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segunda-feira, 2 de abril de 2018

"Tropicália" ou "Panis et Circencis" - vários (1968)


O Descobrimento do Brasil

“Eu organizo o movimento/ 
Eu oriento o carnaval/ 
Eu inauguro o monumento/
No planalto central do país.”
Versos da canção “Tropicália”, de Caetano Veloso

“SEQUÊNCIA 5 – CENA 9
INTERIOR, NOITE EXTERIOR, DIA, ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAN E OS MUTANTES. FRENTE AO MICROFONE. OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO. 
TODOS – As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.
CORTA.”
Trecho do texto do encarte original de “Tropicália”

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.“ 
Trecho do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, 1928.


A filosofia antropofágica que o modernista Oswald de Andrade concebeu em finais dos anos 20 traz no cerne uma revolução conceitual cuja difícil assimilação perdura ainda nos dias de hoje. Como criar uma arte brasileira e original ao deglutir, temperado com os sabores tropicais, aquilo que vem de fora? Oswald converteu o ato de canibalismo ameríndio do colonizador numa metáfora de combate ideológico. Noutras palavras, devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer a própria cultura e, assim, recriá-la.

Desafiador, por óbvio. Afinal, isso significa, antes de saber identificar o que é de fora, entender o que pertence a si próprio. Complicado de concretizar, ainda mais em terras tupiniquins historicamente subjugadas e inferiorizadas. Houve quem topasse a briga, contudo. E não foi um alguém, mas um grupo. Em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil, filhos da santa Bahia imortal e seguidores da bossa-nova de João Gilberto, organizaram o movimento e orientaram o carnaval. Sob a égide das ideias oswaldianas, criaram aquilo que pertinentemente se chamou de “Tropicália”, disco e movimento, que estão completando celebráveis 50 anos. Vestidos de parangolés por dentro e por fora, eles, mais os representantes da Paulicéia Desvairada Mutantes e Rogério Duprat, os conterrâneos baianos Gal CostaTom Zé, a carioca Nara Leão o os poetas tão nordestinos quanto universais Torquato Neto e Capinan, fizeram aquilo que o continental, desigual e rico Brasil moderno ensejava: estabelecer uma verdadeira ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura, o bom e o mau gosto. Vicente Celestino dialogava, sim, com rock britânico, e Carmen Miranda não ficava abaixo da avant-garde. O mesmo para com Luiz Gonzaga em relação à Disney, ou os sambistas do morro à linhagem clássica do Velho Mundo. Tudo junto e misturado. Era mais que um desejo: era uma necessidade.

Caetano e Gil à época do Tropicalismo, as duas principais
cabeças do movimento
De fato, a conturbação sociológica a que os anos 50 e 60 se acometiam não era pouca: Guerra do Vietnã, ameaça de desastre atômico, ascensão das ditaduras nas Américas, Crise dos Mísseis, assassinato de Kennedy, corrida espacial, revolução sexual. No Brasil, se a bossa-nova, a arquitetura de Niemeyer e o Cinema Novo colocavam o País no mapa mundial da produção intelectual – para além apenas da habilidade física de um futebol já bicampeão mundial àqueles idos –, os primeiros anos de Ditadura Militar anunciavam tempos cada vez mais sombrios de censura, perseguições, prisões, vigília, cerceamento e exílio – como acabaria por ocorrer com Caetano e Gil menos de dois anos dali. Os festivais espocavam de euforia e tensão. A cultura de massa começava a fermentar nas telas da tevê. Roberto Carlos, Elis Regina e Wilson Simonal movem multidões. Ao mesmo tempo, pairava no ar um clima de inquietação, medo e incertezas. E a antropofagia cultural caía como uma luva para compreender essa louca realidade brasileira.

“Tropicália” mostrava-se, então, como um acidente inevitável. Não tinha mais como fugir: era ir adiante sem lenço e sem documento enquanto o seu lobo não vinha."Tupi or not tupi", era essa a questão. Os acordes de órgão em clima litúrgico abrem o disco dando uma noção da complexidade que seguirá até o seu término. A missa pagã irá começar! É o início de “Miserere Nobis”, cuja letra de Capinan guarda em seu latim ecumênico ideias revolucionárias de igualdade social (“Tomara que um dia de um dia seja/ Que seja de linho a toalha da mesa/ Tomara que um dia de um dia não/ Na mesa da gente tem banana e feijão”) e de resistência (“Já não somos como na chegada/ O sol já é claro nas águas quietas do mangue/ Derramemos vinho no linho da mesa/ Molhada de vinho e manchada de sangue”).

A influência do rock psicodélico da época está totalmente presente, como na colegam das faixas, igual ao então recente e já referencial “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”. Mal “Miserere...” anuncia seu término, já começam a se ouvir estrondos intermitentes. É a percussão martelada de “Coração Materno”, a superversão do seresteiro Vicente Celestino pela ótica tropicalista. Inspirando-se na veia sinfônica dos Beatles (“She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby”, entre outras), mas superando-os em conceito, a música evoca a orquestração carregada de Duprat e o canto emotivo de Caetano para dramatizar (ainda mais!) a canção escrita nos anos 30, redimensionando seu caráter operístico. Novamente, a dialética clássico versus popular. Ao mesmo tempo, a nova leitura moderniza o antigo original, cuja certa breguice esconde um ar tragicômico, dando-lhe um caráter de seriedade que o faz parecer... ainda mais tragicômica! Fina ironia.

É a vez, então, dos Mutantes aparecerem pela primeira vez com “Panis et Circencis”, um dos hinos do movimento e tão importante no repertório que subtitula o projeto. A produção impecável e ousada de Manuel Berenbein põe os acordes do Repórter Esso – noticiário de radio e telejornalismo símbolo da cultura de massa daquele Brasil – antecipando a exótica melodia que vem a seguir, misto de balada medieval com cantata italiana. A letra faz aberta crítica às “pessoas da sala de jantar”, a burguesia alienada apenas “ocupada em nascer e morrer”. Metalinguística, lá pela metade da faixa, o coro de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias é emulado como se o tape tivesse sido desligado. Um segundo momento na música traz solos de flauta e corneta e repetições de versos enquanto o andamento acelera para, em nova interrupção, entrar a ambiência de uma sala de jantar com pessoas à mesa, quando, enfim, tudo acaba sendo engolido de vez por um som agudo. Só no terceiro final, aí que a música acaba realmente. Como numa edição de um filme de Glauber Rocha ou um quadro de Hélio Oiticica, a fragmentação e a descontinuidade que traduziam os tempos confusos de então.

Nunca se vira nada igual na música brasileira (e nem mundial) até então.

Fragmentação na edição de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, de 1967

Eis que dá a impressão de que tamanha subversão parece ser superada com “Lindoneia”, um bolero classicamente orquestrado e com a doce voz de Nara, símbolo da bossa-nova e do “bom gosto” consensual na música brasileira. Ledo engano. Inspirada numa tela do artista visual Robens Gerchman – aliás, autor da arte da capa do disco –, “Lindoneia” remonta a história de depressão de uma linda modelo que, diante da hipocrisia asfixiante da sociedade moderna, se suicida. “Despedaçados, atropelados/ Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”. São as imagens que as retinas da jovem não conseguem parar de enxergar até que, fatalmente: “No avesso do espelho/ Mas desaparecida/ Ela aparece na fotografia/ Do outro lado da vida”. Sem precisar das famigeradas guitarras elétricas, combatidas pelos conservadores da MPB àqueles idos, a música é tão impactante e provocativa quanto o restante.

Na linha do que pautaria toda sua obra, “Parque Industrial”, de Tom Zé – que ainda gravaria o primeiro disco solo naquele ano –, é outra obra-prima de “Tropicália”. A sonoridade de bandinha marcial, como se celebrasse ignorantemente a industrialização do sentimento humano, é típica da ironia do baiano de Irará. Ele critica num só tempo as indústrias do entretenimento, dos bens de consumo e da comunicação, sem deixar de dar uns tapas na Igreja Católica: “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção”. E o refrão diz, impiedoso: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil”.

O baião-exaltação “Geleia Geral” tem na poesia de Torquato e na brilhante melodia de Gil outro hino tropicalista, quase um ideário ali condensado. “Um poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia/ Resplendente, cadente, fagueira/ Num calor girassol com alegria/ Na geleia geral brasileira/ Que o jornal do Brasil anuncia”. A letra carrega a complexidade cultural que a Tropicália descobria, como que tirando um véu das escondidas “relíquias do Brasil”:“Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra/ Maracujá, mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil/ Três destaques da Portela/ Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade/ Hospitaleira amizade/ Brutalidade, jardim.” Brasilianista, carrega em seus versos Macunaíma, Sérgio Buarque de Hollanda, cultura de massa, diáspora africana, arte popular, folclore. Uma das mais belas letras do cancioneiro nacional.

Instalação "Tropicália", de Oiticica,
de 1966, antecipando o movimento
Se a referencial bossa-nova carioca permeia toda a obra, como no sucesso “Baby” – aqui, na sua versão mais clássica – e "Enquanto seu Lobo Não Vem", genial em sua construção em contrapontos, o igualmente basal baião nordestino sustenta a dissonante "Mamãe, Coragem", outra joia da parceria Caetano/Torquato (“Mamãe, mamãe não chore/ Não chore nunca mais, não adianta/ Eu tenho um beijo preso na garganta/ Eu tenho um jeito de quem não se espanta”) cuja interpretação de Gal é irretocável. Novamente, um final abrupto que, junto de todos os outros elementos sonoros e simbólicos, dá feições não apenas musicais, mas também visuais e antropológicas à proposta tropicalista.

A poesia concretista-visual da
letra de"Bat Macumba"
O passeio pela cultura brasileira está presente ainda na farra “Bat Macumba”, de letra claramente sintonizada com o concretismo de um dos padrinhos do movimento, Augusto de Campos, e cujo arranjo mistura os batuques de terreiro com as guitarras distorcidas do rock; na releitura histórico-musical de “Três Caravelas”; e na faixa que encerra apoteoticamente o álbum, "Hino ao Senhor do Bonfim", que se indica uma afirmação “baianística” dos seus mentores, também funciona como um interessante contraponto à música de abertura, “Miserere Nobis”: primeiro, a súplica e, depois, a elevação.

Caetano, Gil e a turma tropicalista já eram artistas populares tanto por suas obras musicais quanto pelas participações ativas em teatro, tevê e cinema. Mas é a partir desse projeto coletivo muito bem concebido e acabado que eles engendram uma revolução não somente em suas obras e carreiras, mas na cultura nacional. Nunca mais o Brasil foi o mesmo. Nunca mais o Brasil se viu da mesma forma. BRock, Black Rio, Lambada, Axé Music, Pagode, Mangue Beat: tudo teve (e seguirá tendo) o visto do Tropicalismo.

A pretensão modernista ainda hoje é digerida pelos dentes do Tropicalismo. Mesmo tão influente que foi e é, ainda lhe restam pedaços mal comidos sobre o prato – basta ver, hoje, o abismo que há entre Anitta e Criolo, dois influenciados. Por querer ou não, o movimento abriu caminho para a proposição de uma verdadeira identidade nacional, uma expressão brasileira salvadora. A Tropicália, em sua assimilação da antropofagia, fez o contrário dos inocentes índios quando os europeus lhes compravam com meros espelhos: dessa vez, foi o nativo quem apresentou o espelho para o forasteiro e lhe disse: “Olha só como eu sou”.

O Tropicalismo pôs o Brasil sobre um palco iluminado pelo sol dos trópicos e ornamentado com frutas e vegetação – com direito a mulatas rebolando e declamações de poesia ufanista. Sugeriu que o Brasil enxergasse a si próprio, que se lhe percorresse as matas, os sertões,os  mangues, as praias e os morros. Conhecesse por dentro suas mansões, malocas, palafitas e ocas. Considerou admitir-se complexo, pois mestiço e pluricultural. Levantou a esperança da realização da alternativa alegre e sábia diante dos outros povos do mundo. “A alegria é a prova dos nove”, como já preconizava o Manifesto Antropofágico.

 Se “o Brazyl não conhece o Brasil”, pois “nunca foi ao Brazil”, como disse certa vez Tom Jobim, a Tropicália propôs uma ruptura emancipadora a estes tristes trópicos. Ir a seu próprio encontro, mas não ao vento de caravelas, e sim, de expresso. De número 2222. No embalo do ritmo alucinante da modernidade para forjar o renascimento de uma nação. Como um (re)descobrimento do Brasil.

FAIXAS
1. "Miserere Nóbis" (Capinam, Gilberto Gil) – com Gilberto Gil - 3:44
2. "Coração Materno" (Vicente Celestino) – com Caetano Veloso - 4:17
3. "Panis et Circencis" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) - Os Mutantes - 3:35
4. "Lindoneia" (Caetano Veloso) – com Nara Leão - 2:14
5. "Parque Industrial" (Tom Zé) – com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e Tom Zé - 3:16
6. "Geleia Geral" (Gilberto Gil, Torquato Neto) – com Gilberto Gil - 3:42
7. "Baby" (Caetano Veloso) – com Gal Costa e Caetano Veloso - 3:31
8. "Três Caravelas (Las Tres Carabelas)" (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) - Caetano Veloso e Gilberto Gil - 3:06
9. "Enquanto seu Lobo Não Vem" (Caetano Veloso) - com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee - 2:31
10. "Mamãe, Coragem" (Caetano Veloso, Torquato Neto) – com Gal Costa - 2:30
11. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) – com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 2:33
12. "Hino ao Senhor do Bonfim" (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 3:39

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OUÇA O DISCO
Vários - "Tropicália"

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Gal Costa - "Recanto" (2012)

Canto. Cantar. Recanto. Recantar

Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi à toa: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um 9 Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heróico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos , agora é o jovem Kassim que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com “Lindoneia”, do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete cantar, Nara Leão).
Venho notando certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois os que elogiaram não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).
O fato é que gostei por demais de “Recanto”. Outro dia, em conversa com outro colaborador deste blog, meu primo Lúcio Agacê, ele me ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha conseguindo produzir se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é um cara que está sempre se renovando. Concordo se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90. Mas tropicalista é tropicalista. Se compararmos àqueles primeiros idos dela, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a Gal daquela época - mesmo com 40 anos de atraso.
Num ano de um ótimo Chico Buarque novo, de um surpreendente Criolo e de um elogiado Lenine, 2012 começa também com uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.

vídeo de "Recanto Escuro", Gal Costa



Ouça o disco:
Gal Costa Recanto

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Gal Costa - "Recanto" (2012)



Cantar, Recantar

“Quando eu subo no palco,
com esse som, os músicos, o repertório,
 com tudo que ele representa pra mim e pras pessoas,
é uma emoção muito forte.
É como uma entidade que me toma, me arrebata. É o meu momento e também
é meu encontro com Caetano,
que sempre gera alguma coisa forte, big-bang.
Gal Costa




Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi em vão: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.

As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico e texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!

O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um Nine Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.

Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.

As referências ao período heroico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos, agora é o jovem Kassin (ao lado da banda escolhida por Caetano: Pedro Baby, guitarras, e Domenico, bateria e eletrônicos,) que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com "Lindoneia", do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete, Nara Leão).

À época do lançamento, notou-se certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois até mesmo os que elogiaram, acostumados a criticá-lo sem fundamento, não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).

O fato é que “Recanto” é demais. Certa vez, outro colaborador deste blog, Lúcio Agacê, ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha produzindo se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é alguém que está sempre se renovando. Se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90, isso é plenamente verdade. Mas tropicalista é tropicalista. E se compará-la àqueles seus primeiros idos, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a daquela época - mesmo com quase 40 anos de atraso.

Num ano de 2012 que teve um ótimo Chico Buarque, um surpreendente Criolo e um elogiado Lenine, também houve uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.


"Recanto Escuro" - Gal Costa

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FAIXAS:

1. Recanto Escuro - 3:51
2. Cara do Mundo - 2:52
3. Autotune Autoerótico - 3:40
4. Tudo Dói - 2:41
5. Neguinho - 5:35
6. O Menino - 4:28
7. Madre Deus - 3:35
8. Mansidão - 3:32
9. Sexo e Dinheiro - 3:40
10. Miami Maculelê - 4:06
11. Segunda - 3:49
todas as composições de Caetano Veloso
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Baixe e ouça:



segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Caetano Veloso & Gilberto Gil – “Dois Amigos, Um Século de Música” – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (28/08/2015)





Caetano e Gil, pura genialidade.
foto: Júlio Cordeiro
“Gil é um rouxinol de grandes mistérios”.
Caetano Veloso


“Eu faço música primeiro pra mim,
depois pra ele e depois pros outros”.
Gilberto Gil,
sobre Caetano



Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida. Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na doce e astral companhia das hermanas Leocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos; a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um marco só por sua realização.

Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos. Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014 (Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993, a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.

E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock ‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70, na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show – aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à época), em 1966: “Coração Vagabundo”.

Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil, magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/ Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”

Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.

Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show, eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher, como dizem os versos, “as camélias da Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de boicote do ex-Pink FloydRoger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo do Leblon/ Brandir.”

Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez. Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”, talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com seus traços árabes e folks. Enquanto Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola, o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral de Gil. De arrepiar.

Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos tão próximos dos irmãos portenhos.

Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova “Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção. Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus, começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga a voz e é aplaudido.

Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia. Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”, do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com “Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto. 

Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis. Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso 2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.

Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô Menino” é a única do set-list composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil. Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/ Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).

O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro

Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando Caetano, o “silêncio sorridente de Porto Alegre” de quem não quer admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel (muitos pensaram alarmados: “Nossa, um estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista” de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este (que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre não faz jus à sentença de que a “verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”.

De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas, como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos, na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.

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Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015






quinta-feira, 30 de junho de 2022

Gil 80 Anos - As 80 músicas preferidas pelos fãs


E ele chegou aos 80. Tomado de significados, o aniversário de Gilberto Gil está sendo uma celebração nacional. Por vários motivos: ele é a nossa arte maior, o nosso orgulho enquanto povo, a representação da nossa raça, da nossa sapiência espiritual, da nossa resistência política e cidadã. O Brasil que deu (que pode dar) certo. No Clyblog, basta fazer uma breve pesquisa pelo nome deste artista que se encontrarão diversas referências, talvez a de maior volume nestes quase 14 anos de blog.

Tanto é que nós, como se parentes ou súditos muito próximos, haja vista que sua arte perfaz nossas vidas desde crianças, aqui estamos reunidos para celebrar os 80 anos deste baiano que quis falar com Deus e conseguiu. Gentes de diferentes idades, estados, profissões, mas impregnados da mesma admiração pela vasta, vastíssima obra de Gil, um autor, assim como o mano Caetano Veloso – o próximo oitentão da turma – capaz de produzir misteriosamente com uma qualidade superior por décadas a fio praticamente sem quebras neste alto padrão artístico.

O “nós” a quem me refiro, claro, inclui-me, mas vai além disso. Somos oito seguidores da egrégora Gil das áreas do jornalismo, da arquitetura, da biblioteconomia, da arquitetura, da produção cultural e outros e, claro, da própria música. O talentoso músico paulista Mauricio Pereira, que já versou Gil n’Os Mulheres Negras, é um dos que generosamente colaboram conosco elencando suas preferidas. Como ele, tivemos a árdua tarefa de escolher cada um 10 músicas, chegando, devota e festivamente, à soma de 80, igual a suas primaveras completas no último 26 de junho.

Creio que, daqui a 2 anos, quando Chico Buarque completar esta mesma idade (o que todos esperamos), talvez haja comoção parecida. Mas somente parecida. Gil guarda particularidades junto ao coração das pessoas que somente ele é capaz de provocar. Tanto que não foi assim quando Roberto chegou ao time dos oitentões, nem com ErasmoTom Zé, FloraHermeto, Donato e nenhum outro da música brasileira que já tenha rompido a barreira das oito décadas. Além de recentemente sentar-se na cadeira da eternidade da Academia Brasileira de Letras, ratificando o que construiu ao longo de 60 anos de carreira, a própria imortalidade, este aniversário de Gil é um aniversário de todos: dos fãs, dos brasileiros, da América preta e mestiça, da África diáspora, da cultura latino-americana, da arte universal. De nós.

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Kaká Reis

produtora cultural
(Rio de Janeiro/RJ)

"Gil sempre fez parte da minha vida. Meus dois irmãos (autores desse blog), mais especificamente Daniel, sempre trouxeram suas melodias e letras para perto e realmente conquistaram meus ouvidos a ponto de 'Tropicália 2' ser, com ainda uns 7 anos de idade, meu disco favorito. Um ancestral vivo, ativo, criativo, que eu posso ver com meus olhos, ouvir com os ouvidos e sentir com a alma… assim é Gil. Um griot da sabedoria!”

1. "Super-homem, a Canção" ("Realce", 1979)
2. "Haiti" (com Caetano Veloso, "Tropicália 2", com Caetano Veloso, 1993)
3. "Domingo no Parque" ("Gilberto Gil", 1968)
4. "Abre o Olho" ("Gilbert0 Gil Ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca", 1974)
5. "Refazenda" ("Refazenda", 1975)
6. "Sarará Miolo" ("Realce", 1979)
7. "Quanta" ("Quanta", 1997)
8. "Parabolicamara" ("Parabolicamará", 1992)
9. "Nos Barracos da Cidade" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
10. "Drão" ("Um Banda Um", 1982)


Leocádia Costa

publicitária, produtora cultural e locutora
(Porto Alegre/RS)

"Escolher 10 canções na imensa e maravilhosa discografia de Gilberto Gil, Ave, é desesperador. Quando recebi o convite de participar dessa homenagem por ser uma fã dele e da sua expressão, precisei estabelecer algum critério para escolher 10 canções. Gostar, gosto de praticamente tudo o que ele canta, então esse não seria um critério adequado. Depois, pensei naquelas canções que me tiram do chão, me fazem vibrar em espirais que só ele produz. A missão de escolher ficou ainda mais complexa, porque algumas canções de Gil dizem o que meu coração gostaria de dizer, ou aquilo que minha cabeça pensaria, ainda coloca na minha boca a indignação ou a descoberta mais sensível dos inúmeros graus da Espiritualidade que ele percorre. Então, descartei esse critério também. Daí me dei conta que boa parte das iniciais 33 canções que eu havia escolhido se dividiam entre canções que estão eternizadas na voz do Gil e outras que eu escuto na voz dos seus intérpretes sendo praticamente deles (Cássia Eller, "Queremos Saber"; Rita Lee, "Panis et Circenses", João Donato, "Bananeira"; Dominguinhos, "Só quero um xodó"; Elis Regina, "Rebento"; e Cazuza, "Um trem pras estrelas", só para citar algumas, sendo impossível nominar as composições de Gil e Caetano que me nutrem a alma). Então, cheguei ao critério que me fez melhorar um pouco a seleção para chegar nas 10 escolhidas: destacaria somente aquelas canções que, para mim, são ouvidas na voz do compositor e que me marcaram profundamente e aí estão elas!"

1. "Lamento Sertanejo" ("Refazenda", 1975, com Dominguinhos)
2. "Sitio do Pica-Pau Amarelo" (Trilha sonora "Sítio do Pica-Pau Amarelo", 1977)
3. "Filhos de Gandhi" ("Gil & Jorge" ou "Xangô/Ogum", 1974, com Jorge Ben)
4. "Drão"
5. "Tempo Rei" ("Raça Humana", 1984)
6. "Vamos Fugir" ("Raça Humana", 1984, com Liminha)
7. "Domingo no Parque"
8. "Zumbi (A Felicidade Guerreira)" (Trilha sonora "Quilombo", 1985, com Wally Salomão)
9. "Aquele Abraço" ("Gilberto Gil", 1969)
10. "São João, Xangô Menino" ("Gilberto Gil ao vivo em Montreux", 1978, com Caetano Veloso)




Tatiana Viana

assessora de planejamento da Secretaria da Cultura de Viamão
(Viamão/RS)

"Acho que ele tem lugar garantido no coração, em algum lugar da memória afetiva de todo brasileiro, uma obra ampla, maravilhosa, que fala dos dilemas humanos, de amores e sofrimentos da vida de um modo geral, a desigualdade social, cultura. Gil é um pouco de cada um de nós e nós carregamos um pouco dele em nossas vidas."

1. "Emoriô" (por João Donato, "Lugar Comum", 1975, com Donato)
2. "Extra" ("Extra", 1983)
3. "Nos Barracos da Cidade"
4. "Tempo Rei" 
5. "Esotérico" ("Um Banda Um", 1982)
6. "Drão"
7. "Andar com Fé" ("Um Banda Um", 1982)
8. "Parabolicamará"
9. "Buda Nagô" ("Parabolicamará", 1992)
10. "Metáfora" ("Um Banda Um", 1982)




Maria Joana Lessa

jornalista
(Rio de Janeiro/RJ)

“Eu acho que Gil é um orixá vivo”.

1. "Extra"
2. "Afoxé É" ("Um Banda Um", 1982)
3. "Abre o Olho"
4. "Sarará Miolo"
5. "Refazenda"
6. "Back in Bahia" ("Expresso 2222", 1972)
7. "Domingo no Parque"
8. "Filhos de Gandhi" 
9. "Babá Alapalá" ("Refavela", 1977)
10. "São João, Xangô Menino"




Clayton Reis

arquiteto, cartunista e blogueiro
(Rio de Janeiro/RJ)

"Tarefa dificílima! Sempre me ocupei meramente em apreciar e nunca em elencar minhas preferidas. Numa obra tão linda, nunca me preocupei em saber se eu gostava mais dessa ou daquela. Enfim, aí estão as 'do momento'. Talvez depois me arrependa e pense em alguma injustiçada que não entrou. Mas por agora,  minhas 10 são  essas aí..."

1. "Drão"
2. "Febril" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
3. "Domingo no Parque"
4. "Refazenda"
5. "Roque Santeiro (O Rock)" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
6. "Raça Humana" ("Raça Humana", 1984)
7. "Ela" ("Refazenda", 1975)
8. "Back in Bahia"
9. "Parabolicamará"
10. "Lamento Sertanejo" 




Luciana Danielli

bibliotecária
(Niterói/RJ)

"Gil, baluarte da música brasileira e o maior ministro da cultura que o Brasil já teve! Grande artista!!!! Parabéns Gil! Feliz 80!"

1. "Marginália II" ("Gilberto Gil", 1968, com Torquato Neto)
2. "Refazenda"
3. "Tempo Rei"
4. "Aquele Abraço" 
5. "Toda Menina Baiana" ("Realce", 1979)
6. "Domingo no Parque"
7. "Expresso 2222" ("Expresso 2222", 1972)
8. "Lamento Sertanejo"
9. "Refavela" ("Refavela", 1977)
10. "Pela Internet"  ("Quanta", 1997)




Daniel Rodrigues

jornalista, escritor, radialista e blogueiro
(Porto Alegre/RS)

"'Gil engendra em Gil rouxinol', cantou Caetano usando as palavras do poeta Souzândrade para falar de Gilberto Gil. A obra de Gil é gigante em vários sentidos, por isso, misteriosa. Inclusive no assombroso volume de canções da primeira linha da música mundial. E quantas que eu adoro tiveram que ficar de fora da minha lista! 'Aqui e Agora', 'O Oco do Mundo', 'Haiti', 'Febril', 'Rock Santeiro (O Rock)', 'Beira-Mar', 'A Balada do Lado sem Luz'... Apenas 10 é pouco para representá-la e representá-lo, mas creio que, sim, muito bem representadas quando junto às 10 de todos nós. Viva Gil!! Axé!"

1. "Filhos de Gandhi"
2. "Lamento Sertanejo"
3. "Back in Bahia" 
4. "Drão" 
5. "Cores Vivas" ("A Gente Precisa Ver o Luar", 1981) 
6. "Domingo no Parque"
7. "Palco" ("A Gente Precisa Ver o Luar", 1981)
8. "Queremos Saber" (por Erasmo Carlos, "A Banda dos Contentes", 1976)
9. "Cinema Novo" ("Tropicália 2", com Caetano Veloso, 1993)
10. "Lamento de Carnaval" ("Quanta Gente Veio Ver", 1998, com Lulu Santos)




Maurício Pereira

músico e jornalista
(São Paulo/SP)

Difícil demais escolher 10 músicas do Gil pra passar pra vocês, o repertório dele tem coisas fundamentais, de cara eu já pensei numas 30… E não tou falando não como o Maurício músico ou compositor, não. Falo como ouvinte, como um brasileiro comum que se serviu da poesia, da sensibilidade, da inquietude filosófica, da visão de mundo desse artista, pra poder tentar entender e viver o mundo (e o Brasil) dum modo mais profundo e mais misterioso. Salve o Gil! .”

1. "Retiros Espirituais" ("Refazenda", 1975)
2. "Jeca Total" ("Refazenda", 1975)
3. "Vitrines" ("Gilberto Gil", 1969)
4. "Aquele Abraço"
5. "Louvação" ("Louvação", 1966)
6. "Raça Humana"
7. "Domingo no Parque"
8. "Batmacumba" (por Os Mutantes, "Tropicália" ou "Panis et Circensis", 1968, com Caetano Veloso)
9. "Meio de Campo" (por Elis Regina, "Elis", 1973)
10. "Tradição" ("Realce", 1979)



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As mais votadas

- "Domingo no Parque" - 7 votos
- "Drão" - 5 votos
-"Lamento Sertanejo", "Refazenda" e "Tempo Rei" - 4 votos
- "Back in Bahia" , "Parabolicamará", "Aquele Abraço" e "Filhos de Gandhi" - 3 votos
- "Abre o Olho", "Raça Humana", "Extra", "Sarará Miolo", "Nos Barracos da Cidade" e "São João, Xangô Menino" - 2 votos
"Super-homem, a Canção", "Haiti", "Quanta", "Sitio do Pica-Pau Amarelo", "Vamos Fugir", "Zumbi (A Felicidade Guerreira)", "Emoriô", "Esotérico", "Andar com Fé", "Buda Nagô", "Metáfora", "Afoxé É", "Babá Alapalá", "Febril", "Roque Santeiro (O Rock)", "Ela", "Marginália II", "Toda Menina Baiana", "Expresso 2222", "Pela Internet", "Cores Vivas", "Palco", "Queremos Saber", "Cinema Novo", "Retiros Espirituais", "Jeca Total", Vitrines", "Tradição", "Meio de Campo", "Batmacumba" e "Louvação" - 1 voto



Daniel Rodrigues