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domingo, 12 de março de 2023

"Triângulo da Tristeza", de Ruben Östlund (2022)

 



Tristeza é o ser humano.

No filme do sueco Ruben Östlund, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes no ano passado e indicado a três Oscar na atual edição, em meio a uma sucessão de acontecimentos bizarros, durante um cruzeiro para ricaços, temos uma dissecação mordaz do caráter do ser humano, especialmente no que diz respeito às relações de poder, e sobre como, muitas vezes, ele, o PODER, é somente uma questão de oportunidade.

Um jovem casal, ela uma influencer e ele, modelo, ganham uma viagem num luxuoso cruzeiro, no qual estarão junto a figurões de diversas áreas, novos ricos, dondocas excêntricas e milionários infelizes. A organização da embarcação não é lá essas coisas, os funcionários são despreparados, administração é confusa, as instalações deixam a desejar, o serviço é deficiente, e pra completar, o capitão, constantemente embriagado, nunca dá as caras. Não poderia dar coisa boa! No jantar de boas vindas, com um cardápio de péssimo gosto, tempestade e navio balançando, entre vômitos coletivos, privadas entupidas e um ataque pirata, o navio naufraga. Alguns sobreviventes vão parar numa ilha, onde terão que se virar com os poucos suprimentos que encontraram, e tirar da natureza o que puderem e conseguirem. O problema é que, mimados e mal-acostumados com a vida, nunca mexeram um dedo pra pegar um copo d'água, quanto mais pra pescar um peixe. Só que para sorte (ou azar) uma das sobreviventes é uma das empregadas do barco, uma copeira, uma pessoa da manutenção, que, além de ter encontrado o bote de sobrevivência, é safa e sabe fazer as coisas mais básicas que um grupo de acampamento precisaria. Mas aí que as relações de poder se invertem: se antes a humilde Abigail limpava o chão e toda a merda (literalmente) que os ricos faziam, agora, como ela mesmo afirma, naquela ilha ela é a rainha. E dessa forma, passa a, à sua maneira, dentro daquelas condições de limitação e privação geral, oprimir, tal como um governante oprime um povo, um empresário a empregados... Ela se prevalece de seu novo "poder" para chantagear, extorquir, subornar, castigar, enfim, tornar-se uma tirana, exatamente num momento que, em tese, exigiria humanização e solidariedade. Mas o ser humano não é assim, não é, mesmo?

Abigail tem a célula de sobrevivência do navio e dentro dela, biscoitos e água. Desta forma, compra a simpatia de alguns com biscoitos, impõe "respeito"  a outros ao privá-los de comida, e privilegia seus favoritos, como, por exemplo, o jovem bonitão Carl a quem é permitido dormir em seu bote em troca de favores sexuais. A relação de Carl com a 'rainha" Abigail desagrada a influencer Yaya, a deixa enciumada mas, logo, conformada com a própria impotência diante dos fatos, e submetida ao poder da líder, torna-se mansa e tão dócil quanto os demais. Só que, por conta de mais uma circunstância inusitada, talvez esse poder todo esteja ameaçado. Mas, como é da natureza do poderoso, ele vai fazer de tudo para mantê-lo.

As discussões do milionário russo do esterco, um capitalista, com o capitão de cruzeiro norte-americano, um comunista, acabam fazendo todo o sentido e ao mesmo tempo nenhum, uma vez que, independente do regime político ou econômico, sendo a sociedade capitaneada, conduzida pelo Homem, à sombra de seu caráter, quando se trata de poder, literalmente, está  todo mundo no mesmo barco. "Triângulo da Tristeza" é um pequeno retrato do mundo reduzido a um pequeno pedaço de terra. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Acima, à esq., o casal Yaya e Carl, convidado para o cruzeiro; ao lado, o caos no "jantar do Capitão";
abaixo, primeiro, Abigail, contando com uma conveniente união feminina para se estabelecer como líder; e ainda, por último, o modelo Carl desfrutando do abrigo no bote, às custas de prazeres para a "rainha da ilha".



Cly Reis 

"Dead-End: Na Velocidade dos Anos Solitários", de Seyer (1990)


"Um olhar mais atento se dá conta
que o noir de Seyer é ainda mais noir
que os policiais do anos 40 -
ele é menos aveludado do que seus inspiradores,
tem menos glamour.
É rigorosamente gráfico.
Os rostos conhecidos, reconhecidos, convenientes,
próprios a esse repertório, são mais signos do que símbolos."
Jean Luc-Cochet,
quadrinista e escritor



Cinema e quadrinhos têm uma relação muito próxima de longa data. Além dos story-boards, guias organizacionais de diretores para o andamento de uma história, as adaptações de obras pensadas originalmente para papel são parceiras da telona há bastante tempo, e, mais recentemente, ganharam uma força enorme com a ascensão dos estúdios da Marvel e da DC. Já o caminho inverso não costuma ser tão exitoso, uma vez que, grande parte das vezes, quando quadrinistas resolvem passar para o papel uma obra cinematográfica de sucesso, se limitam a reproduzir os quadros da película.
"Dead-End, Na Velocidade dos Anos Solitários" é diferente dessa mera transposição de cenas para as HQ's. A graphic-novel é inspirada e ao mesmo tempo é uma reverência ao cinema. Seyer, o artista responsável pelo trabalho, se utiliza de cenas clássicas, de imagens consagradas de ícones de Hollywood como Humphrey Bogart, Lauren Bacall, James Cagney, Orson Welles, entre outros, para compor sua obra, mas fora do contexto em que elas apareciam originalmente, criando algo totalmente diferente e original. Na história de Sayer Bogart não é o detetive Sam Spade, de "O Falcão Maltês", e sim um cara encrencado tentando arranjar alguma grana e sobreviver como puder; Welles não é o corrupto capitão Hank Quinlan de "A Marca da Maldade", e sim um dono de uma espelunca muito mal frequentada; e a bela Lauren Bacall passa longe de ser a blonde fatal de "À Beira do Abismo" para encarnar um prostituta vulgar de última categoria. O universo de Seyer é esse: a tônica dos filmes noir norte-americanos americanos, só que tudo ainda mais sujo e podre.
A trama é bastante simples: na Nova York dos anos '30, dois caras, ferrados, endividados, jurados de morte pelo gângster do pedaço, sem ter nada a perder, vão para uma cartada final praticamente suicida, roubando um malote e tentando dar o fora da cidade. Só que as coisas não saem exatamente como eles imaginavam e a dupla de perdedores acaba se complicando cada vez mais.
Homenagem ao cinema noir dos anos 40, "Dead-End...", publicada em 1990, hoje é considerada praticamente um cult das HQ's, e tornou-se um verdadeiro item de colecionador. Um exercício de reimaginação do universo do cinema, praticamente recriando personagens que conhecemos com uma visão muito original. Um clássico das HQ's que honra os clássicos do cinema.

Rostos conhecidos, Bogart, Welles, cenas familiares, mas com outra roupagem,
em outra história, diferente (mas nem tanto) das originais em que costumamos vê-los.


 


Cly Reis

Berinjela Beligerante

 


cly




sábado, 11 de março de 2023

"Argentina, 1985”, de Santiago Mitre (2022)

 

“Marte Um” é um dos melhores filmes brasileiros do século XXI e um dos melhores do cinema nacional. Mas por que abrir falando deste filme e não de “Argentina, 1985”? Pelo fato de que, mais uma vez, o Brasil não é representado no Oscar. O filme de Gabriel Martins era o candidato brasileiro a concorrer à estatueta, o que não se confirmou mais uma vez como vem ocorrendo há 25 anos, desde “Central do Brasil”, em 1998. E por que a comparação entre os países? Porque, embora “Marte Um” tenha sido preterido a títulos de outros quatro países que não só a Argentina, é inevitável a comparação entre o cinema feito no Brasil e na terra de Gardel, vizinhos e afins em uma série de aspectos. O fato é que este último vem, há aproximadamente duas décadas, se sobrepondo de tal maneira ao primeiro – inclusive no próprio Oscar, com a indiscutível vitória de “O Segredo dos Seus Olhos”, em 2004, e a indicação de “Relatos Selvagens”, em 2015 – que chega a eclipsar um grande filme como “Marte Um”.

Esta comparação denota o quanto o cinema argentino soube encontrar o seu lugar na indústria internacional. “Argentina, 1985” traz as qualidades e o hibridismo que caracterizam a produção audiovisual recente dos hermanos. Baseado em fatos reais, o filme conta a história dos promotores públicos Julio Strassera (o lendário Ricardo Darín) e Luís Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani, ótimo no papel) e sua jovem equipe, que tomam a inédita missão de processar os militares da ditadura argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas.  O processo todo ouviu 850 testemunhas e durou cerca de 530 horas de audiência, vindo a resolver-se no fatídico ano que denomina o título.

Impressiona a capacidade do cinema argentino de saber contar histórias de forma equilibrada e sem pesar demasiadamente para o superficial ou para o denso. Isso coloca a obra no difícil limiar entre o cinema de arte e o filme popular, química facilmente identificada em outros títulos argentinos como “Família Rodante”, “Um Conto Chinês” e “Medianeiras”. No longa de Santiago Mitre, há sempre porções bem conjugadas de drama, humor, romance e registro histórico-documental. Neste ponto, a reconstituição de cenas, principalmente as de tribunal, são capazes de fazer reviver o passado. Além disso, o roteiro vale-se do recurso da construção de narrativas “paralelas” (o pretensamente perigoso namoro da filha Strassera) e a complementaridade de perfis entre os personagens, o que transmite uma percepção de coesão ao espectador.

Recuperando a história: acima, foto do julgamento
original; abaixo, a reconstituição do filme

Há de se ressaltar também aquele que é a cara e o coração do novo cinema argentino: Ricardo Darín. Em mais um exímio papel, ele interpreta Strassera com a habilidade cênica a que o público já se acostumou. Resultado este, porém, nada fácil de se encontrar, visto que perscruta a alma do personagem. O público sabe o que isso quer dizer, basta lembrar de seu protagonismo em filmes como “Neve Negra”, “A Odisseia dos Tontos”, “Koblic”, “Truman” e nos já citados “O Segredo dos Seus Olhos” e “Relatos Selvagens”. A entrega de Darín é tocante, pois capaz de transmitir as inseguranças, as mudanças e os conflitos deste funcionário público tão essencial para a história recente da Argentina, humanizando-o para o espectador. Mais do que humanizá-lo, é um trabalho de recriação e materialização de um personagem que supera o simples cargo de um promotor. É. sim, um símbolo da democracia, da justiça e de resistência.

Darín em mais uma atuação de pura entrega
Afora estes aspectos técnicos comumente impecáveis no cinema da Argentina, este também cumpre outra função fundamental, visto que espelha questões culturais e sociológicas que muito servem de exemplo para a América Latina (incluso Brasil). A porta aberta pelo corajoso e também oscarizado “A História Oficial”, de 1985, denota a consciência de um povo latino-americano que não foge ao compromisso cívico de mexer nas próprias feridas. A sangrenta ditadura que acometeu o país é talvez a principal delas. No momento em que vizinhos como o Brasil saem de um período de trevas pelo conflito permanente entre o comando de um ditador e um regime democrático, bem como a ebulição política recente de países como o Chile, Peru, Nicarágua e Bolívia por motivos semelhantes, que é a sombra fétida do totalitarismo, filmes como “Argentina, 1985” têm muito a ensinar.

Tudo indica que a Argentina levará mais uma vez a estatueta para casa. A se medir pelo grande adversário, o alemão “Nada de Novo no Front” (o qual também concorre a Melhor Filme, pelo qual pode ganhar), a obra de Mitre tem tudo para deixar este e os outros para trás. Assim como deixou o belo “Marte Um”, que por melhor que seja, evidencia o quanto não o Brasil, mas a Argentina achou o caminho para um cinema representativo da América Latina.

trailer de "Argentina, 1985"



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 10 de março de 2023