lembro de uma vez que, ainda redigindo meu livro "Anarquia na Passarela", estava com a bíblia punk “Mate-me, por Favor” a tiracolo para pesquisa. Lá pelas tantas, na mesa com alguns amigos meus, um frequentador, um cara vestido de forma simples mas com uma expressão nada simples – perturbada, pra ficar por aqui – vidrou no meu livro e veio até mim pedir-me emprestado enquanto eu permanecesse ali – e fez isso com toda a educação que podia, registre-se, até porque era evidente que queria MUITO ler o que desse e não podia correr o risco de receber de mim uma negativa. Claro que disponibilizei (não sou louco de negar pra um maluco daqueles!). Enquanto conversava com meus amigos, de vez em quando percebia o “colega” parar a leitura e virar devagarzinho não só para mim, mas para todos no bar, como numa panorâmica de filme de terror que antecede uma cena horripilante. Os olhos vidrados e um sorriso entre o sarcástico e o psicótico na boca. De arrepiar! Ficava imaginando e comentando na mesa: “que parte ele deve estar lendo pra ter essa reação?” Na hora de ir embora, mesmo com certo receio de pedir o volume de volta, tomei coragem e, em troca, fui até abraçado por ele num esfuziante agradecimento.

Coisas de Lancheria do Parque.

Pois uma dessas coisas peculiares ocorreu não naquela ida que nós três fizemos antes do show, mas logo depois. Espetáculo assistido, corações ainda pulsando, demos passos desnorteados pela Osvaldo Aranha em direção ao HPS pela quadra da esquerda. Ao passarmos pela Lancheria, brinquei:

- Vamos, então, na Lancheria? – num tom de como não tivéssemos feito isso a menos de quatro horas.

Já passos adiante da porta de entrada, Leocádia e Carolina param e respondem:

- Ué, por que não?

Voltamos. Para encerrar a noite com um derradeiro café e acalmar os ânimos daquele momento glorioso do qual vínhamos. Entramos no mesmo fuzuê de sempre: muita gente na porta, muita gente na frente do caixa, muita gente nos corredores estreitos, todo o tipo de gente sentada tomando uma ceva, comendo um lanche, mandando ver num suco. Nós queríamos um simples café. Já nos bastava.

Naquela mesa lá do fundo, aquela encostada na escadinha que dá para a cozinha (a mesma em que vi Nei Lisboa certa vez, sozinho e de porre), sentamos e enxergamos no cardápio a palavra que queríamos encontrar: “Café”. Estava completo nosso fechamento da noite. Até estranhamos nós, que não voltávamos lá fazia anos, estarmos ali pela segunda vez no mesmo dia... Quem veio nos atender? Não o mesmo garçom de horas atrás, mas o Ildo. Ele, que seria dali a menos de 48 horas o tal fato importante ao qual me referi. Pedi-lhe três cafés e ele, na sua simpatia de sempre, desculpou-se:

- Puxa, meu amigo, vou ficar te devendo. A essa hora a gente não serve mais café.
Entreolhamo-nos e, antes de nos esboçarmos frustração, Ildo largou uma joia:

- Café a essa hora só na Rodoviária!

Sim: em Porto Alegre, cujos atrasos e intransigências não preciso repetir, café àquelas alturas só mesmo na deslocada Rodoviária. Não falo de uma desértica madrugada de domingo, mas de um horário antes da meia-noite de uma agitada sexta-feira. Contudo, não ficamos chateados com o Ildo, afinal, a própria Lancheria fecharia dali a 15 minutos. De resto, é mais uma nesse poço que a cidade e seu comércio, por consequência, se meteu. Nem um local de circulação garantida 24 horas por dia com ali resiste ao empobrecimento social, econômico e cultural dos melancólicos dias atuais da metrópole gaúcha. Segurança? Hábito? Invalidade da demanda? Não sei; só sei que saímos com mais uma desgostosa confirmação da cidade onde vivemos.

Afora isso, Ildo, simpático e espirituoso, nos deu ao menos uma sensação de acolhimento, mesmo sem os cafés. Tentei argumentar, em vão, e foi então que ele completou com algo que me marcou. Simbólico por demais o diálogo:

- É que a gente teve aqui mais cedo, e agora só voltamos pra tomar um cafezinho – disse eu, ao que ele me responde:

- Eu sei que vocês tiveram aqui. Eu conheço todo mundo.

Tinha essa sensação de acolhimento na infância no antigo Naval, no Mercado Público, sobre o qual já falei noutra crônica. Paulo Naval e Mauro, os eternos garçons de lá, nos recebiam, desde guris, com esse mesmo espírito atencioso, honesto e alegre, invariavelmente com brincadeiras comigo ou com meu pai, com quem ia sempre. Era nítida a percepção de que eles, igualmente a Ildo, conheciam “todo mundo” que passava por ali. Embora de épocas diferentes em minha vida, ambos os estabelecimentos carregam o mesmo clima de um lugar que você entra e se sente bem. Digo sempre que a Lancheria, especificamente, é tão legal que não tem nada de especial: não há um prato campeão de concurso gastronômico, uma bebida conhecida da casa, nada suficientemente marcante de sua cozinha ou geladeiras que justifique tamanha fama. O legal da Lancheria é a Lancheria. E ponto. A atmosfera; o movimento; a luz branca forte; a permanente fila do banheiro feminino; a comida indigesta que passa o dia inteiro próximo à porta que dá pra avenida; a visão da Redença quando se está dentro.

E pessoas como o Ildo, ele, símbolo desse ambiente, desse universo. Ildo estava, sim, sempre de olho em tudo e sabia quem entrava e quem saía, por anos a fio, dia a dia. Até que resolveu dignamente recolher de vez o guarda-pó, o boné e o paninho úmido no armário.

Ildo está indo embora.

Soube pela Carolina, no dia seguinte, que Ildo se despediria da Lancheria, dos fregueses e amigos no último dia 30 de agosto. Estava explicada nossa misteriosa segunda ida na noite anterior. Uma comoção bonita na cidade a fez ganhar quase esquecidas cores de beleza e sinceridade, abafando um pouco o cinzento cotidiano. Ildo recebeu centenas de pessoas, que foram se despedir dele num domingo de sol quente em temperatura e afetividade. Mal trabalhou: ficou ali tirando fotos e selfies, dando entrevistas, brindando com a cerveja que era acostumado a servir. Recebendo o destaque que alguém como ele raramente recebe. E que bom que numa época como a de hoje alguém com ele receba. Vendo a mobilização, uma amiga postou no face algo como: “às vezes, ainda creio na humanidade”.

Não fui à despedida oficial do Ildo. Nosso último encontro dentro da Lancheria valeu como uma. Informal, como ele sempre agiu com todos que atendia. Afinal, não acredito (e é aí que Tu entras, viu, Deus?) que aquele improvável e até mal explicado retorno nosso à Lancheria, quase à meia-noite, como que empurrados para retroceder os passos que já dávamos adiante, tenha sido uma coincidência. Foi algum toque dos deuses do Bom Fim (Scliar, Nêga Lu, RöhneltNico, Hartlieb), das forças míticas oswaldeiras que nos puseram lá de novo para sermos atendidos pela derradeira vez por Ildo. Justo por ele entre tantos garçons. Definitivamente, não era o café que nos aguardava. Era ele, para um último aperto de mão engendrado pelo destino.

Embora sutil e desavisada, foi uma despedida como a que não pude ter com Paulo e Mauro do Naval: quando voltei lá, uma nave espacial clean e carioquesada havia aterrissado sobre o verdadeiro boteco. Mas a Lancheria do Parque permanece lá, orgânica e resistente. Mesmo sem o querido Ildo. Diferente de lugares como o próprio Naval, irremediavelmente solapados pela nossa “desidentidade/des-cidade”. Não sou um andarilho de Porto Alegre; já fui, como disse. Mas bem que vale a pena às vezes circular, mesmo numa cidade que está se indo a olhos vistos. E pior: sem a integridade com que Ildo o fez.





terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Beach Boys - "Pet Sounds" (1966)

Os Sons de Estimação

 “ 'God Only Knows' é a música
que eu queria ter escrito.”
líder dos Beatles


A psichodelic era dos anos 60, sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John LennonPaul McCartneyJimmi HendrixSid BarretRay DaviesBrian JonesArthur LeeArnaldo BaptistaLou ReedRocky EriksonFrank Zappa e mais uma dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes, também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock. Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros aspectos.

“Pet Sounds”, diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian, um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.

E conseguiu.

“Pet Sounds” é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys. Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The Beach Boys' Christmas Album”, trabalho anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e lúdico do harpschord executa uma ciranda, que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês, a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravo repete o tempo três vezes até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock. Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda. Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e agudos.

Um dos principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais, guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim), Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais, órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos rufares.

Outro trunfo do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a voz de Love, que, limpa e sem overdub, desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na orquestração.

Por falar em orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: I’m waiting for the day when you can love again”, violinos e cellos, sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”, em dois. Estupendo.

A segunda especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão, reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.

Depois do tom médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que se estende, ambos marcados pelo tic-tac de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.

Para os apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música moderna como "Like a Rolling Stone""Bolero""A Day in the Life""Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros, igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam, criando um efeito onírico tal como um Cantus Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos e dissesse: “só Eu sei”.

“I Know There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes. Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”. Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que equilibra temple blocks, bateria e tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em termos de música pop: o electro-theremin, sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como, inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito, Deus e homem fossem a mesma matéria.

Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.

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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.

Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde ZombiesPink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.



por Daniel Rodrigues
(Consultas técnicas e agradecimentos: Maria Beatriz Noll e Leocádia Costa)

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FAIXAS:
1. Wouldn't It Be Nice - 2:26 (Wilson, Asher, Mike Love)
2. You Still Believe in Me - 2:31
3. That’s Not Me - 2:30
4. Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder) - 2:53
5. I’m Waiting for the Day – 3:06
6. Let's Go Away for a While - 2:21
7. Sloop John B - 2:54
8. God Only Knows - 2:46
9. I Know There's an Answer - 3:10 (Wilson, Terry Sachen, Love)
10.  Here Today - 2:55
11. I Just Wasn't Made for These Times - 3:10
12. Pet Sounds - 2:23
13. Caroline, No - 2:54
14. Unreleased Backgrounds - :50
15. Hang on to Your Ego – 3:17
16. Trombone Dixie – 2:53

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