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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pink Floyd - "The Dark Side of the Moon" (1973)




"Na verdade,
não há lado escuro da lua.
De fato, ela é toda negra."
 do porteiro do estúdio Abbey Road,
onde a banda gravou o álbum



Um álbum clássico!
Uma obra mágica.
Um disco legendário.
Um trabalho genial envolto em lendas, mitos e polêmicas.
Uma brilhante resenha musical sobre o cotidiano e as loucuras da vida moderna: angústia, pressa, dinheiro, comportamento... Tudo traduzido magistralmente em música sob variadas formas e possibilidades.
“The Dark Side of the Moon” de 1973 não é apenas um grande álbum, é um marco na música contemporânea. Não só pelo sucesso alcançado, pela dimensão que assumiu no mundo desde seu lançamento, mas pela influência musical que exerce até hoje, pelas temáticas extremamente atuais e pertinentes, veja-se “Money” ou “Time”, por exemplo; pela ousadia de experimentação, como no caso de “On the Run”; pela qualidade técnica; pela concepção gráfica e estética vanguardista; e por tudo mais, ora bolas!
“Speak to Me”, a vinheta que introduz a obra, antecipa todos os elementos que serão apresentados ao longo da obra, partindo do som da batida de um coração que se mistura a rápidos recortes de cada uma das músicas que se seguirão, numa espécie de trailer musical; e estes pequenos flashes, subitamente, desembocam então em“Breathe”, uma canção leve que, então, majestosamente abre efetivamente o disco.
Sem pausa, na seqüência, vem “On the Run” uma alucinante faixa instrumental eletrônica cheia de ruídos e experimentações de estúdio. “Time” que a segue, começa com seus estridentes sons de relógios, despertadores, campainhas e badalos, dando início a um dos maiores clássicos da banda com aquela entrada inconfundível e marcante na voz de David Gilmour e seu solo espetacular na segunda parte. Aí "Time" desacelera, e com uma passagem, que não é mais que uma breve repetição de “Breathe”, traz consigo a magnífica “The Great Gig in the Sky”, uma base instrumental que sustenta uma improvisação vocal memorável e emocionante da cantora convidada Clare Tory.
Ao som de outra introdução inconfundível, como a de “Time”, mas esta com sons de moedas e caixas registradoras, Roger Waters nos apresenta um blues embalado e bem marcado no baixo e com uma série de variantes interessantíssimas, como acelerações, ênfases, solos de guitarra e saxofone, nesta que é para mim a grande música do álbum: "Money".
Depois vem a longa “Us and Them” com sua melodia lenta e emocional e, assim como na anterior, com um belíssimo solo de saxofone.
A instrumental “Any Colour You Like” é outra bem experimental com sua série de efeitos sobrepostos com guitarras e vice-versa.
A belíssima “Brain Damage”, que carrega em sua carne o nome do disco, começa a encaminhar o final da obra, e praticamente como sua continuação, com uma separação muito sutil, a emocionante “Eclipse” fecha a obra-prima de forma majestosa , inclusive, diz a lenda, com um trechinho de "Ticket to Ride" dos Beatles podendo ser ouvido lá ao fundo, no final, quando o som já está abaixando, depois das batidas de coração... as mesmas que começaram o disco lá em "Speak to Me". E ele brilhantemente acaba como começou, ou começa onde acaba, ou mesmo... não tem fim.
Além da misteriosa "Ticket to Ride" que, oficialmente, teria sobrado de uma fita mal apagada, o que não falta são lendas e estórias a respeito deste disco, tais como as alusões codificadas a Syd Barret em diversas faixas; a afirmação de que a versão CD da época não teria sido copiada das fitas originais e Gilmour indignado teria mandado refazer; ou que os temas das músicas, como dinheiro, tempo, angústia, etc., teriam sido feitos quase aleatoriamente num banheiro; e a mais famosa delas, aquela que supõe haver uma estranha e impressionante sincronia do disco com cenas do filme "O Mágico de Oz". Verdade? Mentira? Concidência? Não interessa. Como se não bastasse a qualidade musical superior, coisas como esta só aumentam a aura mística de uma obra absolutamente magistral como esta. Enfim, um álbum fundamental, senhores.
Um disco legendário.
Uma obra mágica.
Um álbum clássico!

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FAIXAS:
1.Speak to Me
2.Breathe
3.On the Run
4.Time
5.The Great Gig in the Sky
6.Money
7.Us and Them
8.Any Colour You Like
9.Brain Damage
10.Eclipse
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Ouça:
Pink Floyd The Dark Side of the Moon



Cly Reis

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

As Melhores Capas de Discos








Grandes capas de discos. Aqui vai uma seleção das 10 melhores capas de discos, na minha modesta opinião.
No topo da minha lista está o Joy Division e seu "Unknown Pleasures" com sua capa minimalista, enigmática, que é na verdade um medidor de pulsos de uma estrela, em uma concepção de Peter Saville que aparece novamente na lista com a ótima capa de "Power, Corruption & Lies" do New Order, banda fruto do Joy, da qual o designer sempre foi colaborador.Outro que faz "dobradinha na minha lista é Andy Wahrol com a famosa capa do Velvet e com a provocante "Sticky Fingers" dos Stones.
Capas como as do PIL (Public Image Ltd.) "Metalbox" e a do Marley em seu "Catch a Fire" podem parecer muito simples numa primeira olhada mas sua concepção, conceito e formato as justificam. "Metalbox" vinha, efetivamente, em uma caixa de metal. O LP ficava em uma lata tipo rolo de filme que funcionava quase que como "proteção" ao ouvinte quanto ao material contido ali. "Catch a Fire", caso não dê pra notar, imita um isqueiro e aí, quanto ao conceito, em tratando-se de Bob Marley, não precisa falar mais nada. Uma curiosidade é que, assim como o álbum do PIL, este foi concebido para o formato vinil e sua capa abria como se fosse o isqueiro, mesmo, para cima.
A do Alice Cooper também pode se enquadrar nessas aparentemente comuns, mas note que a capa imita uma carteira de couro e as do "Sgt. Peppers..." e do "Dark Side..." dispensam comentários.

Dêem uma olhada na lista e se quiserem deixem a sua também.

Menções honrosas também para "Physical Graffiti" do Led com sua capa cheia de janelas, símbolos e enigmas, também para "Mezzanine" do Massive Attack, "Bandwagonesque" do Teenage Funclub, "Highway to Hell do ACDC, "Number of the Beast" do Iron, "In the court of King Crimson", "The Queen is Dead" dos Smiths, "Songs to Learn and Sing" do Echo com foto de Anton Corbjin e "Violator" do Depeche, concebida pelo mesmo, e ainda para a demoníaca "Live Evil" do Black Sabath com suas figuras simbolizando cada um dos seus clássicos.
ABAIXO, AS MINHAS 10 MELHORES:


1. Joy Division, "Unknown Pleasures"; 2. The Velvet Underground and Nico, "The Velvet Underground and Nico; 3. Nirvana, "Nevermind"; 4. PIL, "Metal Box"; 5. The Beatles, "Sargent Pepper's lonely Hearts Club Band"; 6. Alice Cooper, "Billion Dollar Babies; 7. bob Marley and the Wailers, "Catch a Fire"; 8. New Order, "Power, Corruption and Lies"; 9. Pink Floyd, "The Dark Side of the Moon"; 10. The Rolling Stones, "Sticky Fingers"

terça-feira, 24 de abril de 2012

Pink Floyd - "Wish You Were Here" (1975)


"Shine On You Crazy Diamond" não é realmente sobre Syd
— ele é só um símbolo para todos os extremos de ausência
que algumas pessoas têm de passar
porque é o único jeito com que elas podem lidar
com o quão triste isso é."
Roger Waters



O sucessor do brilhante "The Dark side of the Moon" carregava consigo já, antes de seu lançamento, a grande responsabilidade de no mínimo se manter no mesmo patamar técnico, criativo, qualitativo e por que não, seguir as marcas de sucesso do seu antecessor. O Pink Floyd não esteve muito segura quanto a lançar um novo álbum tão cedo. Houve divergências quanto a trabalhar mais o novo disco, prolongar a turnê do exitoso álbum anterior, discutir mais o conceito, mas por fim, o que apresentaram não foi nada mais nada menos que outra obra-prima do rock. "Wish You Were Here" era lançado em 1975 e trazia estados alterados da mente, espíritos maltratados, melancolia, decepções com o meio musical e com a sociedade como um todo. Tudo isso traduzido brilhantemente de maneira poético-musical por Gilmour, Waters, Wright e Mason.
O álbum é constituído a partir de uma longa peça musical em duas partes e apenas outras 3 canções. "Shine on You Crazy Diamond", a composição que abre e fecha a obra, dividida no primeiro trecho em 5 partes e no segundo, o final, um pouco mais encorpado, em 4, é uma pequena sinfonia monumental desenvolvida pacientemente, agregando elementos até preencher-se por completo constituindo por fim uma joia musical de rara inspiração. Composta em homenagem ao amigo e ex-parceiro de banda, Syd Barrtet, "Shine on You Crazy Diamond" trata do desequilíbrio interior, da confusão mental, da perda de si próprio, numa das mais belas canções da banda e com atuações individuais absolutamente notáveis de cada um dos intergrantes.
"Walcome to the Machine", sobre as imposições, vontades e condições do mundo da música tem destaque para os teclados e sintetizadores de Wright; "Have a Cigar", como que compensando o fato de ter sido praticamente preterido pela banda em nome de um vocalista convidado para cantar a canção, tem uma performance excepcional de Waters no baixo; e "Wish You Were Here", a faixa que empresta o nome ao álbum, é simplesmente uma das mais belas baladas já feitas na história da música, com seu inconfundível e belíssimo riff e uma interpretação emocionante de David Gilmour.
E o sucessor de "The Dark Side of the Moon" não só não decepcionava como em pouco tempo se constituiria em um daqueles discos legendários da história do rock.
Álbum brilhante! Como um diamante. Lapidado, raro, louco... cheio de luz e matizes.
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FAIXAS:
01 - Shine On You Crazy Diamond (Part 1-5) (vocal principal: Waters)
02 - Welcome To The Machine (vocal principal: Gilmour)
03 - Have A Cigar (vocal principal: Roy Harper)
04 - Wish You Were Here (vocal principal: Gilmour)
05 - Shine On You Crazy Diamond (Part 6-9) (vocal principal: Waters)

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Ouça:
Pink Floyd Wish You Were Here


Cly Reis

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 12 ANOS DO CLYBLOG - Pink Floyd - "The Wall" (1979)


"Vera! Vera!
O que aconteceu com você?
Alguém por aqui
Sente o mesmo que eu?"
trecho da música "Vera", 
que faz referência a Vera Lynn,
recentemente falecida.



"The Wall" definitivamente não é melhor trabalho do Pink Floyd, não é melhor que "Wish You Were Here" ou "The Dark Side of the Moon", mas é tão icônico quanto. É um álbum fundamental pela qualidade musical aliada a temática existencialista e, também, pela enorme capacidade  de adaptação as novas mídias, adaptação para cinema, shows e novas versões, que cativam o público fiel da banda e atraem novos admiradores para Pink Floyd.

Pink Floyd foi uma banda inglesa formada em Londres no ano de 1965, liderada por Syd Barret (1946-2006),  cujo período marcado pelo psicodelismo durou até o ano de 1968, quando foi substituído por David Gilmour (1946) nos vocais e guitarra. Roger Waters (1943) nos vocais e guitarra baixo, Richard Wright (1943-2008) nos vocais e teclados e Nick Mason (1944) na bateria completam a formação clássica que imprimiu uma linha de som progressiva, período que lançou o álbum The Wall.

"The Wall", álbum duplo produzido e lançado em 1979, é uma “ópera rock” que rivaliza com outros sucessos do gênero, como "Tommy" (1969) do The Who"...Ziggy Stardust" (1972) de David Bowie. São exatamente 26 músicas compostas na sua maioria por Roger Waters, que apresentou a proposta temática a banda, assumiu as letras, a maioria das músicas, a coprodução, e o design do álbum. A personalidade de Waters se agigantou ao longo da produção de "The Wall", tomando o controle da banda para si, quando os componentes do Pink Floyd já demonstravam a incapacidade de administrar seu egos e anseios artísticos.

O tema elaborado por Waters de The Wall, em tom autobiográfico,  trata da perda do pai (Eric Fletcher Walter morto na Batalha de Anzio na Itália durante a 2ª Guerra Mundial), a imagem da mãe protetora, a repressão do sistema educacional inglês, a sexualidade reprimida na adolescência e a traição, que vão compondo partes de um muro protetor ao redor do solitário personagem do trama, que em meio ao medo e ao ódio, renasce na pele de um líder fascista.

Musicalmente, "The Wall" segue a linha criativa dos trabalhos anteriores do Pink Floyd, com uma base instrumental irrepreensível, marcada pela pegada firme do baixo de Waters em sintonia com o peso da bateria de Mason, os voos solos da guitarra de Gilmour, mas pouca coisa de Wright (em processo de saída da banda). Mixagens e efeitos sonoros estabelecem um diálogo que alterna velocidade e ritmo, com Waters em uma vocalização esquizofrênica contrapondo o tom vocal mais contido de Gilmour.

No meio de tantas faixas, destacam-se "Another Brick in the Wall", música em três partes, a conhecida música do helicóptero foi faixa de trabalho nas rádios por ocasião do lançamento do álbum, sendo considerada um hino contra a repressão escolar.  "Mother", trata da superproteção e castração materna, e "Hey You" um pedido desesperado de ajuda. Mas é "Comfortably Numb", considerada por muitos como a melhor composição do grupo, criação original de Gilmour para seu trabalho solo, mas que apresentado a Walters, este deu letra à música, e incorporou ao álbum, com o destaque do virtuoso solo da guitarra de Gilmour.

"The Wall", o filme, foi adaptado para o cinema em 1982, conduzido pelo ótimo diretor Alan Parker (cuja filmografia também é fundamental), cineasta recentemente falecido, com Roger Walters de roteirista. O filme narra a vida de Pink, astro de rock interpretado por Bob Geldof, cuja estória é ancorada pelas músicas do álbum. O filme obteve boas críticas em geral, considerado por alguns como uma das melhores obras do gênero musical e do rock. "The Wall" custou US$12 milhões e arrecadou $22 milhões só nos Estados Unidos. Em Porto Alegre as exibições ocorreram no antigo e saudoso cinema Baltimore, onde a sala de exibição tinha uma atmosfera própria, um névoa londrina tomava conta do local, provocada pelo consumo cigarros proibidos e embalada pela poderosa trilha sonora. Terminado a exibição os expectadores se misturavam com a horda que habitava o bairro Bonfim, reduto boêmio da cidade da época.

Filme "The Wall", de Alan Parker

"The Wall", o show, originalmente apresentado entre 1981 e 1982 na Europa e EUA, passou pelo Brasil em turnê de Roger Waters, por três cidades brasileiras (Porto Alegre, São Paulo e Rio) em março de 2012, sendo um dos maiores espetáculos musicais apresentados no país. O palco era constituído de um muro de 137 metros de largura, onde eram projetadas imagens originais de Gerald Scarfe do álbum, e incluía o famoso avião cruzando o estádio do Beira-Rio (estádio do Sport Club Internacional, que estava em obras na época) e explodindo junto ao muro. Segundo a revista Billboard, a turnê arrecadou mais de 450 milhões de dólares, o que faz dela a terceira de maior sucesso na história.

Passados 40 anos do lançamento de "The Wall", e 75 anos do fim da 2ª guerra mundial, com o fim da vida daqueles que testemunharam e lutaram contra a escalada do fascismo na Europa, assistimos o renascimento da cultura do ódio e do medo em vários cantos do mundo. Sim, "The Wall" continua atual, o que o eleva a categoria de Álbum Fundamental.


"The child is grown
The dream is gone"
versos finais da música "Confortably Numb"



por  Á L V A R O   S T E I W


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FAIXAS:

  • Lado 1 (primeiro vinil)

1. "In the Flesh?"  
2. "The Thin Ice"  
3. "Another Brick in the Wall (Part I)"  
4. "The Happiest Days of Our Lives"  
5. "Another Brick in the Wall (Part II)"  
6. "Mother"  

  • Lado 2 (primeiro vinil)

1. "Goodbye Blue Sky"  
2. "Empty Spaces"  
3. "Young Lust"  
4. "One of My Turns"  
5. "Don't Leave Me Now"  
6. "Another Brick in the Wall (Part III)"  
7. "Goodbye Cruel World"  

  • Lado 3 (segundo vinil)

1. "Hey You" 
2. "Is There Anybody Out There?" 
3. "Nobody Home" 
4. "Vera" 
5. "Bring the Boys Back Home" 
6. "Comfortably Numb" 

  • Lado 4 (segundo vinil)

1. "The Show Must Go On" 
2. "In the Flesh" 
3. "Run Like Hell" 
4. "Waiting for the Worms" 
5. "Stop" 
6. "The Trial" 
7. "Outside the Wall"  

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OUÇA O DISCO:
Pink Floyd - The Wall



Álvaro Steiw é arquiteto e mestre em Sensoriamento Remoto, trabalha na área ambiental.
Gosta de filmes, fotos e músicas antigas.
Seu álbum preferido do Pink Floyd é "Ummagumma".

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Pink Floyd – “The Piper at the Gates of Down” (1967)


“’Sim’, disse o Rato gravemente. ‘Ele está desaparecido há alguns dias, e as lontras caçaram em todos os lugares, de alto a baixo, sem encontrar o menor vestígio, e também perguntaram a todos os animais por milhas ao redor, e ninguém sabe nada sobre ele.’”
trecho do conto infantil “O Vento nos Salgueiros”,
de Kenneth Grahame, de onde Syd Barrett tirou a frase
“The Piper at the Gates of Down” (“O Flautista nas Portas do Alvorecer”)


A explosão de talentos ocorrida no rock dos anos 60 ainda é inigualável em comparação a qualquer outra época da história do gênero mais popular e subversivo da música moderna. Além de hábeis compositores, eram verdadeiros mestres na reelaboração dos elementos do blues e não raro sob a lisérgica roupagem psicodélica. Jimi Hendrix, John Lennon, Eric Clapton e Van Morrison são exemplos incontestes. Em alguns casos, entretanto, a psicodelia era tanta que a sonoridade pendia para a vanguarda experimental, caso dos igualmente brilhantes Frank Zappa, Don Van Vliet, Mayo Thompson e Roky Erikson. De fato, nem todo mundo conseguia soar pop e equilibrar uma escrita musical própria com a tendência psicodélica, a qual, por si, apontava para infinitos caminhos. Quem melhor chegou a esta química – que continha em sua composição muita droga psicotrópica, em especial LSD – foi o gênio louco Syd Barrett, cabeça e fundador do Pink Floyd.

“Diamante Desvairado”, como os companheiros de banda o apelidaram, é a melhor classificação que podia ser dada a Syd Barrett. A perturbação mental e emocional sempre lhe foram uma faca de dois gumes. Suspeita-se que sofria de Síndrome de Asperger, condição neurológica do espectro autista caracterizada por dificuldades na interação social e comunicação não-verbal, além de padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos. Em contrapartida, tal condição lhe evidenciava uma criatividade acima da média – ou, quem sabe, não era suficiente para suplantar-lhe o ato de criar. “Não acho que seja fácil falar de mim, tenho uma mente muito irregular”, dizia, referindo-se a si próprio. De fato, como os misteriosos caminhos percorridos pela lontra Portly ao perder-se na floresta em “O Vento nos Salgueiros”, não é simples entender por quais meandros psiconeurológicos percorriam a mente de Barrett, artista capaz de conciliar rock com música barroca, conto de fadas, expressionismo abstrato, duendes, jazz avant-garde, teosofia e B movie numa única sinapse cerebral. Naturalmente uma mente de vanguarda. “The Piper at the Gates of Down”, um dos ícones do rock psicodélico, é a melhor representação dessa equação ímpar engendrada por Barrett. Junto com “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, o primeiro do The Doors, “Velvet Underground & Nico” e alguns outros clássicos do rock que completam 50 anos em 2017, a estreia do Pink Floyd continua inovadora a cada audição, inundando de referências gerações e gerações.

“The Piper...” é surpreendente do início ao fim. A começar pela capa, que não poderia ser mais tradutora da psicodelia da época, em que os integrantes do grupo se misturam como num caleidoscópio lisérgico. A produção de Norman Smith se vale do luxuoso aparato técnico do estúdio Abbey Road, em Londres, para criar a devida atmosfera espacial e jogar luz sobre todos os detalhes (não raro exóticos) ressaltados por Barrett e a jovem banda, que trazia Roger Waters, baixo e voz; Richard Wright, teclados, sintetizador; e Nick Mason, bateria e percussão – ou seja, os integrantes clássicos do Pink Floyd somados a David Gilmour, substituto de Barrett a partir de 1968. Comandando a guitarra e os vocais, Barrett dá o direcionamento conceitual do álbum, que começa com a tensa "Astronomy Dominé". Sinais intermitentes de um contador Geiger iniciam a música prenunciando a instabilidade do tema. Em uníssono, o vocal canta sobre um compasso monofônico: “Verde-limão límpido, uma segunda cena/ Uma luta entre o azul que você uma vez conheceu/ Flutuando para baixo o som ressoa/ Pelas águas geladas e subterrâneas/ Júpiter e Saturno, Oberon, Miranda e Titânia/ Netuno, Titã, estrelas podem assustar”. Uma espécie de refrão sem letra se dá numa frase de guitarra e um vocalize que, unidos, assemelham-se a um uivo selvagem. Isso até chegar a 1 min 35 da faixa, ponto onde ela muda totalmente. Parece que a canção irá se manter nesse rumo sob sons de órgão, efeitos, interferências de rádio e improvisações. Entretanto, a melodia de repente volta ao tema inicial e o término é igualmente intenso, quase catártico. Isso tudo é o disco recém começando...

A magnífica “Lucifer Sam” – cuja produção e a engenharia de som de Peter Bown são irretocáveis – é, basicamente, um blues ritmado com certa pegada surf music. Não fosse sua atmosfera sombria e mística (“Lucifer Sam, um gato siamês/ Sempre sentado ao seu lado/ Sempre ao seu lado/ Esse gato tem algo que não posso explicar/ Jennifer Gentle você é uma bruxa/ Você está do lado esquerdo/ Ele está do lado direito/ Esse gato tem algo que não posso explicar...”), que a leva mais para uma obscura trilha de série de TV. Efeitos como chocalhos, o órgão de Wright, a guitarra-base, o baixo de Waters e a bateria de Mason são perfeitamente ouvidos, mas o que se destaca mesmo é a segunda guitarra de Barrett, que executa um riff em tom grave, a qual contém uma das características compositivas dele: os leves atrasos nos tempos. Como se sempre algo estivesse fora do presente, pondo-se entre a realidade e o sonho. E se o virtuosismo não é a característica de Barrett – como será a de Gilmour, que assumirá as guitarras logo em seguida na banda –, o solo da faixa (toque percutido, exploração dos efeitos de pedal, variação de escala) é de pura criatividade.

Novamente revelador, o disco traz a estranha mas brilhante “Matilda Mother”, que muda totalmente pelo menos umas três vezes em pouco mais de 3 minutos de canção. O arranjo vocal, incrivelmente variante, é um primor, lembrando bastante no refrão o estilo que o Pink Floyd adotaria muitas vezes a partir de então, como em “Breath” (1973) e “The Thin Ice” (1979). O teclado e o baixo pronunciam o acorde inicial, pausado e contemplativo. O universo lúdico da infância, ao mesmo tempo fantástico e tempestuoso, é expresso na letra, em que Barrett clama pela mãe e pela criança que não mais é: “Havia um rei que governou a terra/ Sua Majestade estava no comando/ Com olhos prateados a águia escarlate/ Banhou de prata as pessoas/ Oh, Mãe, me conte mais”. Depois de algumas sinuosidades melódicas, lá por 1 min 25 entra um solo de órgão de ares barrocos. Porém, o que mais se destaca é a psicodélica percussão gutural de Barrett. De repente, as vozes se intensificam, a guitarra dita o riff e... volta tudo à melodia inicial, num proposital corte abrupto – como uma contação de estória sendo interrompida, ou melhor, deslocando-se no tempo psicológico em que o autor se dá conta de que a infância se foi. Em 2 min 25, um novo fim falso, que leva a música até o desfecho num clima ainda mais onírico.

“Flaming” não só se mantém no universo anedótico como o expande, levando o ouvinte a um céu estrelado e azul com unicórnios e animais da floresta de toda ordem. A melodia é ondulante, obscura, exótica. Não é para menos, pois se trata de um dos mais fiéis relatos de uma viagem lisérgica de LSD: “Observando botões-de-ouro moldarem a luz/ Dormindo em um dente-de-leão/ É demais, eu não vou te tocar/ Mas até poderia”. Exemplo de melodia composta no violão e devidamente arranjada pela banda em que todos se destacam, principalmente Barrett ao violão e Wright, que segura o clima no órgão e no solo de cravo ao final.

Nova surpresa, nova montanha-russa, nova obra-prima. Os sons articulados na goela e na faringe não apenas reaparecem como sustentam a abertura da sui generis “Pow R. Toc. H.”. O que se ouve são cacos vocais e sons quase demenciados sobre curtos e esquisitos rufares percussivos igualmente gerados por aparelho vocal humano. Essa configuração estranha se transforma em seguida num som de culto indígena, haja vista os gritos tribais e o ritmo ritualístico ditado pelo tambor – agora da própria bateria. Essa nova formatação sonora, entretanto, se altera rapidamente de novo numa perfeita transição executada na mesa de estúdio, fazendo a melodia se transformar agora num... elegante jazz! É Wright quem brilha nessa parte, solando no piano por quase 1 minuto sobre a ainda tribal percussão. Isso é interrompido mais uma vez, claro. Sons de órgão e de guitarra improvisam e se entrelaçam por quase 2 min, direcionando o tom jazzístico para uma polifonia. Tudo isso, para retomar a linha melódica inicial, agora com a guitarra, os efeitos de mesa e de pedal e os ensandecidos alaridos finalizando o número. Junto com “Peaches en Regalia”, de Zappa, é um dos temas instrumentais mais criativos do rock anos 60. Além disso, é, ao lado de “Interstellar Overdrive”, a única composição coletiva do disco, que já denota claramente que o Pink Floyd não era (e não seria, fatalmente) apenas Syd Barrett.

Composição de Waters, “Take Up Thy Stethoscope And Walk” é mais um belo exemplar do rock psicodélico que 1967 emoldurava. Isso se deve em parte, principalmente na primeira parte – ou melhor, até onde vai a seção cantada, a pouco mais dos 30 segundos iniciais, tendo em vista que o restante, exceto o rápido desfecho, é tomado de delírios instrumentais da banda inteira – a Barrett, que se vale, novamente dos cacos e sons guturais em conjunção com os efeitos e as texturas sonoras para compor o arranjo.

Centro do disco, a já mencionada “Interstellar Overdrive” é um hino lisérgico, que se assemelha em formato e proposta a outro clássico do rock composto naquele mesmo ano: “Heroin”, do Velvet Underground. Quase uma pequena sinfonia, começa como um hard rock cuja semelhança à sonoridade de Black Sabbath e Led Zeppelin não é mera coincidência. A 2 min e 20, a guitarra parece trancar como se tivesse arranhado o sulco naquele ponto (novamente, sente-se o estranhamento com o tempo). Essa ideia – lapidada pela maestrina do pós-jazz Carla Bley em “Musique Mecanique III”, de 1979 – reproduz no instrumento outra das peculiaridades da música de Barrett: os fonemas cacofônicos, ditos com certo engasgo. É como se fosse o sintoma da formação de uma linguagem atípica e excêntrica do Asperger, aliado ao dos padrões repetidos da doença, traduzido para música, para arte.

Seguem-se cerca de 7 minutos de improviso de toda a banda, que forma uma sonoridade espacial, quando não de uma viagem alucinógena ou uma trilha de filme de ficção científica. Até que, quase no fim do tema, um ruidoso e longo rolo de Mason traz de volta o riff inicial. Mas... algo estranho está embaralhando os ouvidos e os sentidos... É Norman Smith mais uma vez valendo-se do aparato do Abbey Road e de sua técnica como produtor operando uma radical alteração do balance, o qual joga rapidamente todo o som de um lado para o outro nas caixas de som: enquanto uma fica em silêncio, a outra recebe toda a massa sonora. Isso gera um efeito de desequilíbrio, espiral, revolto, que age diretamente sobre os sentidos humanos. Parece que se está escutando a arte da capa do disco. Impossível ficar impassível, pois o efeito atingido aqui pelo Pink Floyd chega a ser físico. Por todas essas particularidades, “Interstellar...” pode-se dizer a precursora do rock progressivo, que faria tantas bandas surgirem ou aderirem (como o próprio Pink Floyd em certa medida) nos anos 70.

Aí, como se nada tivesse acontecido, colada à intensa “Interstellar...”, entra a faixa seguinte, “The Gnome”: uma singela ciranda infantil sobre seres elementais. Só que não! Igualmente brilhante e consideravelmente sinistra, “The Gnome” (“Quero te contar uma história/ Sobre um homenzinho/ Se eu puder/ Um gnomo chamado Grimble Crumble/ E pequenos gnomos que ficam em suas casas/ Comendo, dormindo, bebendo vinho...”) realça o belo timbre de voz de Barrett e sua pronúncia elegante – o que confere ainda mais obscuridade ao tema. Os cacos fonéticos e a preferência por vocábulos “engasgados” (“GRimble”, “CRumble”, “tunIC”, “ADventure”) aparecem em abundância, intensificados pela dicção do cantor.

Rivalizando com outras duas canções daquele ano, “Within You Without You”, dos Beatles, e “The End”, dos Doors, “Chapter 24” ergue uma mística capela sonora. Wright é exímio ao imitar nos teclados o som de um fole nórdico. A percussão, inteligente, é apenas nos pratos e sinos, emprestando muita naturalidade. Apenas o baixo é mais “moderno” na sonoridade de “Chpater 24”, haja vista que o canto de Barrett soa quase litúrgico. Talvez a mais linear faixa do disco – se é que dá pra classificar qualquer uma das peças assim, tão simploriamente –, abre caminho para a totalmente medieval “Scarecrow” com suas flautas celtas e percussão barroca. Genialmente, Barrett dissolve qualquer noção de tempo – o mesmo “tempo” que ele, mentalmente perturbado, não consegue apreender. A bela letra é talvez a mais autobiográfica e – haja vista a metáfora essencial, a comparação de si com um “espantalho” – tristemente reveladora. Merece ser reproduzida por completo:

“O espantalho preto e verde
Como todo mundo sabe
Ficava com um pássaro no seu chapéu
E palha por todo lado
Ele não se importava
Ele ficava num campo onde o milho cresce
Sua cabeça não pensava, seus braços não se moviam
Exceto quando o vento soprava
E ratos corriam pelo chão
Ele ficava num campo onde o milho cresce
O espantalho preto e verde é mais triste do que eu
Mas agora ele está resignado com seu destino
Pois a vida não é má
Ele não se importa
Ele fica num campo onde o milho cresce.”

O que resta a um disco impecável como este? “Scarecrow”, por seu final quase épico, dá indícios de fim. Mas clássico que é clássico tem mais uma joia reservada. É o caso da originalíssima e sarcasticamente circense “Bike”, forjada sobre um único compasso. A voz de Barrett, tão cristalina quanto alucinada, joga versos em demasia sobre os intervalos – mas eles fazem caber no tempo musical, hábeis em harmonia como são. A festa no picadeiro lúgubre parece terminar a 1 min 45', mas sons de bugigangas (entre estas, relógios, como os que aparecerão 6 anos mais tarde em “Time”, do “The Dark Side of the Moon”), comandados pelos teclados fasmáticos de Wright, entram para preencher o restante da faixa a la John Cage. Esta, no entanto, termina da talvez mais apavorante forma que qualquer disco da música pop – e olha que bate muita dark music. O volume vai baixando aos poucos, anunciando o final, quando surge um som que parece ser de uma boneca enguiçada. Misto de gargalhada macabra com urro de dor e de prazer carnal, vai subindo até um clímax, que chega a chocar os ouvidos. Porém, logo em seguida, vai caindo até terminar o disco finalmente. Dá para imaginar uma cena de filme de terror em que o palhaço assassino aproxima-se, chegando a centímetros do escondido e amedrontado perseguido, mas que, não o encontrando, afasta-se e vai embora. No quarto de brinquedos, quebrados e tristes, está terminada a obra sinistra de Barrett e Cia.

A aparente infinita inventividade de Barrett, por infelicidade, teve sim um fim. Acometido pela deterioração mental, agravada pelo exagerado uso de drogas, Barrett afastou-se da banda antes de lançar um segundo trabalho com eles, restando apenas mais uma (e igualmente brilhante) composição sua em “A Saucerful of Secrets”, de 1968: “Corporal Clegg”. Vieram ainda duas obras-primas solo em 1970: “The Madcap Laughts” e “Barrett”, nos quais já se nota o progressivo agravamento do quadro físico e psíquico. Logo em seguida, entra numa reclusão autoimposta de 30 anos até a morte, em 2006. Porém, os parcos 6 anos em que produziu seguem influenciando profundamente a cultura pop meio século depois de seu surgimento em “The Piper...”. Para o próprio Pink Floyd foi assim: com talento, souberam apreender e reelaborar o legado de seu ex-líder, avançando em suas ideias mas mantendo-lhe uma ligação permanente. Mesmo com as capacidades criativas de e liderança tanto de Waters quanto de Gilmour, o Pink Floyd foi e sempre será como um tal personagem de conto de fadas chamado Syd Barrett.

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“The Piper…” teve, em 1967, uma edição norte-americana que, além de alterar a ordem das faixas e suprimir duas delas (“Bike” e “Astronomy Dominé”), conta com uma nova, “See Emily Play”.  Em 1974, os dois primeiros álbuns do Pink Floyd são reunidos num único volume, “A Nice Pair”. Ainda, “The Piper...” consta na íntegra com outros discos nas caixas “First XI” (1979), “Shine On” (1992), “1997 Vinyl Collection” e “Oh By the Way” (2010).

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FAIXAS:
1- "Astronomy Domine" – 4:12
2 - "Lucifer Sam" – 3:07
3 - "Matilda Mother" – 3:03
4 - "Flaming" – 2:46
5 - "Pow R. Toc H." (Nick Mason, Richard Wright, Roger Waters, Syd Barrett) – 4:26
6 - "Take Up Thy Stethoscope and Walk" (Waters) – 3:05
7 - "Interstellar Overdrive" (Barrett, Mason, Waters, Wright) – 9:41
8 - "The Gnome" – 2:13
9 - "Chapter 24" – 3:42
10 - "The Scarecrow" – 2:11
11 - "Bike" – 3:21
todas as composições de autoria de Syd Barrett, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


por Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Miles Davis - "Kind of Blue" (1959)

"Quem é tocado por essa música [de Kind of Blue] muda para sempre. E se torna melhor do que é."
 Herbie Hancock



Fui convidado pelo autor deste blog a escrever a resenha sobre “Kind of Blue”, de Miles Davis, de 1959, simplesmente o disco de jazz de maior sucesso e vendagem de todos os tempos, tendo ultrapassado tranquilamente, mais de meio século depois de seu lançamento, a marca de 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. Volume este que continuará crescendo certamente, tendo em vista que diariamente exemplares de “Kind of Blue” são adquiridos por novos e antigos fãs. Eu mesmo sou mais um dentre esta multidão de admiradores.
 Então, diante de tal missão, perguntei-me: o que dizer deste fenômeno, uma obra que perdura a tanto tempo e da qual, principalmente, gosto tanto? Como dimensionar sua evidente inspiração a toda uma geração de artistas? Ou, ainda, explicar de que forma a gama de aspectos musicais e não musicais que “Kind of Blue” abarca, trazendo de vez para a música moderna as influências de culturas folclóricas, como os sons orientais, africanas ou hispânicos, e misturando tudo isso ao groove latino, à música erudita e a tradição negra americana? Como jornalista, uma das regras básicas da minha profissão é a de manter imparcialidade sobre o que se está analisando. O que fazer, então, quando se está na posição de crítico e amante ao mesmo tempo?
 A solução que achei foi a de me entregar à genialidade deste disco, perceptível a cada faixa, a cada solo, a cada fraseado de trompete, a cada base de piano, a cada vibração de corda do baixo, a cada ataque do saxofone. “Kind of Blue” já impressiona de cara pela “cozinha”. O quinteto formado por Miles tinha nada mais nada menos que o baixo seguro de Paul Chambers, a bateria swingada e elegante de Jimmy Cobb, o sax alto cheio de sentimento e alma gospel de Cannonball Adderley, o piano “branco” e mezzo-erudito de Bill Evans, o trompete genial e inteligentemente comedido do próprio Miles e o sax tenor do talentosíssimo John Coltrane, que, talvez, comporte todos esses elementos e mais um pouco. Trata-se da melhor banda de Miles, comparada somente a seu supertime de 1969, que contava com feras como Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter. O fato é que os quatro músicos que acompanharam Miles em “Kind of Blue” tornaram-se ou se solidificaram depois do álbum como alguns dos grandes nomes da história do jazz (incluindo aí Red Garland, que tocou piano em uma das faixas), mas principalmente Coltrane, que revolucionou o estilo, disco a disco, até a sua morte, em 1967.
 Mas e o disco? Bem, “Kind of Blue” começa com a célebre “So What”, um blues cadenciado e cheio de swing onde aparece pela primeira vez na história da música um negócio que Miles Davis vinha desenvolvendo (parte conscientemente e outra não) há mais ou menos uma década: o jazz modal. Embora se trate de uma invenção técnica, facilmente distinguida por músicos, para leigos como eu também não é difícil de reconhecer. Ou, pelo menos, “sentir” a diferença. O jazz modal – diferentemente da loucura criativa do be-bop, que aproveitava todas as escalas musicais ao extremo, ou do free-jazz, livre em concepção, como o título sugere – propunha uma, digamos, “simplificação programada” do jazz. Assim, as melodias eram compostas em escalas (por módulos = modal), o que gera uma base em que há poucas mudanças de notas mas, ao mesmo tempo, dá uma vasta liberdade aos solistas, que não precisam improvisar somente dentro do tradicional tempo 1-2-3-4. Um pequeno detalhe, mas uma verdadeira revolução que influenciou todo o jazz, soul, pop e rock que viria a seguir – isso, para ficar só nas contribuições à música, sem falar do cinema, artes plásticas, cênicas, etc.
 “So What”, com sua memorável abertura do diálogo entre baixo e piano, é, assim, um marco do jazz modal, formato que Miles e seu quinteto empregaram em todas as cinco faixas do álbum. E “So What” guarda ainda uma outra curiosidade. Nela, a visão pop do caleidoscópico Miles se evidencia: ouvindo com atenção, dá para perceber que sua base de sopros no chorus é idêntica a de “Cold Sweat” (veja o vídeo), de James Brown (a quem o jazzista admirava), considerado o primeiro funk da história. Porém, exceto por um detalhe: as notas estão na ordem inversa.
 O disco segue com outro jazz “blueseado”: “Freddie Freeloader”, tema que contém o talvez mais impressionante solo já tocado por Coltrane. Depois do número elegante de Miles, Trane entra literalmente rachando com toda emoção e potência, vazando o som do seu sax para todos os microfones do estúdio e obrigando o operador da mesa a reduzir o volume manualmente na hora. O que seria uma falha na gravação para um artista comum, fazendo com que se repetisse a sessão, por causa da sensibilidade de Miles ficou assim mesmo e assim se eternizou.
 A lindíssima balada “Blue in Green” vem na sequência, uma provável parceria de Miles com o Evans onde o pianista conduz a melodia. Bem, “melodia” não é bem o termo certo. Criada sob a linha modal de notas cool que variam em poucas escalas, e com claras influências eruditas emanadas do piano quase clássico de Evans, “Blue in Green” não tem uma melodia propriamente dita. Não fica evidente um acorde básico ou um riff. Mesmo assim, sua aura é tão palpável que quem a escuta jamais se esquece de como ela é.
 Outra pérola inesquecível de “Kind of Blue” é a hipnótica e sensual “All Blues”, na qual se veem nuanças hispânicas, afro e da vanguarda erudita. Nela, o piano mantém constantemente um trinado que parece com marimbas espanholas tremulando, enquanto os sopros executam o chorus lentamente, em longos e lânguidos riffs fraseados que definem a base do tema. Para matar a pau, o Miles inicia uma segunda frase melódica com um longa nota, que se estende, parecendo dar asas à canção. Ajudado pelo som de escovinhas raspando no tarol, o famoso som repetido do piano gera uma sensação mágica de circularidade, muito bem traduzida para o audiovisual pelas lentes de Spike Lee, no filme "Mais e Melhores Blues" de 1990.
 A obra-prima finaliza com outra de ares ibéricos: “Flamenco Sketches”, tão rica e densa musical e conceitualmente que serviu de inspiração não para mais uma música, mas para um disco inteiro de Miles Davis chamado “Sketches of Spain”, de 1960. É mole ou quer mais?

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 Antes e depois de “Kind of Blue”, Miles Davis revolucionou a música moderna uma porção de vezes. Por isso, vale destacar pelo menos duas obras que se incluem nesta lista e que foram importantes na formação do jazz modal que desembocaria em “Kind of Blue”: “Walkin’” e “The Birth of the Cool”, ambos de 1954.

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 Como todo grande disco, um “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, ou “Exile on Main Street”, dos Rolling Stones, “Kind of Blue” carrega lendas. Uma delas – e que se constatou ser verdade quase 40 anos depois – é a de que a gravação impressa em milhões de exemplares e que se popularizou no mundo todo por décadas estava milésimos de segundo mais lenta que o normal, pois se tratava da cópia extraída de uma master com um leve defeito. Hoje, é possível adquirir a versão corrigida, mas muitos veem nesta falha um toque divino, mantendo-se fiéis ao registro “original”.

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O livro sobre a história da obra-máxima
de Davis
O autógrafo do mestre Hermeto
no livro do 'parceiro' Miles
 Para finalizar, dia desses encontrei no Aeroporto de Porto Alegre o compositor e multi-instrumentista brasileiro Hermeto Pascoal. Pedi-lhe um autógrafo no primeiro papel que vi, meu livro, o que ele prontamente atendeu. Para não lhe dar a impressão de que gastaria tinta em qualquer papel, eu, na minha ignorância, comentei que estava lhe dando para assinar uma obra que abordava o tema música: era “Kind of Blue: A História da Obra-prima de Miles Davis”, do jornalista americano Ashley Kahn. Afinal, jazz e Hermeto Pascoal é quase a mesma coisa, né? O “albino Hermeto” (que de fato não enxerga muito bem, como disse Caetano Veloso), comentou-me, então, com toda simplicidade que conhecera Miles Davis no final dos anos 60, e que tocara junto com ele. (!) Não só: que justo o para mim tão mitológico Miles havia gravado duas canções dele, Hermeto, em um disco que ele não lembrava ao certo o título e de quando datava (vejam só!). Enfim, estupefato pelo desapego do genial Hermeto busquei no Google e encontrei o tal disco: chama-se “Live Evil”, de 1967, considerado por alguns como um álbum “demoníaco”. Quem quiser conhecer, benza-se antes de ouvir. Cruz-credo!

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Ouça:
Miles Davis Kind Of Blue



por Daniel Rodrigues





Daniel Rodrigues é jornalista formado pela PUC/RS, curioso e pesquisador de música, é aberto a todos os estilos demonstrando, contudo, especial interesse e conhecimento pelo jazz. Também, por incrível que possa parecer, direciona grande parte de suas atenções ao punk-rock, suas origens e vertentes, estilo sobre o qual inclusive baseou o tema de sua tese de diplomação relacionando-o com a evolução da moda.
Daniel além de tudo isso é meu irmão e foi integrante comigo da banda 'punk-putaria-core', HímenElástico.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

John Lennon - "Plastic Ono Band" (1970)


 

por Roberto Sulzbach 

“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”
da letra de "God", de John Lennon

Em 11 de dezembro de 1970, John Lennon lançava sua primeira investida pós Beatles: o "Plastic Ono Band". Vinte e nove anos depois, em 11 de dezembro de 1999, este, que vos escreve, nascia, em um hospital da zona norte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Comemorar meu aniversário junto dessa obra chega a ser um motivo de orgulho. Um marco na música pop e um último prego no caixão do movimento hippie, o qual tinha o próprio Lennon como símbolo. O disco contou com Klaus Voormann, amigo desde a época que viveu em Hamburgo com o restante do Fab Four; Phil Spector, produtor e pianista; Billy Preston, também no piano; Yoko Ono, creditada como “ar” (Lennon depois explicou que ela montou a "atmosfera’ das músicas"); Ringo Starr, na bateria (por óbvio) e Mal Evans, creditado como “chá e simpatia”.  

Meu primeiro contato com a obra foi em uma das milhares de vezes que assisti Os Simpsons com o meu pai, em uma época que a série ainda era criticamente aclamada como uma grande paródia da sociedade americana do fim do século XX/início do XXI. O segundo capítulo da décima quinta temporada da série, traz o retorno de Mona, mãe ausente do personagem Homer (por ser uma hippie ativista contra grandes corporações em fuga desde o final dos anos 60) em um episódio comovente. Ao final, Homer é “abandonado” novamente por sua mãe e após ela o deixar, não haveria música melhor para sintetizar o momento que “Mother”.  

Julia Stanley, mãe de John, cedeu a guarda do filho, quando ainda era pequeno para sua irmã, por conta de denúncias de negligência com o próprio filho. O pai de Lennon, Alfred, era um marinheiro, que raramente se encontrava em Liverpool e não viu o filho crescer. Julia morreu quando John tinha apenas 16 anos de idade, vítima de um atropelamento, justo em um momento em que o garoto se reaproximava da mãe. “Mother” é a sintetização da raiva, tristeza e desabafo, em forma de berros, que estavam guardados no artista. A letra inicia com “Mãe, você me teve, mas nunca tive você; eu queria você, mas você não me queria.” “Pai, você me deixou, mas nunca te deixei; Eu precisava de você, mas você não precisava de mim”. Em seguida, John esboça uma despedida, como se quisesse abandonar esse passado com “agora, eu só preciso lhes dizer; adeus”, para que então, Lennon se contrarie na estrofe seguinte dizendo “mamãe, não vá! Papai, volte para casa”. De forma alguma é necessário ter passado por situação semelhante para entender o que John sentia em relação a sua família. 

“Hold On” segue o disco com um riff de guitarra tranquilo, em que John começa a se acalmar e reafirmar que vai dar tudo certo. A música é doce e oferece um certo refúgio à pedrada que o ouvinte escutou, como um choro triste, e provavelmente emula o que Lennon passou ao longo das gravações do álbum (que era interrompido constantemente por crises de choro e gritos por parte dele). “I Found Out” trata sobre falsas religiões, cultos e até mesmo, a idolatria que ele exercia sobre uma massa gigantesca de ouvintes “eles não me queriam, então me fizeram uma estrela”, cantou. 

Em “Working Class Hero”, em estilo Dylanesco (em "Masters of War", principalmente), Lennon escreve uma de suas maiores músicas. Apenas portando o violão, O "Herói da Classe Trabalhadora" se rebela contra o sistema imposto, e questiona toda a máquina capitalista e a eterna luta incentivada à população por subir na escada corporativa e econômica. A música causou impacto tão grande, que um tal de Roger Waters passou a questionar a produção de suas letras psicodélicas e começou a expor maiores críticas à sociedade, que resultou, inicialmente, em "The Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd

“Isolation” finaliza o lado A, abordando a solidão que o autor enfrentava, tanto por ter se separado de seus amigos, e banda, quanto pelas críticas que ele e Yoko sofriam constantemente por parte da mídia. “Remember” nos traz uma realidade paralela, em que Guy Fawks (membro da “Conspiração da Pólvora”, que planejava bombardear, em 1605, a Câmara dos Lordes) conseguiu colocar em prática seu plano. Uma anedota de aquecer o coração é que a canção foi gravada no dia do aniversário de Lennon, e felizmente, foi registrado em vídeo, os amigos John e Ringo recebendo a visita do outro ex-companheiro de banda, George Harrison, que entregou de presente, uma demo de “It’s Johnny’s Birthday” (de "All Things Must Pass", de Harrison). 

Talvez a canção mais ingênua e doce de Lennon seja “Love”. Simples e direta: “O amor é real, real é o amor”. Não há muito o que dizer de uma música que, em poucas palavras, e um piano "silencioso", consegue transcorrer uma imensidão de significados que não podem ser quantificados. “Well Well Well” descreve pequenos casos da vida à dois de John e Yoko, como caminhar em um parque, dividir uma refeição e falar sobre temas como ‘revolução’ e ‘libertação das mulheres’. “Look at Me” nos traz um Lennon direto do “White Album”, perguntando ao ouvinte “quem que devo ser?”.

“God” é filosófica, existencial, e acima de tudo, impactante. Uma canção que começa com “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, não tem como não chamar a atenção. Com um piano espaçado e dramático, Lennon subverte todas as crenças que possuía, e não possuía, dizendo que não acredita na Bíblia, tarot, Jesus, Hitler, Kennedy, Budha, Yoga, Elvis, Zimmerman (Bob Dylan), e mais importante, não acredita nos Beatles. Após citar sua antiga banda, uma pausa dramática precede a frase “eu só acredito em mim. Em Yoko e em mim”. Ele segue com “o sonho acabou” e “Eu era a Morsa (referência a I Am The Walrus), agora sou o John”. Ou seja, estamos diante do verdadeiro John Lennon, e que é necessário deixar o passado Beatle para trás. O álbum finaliza com “My Mummy’s Dead”, uma balada curta e poderosa, que faz o contraponto com “Mother”, pois ao invés dos berros, Lennon canta calmamente que ainda não superou a morte de sua mãe, mesmo que ela tenha morrido há tanto tempo. 

Acima de tudo, "Plastic Ono Band" nos apresenta quem era o ser humano John Lennon, mesmo que ele tenha representado ¼ de um dos maiores fenômenos da música mundial. Da minha parte, acho uma coincidência barbara a pequena conexão de nascer no mesmo dia em que o disco foi lançado, anos antes. Mesmo com a perda do meu parceiro de Simpsons há muitos anos (e de música, inclusive era fã do Lennon), fico feliz de ter, tanto Homer, quanto John, para me acompanhar na sequência da minha caminhada sem ele. 

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FAIXAS:
1. "Mother" - 5:34
2. "Hold On" - 1:52
3. "I Found Out" - 3:37
4. "Working Class Hero" - 3:48
5. "Isolation" - 2:51
6. "Remember" - 4:33
7. "Love" - 3:21
8. "Well Well Well" - 5:59
9. "Look at Me"  - 2:53
10. "God" - 4:09
11. "My Mummy's Dead" - 0:49
Todas as composições de autoria de John Lennon

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OUÇA O DISCO:
John Lennon - "Plastic Ono Band"

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Beach Boys - "Pet Sounds" (1966)

Os Sons de Estimação

 “ 'God Only Knows' é a música
que eu queria ter escrito.”
líder dos Beatles


A psichodelic era dos anos 60, sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John LennonPaul McCartneyJimmi HendrixSid BarretRay DaviesBrian JonesArthur LeeArnaldo BaptistaLou ReedRocky EriksonFrank Zappa e mais uma dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes, também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock. Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros aspectos.

“Pet Sounds”, diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian, um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.

E conseguiu.

“Pet Sounds” é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys. Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The Beach Boys' Christmas Album”, trabalho anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e lúdico do harpschord executa uma ciranda, que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês, a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravo repete o tempo três vezes até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock. Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda. Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e agudos.

Um dos principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais, guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim), Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais, órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos rufares.

Outro trunfo do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a voz de Love, que, limpa e sem overdub, desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na orquestração.

Por falar em orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: I’m waiting for the day when you can love again”, violinos e cellos, sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”, em dois. Estupendo.

A segunda especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão, reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.

Depois do tom médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que se estende, ambos marcados pelo tic-tac de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.

Para os apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música moderna como "Like a Rolling Stone""Bolero""A Day in the Life""Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros, igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam, criando um efeito onírico tal como um Cantus Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos e dissesse: “só Eu sei”.

“I Know There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes. Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”. Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que equilibra temple blocks, bateria e tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em termos de música pop: o electro-theremin, sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como, inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito, Deus e homem fossem a mesma matéria.

Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.

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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.

Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde ZombiesPink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.



por Daniel Rodrigues
(Consultas técnicas e agradecimentos: Maria Beatriz Noll e Leocádia Costa)

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FAIXAS:
1. Wouldn't It Be Nice - 2:26 (Wilson, Asher, Mike Love)
2. You Still Believe in Me - 2:31
3. That’s Not Me - 2:30
4. Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder) - 2:53
5. I’m Waiting for the Day – 3:06
6. Let's Go Away for a While - 2:21
7. Sloop John B - 2:54
8. God Only Knows - 2:46
9. I Know There's an Answer - 3:10 (Wilson, Terry Sachen, Love)
10.  Here Today - 2:55
11. I Just Wasn't Made for These Times - 3:10
12. Pet Sounds - 2:23
13. Caroline, No - 2:54
14. Unreleased Backgrounds - :50
15. Hang on to Your Ego – 3:17
16. Trombone Dixie – 2:53

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