Desta vez trago para vocês um filme mais "simples": "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane, de 1969. A historia é bem descomplicada e sua narrativa é bastante linear, mas é claro que seus personagens são cheios de alegorias e o espectador deve estar preparado para mais uma obra amoral (ou nem tanto).
Dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de violência. Santamaria (Hugo Carvana), místico que acredita que com seus atos está se aproximando de um anjo que lhe limpará a alma; e Urtiga (Milton Gonçalves), um marginal ingênuo que segue os passos do amigo acreditando também, por sua ingenuidade, no anjo da salvação.
Qual a chance de salvação
destes dois marginais?
Não é a primeira vez nem a ultima vez que falo isso sobre os filmes marginais mas não é um filme que vá agradar todo mundo. Há cenas de violência bem fortes, violência contra mulher, violência contra homossexuais, existe toda uma crítica religiosa e dependendo de como você receber o filme tudo isso pode não soar muito legal. A qualidade da imagem e som também são fatores que se deve superar ao assistir o filme mas essa era exatamente a proposta estética do cinema marginal.
As cenas do sequestro são bastante fortes bem como as atuações
dos atores principais. Esse momento, especificamente, é fabuloso.
Apesar de ser uma quase antiestética, ela é muito bem utilizada por Bressane e seus planos longos (ou exageradamente longos) funcionam bem criando grande dramaticidade uma tensão nas cenas. É uma obra bem silenciosa mas em muitos momentos deste silêncio que muita coisa é dita. A brincadeira visual que o filme faz com as placas que aparecem "incidentalmente" é genial em muitos momentos, como por exemplo, próximo ao final, quando os bandidos estão em um circo e ao fundo pode ver-se uma placa com dizeres "O encontro com a morte", e também no momento onde vão até um cinematógrafo e a câmera permanece durante algum tempo, uns vários segundos em close na placa "Cinematographo". Genial essa brincadeira toda. A crítica mais evidente do filme é a pessoas que cometem atos brutais buscando uma suposta salvação de suas almas, que buscam na religião a desculpa para seus atos e independente da crença, seita, doutrina ou seja lá o que for, isso fica claro no longa.
A minha cena favorita no filme é quando os dois bandidos, Urtiga e Santamaria, estão comendo na mesa juntamente com a dona da casa ondes estão se escondendo, quando Santamaria expõe para a dona da casa sua maneira de pensar que é na verdade um perfeito resumo da proposta do filme e de certa forma, por extensão, do cinema marginal, "O que está certo é o errado... E o que está errado, pra mim é o certo".
Uma obra fantástica pela maneira como foi feita e pela ideia que transmite, tudo com muita criatividade utilizando bem as técnicas cinematográficas para, mesmo com pouco recurso, fazer muita coisa. Sua ambição claramente não era grandiosa mas vê-se as ferramentas cinematográficas sendo usadas de uma maneira tão inteligente que o exagero teatral dos personagens acabam fazendo sentido e tornando-se necessários, tamanho a grandiosidade artística da obra, que é forte, crua e real.
É com grande satisfação que a hoje iniciamos uma nova série de cinema na seção CLAQUETE do ClyBlog. Vagner Rodrigues desta vez vai nos falar sobre o Cinema Marginal Brasileiro, essa forma anárquico-artística que deu mais uma reviravolta na linguagem da sétima arte produzida no Brasil e que deixou sua marca, mesmo que à força, no cinema nacional. Conheceremos melhor os filmes, seus diretores, estrelas às vezes improváveis, as particularidades, curiosidades, lendas por trás das câmeras, as inspirações e pirações que envolveram suas obras de estética e linguagem ousadas, para muitos, de gosto constestável e duvidoso. Mas enfim, vai aqui uma breve introdução, um retrato mais amplo do cinema marginal só para aquecer, para esperar pelos próximos que virão dissecando cada uma das obras marcantes deste movimento que na verdade mão era exatamente um movimento, não era exatamente cinema, não era exatamente... nada, era uma grande e admirável esculhambação.
Cly Reis
editor-chefe
Os anos 60 foram uma época de surgimento de novos cinemas de vanguarda e mudanças. A Europa como um todo passou fortemente por isso e o movimento mais famoso foi sem dúvida a "nouvelle vague". O Brasil também teve seu "cinema novo", que impulsionado por alguns conflitos ideológicos gerou outro interessante movimento o Cinema Marginal.
Mestre Sganzerla
Na metade dos anos 60 houve essa ruptura de cinemas no Brasil, o momento em que acaba amizade entre Bressane e Glauber Rocha, apos este último acusar o filme "O Anjo Nasceu"(1969) de Bressane de ter plagiado seu filme "Câncer" que fora filmado em 1968 e finalizado em 1972 (Ratinhooooo!!!). O país passava por um forte cerceamento politico, o AI-5 chegava com força, e o "cinema marginal" surgia como resposta contra essa opressão. Ele não foi um movimento organizado, os cineastas não fizeram uma reunião e decidiram criar o "cinema marginal", o nome inclusive foi dado de maneira pejorativa de modo a diminuir os filmes e atingir seus idealizadores. "Não somos marginais, fomos marginalizados" foi, inclusive, uma frase de Carlos Reichenbach, em uma entrevista quando questionado sobre o nome do movimento.
Se o Cinema Novo era popular e seus idealizadores tinham muita força na época, devido esse rixa, o "cinema marginal" foi extremamente rejeitado e boicotado, chegando ao ponto dos filmes serem impedidos de participarem de alguns festivais. A maioria das obras "marginais" só tiveram seu reconhecimento recentemente, assim, somente agora, tardiamente tivemos a oportunidade de ver toda a força de um cinema radical que existiu no Brasil na década de 60.
Como falei no inicio, não foi um movimento organizado, foram diversos focos de novos cineastas que buscavam um novo caminho cinematográfico espalhados por diversos cantos do Brasil,com destaque,é claro, para o Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, berço da turma da Boca do Lixo.
Um avacalho de tão bom
que é esse filme.
O filme que é dado como o primeiro "marginal" e também o primeiro da Boca do Lixo é "A margem"(1967) de Ozualdo Candeias. O filme feito com baixíssimo orçamento, narra a história de personagens pobres e excluídos, como bêbados, prostitutas e loucos, que vivem na margem do Rio Tietê mas que também vivem à margem da sociedade. No ano seguinte, 1968, o "cinema marginal" e a boca do lixo, produziram o que para muitos foi o maior filme deste movimento, o clássico "O Bandido da Luz Vermelha" de Rogério Sganzela. Esta obra contém todos os elementos que marcaram o "cinema marginal", um filme de manifesto, questionamento de ordem política, uma estética diferente e bela, (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo, "quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba", frase dita pelo Bandido durante o filme mas que serviu como um lema do "cinema marginal".
Depois do sucesso do seu primeiro longa, Sganzela produziu seu próximo filme, "A Mulher de Todos"(1969), dando continuidade ao estilo cinema mal comportado, com clara influencia Godardiana. O longa marcou o surgimento da musa Helena Ignez, interpretando Angela Carne e Osso, a inimiga número 1 dos homens. Uma personagem que daria muito orgulho ao movimento feminista que temos atualmente pois, sim, ela transava com todo mundo mas queria, tinha autonomia do próprio corpo e, não, não a confunda com uma personagens de pornochancada, "Agora só tenho tempo para os boçais" clássica frase da personagem Angela Carne e Osso.
Esse período foi o momento de maior sucesso popular do cinema marginal, além dos dois filmes de Sganzela, as obras "O Pornógrafo"(1970) de João Callegaro e "As Libertinas"(1968) filme em episódico dirigido por João Callegaro, Carlos Reichenbach e Antônio Lima, também foram muito bem aceias pelo publico.
Helena Ignez, muito mais que simplesmente
a musa do 'Cinema Marginal'.
Nos anos 70 esse cinema mais questionador começou a perder forçar no mercado que passava a voltar-se naquele momento mias para o cinema erótico. Alguns diretores não fizeram mais longas após essa época como João Callegaro, por exemplo, outros tentaram colocar um pouco de suas e ideias e críticas em filmes eróticos como Carlos Reichbach e Ozualdo Candeias e alguns se distanciaram ao máximo das pornochanchadas e continuaram produzindo na Boca do Lixo como foi o caso de Candeias
Extremamente influenciados pela obra do poeta modernista Oswald de Andrade, muitos diretores do movimento faziam referencias a seu textos e poemas sendo Júlio Bressane o mais oswaldiano entre eles. Um exemplo é seu filme " Uma Família do Barulho"(1970) que alguns críticos consideram uma adaptação cinematográfica livre do "Manifesto Pau-Brasil" de Oswald de Andrade. O filme é anárquico, liberal e repleto de um erotismo inegavelmente oswaldiano.
Muito influenciados por esse espirito, Rogério Sganzela, Julio Bressane e Helena Ignez fundaram no inicio dos anos 70 produtora de filme Belair, que produziu 6 longas em 3 meses. Além de confrontar o AI-5 a Belair batia de frente com a Embrafilme, mostrando que e ainda se podia fazer um cinema questionador no pais, que era possível "fazer cinema do jeito que se pode fazer".
Glauber, herói e inimigo do cinema marginal
Entre os filmes da Belair estão "Copacabana Mon amour", "Sem Essa Aranha" e "Carnaval Na Lama" (filme perdido) de Sganzela, "Cuidado Madame", "Barão Olavo, O Horrível" e o já mencionado "Uma Família do Barulho", de Bressane. Foram obras mais radicais, com violência exagerada, cenas de tortura, frases constantemente repetidas, um uso bem irresponsável da câmera na mão, trilhas sonoras sendo feitas durante a filmagem, um diálogo muito próximo ao do teatro, o que alguns críticos apontam como um exagero de vômitos náuseas e cuspes e arrotos. Mas por outro lado foi da Belair o filme "marginal" mais bem acabado, a obra mais refinada entre todas da produtora, e um dos grandes clássicos da filmografia brasileira, o já referido "O Bandido da Luz Vermelha", consolidando assim, de uma forma ou de outra, a Belair como um dos marcos mais importante do movimento "marginal e sem dúvida do cinema nacional.
Com a ameaça de prisão dos seus fundadores, que tiveram que se exilar fora do Brasil, depois de apenas 4 meses de funcionamento a Belair acabou fechando. Apos o encerramento de suas atividades o cinema marginal perdeu suas forças e nunca mais consegui voltar. Mas deixou sua marca no cinema brasileiro sendo um dos movimentos mais referenciados dentro do circuito nacional até hoje.
Um fato importante que marca o fim de uma era mas por outro lado também uma reconciliação importante e indispensável para o cinema nacional foi a morte de Glauber Rocha que, apesar de todas as divergências que tinha com a turma da 'boca do lixo' era muito repeitado por estes e considerado o pai do cinema "câmera na mão", sendo sua morte muito sentida pelos fundadores da Belair mesmo tendo sido smpre um dos principais adversários e críticos do cinema marginal. Logo após a sua morte Bressane escreveu um belo texto em sua homenagem, chamado "Da Fome da Estética do Amor" que reatou os laços do cinema novo com cinema marginal. O cinema brasileiro estava em paz de novo.
Tem clichês de filmes americanos, sim? Mas de um jeito bem brasileiro, bem marginal.
Um clássico americano,
tipicamente brasileiro.
Um homem (Grande Otelo), auto-proclamado "O Rei do Baralho", se apaixona por uma loira estonteante, diretamente saída de uma chanchada brasileira ou de algum noir americano barato da década de quarenta.
Por mais que o filme tenha uma história, ele também é sobre como se fazer cinema. Seu começo muito arrastado, totalmente sem som, e as constantes saídas da história principal podem fazer você perder o foco do longa. São cortes abruptos e muito rápidos mas essa altura já estamos acostumados com isso.
Embora a historia, mais uma vez, possa ser difícil de ser absorvida, as atuações tão naturais e a vontade dos atores torna o filme muito leve. Temos uma atuação muito natural (como sempre) de Grande Otelo, um personagem negro, baixo, que foge completamente dos estereótipos num filme repleto de estereótipos americanos o que é muito interessante É mais uma vez o Cinema Marginal dando um toque de brasilidade ao cinema.
Uma obra que que consegue (ou tenta) contar sua história mas que vai muito alem disso: ela fala sobre cinema. Temos aparições do diretor, das câmeras, dos atores se preparando para entrar em cena... Uma obra de apaixonado por cinema que consegue emular “o melhor cinema”, com poucos recursos e muito talento ao mesmo tempo que parece falar apenas do dia a dia, do comum.
Atuações que se destacam na frente e atrás das câmeras.
Caetano abrindo o show em Porto Alegre (foto: Leocádia Costa)
Um
show de Caetano Veloso, para mim, é mais do que um show: é a
confirmação de todo um paradigma de percepções e ideologias.
Vê-lo no palco é deparar-me com uma série de conceitos e formas
muito pessoais de enxergar a vida, que se confirmam e dialogam com
sua obra grandiosa e impactante. Há exatos 22 anos, com 13 de idade,
já havia tido essa experiência numa apresentação da turnê do
disco “Circuladô”, um dos melhores da carreira de Caetano. À
época, em parceria com Arto Lindsay e Peter Scherer (os Ambitious Lovers), Caê tinha em sua banda Jacques
Morelenbaum, Luiz Brasil, Dadi, Marcelo Costa, Marcos Amma e
Wellington Soares, que davam ao espetáculo, numa sonoridade
cheia e moderna, uma roupagem proto-world music – ao estilo da
forjada por Ruyichi Sakamoto e pelos próprios Ambitious Lovers nos
anos 80.
Pois,
desta vez, nada de sonoridade “rebuscada”, de banda numerosa, de
complexidade timbrística, de pop étnico-modernista. No palco, para
o show do CD "Abraçaço", apenas ele ao violão e a
competentíssima banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarras),
Marcelo Callado (baixo e teclados/efeitos eletrônicos) e Ricardo
Dias Gomes (bateria e percussão). Uma formação simples e com a
secura e objetividade do rock, o suficiente para um show espetacular.
E mais do que isso: tão conectado com a contemporaneidade como
sempre esteve este baiano, um artista fundamental para a formação
de tudo o que há de mais inovador e sintonizado há 50 anos. A maior
prova disso já estava na abertura, com o petardo “A Bossa Nova é
Foda”. Não me venham com o tributo retrô do Daft Punk ao Chic em
“Get Lucky” ou muito menos “Reflektor”, da saudada “nenhuma
novidade” Arcade Fire. A brasileira “A Bossa Nova...” é de
longe a melhor música de 2013. (coisa que muito tupiniquim
vira-latas, que nem no futebol mais vence, jamais se sentiria
merecedor.)
Embora
o público do teatro fosse bem heterogêneo em idade, a abertura rock
‘n’ roll os pegou, se não desavisados, ainda um tanto frios e
aguardando, em sua maioria, os clássicos. Que não tardaram em
aparecer. Num deslocamento temporal de 48 anos, Caetano vai de uma
canção do último trabalho para retrazer uma de seu debut, a
obra-prima “Coração Vagabundo” (de “Domingo”, gravado em
parceria com Gal Costa, em 1966). Além da ligação temática entre
ambas, visto que trazem a bossa nova de João/Tom/Vinícius em seu
cerne (na rock, em palavra; na samba, em forma), estava evidente ali
a versatilidade da banda. Dentro da concepção harmônica proposta
por Caetano, o trio executa com perfeição tanto uma quanto a outra,
visto que “Coração Vagabundo” não ficara agressiva nem perdera
a expressividade melancólica original.
O show
é uma aula de escolha de repertório, composto por obras novas e
antigas e outras bem pescadas. Aliás, comento frequentemente que
artistas como ele, donos de obras extensas, profícuas e
multirreferenciadas como um Gilberto Gil, Chico Buarque, Paul McCartney ou Stevie Wonder, têm o privilégio de poderem exercitar
infinitas variações de set list, valendo-se tanto de músicas
de sua autoria de diversas épocas como também composições de
outros que dialoguem com aquele projeto. Foi assim que Caetano seguiu
o show, intercalando faixas do ótimo "Abraçaço" (sobre o qual
já escrevi aqui no blog), como a excelente faixa-título, o
empolgante samba-reggae “Parabéns” e a “graciliana” “O
Império da Lei”, com aquelas preferidas da galera. Foi o caso da
breve mas emocionante execução de “Alguém Cantando”,
originalmente na voz de seu filho, Moreno Veloso, no álbum “Bicho”,
de 1977, e que só a tinha escutado com Caetano numa cena do filme “O
Mandarim”, do Júlio Bressane, quando o autor a canta à
capella.
Exemplo
perfeito desse encadeamento bem pensado entre os números foi a
trinca iniciada com a épica “Um Comunista”, do novo disco, que
ganha ao vivo ainda mais dramaticidade ao contar, em forma de
“biografia emotiva”, a trajetória do revolucionário baiano
Carlos Marighella pelo olhar de Caetano, conterrâneo e admirador. O
tema e a carga emocional desta desembocam na ainda mais grandiosa
“Triste Bahia”, clássica adaptação do poema de Gregório de
Matos feita por Caetano para seu célebre álbum "Transa", de
1972. O público, claro, delira com essa, tocada com muita
competência pela banda, que consegue repetir/adaptar todas as
variações rítmicas e harmônicas que a complexa melodia suscita.
Pra finalizar o conjunto de três temas, outra nova: “Estou
triste”, a deprimida canção que transportou a tristeza da Bahia
para o Rio de Janeiro (“O lugar mais frio do Rio é o meu
quarto”).
A
festa seguiu para todos os gostos. Num palco onde só se viam
cavaletes com quadros de construtivistas-minimalistas, a bela
iluminação ressaltava o que interessava: a música. A
expressividade do gestual longilíneo de Caetano se adensa no seu
canto absolutamente afinado e bem pronunciado. Vieram, assim, na
sequência, também “Odeio” e “Homem”, ambas de pegada bem
rock e do início da parceria com a banda Cê; a romântica “Quando
o galo cantou”, cuja execução ao vivo pareceu trazer-lhe com mais
vivacidade a beleza da poesia; e a “matadora” “Funk Melódico”,
das melhores e mais conceituais de "Abraçaço", em que Pedro Sá
dá um show na guitarra. Sá, aliás, é, como em todo bom show de
rock, quem sustenta a banda. Isso fica evidente na feliz recuperação
de “De Noite na Cama”, tal qual a versão original que Caetano
compusera para Erasmo Carlos em 1971. Isso se nota ainda mais na
regravação de outra clássica: “Eclipse Oculto”, um pop a la
Blitz, de 1984, que, agora, ganha peso e distorção, dando quase
para “pogueá-la”.
Caê e banda mandando
um Abraçaço para a galera
(foto: Tita Strapazzon)
As
fantásticas “Reconvexo” (imortalizada na voz da irmã Maria Bethânia), com sua poesia forte e altamente pessoal, e a picante
“Você não entende nada” aplacaram de vez o coração de fãs
como eu. Esta última, de tão querida que é na versão do disco
“Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo”, chegou a ser cantada pela
plateia no momento do refrão com os versos de “Cotidiano”, de
Chico, que se intermeia com a de Caetano naquela apresentação de
1972. No palco, Caetano cantava: “Eu quero que você venha
comigo”, e o público replicava: “Todo dia, todo dia”.
Demais.
No
bis, um erro e um acerto. Acerto por que ele abriu com nada mais,
nada menos que “Nine Out of Ten”, outra clássica do "Transa".
O erro? Pegar uma música em inglês, que não são todos que
acompanham, justo para essa volta ao palco, o que esfriou um
pouquinho a animação da saída em alto estilo com “Eu quero...”.
Mas nada demais para um repertório tão lindo e tão significativo,
biográfico em muitos dos casos, pois a música de Caetano conta a
história de muitos momentos da vida de várias gerações. É por se
identificar com isso que digo ser seu show mais do que uma mera
apresentação. Ouvir Caetano, e assim tão proximamente, é um
encontro comigo mesmo através do milagre dos sons. Foi assim em
1992, e agora novamente em 2014. Ali naquele palco, naquela
objetividade e clareza rocker que permeia a proposta desse
show, estavam muito mais do que somente ele e a banda. Estavam vivos
a Rádio Nacional, a herança ibérica, a influência árabe no
Ocidente, o sincretismo, o jazz, a filosofia, a contracultura, o
barroco, o morro. A bossa nova. Tudo numa total harmonia e simbiose –
algo que reflete minha forma de enxergar o mundo.
Depois
de tudo isso, bastava acabar com um número gostoso e pegajoso nos
ouvidos. Foi o que fez Caê ao finalizar o show com “Luz de Tieta”
(e nem aí ele diz SOMENTE isso, pois que tal música recupera Jorge
Amado e o “lirismo documental” de sua geração: Caymmi, Verger,
Caribé...). Show daqueles que se sai com a sensação de terem
valido cada centavo, com Caetano mostrando porque, aos 72 anos,
consegue ser um dos artistas mais inquietos da música mundial. Mesmo
que muito tupiniquim nem ouse admitir isso.
Em 2007, quando, com diferença de menos de 24 horas, os cineastas Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleciam, aquela fatídica virada de 29 para 30 de julho ficou conhecida como o “dia em que o cinema moderno morreu”. Semelhante sensação de perda e de triste coincidência se abateu sobre o mundo das artes dramáticas brasileira entre 11 e 12 deste mês de agosto ao despedirmo-nos de dois ícones: Paulo José e Tarcísio Meira. Poucas vezes em tão pouco tempo foi-se embora tanta beleza, tanta significância, tendo em vista a história de cada um para o cinema, a TV e o teatro brasileiros. Até mesmo na vida pessoal pareceram-se. Um, com 84, o outro, com um ano a mais. Na vida pessoal, amaram com fidelidade poucas mulheres igualmente do seu ciclo de atores: Tarcísio, casado com Glória Menezes por 61 anos; Paulo, viúvo de Dina Sfat e, posteriormente, parceiro da também atriz Zezé Polessa.
Paulo em "O Palhaço": sensibilidade de veterano
Pertencentes a uma geração rara que forjou as artes cênicas no País, como Paulo Gracindo, Cacilda Becker, Sérgio Brito, Walmor Chagas, Bibi Ferreira e Paulo Autran, Paulo e Tarcísio, por meio desse ímpeto pioneiro, ajudaram a esculpir de certa forma o que conhecemos de Brasil. Tanto que é impensável pensar no teatro, no cinema ou na TV sem lembrar de ambos. Paulo, no teatro, criou o Teatro de Equipe, dirigiu o Teatro de Arena, encenou Guarnieri e Molière. Tarcísio, por sua vez, também forjado nos palcos e Prêmio Shell de Teatro por “O Camareiro”, ia de Shakespeare a Keiser.
Mas é no audiovisual que a carreira tanto de um quanto de outro se fez popular, por vários antagônicos motivos – o que só prova suas versatilidades. Como outro grande das artes cênicas recentemente falecido, o sueco Max Von Sydow, capaz de interpretar Jesus Cristo e um cavaleiro assombrado pelo Diabo, Tarcísio, especialmente, foi da cruz ao inferno. Assim como Sydow, o brasileiro foi o Salvador em “A Idade da Terra”, de Glauber Rocha e, noutro extremo, fez a encarnação do demônio ao interpretar o vilão Hermógenes, de “O Grande Sertão: Veredas”, série dirigida por Walter Avancini para a Globo. Com Paulo, não é tão diferente. Se viveu o angustiado religioso de “O Padre e a Moça”, também vestiu o fanfarrão “Macunaíma”, noutro marco do Cinema Novo.
"O Padre e a Moça", com Paulo José (1966)
"O Beijo no Asfalto", com Tarcísio Meira (1980)
Tarcisão na atuação premiada de "A Muralha"
Aliás, não faltaram grandes que os dirigissem. Tarcisão, além dos já citados Glauber e Avancini, encarnou “O Marginal” no ótimo e raro filme de Carlos Manga pós-Chanchada, e protagonizou uma das mais emblemáticas cenas da história do cinema nacional com o “beijo mortal” de “O Beijo no Asfalto”, de Bruno Barreto. Tarcísio, e mais ninguém, teria tamanha autoridade para ser D. Pedro II ou o asqueroso Dom Jerônimo Taveira de “A Muralha” ou o “regenerado” Renato Villar de “Roda de Fogo”.
Paulo, por sua vez, esteve sob as lentes de Joaquim Pedro de Andrade, Jorge Furtado, Domingos Oliveira, Júlio Bressane... Como não lembrar de seus papéis em “Faca de Dois Gumes”, do Murilo Salles, “O Palhaço”, do Selton Mello, “O Rei da Noite”, do Babenco?... Isso quando não era ele mesmo quem dirigia! Paulo oportunizou algo que une e simboliza a obra desses dois gigantes quando dirigiu, gaúcho como era, a série “O Tempo e o Vento”, da obra de Erico Verissimo, dando a Tarcísio com sabedoria o papel de Capitão Rodrigo, aquele que talvez melhor tenha marcado o ator paulista, mas que, com seu talento, identificou-se profundamente com os gaúchos.
Considerando que, desta geração nascida por volta dos anos 30 e que erigiu a arte de encenar no maior país da América depois dos Estados Unidos, resta apenas Fernanda Montenegro (vida longa!), não é exagero dizer que esta semana de agosto de 2021 poderá ser lembrada pelo “dia em que a arte dramática brasileira morreu”.
Este é um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que bem pode ser também um Claquete, pois filme e trilha estão totalmente conectados, uma vez que imagem e som não existiriam um sem o outro. Esse conceito integral tão típico das artes cênicas e visuais só poderia vir de artistas que souberam antever o que hoje é chamado de arte contemporânea. Sim, antever, afinal estamos falando de uma obra datada de 1924. A música? A peça “Entr’acte”, do compositor vanguardista francês Erik Satie. O filme correspondente é outra joia, dirigida pelo cineasta René Clair, o mesmo de clássicos do cinema mundial “A Nós a Liberdade” (1931), a “versão europeia” de “Tempos Modernos”, de Chaplin.
Clair chamou Satie para um desafio a que os dois, inquietos como eram, se instigaram. A proposta era a seguinte: o pintor e poeta Francis Picabia, desgostoso com os companheiros de dadaísmo, quis cutucar, igualmente, os surrealistas. Redigiu, então, um balé para o grupo Ballets Suédois, que estrearia em Paris, em pleno Théâtre des Champs-Élysées. O jocoso nome da produção dizia tudo: “Relâche”, o aviso que se colocava na porta dos cinemas quando as sessões eram suspensas. Isso ainda não era nada: no dia da avant-première, um dos cartazes do espetáculo trazia um aviso provocativo ao público: “Se você não gostar, o caixa lhe venderá apitos por dois centavos.” Pois o balé, com apitaços de vaia ou não, conteria dois atos e, no intervalo, seria apresentado um curta-metragem dirigido por Clair cuja trilha, assim como a de todo o espetáculo, coube a Satie. O resultado dessa química foi tão afrontosa que a música do filme se destaca a dos dois movimentos da dança, sendo inclusive desvinculada deles. Ou seja, um deboche homérico, uma vez que justamente a programação secundária (momento de dispersão e que exige menor concentração do público) é a mais representativa de todo o programa, pondo-se acima do principal.
Tal índole de ruptura e escárnio são típicos de Satie, um inclassificável compositor em constante mutação ao longo dos tempos. Ele já havia, àquela altura, composto obras marcantes para a história evolutiva da música europeia (“Relâche” é seu último trabalho antes de morrer, em 1925), como o tríptico “Gymnopédies” (1888) – com seus incomuns 18 compassos contínuos de apenas seis (!) notas, sem desenvolvimento nem transição, apenas um instante prolongado – e outras inovadoras peças, como o balé “circense-surrealista” “Parade”, que causou furor em 1917. Influenciado pela música de Debussy, Ravel e Stravinsky, bem como pelos modernistas franceses do Les Six, misturava o ragtime americano e a sonoridade fútil do teatro de variedades ao clima do cotidiano de uma Paris em efervescência cultural – deste o esoterismo ocultista até o populismo dos cabarés. Satie circulava por todas as correntes (dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo, simultaneísmo) sem, contudo, filiar-se a nenhuma delas. Em “Entr’acte”, compõe uma peça totalmente despojada, sem cadência nem compasso definido: apenas marcação de ritmo e harmonia, relegando a segundo plano a melodia. O motivo sonoro, maldito feito uma engenhoca que se estragou naquele ponto, vai e volta, mecanicamente, doentiamente. “Entr’acte” é, assim, a gênese do minimalismo. A repetição e as cacofonias incômodas ao ouvido mostram o quanto Satie prenunciava os tempos esquizofrênicos da sociedade pós-moderna, em que a emoção vira produto e o homem vira máquina. Evidente esta analogia na sequência do funeral, em que todos os convidados, parecendo bestas, estão fora do tempo, até que o próprio caixão dá no pé e todos passam, simbolicamente, a correr atrás da morte. Aqui, Satie faz uma paródia da “Marcha Fúnebre” de Chopin, em que sua escrita para piano, rítmica e sem firulas, revela a influência da música de dance-hall e da vida urbana moderna.
Como na trilogia “Quatsi”, da dupla Godfrey Reggio-Philip Glass, “Entr’acte” é um filme-música (ou a música-filme, tanto faz). Dura pouco mais de 20 minutos, suficientes para entrar para a história da música no século XX e marcar o movimento surrealista no cinema, tendo sido produzido, inclusive, cinco anos antes de “Um Cão Andaluz”, de Luís Buñuel e Salvador Dalí (não é de se estranhar que a estreia de ambos os filmes tenha rendido enorme bafafá na sociedade parisiense da época). Ali já estavam, porém, vivas, as inovações técnicas (câmera na mão, efeitos de luz e lente, sobreposições, distorções visuais, enquadramentos incomuns) e conceituais (roteiro não-linear, narrativa poética, descompasso temporal da ação/personagem, desconstrução psicológica do palco-cenário) que marcariam o cinema avant-garde. O curta foi influência direta para o brasileiro Mário Peixoto em sua obra-prima “Limite” (1930) e para o “cinema de poesia”, que vai da Pier-Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard a Júlio Bressane.
A Paris daquele início de século XX dava todos os elementos para essa ebulição criativa. A Cidade-Luz fervia em sua beomia noturna. Estavam lá a esta época algumas das mais inteligentes cabeças das artes em todas as frentes: Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Coco Chanel, Stravinsky, Marcel Duchamp. Jean Renoir, Jean Cocteau, Man Ray, Gertrude Stein, David Milhaud e os próprios Buñuel, Dalí, Clair e Satie. Com tanta produção, os rótulos empregados eram os mais diversos. “Entr’acte”, um típico produto consciente do entre-Guerras, capta esse espírito de diversidade, homogeneizando todas as vertentes. O filme é uma alegoria irônica e pessimista do futuro, como a antecipação das apropriações ideológico-simbólicas da publicidade (a bailarina em slow-motion vista em total contraplongê que vai e volta com a função de “encantar os olhos”), a erotização da violência através do artefato militar (o canhão “varão” que desencadeia a desordem no início do filme) e a fragilidade e a vigília da vida moderna em época de olhos digitais e mídia a la big brother (os dois homens manipulando a cidade em um tabuleiro feito marionete). Já a música, inegavelmente dadaísta, traduz isso a seu jeito: tal como Satie inaugurara em “Parade” sete anos antes, uma nova arte de colagem sonora é criada: melodias interrompidas quando ainda mal começaram, dissonâncias em abundância, ritmos entrelaçados e sobrepostos, ataques inesperados e paradas fora do tempo, fugas quebradas que “homenageiam” um passado já desfeito. Wagner, ópera italiana, escola austríaca, romantismo, classicismo: “nunca mais!”, bradava.
Havia quem criticasse Satie por suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental, reduzindo-o a um compositor de fracos recursos técnicos. Se o era, é mais louvável ainda, pois sua criatividade e capacidade transformadora são tamanhas que não é exagero dizer que ele é um dos precursores do espírito “faça você mesmo”, o grito dos punks, estes, os revolucionários roqueiros do fin de siècle. O fato é que uma obra tão significativa como “Entr’acte” exerceu influência direta na vanguarda pós-Segunda Guerra, tanto no meio erudito quanto no jazz e no rock. Para citar quatro exemplos expressivos: Terry Riley, em seu eletro-minimalista “A Rainbow in Curved Air”, de 1969; a mente “saudavelmente doentia” de Syd Barrett em “The Piper at the Gates of Down”, do Pink Floyd, do mesmo ano; as primeiras obras de Glass, tanto “Music in 14 Parts” (1971-74) quanto “Music with Changing Parts” (1971); e a maestrina jazzista Carla Bley em “Musique Mecanique” (1978). Se tamanho alcance não é digno de elogio, é, no mínimo, reflexo da recorrente contradição que caracterizaria os ilógicos e amorais tempos de hoje. Tempos, aliás, aos quais Satie já se fazia pertencer mesmo não vivendo neles. E para que precisaria?
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O CD traz ainda a íntegra de “Relâche”, com seus dois movimentos interpostos por “Entr’acte”, e a obra “Trois Morceaux en Forme de Poire” – que contém a conhecida peça “Maniere de commencement” e “Ragtime Parade”, arranjo posterior ao balé “Parade” escrito por Hans Ourdine –, todos em versão para piano. No vídeo, a trilha de “Entr’acte” é arranjada para orquestra, com regência de Henri Sauguet, de 1967.
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I. Trois Morceaux en forme de poire: 1. Maniere de commencement - 4:05 2. Prolongation de meme - 0:47 3. Lentement - 1:27 4. Enlevé - 2:43 5. Brutal - 2:12 6. En plus - 2:21 7. Redite - 1:31 8. Ragtime Parade - 2:33 II. Relâche - Premier Acte: 9. Ouverture - 1:09 10. Projection - 0:42 11. Rideau - 0:24 12. Entrée de la Femme - 1:14 13. "Musique" - 0:37 14. Entrée de l'Hommes - 0:38 15. Danse de la Porte tournante - 0:54 16. Entrée des Hommes - 0:39 17. Danse des Hommes - 0:42 18. Danse de la Femme - 1:04 19. Final - 1:15 III. Entr'acte: 20. Cheminées, ballons qui explosent - 1:29 21. Gants de boxe et allumettes - 0:42 22. Prises d'air, jeux d'echecs et bateaux sur les toits - 0:57 23. La Danseuse et figures dans l'eau - 0:42 24. Chasseur; et début de l'enterrement - 1:25 25. Marche fúnebre - 0:51 26. Cortege au ralenti - 1:35 27. La Poursuite - 1:10 28. Chute du cerceuil et sortie de Borlin - 1:00 29. Final (écran crevé et fin) - 1:05 IV. Relâche - Deuxieme Acte: 30. Musique de Rentrée - 0:56 31. Rentrée des Hommes - 0:54 32. Rentrée de la Femme - 1:15 33. Les Hommes se dévetissent - 0:34 34. Danse de l'Homme et de la Femme - 1:13 35. Les Hommes reganent leur place et retrouvent leurs pardessus - 0:51 36. Danse de la Brouette - 1:21 37. Danse de la Couronne - 0:57 38. La Danseur depose la Couronne sur la tete d'une specatrice - 0:46 39. La Femme rejoint son fauteuil - 1:05 40. Petite Danse Finale (la Queue du Chien) – 0:43