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quinta-feira, 17 de março de 2016

Jackson Browne – “Running on Empty" (1978)




“Se o amor precisa de um coração,
‘Running on Empty’ deixa claro que
a estrada não é um bom lugar
tanto para encontrar
 quanto para manter um.”
Paul Nelson,
para a Rolling Stone,
quando do lançamento do disco




Quem me conhece há bastante tempo sabe que eu sou fã total do som da Califórnia anos 70, a “Mellow Máfia”, como eles chamam por lá, formada por James Taylor, Carly Simon, Warren Zevon (se bem que este era nada “mellow”), Eagles e este ilustre desconhecido no Brasil: Jackson Browne, um dos meus preferidos. Em 1978, por incrível que pareça, um disco deste cara chegou ao Brasil embalado pelo sucesso nos States. Fui na Yes Discos da Rua da Praia (lembram?), comprei e me deliciei tanto que ele hoje está aqui, na lista dos meus discos favoritos.

A história deste disco começa uns anos antes. Browne, um dos compositores mais prolíficos daquela região, havia lançado o disco “The Pretender”, um sucesso absoluto de crítica. Como de praxe na época, o lançamento do disco vinha seguido de uma turnê. Só que Browne resolveu reverter as expectativas e gravar ao vivo um trabalho de músicas inéditas ou que não estavam em "The Pretender". Aí surge “Running on Empty", um disco sem precedentes na história do rock.

A faixa-título abre o disco com Browne usando a metáfora da estrada para compará-la com a vida. "Olhando pra estrada, correndo sobre minhas rodas / olhando pra trás e vendo os anos que ficaram pra trás como muitos campos de verão/ em 65 eu tinha 17 e corria um-por-um / Não sei onde estou correndo agora, só estou correndo". Mais adiante, Browne continua suas indagações: "Você tem de fazer o que pode pra manter seu amor vivo/ e tentar não confundi-lo com o que faz para sobreviver/ Em 69 eu tinha 21 e dizia que a estrada era minha/ Não sei quando aquela estrada se tornou a que estou agora". Com um refrão grudante, os vocais de Rosemary Butler e Doug Heywood e as guitarras lancinantes de Danny Kortchmar e David Lindley, o disco tem um ótimo começo. O estilo "70's California" está todo ali.

Na sequência, o bardo engata uma composição de Danny O'Keefe chamada, apropriadamente, "The Road". Durante todo o disco, Browne vai fazer uma espécie de inventário sobre a vida do músico na estrada. Nela, as alegrias e as agruras de estar em movimento sempre acabam por transformar a vida destas pessoas. "Estradas e salões de baile/ uma boa canção te leva longe/ Você escreve sobre a lua/ e sonha com as estrelas... café pela manhã cocaína na tarde/ você fala sobre o tempo e ri sobre os quartos de hotel/ ligações de longa distância/ pra dizer como você está/ você esquece as perdas e exagera as vitórias/ Mas quando você para e os deixa saber que chegou lá/ é apenas mais uma cidade na estrada". A curiosidade é que Browne começa a canção numa gravação feita num quarto de hotel e, quando chega na metade, ele mixa com uma gravação ao vivo. A estrada em dois tempos.

"Rosie", composta por Browne e seu gerente de tour, Donald Miller, conta uma história bem conhecida de quem está excursionando: a da groupie, aquela fã feminina que persegue as bandas. Browne se acompanha ao piano num backstage e tem as harmonias vocais de Heywood e do fotógrafo da excursão, o lendário Joel Bernstein. "Ela estava no descarregamento/ quando os caminhões chegaram/ ela estava farejando como se fosse uma cachorrinha nova/ Não foi difícil falar com ela/ parecia que não tinha onde ir/ então dei-lhe um passe para que ela pudesse ver o show". Depois, o astro pop se compadece da groupie e lhe diz "Rosie, você esta bem, você está com meu anel/ quando você me abraça forte, Rosie este sou eu/ Quando você desliga a luz, eu tenho de pegar de volta/ Parece que somos nós dois de novo esta noite, Rosie". Nesta época, pré-Aids, as groupies terminavam sempre na cama dos músicos.

"You Love the Thunder" retorna com o clima Califórnia, com solo de Lindley e uma letra que fala da companheira de um músico sempre com o pé na estrada. "Quando você olha sobre seu ombro/ e vê a vida que deixou pra trás/ Quando pensa que acabou chega a pensar/ O que é que segura sua vida tão perto da minha?/ Você ama o trovão, você ama a chuva/ O que você vê revelado dentro da raiva vale a dor/ E antes que a luz esmoreça e você se entregue/  tem um segundo pra olhar pro lado negro de um homem". No final, a marcha inexorável de quem está na estrada vence tudo: "Você sabe da sua fome como sabe o seu nome/ Tenho o seu número, se ele for o mesmo/ você pode sonhar/ mas não vai conseguir voltar o caminho em que veio".
Como o disco foi gravado em 1977/78, a cocaína era a droga do momento. E na estrada, então, era uma loucura. Jackson Browne adaptou um clássico blues do Reverendo Gary Davis e fez sua própria versão de "Cocaine": "Você pega Sally, eu pego Sue/ não tem diferenças entre as duas/ Cocaína, correndo no meu cérebro... ontem à noite, passava das quatro/ Ladanyi (o engenheiro de som da banda) veio ao meu quarto e perguntou/ ‘onde está a cocaína’/ eu disse que estava correndo em meu cérebro". Mas toda esta orgia tem seu preço: "Estava falando com meu médico lá no hospital/ E ele disse 'filho, aqui diz que tu tens 27, mas é impossível/ Cocaína... você parece ter 45'". Mesmo consumindo, Browne sabia dos riscos.

O lado 2 do LP começa com um tributo aos caminhoneiros composto pelo guitarrista Danny Kortchmar chamado "Shaky Town". E fala da relação dos músicos com estes profissionais. "Presenciei estes shows únicos/ deve ter tocado em milhares de bandas/ Mas estou aqui hoje, amanhã já estarei longe/ tenho visto caras mostram seus lados negros/ tenho os visto morrer apenas por orgulho bobo/ E estes motoristas sempre pedem pra ouvir a mesma canção... e segui aqueles sinais na estrada/ e corri sobre aquelas linhas brancas/ como aqueles motoristas esta velha estrada eu chamo de minha". Esta canção foi gravada num quarto de hotel. Browne se esmera em mostrar que tudo pode ser feito na estrada.

"Love Needs a Heart" é a música romântica do disco, composta por ele, Valerie Carter e seu amigo Lowell George, do grupo Little Feat, que morreria um ano depois de overdose. E a melancolia já começa na primeira estrofe: "Talvez a coisa mais difícil que jamais eu fiz/ foi partir pra longe de você/ Deixando pra trás a vida que nós começamos/ eu me dividi em dois/ Orgulhoso e sozinho, frio como uma pedra/ Descendo aquela colina dentro da noite/ Eu podia ver a surpresa e a mágoa nos seus olhos/ atrás de cada luz piscando nas cidades/ O amor precisa de um coração e preciso saber/ se o amor precisa de um coração como o meu". A backing Rosemary Butler tem destaque nesta canção, assim como o tecladista Craig Doerge, que faz um solo de mini-moog bem no clima triste inspirado pela letra. E a tristeza continua: "Orgulhoso e sozinho, frio como uma pedra/ Tenho medo de sentir as coisas que sinto/ Posso chorar com os melhores, posso descansar com o resto/ mas nunca sei quando é real/ E pode ser a coisa mais difícil que eu tenha feito/ mas longe de tudo que eu esperava encontrar/ onde está o coração que está esperando o meu?/ Espero que me encontre a tempo". A vida do músico na estrada impede que ele tenha um relacionamento normal. E é isso que Browne destaca nesta canção, uma das mais lindas do disco.

O tédio das viagens está também em "Nothing But Time", gravada dentro de um ônibus, com o baterista Russ Kunkel tocando caixas e hi-hat. No refrão, Browne fala do que acontece durante uma viagem e o vazio de se deslocar de um lugar para outro: "Tenho uma garrafa de vinho (passe adiante)/ tenho uma carreira partida (ainda estou sóbrio)/ não tem nada além de tempo entre este Silver Eagle/ e aquela estrada pra New Jersey". O interessante é que os ruídos do ônibus são audíveis durante a gravação, feita com piano elétrico, violões e as caixas de papelão de Kunkel.

Pra fechar, Jackson Browne escolheu o momento mais dramático de uma tour musical: a hora em que tudo termina e começa o carregamento para a próxima cidade. "The Load-Out" é exatamente isso. "Agora que os lugares estão vazios/ deixe os roadies subirem no palco/ empacotando e desmanchando tudo/ Eles são os primeiros a chegar e os últimos a sair/ trabalhando por um salário mínimo/ Eles vão arrumar tudo numa outra cidade/ esta noite o público foi ótimo/ Esperou na fila/ E quando levantou, fez o show/ E isso foi ótimo/ Mas posso ouvir o som de portas batendo e cadeiras sendo fechada / E esse é um som que eles nunca vão ouvir". A canção segue contando a desmontagem do espetáculo, a ida para outro lugar, a remontagem e o recomeço. "Mas a banda está no ônibus/ eles estão esperando pra ir/ Temos de viajar a noite inteira pra fazer um show em Chicago/ Ou Detroit, eu não sei/ fazemos muitos um atrás do outro/ E essas cidades todas se parecem/ Passamos o tempo em nosso quartos de hotel/ e circulamos pelos backstages/ até que estas luzes se acendam e ouvimos a multidão e lembramos porque viemos". Juntamente com esta dramaticidade, Browne encontra espaço para a alegria de tocar, de fazer música, de trazer esperança e felicidade pra quem está assistindo. "Vocês tem o poder sobre o que fazemos/ vocês podem sentar e esperar ou podem nos animai / venham junto, cantem a canção/ vocês sabem que não pode dar errado/ porque quando o sol da manhã começar a surgir/ Vocês vão acordar em suas cidades/ Mas nós estaremos programados para aparece / milhares de milhas longe daqui".

Quando parece que tudo terminou, Browne e sua banda redescobrem "Stay", uma música de Maurice Williams que se encaixa perfeitamente no clima de encerramento do disco, pedindo: "Pessoal, fique mais um pouquinho/ Queremos tocar só mais um pouquinho/ Agora o produtor não interessa/ o sindicato não interessa/ se ficarmos mais um pouquinho/ vamos jogar tudo pra cima/ e vamos cantar mais uma canção". Brilham Browne, Butler e uma aparição engraçada do guitarrista David Lindley fazendo um vocal jocoso.

"Running on Empty" é um disco que tem marcado em sua testa o carimbo inconfundível do som dos cantores e compositores californianos dos anos 70. Quem gosta, como eu, se delicia com as frequências arredondadas da bateria mixadas com Aphex Aural, um dispositivo que "limpava" o som mais sujo e deixava tudo bem clean (se não for exatamente isso, vou perguntar ao meu amigo Marcos Abreu , que ele deve ter uma explicação técnica embasada muito melhor). Pra quem não conhece – e eu acho que muita gente jamais ouviu este disco –, ele está aqui.
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FAIXAS:
1. Running On Empty - 5:20
2. The Road (Danny O'Keefe) - 4:50
3. Rosie (Jackson Browne/Donald Miller) - 3:37
4.  You Love The Thunder - 3:52
5. Cocaine (Rev. Gary Davis) - 4:55
6.  Shaky Town (Daniel Kortchmar) - 3:36
7. Love Needs A Heart (Browne/Lowell George/Valerie Carter) - 3:28
8. Nothing But Time (Browne/Howard Burke) - 3:05
9. The Load-Out (Browne/Bryan Garofalo) - 5:38
10. Stay (Maurice Williams) – 3.28

todas as composições de Jackson Browne, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO:



segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Wayne Shorter - "JuJu" (1965)



“Quando escrevi a música 'JuJu', 
estava pensando na África. 
Sua estrutura é um pouco reminiscente da simplicidade de um canto africano”. 
Wayne Shorter


A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.

Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.

O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.

Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".

Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.

A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.

A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.

Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.

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FAIXAS:
1. "JuJu" - 8:28
2. "Deluge" - 6:49
3. "House Of Jade" - 6:49
4. "Mahjong" - 7:40
5. "Yes Or No" - 6:35
6. "Twelve More Bars To Go" - 5:26
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)





“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’
me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.

Lee Morgan



O trompetista norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e 1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins, bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente, voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner (piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos. Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS "Empyrean Isles", de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50 anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de jazzistas (Vince GuaraldiMiles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira. Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à “casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa), leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove, com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato; Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto! Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson – músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações, James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”, com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas, ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook” traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas, criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues “Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao mesmo tempo.
“The Sidewinder” entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em 1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa. Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de “maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”. Afinal, não há males que vêm para bem?
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FAIXAS:
1 - The Sidewinder – 10:25
2 - Totem Pole – 10:11
3 - Gary's Notebook – 6:03
4 - Boy, What a Night – 7:30
5 - Hocus Pocus – 6:21
todas as composições de Lee Morgan


Lee Morgan  - "The Sidewinder"




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OUÇA O DISCO:




quinta-feira, 7 de março de 2019

Led Zeppelin - "Led Zeppelin II" (1969)



"Nosso segundo álbum tem o fogo e a energia de 
nós na estrada. 
Eu realmente acredito que você pode ouvir isso." 
Jimmy Page

Tinha eu tenros 11 aninhos de idade quando ganhei meu toca-discos Phillips, daqueles cuja caixa de som é a tampa, bem pequeno, mas que me servia muito bem na época. Como não tinha muita grana pra comprar LPs, comecei a atacar as discotecas dos primos. As primeiras vítimas foram a Tania e o Clebar Derivi Barros, que moravam na César Lombroso. Peguei emprestado com eles três discos: "The Best of The Ventures", com a banda de surf music tocando o tema da série Batman; o disco psicodélico dos Stones, "Their Satanic Majesties Request", e o "Led Zeppelin II".

Fiquei fissurado pelos três mas o Led Zeppelin me impressionou, porque era “roquenrou” de verdade. Peso, muito peso. De cara, curti "Living Loving Maid" e "Whole Lotta Love". Aos poucos, fui entrando no clima da banda e passei a ouvir com atenção "The Lemon Song", "Heartbreaker", "Ramble On" e mais o resto do disco. Posso dizer que este LP preparou minha pobre cabecinha de guri para o que vinha pela frente. Continuei comprando os compactos da moda e ouvindo a Continental mas nunca mais me recuperei do "trauma" de ouvir Led Zeppelin aos 11 anos.

Tempos depois, aos 17, quando estava no cursinho IPV, a Yes Discos ainda na Rua da Praia fez uma superpromoção com todos os discos do Led sendo vendidos a um precinho razoável. Tentei convencer minha mãe a me dar de presente mas ela achou muito caro. Me vinguei anos depois, na era do CD, comprando TODOS os discos oficiais da banda. E descobri que alguém mais gosta de Led, especialmente do "Led IV", que sumiu lá de casa.


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FAIXAS:
1. "Whole Lotta Love" (Jimmy Page/Robert Plant/John Paul Jones/John Bonham/Willie Dixon) - 5:34
2. "What Is and What Should Never Be" (Page/Plant) - 4:47
3. "The Lemon Song" (Page/Plant/Jones/Bonham/Howlin' Wolf) - 6:20
4. "Thank You" (Page/Plant) 4:47
5. "Heartbreaker" (Page/Plant/Jones/Bonham) - 4:15
6. "Living Loving Maid” (“She's Just a Woman”) (Page/Plant) - 2:40
7. "Ramble On" (Page/Plant) 4:35
8. "Moby Dick" (instrumental) (Page/Jones/Bonham) - 4:25
9. "Bring It On Home" (Page/Plant/Dixon) - 4:19


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OUÇA O DISCO:

Paulo Moreira

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Lee Morgan - "Lee-Way" (1961)

 

"Todos ficavam espantados: tinha um garoto que tocava como um veterano e tinha grandes ideias. Ninguém restava dúvida 
de que ele seria uma estrela." 
Charli Persip, baterista da orquestra de Dizzie Gillespie

Mais de uma vez já falamos aqui sobre a trágica morte de Lee Morgan, dada a narrativa novelesca que envolve o crime (foi alvejado pela própria esposa, Helen) como, principalmente, pela prematuridade da perda deste grande talento da história do jazz. Contudo, não há o que lamentar. Nos pouco menos de 34 anos que viveu e dos 15 em que produziu, desde seu surgimento através da orquestra de Dizzie Gillespie e da banda Art Blakey, na segunda metade dos anos 50, até sua partida, que completa 50 anos em 2022, o trompetista edificou uma das mais notáveis obras da discografia jazz moderna. Com o aval e a qualidade técnica do selo Blue Note, Morgan deu a largada na carreira solo em 1956 e só parou no fatídico 19 de fevereiro de 1971. 

Embalado, ele começava os anos 60, seus mais produtivos, com mais de 10 discos entre próprios e em participações protagonistas. Tanto que, no primeiro ano daquela década, não tardou a vir primeira obra-prima: “Lee-Way”, gravado em 1960 e lançado um ano depois. Acompanhado de um supertime que contava com Jackie McLean, no sax alto; Bobby Timmons, ao piano; Paul Chambers, baixo; e o professor Blakey na bateria, Morgan explora todas as vertentes que o influenciaram e compunham o cenário do jazz da época. Hard bop, cool, modal e be-bop e até uma passadinha pela vanguarda: tudo com absoluta fluidez e, às vezes, simultaneamente. É o que se vê na brilhante faixa de abertura, "These Are Soulful Days". Obra de um front man maduro, apesar dos apenas 22 de idade à época, seu arranjo não apenas se constitui desses vários estilos como, principalmente, é possível vê-los hibridizando-se naturalmente. O ouvinte começa escutando um blues elegante, suingado, mas sem perceber, dentro do próprio riff, já está submerso num clima melancólico de cool jazz, quase sensual. Repete-se o chorus e, ao invés de seguir na mesma linha, o compasso cai para um ritmo marchado, dando uma pitada de avant-garde.

E quem começa solando? Morgan? Não: Chambers. Craque do baixo, o homem que já havia entrado para os anais do jazz ao tocar em “Kind of Blue”, de Miles Davis, um ano antes, desfila um estiloso solo. O qual, aliás, grosso modo ele não termina, visto que mantém seu suingue por debaixo do improviso seguinte. De Morgan agora? Não: de Timmons. Mais um lindo solo carregado de alma blueser aproveitando as escalas de Lá e Si. Quem pensa que agora será a vez do band leader, está enganado. Parceiro generoso, Morgan concede a McLean o espaço para uma contribuição carregada de sentimento para, finalmente, entrar em campo. Que improviso com desenvoltura e graça!

"These...” mostra que Morgam sempre soube muito bem abrir um disco, pegando pelo ouvido quem escuta já de pronto. O que se veria em “The Sidewinder” e “Serach for the New Land”, iniciadas com suas memoráveis faixas-título, ou em “The Gigolo”, com outra célebre, “Yes I Can, No You Can't”. Depois, em tese, o trajeto é mais facilitado, certo? Não é esta a escolha do “caminho de Lee”. Em clima de trilha de filme policial, "The Lion and the Wolff" tem no piano um martelado em notas graves extremamente soul e na bateria sincopada de Blakey a base para outro tema excepcional de “Lee-Way”. Morgan, se se conteve na abertura para dar evidência a seus companheiros de banda, aqui é ele quem domina, solando com avidez por 2 min 30’. Mas todos têm espaço. E quando se diz “todos”, é o grupo inteiro, mesmo. Depois de TImmons, Chambers ensaia seu solo e passa a bola para o mestre Blakey dar um show com as baquetas em seu estilo de tocar carregado de africanidade. Mais um hard-bop exemplar.

Mais longo número do disco, com pouco mais de 12 min, a animada "Midtown Blues" traz novamente o blues, literalmente, para o centro das atenções. Outro riff contagiante, outro show de interpretações, outra mostra de sinergia de toda a banda. De autoria de McLean, é Morgan, no entanto, quem dá o sopro inicial em um improviso que joga luz sobre os velhos mestres do Mississipi. O saxofonista é quem entra em seguida com a autoridade de criador que conhece os atalhos. Com justiça, aliás, McLean é o que mais se demora performando, preenchendo quase 5 min da música, que traduz em sons a dinâmica agitada da região central nova-iorquina. Timmons também não deixa por menos ao piano, entregando notas ligeiras e agudas. Fica a Chambers a incumbência de fazer a última parte antes do chorus finalizar com a energia lá em cima.

Se a elegância sempre foi uma marca de Morgan, já o era assim nesta fase inicial de carreira, a se ver por "Nakatini Suite". O riff talvez engane, pois o desenrolar da música revela um ritmo intenso, exigindo habilidade e ligeireza dos músicos. Depois de Morgan e Timmons, é Blakey novamente quem “apavora” em inebriantes rolos na caixa, surdo e tom-tom tomados de técnica e habilidade, em que dá para perceber sua desenvoltura no chimbal e a forma como segura a baqueta, movimentada pelo pulso e não pelo bíceps como fazem clássicos bateristas igual a ele.

Neste ano em que se completam cinco décadas sem o enfant terrible do jazz, nada melhor do que, ao invés de lembrar de sua morte, fazer o raciocínio contrário: lembrar da aurora de Lee Morgan. “Lee-Way” é para muitos a mais bem-acabada de suas obras do começo da carreira e, quiçá, de toda a marcante discografia do músico. O álbum que deu o caminho que ele seguiria marcando com seus passos firmes e intrépidos enquanto esteve sobre o planeta blue.

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FAIXAS:
1. "These Are Soulful Days" (Calvin Massey) - 9:25
2. "The Lion and the Wolff" (Morgan) - 9:40
3. "Midtown Blues" (McLean) - 12:09
4. "Nakatini Suite" (Massey) - 8:09

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Daniel Rodrigues