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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Caetano Veloso & Gilberto Gil – “Dois Amigos, Um Século de Música” – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (28/08/2015)





Caetano e Gil, pura genialidade.
foto: Júlio Cordeiro
“Gil é um rouxinol de grandes mistérios”.
Caetano Veloso


“Eu faço música primeiro pra mim,
depois pra ele e depois pros outros”.
Gilberto Gil,
sobre Caetano



Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida. Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na doce e astral companhia das hermanas Leocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos; a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um marco só por sua realização.

Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos. Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014 (Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993, a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.

E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock ‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70, na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show – aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à época), em 1966: “Coração Vagabundo”.

Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil, magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/ Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”

Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.

Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show, eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher, como dizem os versos, “as camélias da Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de boicote do ex-Pink FloydRoger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo do Leblon/ Brandir.”

Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez. Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”, talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com seus traços árabes e folks. Enquanto Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola, o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral de Gil. De arrepiar.

Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos tão próximos dos irmãos portenhos.

Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova “Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção. Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus, começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga a voz e é aplaudido.

Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia. Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”, do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com “Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto. 

Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis. Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso 2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.

Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô Menino” é a única do set-list composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil. Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/ Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).

O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro

Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando Caetano, o “silêncio sorridente de Porto Alegre” de quem não quer admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel (muitos pensaram alarmados: “Nossa, um estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista” de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este (que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre não faz jus à sentença de que a “verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”.

De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas, como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos, na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.

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Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015






quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Grupo Corpo – “Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil” – Teatro do SESI – Porto Alegre (03/11/2019)



"Confesso que recebi o convite para criar uma trilha para o Grupo Corpo com satisfação mas com preocupação também, especialmente quando eles manifestaram o desejo de denominar a peça GIL - ou seja, de concentrar a criação no conjunto, num arco que fosse o mais amplo possível do meu trabalho, que tem tantas influências baianas, do samba, da música pop em geral. De todo modo, ouvindo a trilha no final, percebo que ela tem muitos elementos da minha dimensão rítmica mesmo, com elementos da música afro-baiana". 
Gilberto Gil

O Grupo Corpo é, mais do que qualquer banda, cineasta ou outro tipo de artista no Brasil, o que mais tem o poder de me surpreender. A cada nova montagem, e até mesmo a cada repetição de alguma das antigas, a capacidade da companhia mineira de balé – sem dúvidas uma das melhores em atuação no mundo – de reinventar-se e trazer novas visões estéticas e conceituais é invejável. Não foi diferente na última apresentação deles em Porto Alegre, em razão da mais recente montagem,“Gil”, cujo nome já diz tudo: um retrospecto sintético da obra do genial músico baiano Gilberto Gil. Para arrematar, além da iluminada companhia das "Costa", Leocádia, Carolina e a amiga Amanda, a ocasião caiu justamente no dia de meu aniversário. Muita emoção envolvida.

Como disse, não só as novas montagens surpreendem. O hábito comum do grupo de trazer na primeira parte alguma de suas peças anteriores, não raro é tão estimulante quanto a estreia. Foi assim em 2015, quando trouxeram, junto à então recente “Dança Sinfônica” – com trilha de Marco Antônio Magalhães, parceiro de longa data do Corpo –, que perdeu impacto diante de sua talvez mais representativa montagem, “Parabelo” (1997, José Miguel Wisnik e Tom Zé). Desta vez, abriram com uma das que mais tinha vontade de assistir mas que nunca tivera a oportunidade: ”Sete ou Oito Peças para Ballet”, de 1994. Marco na trajetória recente da companhia de mais de 40 anos, tem trilha com arranjos e execução do grupo mineiro instrumental Uakti – liderado por Magalhães – e autoria do, assim como Gil, gênio: o norte-americano Philip Glass.

"Sete ou Oito Peças para um Ballet", com trilha de Glass: êxtase no palco
Afora a deliciosa surpresa de que a tal trilha que nunca achava para ouvir pelo nome da peça era a mesma de “Águas da Amazônia”, lançada em disco com este título anos depois da apresentação nos palcos, a coreografia é simplesmente extasiante. Aproveitando-se da construção minimalista da música, que se monta a partir de células sonoras móveis em variações de volume, intensidade e harmonia, Rodrigo Pederneiras cria uma coreografia em que extrai o máximo da trilha através de movimentos e danças, intercalando constantemente contenção e expansão. Como uma dança da natureza em que a terra determina criação e recriação. Isso auxiliado pela linda luz (Paulo Pederneiras) e pelo figurino (Freusa Zechmeister), que remetem diretamente à organicidade, e a cenografia (Fernando Velloso), igualmente inspirada na fauna e na flora brasileiras. Para mim, que ouço seguidamente “Águas...” , foi emocionante vê-la encenada, principalmente a parte final, quando uma das composições mais icônicas de Glass, “Metamorphosis”, ganha a instrumentalização característica da Uakti, de sonoridade tão brasilianista quanto de vanguarda. No encerramento, num ápice típico das composições de Glass, fica a sensação de que talvez nem precisasse de segunda parte.

Luz amarela e fendas pelo corpo: o
sertão de Gil representado
Mas precisava, sim. Afinal, era a representação em dança pelo filtro artístico do Grupo Corpo de ninguém menos que o “Buda Nagô” Gilberto Gil, talvez o mais completo músico de sua geração. Com um conceito totalmente diferente de “Sete ou Oito...”, o que fez parecer tratar-se de outra companhia, “Gil” inicia. Tons de um amarelo intenso, como um sol implacável do sertão nordestino, iluminam o tablado. Eu, fã ardoroso de Gil, mas suficientemente resistente para não buscar nenhuma informação sobre a montagem antes de assisti-la para não estragar a surpresa, pensava: “De que forma ele irá começar a trilha?” Seria com o toque de seu violão, instrumento tão simbiótico a ele? Ou acordes de sanfona, herança do baião de Luiz Gonzaga e memória de sua infância? Ou as percussões, as quais sempre fora intimamente ligado por conta das raízes da África? Eis que o mestre me surpreende emitindo os primeiros sons da peça em que ele próprio é tema com vocalizes e sons guturais reelaborados eletronicamente. O título: “Choro”. A voz, representação primeira da identidade do ser humano, do músico, do artista, do ser humano. Afinal, qual o primeiro som que emitimos quando nascemos?

Nascida a peça, a partir daí o autor constrói uma verdadeira sinfonia gilbertiana, em que traz, em uma síntese tocante, todos os elementos de sua extensa e abarcante obra: a Bahia, o candomblé, a bossa nova, o sertão, a tecnologia, o tropicalismo, o samba, o concretismo, o rock, o Oriente. E também Villa-Lobos, Beatles, SatieChico Science, Smetak, Domenico, Caymmi, Arnaldo, Caetano. João. Que tarefa difícil, visto a amplitude de sua importância como artista no mundo e o paradigma simbólico de uma obra tão representativa da cultura moderna de um país continental como o Brasil. Gil acompanhou tudo o que aconteceu em termos de movimentos musicais em mais de 60 anos para cá. Agora, foi a vez de ele mesmo fazer esse autopercurso revisitando-se para extrair uma nova compreensão de si próprio.

Gestual que lembra a performance do próprio artista
inspirador da montangem
A coreografia, também de Rodrigo Pederneiras, se vale enormemente de gestos amplos e expansivos (com referências ao frevo, ao samba, aos caboclos de lança, aos orixás, à assimetria roqueira) e não raro referindo-se aos conhecidos gestos performáticos de Gil quando no palco. O tempo todo o ritmo dos passos é marcado pela luz quente e amarelada criada por Paulo e Gabriel Pederneiras, a qual persegue em fachos os dinâmicos movimentos dos corpos. O figurino escuro, autoria de Freusa, traz estampas de colorido africano (Joana Lira) que dão, sob o jogo de luz, a impressão de porem à mostra fendas da carne corpórea. Com um conceito cenográfico bastante limpo – poucos bailarinos no palco por vez, utilizando-os muito mais como linhas ora em pequenas composições, ora individualmente –, a montagem, assim, desenha a concepção musical proposta pelo compositor: organismos que se formam (as três “Intros”), tomam fisionomia própria (“Choro nº 1”, “Seraphimu” e “Fragmento Lírico”, além do knee "Balafon"), brincam em suas existências efêmeras (os três “Improvisos”) para, na segunda metade, aí sim, ganharem concretude, ganharem corpo (“Círculo”, “Triângulo”, “Quadrado”, “Retângulo” e “Pentágono”). O final não poderia ser mais lógico e emblemático com um tema intitulado, justamente, de “Gil”.

Rica em variações, harmonias, timbres e texturas, a encadeada e emocionante trilha dá ao espetáculo coesão e dinâmica em seus quase 40 minutos de duração. “Intro”/“Choro nº 1/”Improviso”, logo nos primeiros movimentos, é especialmente marcante, pois encerra várias vertentes do universo musical do músico baiano: o chorinho, o rap, o afoxé, o samba, o eletro-pop e o baião, passando por uma seção clássica de piano até progredir na reelaboração de si mesmo e de sua música ao parafrasear "Filhos de Gandhi" (1974) e "Ela Falava Nisso Todo Dia" (1968). Outras duas, "Aquele Abraço" (1969) e "Andar com Fé" (1982) sevem de motivo para um auto-sample, em que traços minimamente reconhecíveis de suas melodias se entrecruzam - repetindo e ressignificando, aliás, as vozes fragmentadas da introdução.

Ritmo e movimento:
a Bahia africana de Gil
Já a segunda sequência, o movimento “Seraphimu”, ideia extraída de outra canção dele, "Serafim", de 1992, começa como um legítimo kraut-rock alemão em que cita o riff de “A Novidade”, para, mais adiante, dar um caráter erudito-religioso aos tambores e às percussões politonais do matiz africano fazendo da mesma "Serafim" um fio condutor ("Quando o agogô soar/ O som do ferro sobre o ferro/ Será como o berro do bezerro/ Sangrado em agrado ao grande Ogum", diz a letra original). Também, de extrema sensibilidade e responsável por um dos momentos mais belos do espetáculo, “Fragmento Lírico” é com certeza das melodias mais bonitas já criadas por Gil. Igualmente empolgante, inclusive na coreografia, o rock "Círculo", com citação a "Toda Menina Baiana", de 1979.

Além do uso intenso de percussão em vários momentos (que chama a coreografia a movimentos igualmente carregados), o trabalho de sopros é, não à toa, bem destacado, assim como os elementos eletrônicos (comandados por Domenico Lancellotti). Mas o que ganha realce é o violão de Gil, quase que seu segundo corpo. É no violão que o autor, ao compor, se materializa enquanto som, em que revive e logo se esvai a cada nota que o vento leva. E é sobre isso que, em suma, “Gil”, aborda: vida e morte. Ao varrer através do tempo a própria vida, do começo desta até o presente, Gil, com 76 anos e sapiente da maior proximidade da partida deste plano, escreve uma espécie de réquiem. Porém, diferente de Mozart, Gil a completa ainda de olhos abertos. Sente-se um olhar enevoado tanto para o passado esvaído quanto para o futuro implacavelmente cada dia mais encurtado. Tudo está embrenhado: memória, perspectivas, sentimentos, razão, espírito, matéria. Num só corpo. Por isso, os altos e baixos da narrativa, em que alegria e tristeza, luz e sombra, vida e morte, se confundem, já são a mesma coisa para Gil. A releitura desconstruída e uns dois tons abaixo na escala de “A Raça Humana” (“Triângulo”) é uma mostra “viva” disso. O que era originalmente um reggae dançante vira uma missa fúnebre, como os passos sofridos a caminho da morte dos retirantes nordestinos sob (aquele) sol calcinante.

A riqueza da obra do compositor baiano representada em gestos pelo Grupo Corpo
Nova guinada e volta animada a manipulação eletrônica da própria voz com o eletro-funk “Quadrado” emulando “Cérebro Eletrônico” (1969) e “Realce” (1979). A misteriosa e oriental “Retângulo” e a marcha “Pentágono”, com ares de jazz funeral de New Orleans, dão, como se diz na linguagem vulgar, a “morta”. Gil pronuncia, agora com a voz inteira e sem processamentos de mesa, palavras soltas. Mas não tão soltas assim, visto que simbolizam ele, a montagem e a sua arte:

“Corpo/ Carpa/ Corvo/ Cravo/ Cedro
Corpo/ Perna/ Braço/ Fauna/ Flora
Corpo/ Palco/ Pedra/ Preto/ Porco”.

Por fim, todos os metais e madeiras, um a um, dão aquilo que pode ser classificado prática e simbolicamente como o último sopro. Pois que, numa inesperada alteração de textura, timbre e sensação, Gil tira das cordas do violão, este sim, o derradeiro acorde. Dissonante, enigmático e inconcluso. Um som cuja energia vibratória tem tempo de vida de alguns segundos, desde seu ataque até sua queda, esvaindo aquilo que em música se chama justamente de “corpo”. Finda-se o som e um proposital silêncio se faz mesmo depois que as luzes se apagam, mas ainda sem o cerrar das cortinas (ou seria o fechar os olhos?). A plateia reage com estranhamento e desconforto, pois realmente a intenção era desacomodar. Se a sensação não foi de êxtase, ainda mais em comparação com a primeira parte de “Sete ou Oito...”, a proposta dos autores, Gil e Grupo Corpo, foi totalmente exitosa, visto que simbólica e profunda. E se não é tão arrebatadora a montagem, com certeza mais uma vez a companhia surpreende, ainda mais desta feita, inspirada na força criativa do autor de "Drão". Aliás, não é exagero dizer que se trata de um dos melhores trabalhos da carreira de Gilberto Gil.

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trechos de "Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil"


Daniel Rodrigues

terça-feira, 31 de maio de 2016

A Cor do Som – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (29/05/2016)




A grande A Cor do Som em plena atividade.
Foi um acontecimento encantado que Porto Alegre presenciou na úmida noite de domingo. Afinal, a lendária banda A Cor do Som, com a formação original, resolveu reunir-se 32 anos depois da última vez e escolheu a capital gaúcha para estrear. A opção, aliás, se justificou plenamente. Num Bourbon Country lotado de fãs empolgados e emocionados, o grupo reviveu clássicos e sucessos, preenchendo uma ausência de quase todo esse tempo, haja vista que a última vez que pisaram num palco da cidade foi em 1981, no antigo Teatro Leopoldina. Aos que estavam lá àquela época, valeu a pena esperar, assim como para fãs como eu, que os somente bem depois os conheceu e passou a apreciar seu trabalho sui generis.

 O que se viu foi um verdadeiro espetáculo de musicalidade, virtuosismo e empatia de todos os integrantes com o público, o qual cantou todas as letras e soltou-se como poucas vezes vi nessas geladas terras gaúchas. Afinal, além de terem escrito a trilha sonora da adolescência de muitos dos presentes, os cinco músicos são capazes de conquistar públicos de todas as gerações. Intercalando suítes instrumentais com hits cantados, Armandinho (guitarra baiana e bandolim), Dadi (baixo), Mu Carvalho (teclados), Gustavo Schroeter (bateria) e Ary Dias (percussão),  trouxeram um repertório literalmente colorido, daqueles que se sai preenchido de alegria ao final. A mistura híbrida de funk, samba, pop, baião, reggae, choro, hard-rock, frevo, progressivo, maracatu, disco (e o que mais o ouvido conseguir detectar) faz com que criem um inclassificável tipo de jazz que somente uma banda desses trópicos como A Cor do Som – formada, entre outros, por remanescentes dos Novos Baianos e Banda do Zé Pretinho, Dadi e Mu, e descendentes diretos dos trios elétricos baianos, caso de Armandinho e Ary – pode conseguir.

E eles já saíram pondo tudo abaixo com “Saudação a Paz”, faixa que abre seu terceiro disco, de 1981. Em seguida, cantada com a voz suave do “leãozinho” Dadi, um dos grandes sucessos: “Abrir a Porta”, daquele que é talvez sua obra-prima, “Frutificar”, de 1979. Deste mesmo trabalho, mais uma maravilha instrumental na sequência: “Pororocas”, jazz-baião em que todos se esmeram, principalmente o virtuose Armandinho no bandolim, do qual ele extrai timbres de guitarra elétrica. Das cantadas, que contagiaram a plateia, ainda veio o lindo xote “Semente do Amor”, na voz de Mu (“Sim, é como a flor/ De água e ar luz e calor/ O amor precisa para viver/ De emoção, e de alegria/ E tem que regar todo dia...”), e “Beleza Pura”, do baiano e padrinho Caetano Veloso (autor do nome da banda e que lhes presenteou a música, um sucesso em 1979), que o conterrâneo Armandinho entoou.

De fato, a proximidade e o carinho que a música d’A Cor do Som tem para como os gaúchos é muito grande. Outra do mano Caetano encomendada a eles é uma que tem a cara de Porto Alegre. Aliás: é inspirada num dos bairros mais queridos da cidade, “Menino Deus”. A letra, de uma beleza incrível, claro, emocionou os que lá estavam a ouvindo na voz de Dadi: “Menino Deus, um corpo azul-dourado/ Um porto alegre é bem mais que um seguro/ Na rota das nossas viagens no escuro/ Menino Deus, quando tua luz se acenda/ A minha voz comporá tua lenda.”

Armandinho é ovacionado enquanto
sola no meio da plateia.
Vinham também sempre as instrumentais, que deixavam a plateia mais contemplativa e menos dançante, pois boquiaberta com tamanha destreza dos músicos e beleza musical. Caso de “Ticaricuriquetô”, de Armandinho, um misto de heavy-metal, frevo e rock progressivo em que o guitarrista arrasa com a pequena guitarra baiana. Dadi, Mu, Ary e Gustavo não ficam para trás nos solos, tanto quanto nas difíceis bases que as melodias exigem, remetendo muitas vezes à complexidade harmônica do jazz fusion de uma Weather Report ou Pat Matheny Group. Nessa linha, a talvez mais impressionante de toda a apresentação foi a clássica “Frutificar”, faixa-título do álbum de 1979 e de autoria de Mu. É ele quem a inicia com uma abertura quase erudita de alguns minutos conjugando piano e teclado elétrico. O baixo e a bateria entram de leve. É quando Ary, mais atrás no palco, ao lado da bateria, posiciona os bongôs à frente, pareando com o teclado e com Armandinho, que está ao centro. Ao comando do teclado, que intensifica o compasso, o percussionista deslancha uma intensa percussão típica africana, e aí quem entra é Armandinho. Cruzes! Num clima de trilha sonora de thriller de ação dos anos 70, os cinco se esbaldam nos improvisos e o tema vai num crescendo de emotividade até ganhar formas épicas. Um tema gigante.

Seguiram-se outras das melodiosas e cantaroláveis, como o reggae “Zero” e mais um hit: “Zanzibar”, em que Armandinho puxou a galera pra cantar e dançar. Houve o momento em que, durante o solo, o guitarrista, lá pelo meio do número, desce do palco e percorre os corredores da plateia. Solando! E solando MUITO bem! Fazia com a maior naturalidade o que muito guitarrista, mesmo totalmente parado e concentrado, não teria a mínima capacidade. Um monstro do instrumento. Para fechar, “Swingue Menina” pós todo o teatro pra se embalar ao som do reggae. O bis teve mais uma peça de pura habilidade e a gostosa “Dentro de Minha Cabeça”, em que Ary largou a percussão para assumir o microfone e cantar: “Dentro da minha cabeça/ Tenho um pensamento só/ Sei que não tenho juízo/ Dentro da minha cabeça/ Eu só quero amor/ Amor, amor...”. Detalhe: Ary dedicou-a a uma “amiga” das antigas que estava na plateia, a qual congelou tamanha a surpresa.

Juntamente com a saudosa Black Rio, A Cor do Som é certamente a grande banda de jazz brasileiro moderna. Porém, diferente dos autores de “Maria Fumaça”, cujas atividades se encerraram após perderem seu cabeça, Obderdan, já falecido, todos os seus integrantes estão ativos e em plena forma. Então, por que não aproveitar isso em vida, né? Foi essa celebração à vida, à música, às cores dos sons, que A Cor do Som compartilhou com todos nós esta noite. Lá fora podia já estar escuro e chuvoso, mas lá dentro estava colorido e iluminado.






terça-feira, 17 de março de 2015

ARQUIVO DE VIAGEM / Salvador


Banzo de não estar



Faz uma semana que retornei da cidade de São Salvador. Uma viagem em maravilhosa companhia de my love Daniel Rodrigues que ambos desejávamos fazer em período de férias faz muitos anos. Apesar dos sete dias terem se passado, parte de mim permanece lá. E a outra que se deslocou para o RS em estado de banzo.

Muitos diriam, mas por quê? Qual motivo disso?

Antes da viagem tive os mais variados relatos. Amor e ódio permeiam a relação dos visitantes com a cidade. Alguns não toleram ver in loco a miséria, o devaneio e o abandono de alguns cidadãos que vagueiam pela cidade. Outros se defrontam com o medo e o ódio por assaltos ou a permanente insistência dos vendedores ambulantes oferecendo colares, fitinhas, bebidas e drogas. Ainda há os que não conseguem estar senão nas praias que conquistam pela limpeza das águas, a temperatura agradável e a natureza naturalmente bela.

Minha intenção era somente estar lá. Conhecer é claro tudo o que fosse possível no curto espaço de tempo de cinco dias, permeando 500 anos de história, porque Salvador foi a primeira capital brasileira, tendo seu nascimento com a chegada das primeiras naus. Queria ser surpreendida, conquistada e envolvida pelo que até hoje repercute lá. E não falo dos tambores afro-brasileiros, não. Falo de história, de gente e de cultura do viver.

Voltei de lá com algumas vivências muito transformadoras na bagagem e com a certeza de que lá é um pouco a minha casa. Destaco alguns comentários deste que poderá ser meu lar, algum dia, como dizia Vinícius de Moraes, que viveu lá por seis anos, no bairro de Itapuã: “Meu tempo é quando.”


Largo do Cruzeiro com a Igreja
e Convento de São Francisco de Assis (ao fundo)
Fachada do solar Ferrão que abriga coleções primorosas,
datado do século XVIII foi abrigo de Jesuítas e
Centro Operário da Bahia
Vista das fitinhas da grade da Igreja Nossa Senhora do rosário dos Pretos e
acima o Museu da Bahia e a Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho
Altar de uma das lojas comerciais do Pelô
e o sincretismo histórico da Bahia


Pelourinho: os relatos sobre a marginalidade no Pelô são muitos, e, sim, há certa violência/abandono pairando no ar e na visita dos desavisados, principalmente à noite, mas nada que não haja em outras cidades ou bairros do país. Ficamos hospedados no Hostel Laranjeiras, bem situado no Pelô: vizinho do Olodum, do Museu da Música Brasileira, da antiga fábrica de camisas, da Igreja e Convento São Francisco de Assis, do Largo do Cruzeiro, do Ilê Ayê e do Museu do Ferrão, entremeados por Largos outros, Teresa Batista, Quincas Berro D´Água e Pedro Arcanjo. Perto dali, muitas opções gastronômicas e culturais. Mas estar no Pelô excede essa questão prática do que se ver e degustar. Ali, cenário antigo de atos criminosos contra escravos, maltratados e exibidos publicamente em açoites, hoje se apresenta com uma população residente peculiarmente negra que ocupa com altivez e classe todos os espaços do bairro, senhores da sua história. O Pelô é um local de resistência, cultivo e difusão da cultura e história negra. É principalmente um espaço onde povos de outras nações (franceses, alemães, coreanos e americanos) podem conhecer essa história, deparar-se com pessoas que nos recebem com tamanha amorosidade e que não precisam se autoafirmar como vítimas nem mártires, porque dentro dessa biografia tem-se um estado de ser e estar no mundo.

Os cidadãos do bairro surgem como que emoldurados por uma cortina do tempo de ontem e de hoje. Para percebê-los em meio ao ambiente vivo e intenso, tem que ter calma. Daí surgem artistas, transeuntes, habitantes das ruas, senhores dos santos, verdadeiras entidades que emocionam. Cada qual ao seu jeito, ao seu tempo, ao seu estilo e no seu turno de viver contemporâneo. Nem todos se deixam fotografar, mas parte deles esta aqui nas fotos. Outros ficarão na memória como seres saídos de uma história a que desejo retornar sempre.


Baiana moradora do Pelourinho
Comerciante do Pelourinho
Mestre Ivan do Atelier Percussivo Lua Rasta
no Pelourinho
Artista plástica do Pelourinho


Gatos: a população de felinos impressiona. Lentos mais do que o habitual, porque o calor é intenso em todas as horas do dia, eles observam o ritmo de visitantes do Pelô. Deitados, em busca de comida, em meio a brincadeiras, lá estão misturados entre os turistas, moradores e transeuntes. Não se deixam pegar, mas desfilam e posam para as fotos quando acordados é claro, rsrs. Gregório o mais jovem, encontramos no meio da rua, onde vez em quando passam carros. Ele atrás de um copo de plástico brincava sem medo. Ficamos apreensivos pelo seu porte (menos de um mês de idade) e por estar sozinho, sem a companhia de outros gatos. Mas logo vimos que era “gato safo” ao nos ver correu para a porta de um ateliê em que estava não somente sua residência como sua cuidadora. Ela nos contou sobre a chegada dele e daí ficamos sabendo seu nome. Uma figura – que não andava, mas pulava entre os paralelepípedos do Pelô.






Gregório, o gato mais jovem


Habitantes das ruas: vivem vendendo sua arte, oferendo seus colares/fitinhas ou apenas aguardando um dinheiro para consumo de drogas/afins. Conhecemos um deles, que vive acompanhado da sua cachorra Doidinha. Ele e Doidinha perambulam pelo Pelô oferecendo sua arte em azulejo. Ele as cria na hora, pinta as mãos e rosto por causa da técnica que mistura éter a tinta forte que gruda no azulejo. E quase sempre as comercializa junto aos estrangeiros, devido à insistência com que as oferece. Ficou nosso amigo depois que lhe oferecemos um prato de comida. Na realidade, ele (que não soubemos o nome) nem lembrava qual era a sua relação conosco, mas nunca nos perdeu de vista durante o tempo em que lá estivemos, sempre fazendo referência alegre ao cabelo afro do Daniel e nos chamando de “casal feliz”.

Casal de enamorados nas imediações
da Baixa do Sapateiro


Crianças e Idosos: os menores e mais jovens sempre voando pelo bairro, circulam indo para as escolas públicas ali existentes, os projetos sociais de música ou então brincando ao cair da noite – de bola, de pega-pega, de olhar o celular nas calçadas. Elas disputam o espaço democraticamente com as famílias que sentam na frente das casas e senhores de maior idade que jogam dominó até antes do anoitecer.
Menino subindo o Pelô rodopiando
Senhor nas escadarias do Pelourinho
Ciclista descansando nos bancos da Praça Senhor do Bonfim

Ciclista descansando nos bancos da Praça Senhor do Bonfim.

Perambular: caminhar nas ruas de Salvador é uma alegria. Tudo é sentido na pele: o calor, a proximidade das pessoas, o cheiro, as cores, tudo estimula os sentidos. A cidade ferve, faz muito calor, mas é seco. Por vezes a pressão cai e quase vivenciamos um estado de desmaio, mas logo passa. Um astral eleva o prana e aos poucos deixa você com um ar mais descontraído. As pessoas sorriem, conversam, dançam e cantam sem nenhum motivo aparente. Todos são autênticos. Isso é maravilhoso.


Ruazinha do Pelô
(ao fundo a Biblioteca da Faculdade de Medicina)
Baianas do comércio do Largo do Cruzeiro e imediações/
Pelourinho
Ruazinha do Pelô


Turbantes e Tambores: as baianas e os músicos encantam. Alguns parecem de mentira de tão belos. Por toda a cidade escutam-se sons. Às vezes, misturados como na saída do Elevador Lacerda, formando uma massa nem sempre agradável aos ouvidos, mas com um que de composição livre e coletiva. No Pelô, os tambores tocam cadenciados ao anoitecer, como rezas de santos, levando sua alma além dos telhados, durante o jantar. Noutras vezes, surgem com meninos em grupos aprendizes de timbau. Surpreendem num cortejo de pessoas acompanhando os tamboreiros, que invadem nossos ossos e repercutem cá dentro, chegando a nos fazer chorar de emoção. Descobri dois músicos na loja de Ademar em pleno Terreiro de Jesus, o talentoso Tiganá e o lendário Mateus Aleluia. A música de ambos arrepia e comove. Gosto muito de trazer das viagens sonoridades da região. Eles cantaram para mim, e eu os trouxe juntos. Falam com algo muito profundo da nossa essência negra. Falam com nossos mentores. Iluminam. Pretendo escrever sobre eles, aguardem. Olodum, Filhos de Gandhi, Ilê Ayê e Ballet Folclórico da Bahia vivem no Pelô. No Memorial das Baianas, nos arredores do Pelô, sabe-se da relação do turbante afro com o turbante islâmico. Algumas baianas que circulam pelo bairro, lembram grandes bonecas de santo de tão belas. Outras que circulam pela cidade ostentam seus lenços coloridos amarrados de forma muito particular, comunicando aos entendidos sua origem, sua nação, até seu orixá. Nas ruas do Pelô escuta-se um pouco de cada toque ritmado que ora pode ser uma reza, ora um ritual mas sempre um som que transforma seu estado emocional. Ninguém passa imune às baianas e aos tambores. E a pergunta: Qual seu orixá? Antes mesmo de saber o seu nome.


Loja de instrumentos de percussão
no Largo do Pelô
Turbante feito por Dona Nilzete
do Camafeu de Oxóssi
Grupo Tambores e Cores
do Pelourinho
Baiana e a abençoada água de côco
da Praça Senhor do Bonfim


A Cubana e Ribeira: no calor de Salvador uma das opções irresistíveis de sobremesa é degustar sorvetes. Entre as opções pela cidade duas são imperdíveis: A Cubana (com fábrica no Pelô, mas diversos pontos de venda pela capital) e a Sorveteria da Ribeira, que fica longe do Centro mas te arrebata independente do sabor escolhido. Todo final de tarde, a visita A Cubana do Pelô era pontual. O ambiente lembra as sorveterias antigas em azulejos, mas o que vale mesmo são os sorvetes. Meus prediletos: Menina Bonita (castanha com leite), Mangaba e Tiramissu. Outros igualmente maravilhosos: Cajá, Umbu e Cupuaçu. Ah, sempre duas bolas bem servidas!


Sorvetes A Cubana (Pelourinho) -
cada dia um novo sabor!
Cardápio de opções da sorveteria Ribeira:
difícil é escolher um!


Exu, Amado, Abelardo, Verger e Nosso Senhor do Bonfim: Bem, aqui, o devaneio é total. Admira-se ainda mais o literato e homem de religião, Jorge Amado e sua fiel companheira Zélia Gattai. Extrapola-se a admiração pelo educador e colecionador Abelardo Rodrigues, que expõe no Museu do Ferrão parte de sua Coleção de Arte Sacra que deixa alguns acervos de Minas Gerais para trás dada a seleção primorosa das peças e a abrangência de períodos e artistas. E compreende-se porque o francês mais brasileiro e soteropolitano do mundo, Pierre Verger, fotografou, morou e tornou-se um dos maiores estudiosos e práticos da religião afro. Estando em Salvador, não deixe de ir à Fundação Casa de Jorge Amado, na residência A Casa do Rio Vermelho de Jorge Amado e Zélia Gattai e na Fundação/Galeria Pierre Verger. A Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, que é uma atração distante do Centro, vale por toda a sua história, simbologia sincretista e axé. Lá no alto do morro no bairro do Bonfim ela está soberana. Rodeada de pais de santo que te dão um aconchegante axé, você pode perceber a fusão do candomblé e do catolicismo. Ah, e claro, nas ruas, sempre encontramos com os Exus ou “Esu” (Guardião das aldeias, cidades, casas e do axé, das coisas que são feitas e do comportamento humano) está onde há movimento. Vê-se em estatuetas em lojas, na entrada de centros culturais e em obras públicas antes da roda de Orixás no Dique do Tororó.

(Exu em ferro que guarda a Fundação Casa de Jorge Amado
a pedido do escritor)
(Fachada de uma casa que hoje é um bistrô mas que
foi cenário de personagens de Jorge Amado)
Espaço reservado ao Candomblé e sua relação com o escritor Jorge Amado
na Casa do Rio Vermelho
Detalhe do altar da igreja Nossa Senhora do Bonfim...
... e imagem integrante do acervo do
Memorial das Baianas que reproduz
o dia da lavagem da escadaria da Igreja.

Zélia, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Yemanjá: Zélia foi casada com Jorge Amado e além de escritora também foi fotógrafa. É dela o acervo de quase 30 mil fotografias existente da vida a dois desse casal que mesclou amor, arte e religiosidade. Em breve escreverei um pouco mais sobre ela, porque descobri uma Zélia que não conhecia; aguardem. As Igrejas em Salvador são um capítulo à parte. Visitar a todas tem sua emoção pela antiguidade, pela história e santos sincréticos. A que mais gostei foi a Igreja na base do Largo do Pelourinho: Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Ali acontecem todas as terças-feiras uma missa ecumênica. Ganhei um dos mais gostosos abraços no meio da missa! Uma das senhoras da comunidade desta Igreja e suas amigas/familiares fez questão de me abraçar e desejar as boas-vindas. O abraço dela era quem sabe como o da Mestre Indiana Amma, que é conhecida por esse acolhimento fraterno e gostoso, de abraçar com o coração. Além disso, todo o missal teve atabaques, cantos e até MPB da melhor qualidade: “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Um final de dia inesquecível, que reverenciou também Santo Antônio de Categeró através da distribuição dos pãezinhos como aqui em Porto Alegre, acontece na Igreja Pão dos Pobres. Yemanjá, a mãe de todos os orixás, como diz a Mãe de Santo Stela de Oxóssi, é a senhora de Salvador. Ela está onipresente em todos os recantos. No bairro dela, Rio Vermelho, local historicamente indígena onde desembarcou o então Caramuru, ela está presente no Largo das Mariquitas, nas embarcações beira-mar, no mar, nas imagens ou nas peças decorativas das lojas do bairro. Rio Vermelho é também o bairro mais boêmio, aquele bairro de galera, da noite cool. Yemanjá é saudada em todos os lugares de Salvador, às vezes de maneira criativa, como neste ponto comercial em pleno Pelô: Ye-Manjar, pode?

Entrada da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Jardim da Casa do Rio Vermelho onde estão as cinzas dos
escritores Jorge Amado e Zélia Gattai
Praia das Mariquitas
Missa ecumênica na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Oferendas (pãezinhos) oferecidos após a Missa
Comércio do Pelourinho


Mercado Modelo e Gastronomia: Os mercados públicos das capitais brasileiras são sempre um espaço único. Estar ali é meio que reunir o que de popular existe naquele local. Então guias, santos, axés, produtos baianos dos mais variados estão à disposição do visitante. O que se pode levar em quantidade são as pulseirinhas do Bonfim, as cocadas, as pimentas e os enfeites (colares, balagandãs, tecidos entre outros). Ali está um ponto gastronômico importante da cidade: os restaurantes conjugados: Maria de São Pedro (de 1925, com mais de 80 anos de existência e mantido pelos filhos de Dona Maria 100% baiano) e o angolano Camafeu de Oxóssi. Optamos por almoçar duas vezes no Camafeu de Oxóssi, por sua variedade de pratos e por Dona Nilzete, que nos atendeu com sua simpatia, amorosidade e alegria. Ali degustamos o melhor pastel de camarão da cidade, os melhores bolinhos de bacalhau, uma carne seca de primeira acompanhada de farofa de dendê, macaxeira e feijão fradinho. Foi lá que ganhei meu primeiro turbante feito carinhosamente por Dona Nilzete, que me deu várias dicas de como amarrá-lo. No Mercado Modelo fizemos amizade com Deco, administrador da loja Encontro com as Águas, que comercializa objetos lindos, e nos deu dicas dos passeios as ilhas mais próximas de Salvador. Com ele adquiri a guia dos Filhos de Gandhi para quem sabe num carnaval futuro, desfilar, na ala Filhas de Gandhi!

Loja Encontro das Águas - Mercado Modelo
Balagandâ (utilizado na cintura para os dias de festa pelas escravas e,
segundo os comerciantes do Mercado Modelo, ao completar todos os pingentes
recebia alforria
Comerciante do restaurante Maria de São Pedro/
Mercado Modelo com vestimenta típica
Sob as lojas do Mercado
os guardiões e os axés

Ilhas, Praias e o Mar: Ir a Salvador e não estar navegando, a beira-mar ou dentro d´água, é o mesmo que não ter ido até lá. O mar e suas belezas mais próximas do litoral soteropolitano encantam. O canto das águas nos chama a passear. Fomos então a Ilha dos Frades, Ilha de Itaparica e praias da capital, um pouco mais afastada o Farol de Itapuã. O que dizer se lá somente se pode ver, sentir e navegar? O mais apropriado é vá e conheça. O acesso é fácil, mas precisa de pelo menos um dia e meio para aproveitar um pouco.

Leme da embarcaçõa para as ilhas
Vista da Ilha dos Frades
Pesca no Farol de Itapuã
Final de tarde na orla entre as praias da Paciência e Ondina
Guardo comigo todas as imagens, todos os sabores, todas as cores, todos os cheiros, todos sons, toda atmosfera que Salvador gentilmente nos deu. Guardo o olhar direto e afetivo de seu povo. Guardo ainda aquela descontração de quem está ali essencialmente vivendo. De quem sabe o que é valoroso na vida. O que não podemos esquecer diariamente de cuidar: da integração entre corpo e mente. Da ampliação de estarmos aqui vivendo em comunhão com tudo o que nos faz sentirmos vivos. Da simplicidade de termos nossa historia, nossa fé e nossas cores, dentro e fora. De acreditar que tudo está em sintonia. De que nem tudo está dito, mas sentido. De que há muitas coisas que estão vivas entre a nossa percepção humana que não dependem do racional, mas somente do coração. Assim levo Salvador comigo. A partir de hoje, sempre, cá dentro ritmado com meu tambor cardíaco, colorido como minhas cores e vivo na historia que guarda a minha e muito de nós todos, brasileiros.

Turbante feito por Dona Luzia do Memorial das Baianas
Nas aldeias africanas situadas no Brasil quando se falava em “banzo”, a maior referência era ao sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população escravizada. A prática do banzo era uma forma de protesto caracterizado como uma greve de fome, um protesto muito sentido. Também eram comuns, como forma de resistência na época, o suicídio, o aborto, o infanticídio, as fugas individuais e coletivas e a formação de quilombos. Atualmente, nos estados da região Norte do Brasil, “banzo” também é usado de forma irônica para designar uma melancolia injustificada, sinônimo de choramingo. Deixo aqui meu choramingo verdadeiro e pontual de banzo por não mais estar lá, mas com muita vontade de voltar e, quem sabe, permanecer lá por mais tempo. Tempo suficiente de conhecer o que não foi possível, de aprofundar esses laços que mantenho bem fortemente atados em meu ser. Como diz o encantado Gil e a quem uso os versos emprestados: “Eu vim da Bahia, mas eu volto pra lá! Eu vim da Bahia mas algum dia eu volto pra lá.” Que os orixás me deixem retornar, estendendo sua licença ao entrar em terras tão fortemente iluminadas: Mojubá agô! Que assim seja.





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