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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Horace Silver - “Song for My Father” (1964)



“Nunca houve um pensamento consciente sobre a introdução de Horace Silver. Nós escrevemos essa linha de baixo brasileira e quando o baterista Jim Gordon a ouviu, ele tocou suas figuras. Quanto à linha de piano, acho que a ouvi em um álbum antigo de Sergio Mendes. Talvez seja onde Horace também ouviu.” 
Donald Fagen, sobre a composição de “Rikki Don't Lose That Number”, da Steely Dan

Para ouvidos atentos, a música pop é uma porta para se conhecer coisas magníficas do passado. O natural processo de reelaboração que o rock e seus subgêneros promovem desde os anos 50 seguidamente processam ideias trazidas anteriormente na música clássica, na vanguarda e outros estilos. O jazz é uma destas fontes inesgotáveis de proveito para a música pop. Dois bons exemplos disso são “Groove is in the Heart”, sucesso nos anos 90 da tecno-soul Deee-Lite, cujo riff tiraram de “Bring Down the Birds", que Herbie Hancock fez para a trilha sonora de “Blow Up” (1967), ou “Human Behaviour”, da Björk, que sampleia “Go Down Dying”, de Quincy Jones & Ray Brown Orchestra, presente na trilha de “The Adventures” (1970).

Quanto mais vai se recuperando obras antigas no jazz, mais vão se encontrando os efeitos que causaram. Caso de “Song for My Father”, música que dá título ao clássico disco do pianista norte-americano Horace Silver, de 1964. Quem a escuta após ter conhecido “Rikki Don't Lose That Number”, um dos sucessos da Steely Dan, que pega emprestada sua base de dois tempos de dois acordes, acaba por ter-lhe ainda mais consideração. O brilhante tema de Silver, por sua vez, pega carona na música brasileira tanto na linha de piano quanto no ritmo latino, haja vista a influência que a bossa nova já exercia no cenário musical norte-americano àqueles idos.

O disco, entretanto, não se resume à faixa-título. Ou seja: consegue ser tão bom quanto, num show de habilidade de Silver e seu quinteto – o ótimo Carmell Jones, no trompete; o referencial Joe Henderson, no saxofone tenor; um fabuloso Teddy Smith, no baixo; e igualmente talentoso Roger Humphries, na bateria. Além desta, em que a turma desfila um jazz modal entre o samba e o bluesy de alta elegância e que traz um dos riffs mais célebres do jazz moderno, há outras joias irreparáveis – lapidadas, aliás, pelas mãos do engenheiro de som oficial da Blue Note, Rudy Van Gelder. A animada “The Natives Are Restless Tonight” é uma delas. É Jones quem dá a largada dos solos, mas Henderson, talento da geração de grandes tenoristas como John Coltrane e Sonny Rollins, é quem vem para detonar. Depois, o próprio Silver manda um improvisa com vigor sobre a cama muito bem posta por Humphries e Smith, os quais deixam suas marcas ambos também com solos em separado.

Irmã de “Song...”, “Calcutta Cutie” traz praticamente a mesma base da faixa inicial, dotando o disco de uma clara coesão conceitual. Porém, as semelhanças não são simples ou rasas. Numa atmosfera muito mais enigmática – sustentado em boa parte pela bateria levada no chipô e no tambor pela bateria e pelo fraseado em 2/2 do baixo –, nesta é o próprio band leader quem se encarrega de estabelecer todo clima entre o sóbrio e o misterioso, com algumas levadas de rhythm & blues pelo meio, que logo voltam à origem indiana que norteia o tema.

Sem fugir muito do clima, “Que Pasa” é outro jazz modal cadenciado, o que dá aos músicos o espaço-tempo ideal para esmiuçarem suas intenções. Silver, com domínio de ponta a ponta; Humphries, aplicando variações de timbre e ritmo; Henderson, intercalando intensidade e doçura como lhe é característico; e Smith, segurando a cadência com alma blues. De autoria de Handerson, “The Kicker”, por sua vez, é um empolgado hard-bop que privilegia os sopros, tanto dele quanto de Jones, especialmente inspirado nesta. Humphries, no entanto, um pouco antes de encerrar a faixa, arrasa nas baquetas.

Depois de tanta perícia com os instrumentos, nada mais adequado que terminar um álbum desses com uma balada romântica. Caso de “Lonely Woman”, em que o piano de Silver é como um pulverizar de sementes sobre a terra, semeando flores e sons. Somente ele solando, somente o dedilhar sobre as teclas conduzindo. Se outras faixas ganharam maior intensidade, nesta toda energia se concentra e emana do coração. Comparando-a com a de mesmo título de Ornette Coleman, prenúncio do free-jazz, que remete a uma "solitária mulher" intempestiva pela condição, esta, ao contrário, curte a paixão na solidão. Um encerramento digno de um dos melhores álbuns do jazz dos anos 60.

Donald Fagen, da Steely Dan, talvez não admita totalmente a inspiração que Horace Silver lhe deu. Não importa. O fato é que, da mesma ideia sonora, surgiram duas músicas excelentes: “Song...” e ““Rikki...”. A de Silver, contudo, tem a vantagem de ter sido escrita primeiro. Se o jazz continuar sendo usado de fonte pela música pop como neste caso, melhor para a música pop, que terá base em algo de qualidade. Para o jazz, nada muda: fica apenas o elogio de ser reafirmado como o maior gênero musical dos Estados Unidos, título ao qual Horace Silver deu uma boa contribuição com este memorável disco.

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FAIXAS:
1. "Song for My Father" – 7:17
2. "The Natives Are Restless Tonight" – 6:09
3. "Calcutta Cutie" – 8:31[10]
4. "Que Pasa" – 7:47
5. "The Kicker" (Joe Henderson) – 5:26
6. "Lonely Woman" – 7:02
Todas as composições de autoria de Horace Silver, exceto indicada

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OUÇA O DISCO
Horace Silver - “Song for My Father”


Daniel Rodrigues

terça-feira, 27 de abril de 2021

Charles Mingus - "Mingus Ah Um" (1959)

PARA LEMBRAR CHARLES MINGUS: 99 ANOS





Quatro capas de diferentes versões: a original, da Columbia, 
com a fantástica arte de Neil Fujita, e as posteriores
pelos selos Pan Am, Green Corner e Jazz Images
"É incrível que Mingus consiga extrair da contemporaneidade a potência e a graça curativa da música. Peças como ‘Fables of Faubus’ e ‘Goodbye Pork Pie Hat’ e outras são milagres de uma espécie. Estão ali, disponíveis. Poesia e música são para aqueles que têm conexões diretas entre ouvidos, olhos, cabeça, coração, e intestinos".
Diane Dorr-Dorinek, do texto original da contracapa do disco

Em maio de 1959, Charles Mingus saía do estúdio com sua mais importante obra concluída. Aos 37 anos recém completos, o compositor (que completaria 99 anos no dia 22 se vivo) finalizara "Mingus Ah Um". Foram exatos sete dias de gravação, de 5 a 12, em que Mingus e seu contrabaixo estiveram à frente de um septeto – John Handy (sax-alto e clarinete), Shafi Hadi (sax-alto e sax-tenor), Dannie Richmond (bateria) , Horace Parlan (piano), Booker Ervin (sax-tenor) mais os trombonistas Jimmy Knepper e Willie Dennis se revezando em todas as faixas – e deixaram registros que resumiam sua (já longa) trajetória musical até aquele período além de lançar as sementes daquilo que estaria presente em sua obra pelas seguintes duas décadas, até sua morte em 1979.

"Mingus Ah Um" era também o resumo de todas as heranças que compunham a complexa personalidade de seu autor, um negro americano nascido quase na fronteira do México e que tinha entre seus antepassados alemães, suecos, ingleses, nativos americanos e negros que haviam sido trazidos da África como escravos. Musicalmente, a maior influência de Mingus vinha de Duke Ellington e seu gosto pelas orquestras. Daí sua escrita musical avançada, que incorporava elementos da música religiosa e dos compositores eruditos. Tudo isso seria ainda mais liquidificado a partir do contato de Mingus com Charlie Parker. Os dois se aproximariam no começo dos anos 50 e o saxofonista seria decisivo na carreira do contrabaixista. Mingus e Parker continuariam próximos até a morte do segundo, em 1955. Foi pela gravadora fundada por Mingus (e pelo baterista Max Roach), a Debut, que seria registrado o antológico concerto de 15 de maio de 1953, em que Mingus se juntou a Dizzy Gillespie, Parker, Bud Powell e Roach para um concerto no Massey Hall em Toronto. Este foi o último registro Gillespie e Parker tocando juntos.

Mingus gostava de trabalhar com formações médias, maiores que os tradicionais quintetos e menores do que as orquestras. Quase sempre eram grupos que reuniam entre sete e dez músicos. Conhecidos como jazz workshops, os grupos tinham como característica a alta rotatividade entre seus integrantes. Mingus mesclava veteranos e jovens com a intenção de formar instrumentistas que se moldassem ao seu estilo e que acompanhassem a sua vertiginosa capacidade de produção musical – num período de dez anos, Mingus gravou 30 discos para várias gravadoras, aí incluídas a Debut, Atlantic, Candid, Columbia e Impulse.

Assim, Mingus chegaria a 1959 como uma força ascendente no jazz – o que não era pouco num ano que teve ainda Miles Davis com "Kind of Blue", Dave Brubeck com "Time Out" e John Coltrane com "Giant Steps". Em "Ah Um", Mingus mirava o futuro fazendo referência aos antepassados. "Goodbye Pork Pie Hat" era uma elegia a Lester Young, que havia morrido dois meses antes. "Open Letter to Duke" é uma explícita homenagem a Duke Ellington, e estrutura-se em três das peças compostas por Mingus anteriormente ("Nouroog", "Duke’s Choice" e "Slippers"). "Jelly Roll", outra clara referência, homenageia o pianista Jelly Roll Morton e traz uma citação de "Sonnymoon for Two", de Sonny Rollins, durante o solo de piano de Horace Parlan. E "Bird Calls", que poderia ser uma homenagem a Parker, na verdade – segundo Mingus – faz referência aos pássaros. No repertório, destaque ainda para "Self-Portrait in Three Colors", originalmente escrito para "Shadows", o primeiro filme de John Cassavetes como diretor, e a engajada "Fables of Faubus", um ataque à postura de Orval Faubus, governador segregacionista do Arkansas que em 1957 havia se colocado contra a integração racial das escolas de Little Rock, desafiando as decisões da Suprema Corte e forçando o presidente Eisenhower a enviar Guarda Nacional para cumprir a decisão.

Com Mingus, a música também era uma forma de fazer política.

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FAIXAS:
1. Better Git It In Your Soul - 7:23
2. Goodbye Pork Pie Hat - 4:46
3. Boogie Stop Shuffle - 3:41
4. Self-Portrait In Three Colors - 3:10
5. Open Letter To Duke - 4:56
6. Bird Calls - 3:12
7. Fables Of Faubus - 8:13
8. Pussy Cat Dues - 6:27
9. Jelly Roll - 4:01
Todas as composições de autoria de Charles Mingus

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OUÇA O DISCO:


por Márcio Pinheiro
Texto extraído originalmente do site AmaJazz

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

POA Jazz Festival - Centro de Eventos BarraShoppingSul - Porto Alegre/RS (9, 10 e 11/11/2018)



1ª noite – 9/11

Começou a 4° edição do POA Jazz Festival no Centro de Eventos do BarraShopping Sul. Como não estou envolvido profissionalmente neste ano, pude acompanhar com atenção a primeira noite. Quem abriu os trabalhos foi uma das minhas bandas favoritas da nova geração: a Marmota Jazz. Como sempre, os meninos mostraram a qualidade de sua música aliada a uma apresentação expressiva. Com o repertório calcado no segundo disco, "A Margem", os marmotas impressionaram o público do festival com suas composições cheias de passagens intrincadas e soluções rítmicas que se transformam a cada instante. O guitarrista Pedro Moser estava particularmente inspirado mas a banda inteira deu show de musicalidade. Na metade do show, entra no palco o cantor Pedro Veríssimo. O repertorio mudou, passando para a reinterpretação de standards como "The Man I Love" e "My Funny Valentine". Este encontro do cantor com a banda está rendendo bons frutos e o caminho natural para esta parceria parece ser a gravação de um disco. Pedro foi feito para cantar com a Marmota e vive-versa. A surpresa foi a inclusão de "Time of the Season", da banda roqueira sessentista The Zombies. Em tese, um corpo estranho mas que Pedro e os Marmotas se encarregaram de "transformá-la" em outro standard.

A talentosa Marmota Jazz com o convidado já parceiro Pedro Verissimo
Na sequência, veio a atração certamente mais popular de todo o festival: as argentinas Bourbon Sweethearts. Três vocalistas que emulam o som dos grupos vocais femininos das décadas de 30 e 40, como as Andrew Sisters, além de tocar trombone, violão e baixo acústico. Meu amigo Eduardo Osorio Rodrigues comparou a música das portenhas às trilhas sonoras dos filmes de Woody Allen. A gênese está ali. As Bourbon Sweetheatts tiveram grande empatia com o público, que reconheceu a música das Betty Boops argentinas como "jazz da antiga".  Particularmente, neste quesito, prefiro o trabalho da POA Jazz Band, que deu show nos intervalos.

As argentinas Bourbon Sweethearts: emulando o som dos grupos
vocais femininos das décadas de 30 e 40
Para encerrar, a grande atração da noite: o saxofonista alto Rudresh Mahanthappa e seu grupo Indo-Pak Coalition, formado pelo guitarrista Rez Abbasi e pelo baterista e tablista Dan Weiss. Mesclando os intrincados ritmos indianos com uma pegada elétrica que beira o jazz-rock, Mahanthappa hipnotiza o público com sua destreza. Já Abbasi se utiliza de um arsenal de efeitos e variedade de timbres em sua guitarra, fazendo com que ela soe absolutamente diferente a cada momento. O baterista Weiss merece um capítulo à parte: mestre dos polirritmos na bateria – lembrando as invenções do indiano Ranjit Barot, que toca com John McLaughlin –, Weiss demonstra domínio completo das tablas, como se fosse um nativo. Depois, adota um 4/4 básico do rock, como se fosse um John Bonham redivivo.

Mahanthappa hipnotizando o público com sua destreza
Usando loops de guitarra e saxofone – que me lembraram "Baba O'Riley", do The Who –, Mahanthappa recheia sua interpretação com climas jazzísticos, roqueiros e orientais que vão se sucedendo numa música muito particular e voltada para o futuro. Como normalmente acontece com a última atração da noite, o público mais conservador levantou e foi embora. Impressionado com a música do Indo-Pak Coalition, evoquei Caetano Veloso, imaginando o grupo "esfregando o leite mau (a música sem rótulos) na cara dos caretas".



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2ª noite – 10/11

Vitor Arantes Quarteto abrindo a segunda noite do festival
A segunda noite do 4° POA Jazz Festival no Centro de Eventos do Barra Shopping iniciou abrindo espaço para a nova geração do jazz e da música instrumental brasileira. Subiu ao palco o Vitor Arantes Quarteto, vencedor do Concurso Novos Talentos do Jazz, parceria do festival daqui com Savassi e o Sampa Jazz. Como se poderia esperar de um grupo tão jovem, a mistura de ritmos brasileiros e jazz desenvolvida pela rapaziada em suas composições próprias apresenta momentos interessantes e que certamente serão melhor explorados no futuro. Os meninos mostraram todo seu talento nas versões de "Bebê", de Hermeto Pascoal, e da clássica "My Favorite Things", do musical "A Noviça Rebelde" e que ganhou notoriedade na gravação de John Coltrane de 1961. 

Na sequência, entramos na máquina do tempo e voltamos ao final da década de 50 e começo dos anos 60 com os argentinos do Mariano Loiácono Quinteto. Adotando como parâmetro musical as lendárias gravações do hard-bop da Gravadora Blue Note, o trompetista e seu grupo fizeram uma viagem para aqueles tempos de Art Blakey & The Jazz Messengers e semelhantes. Loiácono parecia um Lee Morgan ressuscitado (opinião confirmada pelo próprio Mariano depois do show). Já seu saxofonista tenor, Sebastian Loiácono, alterna passagens “coltranísticas” com os estilos de Sonny Rollins e Joe Henderson. No piano e no baixo, dois velhos conhecidos do Festival de Jazz de Canoas: Ernesto Jodos e Jerónimo Carmona. Completa o grupo o baterista Eloy Michelini. No repertório, só pérolas, entre elas duas baladas de cortar os pulsos: "You Don't Know What Love Is" e "Soul Eyes". Com tanta energia, Mariano e seu grupo conquistaram o público presente. Aliás, um parêntese: os dois grupos que mais empolgaram a plateia, depois do arrasa-quarteirão Rudresh Mahanthappa, foram os hermanos Bourbon Sweethearts – para mim, exagerado – e o quinteto do trompetista, plenamente justificado. 

Uma viagem ao hard-bop anos 50 com o quinteto de Mariano Loiácono 
Para encerrar a noite, uma brisa da melhor MIB (Música Instrumental Brasileira) com o grupo do baterista Edu Ribeiro, também integrante do Trio Corrente e do Vento em Madeira. Usando uma formação não usual de guitarra, trompete/flugelhorn, baixo elétrico e acordeon, Edu desfila com categoria e precisão sobre os mais variados estilos: frevo, samba, choro, baião e até mesmo o sulista chamamé. Interessante é ver o guitarrista Fernando Correia assumir o lugar do piano na harmonia, enquanto Edu, Daniel D'Alcântara no sopro e Guilherme Ribeiro no fole ficam com a improvisação. Tudo isso é mantido no lugar pelo baixo seguro de Bruno Migotto. Na apresentação, músicas do disco "Na Calada do Dia" como "O Índio Condá", "Maracatim", ambas de Edu, e "Brincando com Theo", homenagem da flautista Léa Freire ao filho dos músicos Monica Salmaso e Teco Cardoso. Nela, o guitarrista teve espaço para um solo e mostrou sua técnica apurada. 

Grupo do baterista Edu Ribeiro: formação não usual que agradou
No final, o líder chama ao palco o argentino Mariano e lhe faz tocar um frevo. No papel, parece uma demasia mas Loiácono se saiu muito bem. Em resumo, uma noite de música de alta qualidade para o público que compareceu ao Centro de Eventos. 


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3ª noite – 11/11

Instrumental Picumã, uma das mais interessantes bandas surgidas
nos últimos tempos no RS
Pra fechar a 4ª edição do POA Jazz Festival, mais uma noite de ótima música no BarraShopping Sul. Tudo começou com os guris do Instrumental Picumã. Uma das bandas mais interessantes surgidas nos últimos tempos aqui no Estado, o Picumã faz a ponte entre a música regional gaúcha – e os ritmos do sul do mundo – com uma linguagem jazzística. Com uma formação que reúne flauta (Texo Cabral), violão (Matheus Alves) e acordeon (Paulinho Goulart) como solistas e tendo na base os baixos acústico e elétrico (Miguel Tejera) e percuteria variada (Bruno Coelho), o Picumã desfilou as músicas de seu primeiro disco e várias composições inéditas, que farão parte do próximo trabalho.
Toda a sonoridade do grupo é voltada para uma concepção acústica coletiva, o que não impede de destacarmos os trabalhos de Matheus no violão e de Bruno, se virando em vários instrumentos de percussão ao mesmo tempo. Destaque para algumas canções do primeiro CD como "Salsilla Y Scooby", "Milonguera" e "Chacareta".

Na sequência, tivemos o show mais descontraído de todo o festival: o mestre da harmônica Maurício Einhorn, acompanhado de duas feras: Nelson Faria, na guitarra, e o nosso querido gaúcho de Frederico Westphalen, Guto Wirtti, no baixo acústico. Como se estivessem na varanda, os três tocaram standards ("The Days of Wine and Roses"e "Blusette"), clássicos da bossa-nova ("Corcovado"), MPB ("Pra Dizer Adeus", numa linda versão) e as composições de Einhorn que ganharam o mundo ("Estamos Aí" e Batida Diferente"). O repertório era escolhido na hora, segundo a vontade do líder, que se esbaldou contando histórias, chamando o homenageado Zuza Homem de Mello ao palco e falando de seus amigos gaúchos. Tudo isso com o acompanhamento luxuoso de Faria e Wirtti, ambos dando um show de musicalidade. Claro que esta atmosfera relax conquistou o público, que acorreu em hordas aos bastidores após a apresentação.

Einhorn, sua harmônica e sua banda no show mais descontraído do festival
Pra fechar a noite e o festival, o piano trio de um dos maiores instrumentistas e arranjadores brasileiros: Gilson Peranzzetta. Acompanhado do mestre Zeca Assumpção no baixo acústico e do exímio baterista João Cortes, Peranzzetta mostrou as músicas que estão no disco "Tributo a Oscar Peterson". Baseando parte do show no disco "West Side Story", de 1962, o pianista deu mostras de sua técnica impecável em canções como "Somwhere", "The Days of Wine and Roses" (de novo, dando a oportunidade de comparação entre as versões mostradas no palco do BarraShopping) e "Con Alma".

O craque Peranzzetta: formação em trio que vai além da bossa-nova
A curiosidade da noite foi a versão piano solo de "Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu, que, lá pelas tantas, se transforma em "Nunca", de Lupicínio Rodrigues. Pra encerrar, outra surpresa: a clássica "Just One of Those Things" em ritmo de samba. Dentro da tradição do piano trio, Peranzzetta e seus asseclas se saíram muito bem, mostrando que o formato ultrapassa os grupos do tempo da bossa-nova e pode apontar para uma outra sonoridade. Parabéns aos curadores Carlos Badia, Rafael Rhoden e Carlos Branco pelo belo trabalho, extensivo a toda equipe técnica e de produção, em especial a este grande produtor e uma figura amada por todos chamada Bruno Melo.


por: Paulo Moreira
fotos: Ricardo Stricher

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Ravi Coltrane – 3º Canoas Jazz Festival – Parque Getúlio Vargas - Canoas/RS (24/11/2013)



foto: Paulo Moreira
Cheguei atrasado ao terceiro dia do Canoas Jazz Festival e só vi o final do show do octeto de Luizinho Santos. Mas o que vi só me confirmou o que eu já sabia: que iria ser uma excelente apresentação. Vi todas as outras vezes em que o octeto se apresentou e eles nunca fizeram nada menos do que um concerto espetacular. Peço desculpas ao Luiz e à Bethy por esta falta grave, porém, involuntária da minha parte. Vi inteiro, porém, o show de Alegre Correa. Este guitarrista de Passo Fundo morou fora do Brasil durante muito tempo e agora está de volta à Floripa. No palco com ele, um quinteto, com destaque absoluto para Uilian Pimenta, um pianista que vai dar muito o que falar. No repertório, canções compostas pelo guitarrista que abrem espaço para todos os integrantes da banda solarem. O problema, em minha opinião, é o próprio Alegre que insistiu em fazer vocalises acompanhando seus solos de guitarra em TODAS as músicas, deixando-as umas iguais às outras. Além disso, o som não favoreceu, deixando o líder da banda com um volume abaixo do que se esperava. A aparição de Jorginho do Trompete na última música ajudou a levantar o astral, pois tocou um solo muito bom no flugelhorn.
A coisa começou a esquentar quando o baterista Kiko Freitas subiu ao palco com seu trio, integrado pelo mestre Paulo Russo no baixo acústico - uma verdadeira instituição musical do Brasil - e o não menos exímio pianista gaúcho radicado no Rio, Rafael Vernet. Começando com "Beautiful Love", do repertório do Bill Evans Trio, logo se viu que a magia iria se instalar na próxima hora e não deixaria a cena. De "Prenda Minha", tocada no baixo de Russo, até "Piano na Mangueira", tivemos um concerto memorável. Uma aula de musicalidade e de empatia entre os três integrantes. Kiko até exagerou, iniciando uma versão de "Someday My Prince Will Come" com um solo de bombo legüero! Agora, todos estão esperando por um registro do trabalho deste grupo.
Bem, pra finalizar o "filho do homem" merece um capítulo à parte. Acompanho o trabalho de Ravi Coltrane desde 2000, quando o vi tocar no Free Jazz Festival. Sempre o considerei um bom saxofonista, que conseguia fugir da sombra acachapante de seu pai, um dos pilares do jazz moderno. Mas confesso que não estava preparado para revê-lo com a maturidade e a desenvoltura com que se apresentou em Canoas. Acompanhado por um quarteto formado por excelentes músicos (David Virelles, ao piano, Hans Glawichnig, no baixo acústico, e o impressionante Johnathan Blake na bateria), Ravi desfilou sua técnica exuberante, tanto no sax tenor quanto no soprano.

Mas parecia que faltava alguma coisa. De repente, foi como se o espírito do pai se apossasse de seu filho. Respondendo a este estímulo, reinterpretou "For Turiya", composta por Charlie Haden para Alice Coltrane, mãe de Ravi e uma figura importantíssima na sua escolha pela música, quando a dúvida ainda o acometia. E para mostrar que está em paz com o legado de seu pai, Ravi e seu grupo fizeram no bis uma versão monumental da clássica "Giant Steps", canção definidora do trabalho solo de Trane no início da década de 60. O público saiu de Canoas flutuando. E esperando a confirmação da quarta edição do festival.
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O que me mobilizou a ir ao Canoas Jazz Festival especialmente foi para ver Ravi Coltrane. Embora seja grande fã de jazz, poucas atrações me motivariam a ir a um ponto fora de Porto Alegre tão contramão. Mas desde que soube, através do Paulo Moreira, que Ravi Coltrane viria, não pensei duas vezes. Valia a pena.
Isso tudo porque Ravi é nada mais, nada menos do que pode se chamar de, como Paulo bem disse aqui, “o filho do homem”, e este homem se chama John Coltrane. Não à toa as quase invariáveis referências que faço a ele em meus textos musicais aqui no ClyBlog, pois o saxofonista é, para mim, o maior jazzista e um dos maiores músicos que já baixaram por estas bandas a qual chamamos de planeta Terra. Um mito na correta acepção da palavra. Eu e Leocádia Costa, que (não podia ser diferente) estava lá comigo, nutre como eu uma profunda admiração por sua obra, com a qual mantemos uma relação quase religiosa. Ver seu filho, o também jazzista, também saxofonista, também band leader (e muito parecido fisicamente com o pai) era uma ocasião especial.
Confesso que, por conhecer pouco do trabalho de Ravi, mesmo tendo ciência de que não são a mesma pessoa Ravi e John, fui com certo medo de me frustrar não sei exatamente com o quê: se em ser algo que não me tocasse tanto; que me desse a impressão de ser ele apenas uma farsa com um sobrenome que garante o credibilidade; que fosse tecnicamente perfeito, mas seco de emoção. Sei lá.
Mas, depois do excelente show de Kiko Freitas Trio, os temores foram embora na primeira execução de Ravi e seu trio. Irreparável. Ravi, como os bons virtuoses do jazz, é o próprio equilíbrio entre técnica e coração. O que se ouve em mestres do sax tenor como Dexter Gordon, Wayne Shorter, Coleman Hawkins, Sonny Rollins ou Joe Henderson vê-se claramente nele. Como, de forma exímia, foi seu pai, incomparável tanto pelo motivo óbvio, o de ser outra pessoa, quanto pelo de ser o maior ícone do jazz mundial. Ravi, no entanto, alinha-se a estes mestres que inclui John, dando uma bela continuidade e evolução ao que todos já construíram.
Show lindo e tocante, principalmente nas bem destacadas por Paulo, "For Turiya", tema enlevado e elevado cujo tema é, por si só, cheio de desvelos e assimetrias. Agora imaginem o improviso de Ravi? Espetacular, de tirar do chão. Extasiante. Aliás, este último é o termo que pode ser empregado para o bis do show, quando Ravi e sua maravilhosa banda retornaram para executar uma arrepiante “Giant Steps”. Num compasso mais acelerado e até mais pulsante que a clássica versão de 1959, não só parecia que John Coltrane havia baixado ali, em plena Canoas, como que Wynton Kelly assumira o piano, Jimmy Cobb as baquetas e Paul Chambers o baixo. Ao final, foi interessante ver o público quase sem acreditar no que presenciou demorando em sair da frente do palco mesmo depois de os músicos se despedirem totalmente.
Realmente essa sensação de deleite se manteve, ainda mais para mim e Leocádia, que compartilha comigo a admiração pelos Coltrane pai e, agora, filho. É das coisas mais bonitas ver esse tipo de laço que só a consanguinidade e a relação pai-filho suportam, ainda mais quando esta se expressa em uma arte tão elevada e grandiosa.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)





“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’
me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.

Lee Morgan



O trompetista norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e 1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins, bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente, voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner (piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos. Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS "Empyrean Isles", de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50 anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de jazzistas (Vince GuaraldiMiles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira. Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à “casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa), leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove, com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato; Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto! Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson – músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações, James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”, com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas, ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook” traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas, criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues “Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao mesmo tempo.
“The Sidewinder” entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em 1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa. Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de “maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”. Afinal, não há males que vêm para bem?
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FAIXAS:
1 - The Sidewinder – 10:25
2 - Totem Pole – 10:11
3 - Gary's Notebook – 6:03
4 - Boy, What a Night – 7:30
5 - Hocus Pocus – 6:21
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Lee Morgan  - "The Sidewinder"




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segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues