Fui ao brechó solidário em prol de animais abandonados no atelier da artista plástica Vanice Cougo, na Cidade Baixa, a convite de minha tia e parceirona Isaura Reis e da adorável amiga Francine Kras Borges, envolvida na causa. Sabendo de antemão que haveria pouca roupa masculina, interessei-me por saber que estaria à venda, entre outras coisas, CD’s. Para minha boa surpresa, além de alguns CD’s – como o ótimo “05:22:09:12 Off”, do Front 242, que peguei pra mim –, tinha também vinis. Poucos mas bons! O suficiente para vir para casa com uma pilhazinha de bolachões. São velhos conhecidos, mas as aquisições são novas. Eis:
Ambitious Lovers, "Lust"
“Lust”, The Ambitious Lovers (1990) – O segundo e último trabalho da dupla Peter Scherer e do múltiplo “americano-pernambucano” Arto Lindsay. Assim como o primeiro, “Greed” (1988), segue no estilo sofisticado da banda, que foi uma das precursoras fora do país a unir MPB a um som moderno e tecnológico. Destaque para a faixa-título, a linda “Villain”, parceria com Caetano Veloso (com direito a participação dele e de Naná Vascocelos!), e para a versão eletrificada de “Umbabarauma”, de Jorge Ben. Disco bem legal.
"Midnight Express, soundtrack
“Midnight Express Soundtrack”, Giorgio Moroder (1978) - A marcante trilha sonora de um dos melhores trabalhos de Alan Parker. A música desenha a atmosfera de melancolia, solidão e mistério do filme. De tão forte que é, impossível não associar cenas ao tema musical, como a histórica sequência final. Além desta, cenas como da perseguição pelas ruas de Istambul ou a do acesso de fúria do personagem principal na cadeia são fortemente pontuadas pela música de Moroder.
Caetano, "Totalmente Demais"
“Totalmente Demais”, Caetano Veloso (1986) – Pode-se dizer o precursor do modelo “Acústico MTV”. Este bom disco de Caetano, só na voz e violão, traz, como sempre quando se trata do artista, obras-primas. Já inicia com a então inédita na voz dele “Vaca Profana”, um clássico. Ainda tem pérolas como “O Quereres”, “Oba-lá-lá/Bim Bom” e a linda versão de “Todo Amor que Houver nesta Vida”, de Cazuza, cujo aval de Caetano ao então malvisto rock brasileiro àquela época foi marcante.
Sisters of Mercy, "Floodland"
“Floodland”, The Sisters of Mercy (1988) – Segundo dos únicos três álbuns de estúdio desta boa banda gothic-punk britânica. O disco é irregular, porém traz as boas “Lucretia my Reflection”, com baixo matador, “Flood II” e a soturna “Never Land”. Curiosamente, este é o LP que motivou o início de outra boa banda inglesa da época: o The Mission, uma vez que os então integrantes , Wayne Hussey e Craig Adams saíram do Sisters nesta época para formá-la.
Deee-Lite, "Infinity Within"
“Infinity Within”, Deee-Lite (1992) – Depois do ótimo “World Clique” (1990), puxado pelo hit “Groove is in the Heart”, este segundo trabalho do cosmopolita trio (a americana Lady Kier, o DJ russo Dimitri e o telentosíssimo japonês Towa Tei) não repete com tanto sucesso o trabalho de estreia. No entanto, valem bastante “Runaway”, “I.F.O.”, “Electric Shock” e as interessantes participações das bandas Arrested Development e Disposable Heroes of Hiphoprisy.
Enfim, uma tarde de boa ação e boas compras.
"Entrançados pelas revoluções musicais no jardim de Deee-Lite, os três groov-nicks estavam destinados a esbarrar um no outro. Três culturas diferentes unificadas na era da comunicação."
Trechos do texto do HQ do encarte do disco
"Como se diz delicioso?
Como se diz adorável?
Como se diz deliciosa?
Como se diz divina?
Como se diz de-groovy?
"De" com isso?
Como se diz Deee-Lite?"
Bordão da banda
Em 9 de novembro de 1989, afora a multidão presente in loco para presenciar aquele acontecimento histórico para a humanidade, o mundo todo parava para assistir pela TV a queda do Muro de Berlim. Mais do que apenas concreto, quebravam-se, naquele momento, diferenças. Tudo que a Guerra Fria alimentava com as sobras mal mastigadas da Segunda Guerra se dissolvia, tornando possível que, não apenas a Alemanha se reunificasse, como novas e saudáveis conexões e comunicações entre culturas acontecessem. Ocidente e Oriente não restavam mais apartados. Sua queda não apenas reidentificava uma dualidade ideológica, mas também simbolizava a quebra de preconceitos maiores, como de raça, gênero, cor, cultura e nacionalidade, fosse alemão, soviético, japonês ou norte-americano. Vislumbrava-se, ali, um renovado olhar para o respeito ao outro.
A música não demorou em captar estes ventos de liberdade e comunhão. Precisou, na verdade, precisamente de apenas 268 dias, bem pouco para quem suportou 9.490 deles dos 26 anos desde que o muro foi erguido, em 1963. Artista rapidamente tocada pela reconfiguração planetária de então foi Lady Miss Kier Kirby. A norte-americana, cantora, DJ, modelo e designer de moda aproveitou a passagem aberta pelo muro derrubado para, saída de seu país, passar por sobre seus escombros em direção a até bem pouco tempo inimiga Rússia e recrutar o talentoso Super DJ Dimitry. Sem guardas na fronteira, ela andou ainda mais e foi parar no Japão, desta vez para capturar outro “às” nas manipulações sonoro-digitais: Jungle DJ Towa Towa. Juntos, fizeram de QG, claro, a universal Nova York. Pronto: estava composta a primeira banda de música pop fruto da nova configuração mundial: a Deee-Lite.
O som dançante, alegre e altamente melodioso do trio fazia reverências retrô à música negra norte-americana, mas também a modernizava ao valer-se de elementos peculiares da experiência nativa de seus integrantes, do som das pistas noturnas e das novidades tecno que aquele início da última década do século XX passava a oferecer. Estavam ali a efervescente acid house mas também o hip-hop, o funk, a soul, o eletro-pop, a disco, o jazz, o AOR e o synth. Essa misturança criativa e libertária se materializava no primeiro e disparado melhor disco do grupo: “World Clique”, que completa 30 anos de lançamento neste dia 7 de agosto.
Japão (Towa), Rússia (Dimitry) e Estados Unidos (Kier) juntos para fazer o som da nova era
E como representar aquele novo momento mundial? Com festa, é claro! Sintonizados com o clima de diversão regada à música eletrônica da era clubber, a balada da Deee-Lite começa em altas vibes com “Good Beat”. Samples, beats, grooves e o canto de Miss Kier, que lembra o das grandes divas da era disco. Está aberta a pista, que lota de pronto! Pra não baixar a empolgação, outro arraso: “Power of Love”. Um acorde de piano muito jazzy chama as batidas secas da acid house, que reverberam fortes e fazem impactar o plexo solar. Mas não só: o vocal entra juntamente, formando uma dance tomada de soul anos 70, resumo daquela sonoridade nova que a Deee-Lite trazia em seu balaio cosmopolita. Impossível ficar parado!
Além do som, era importantíssima a Deee-Lite também a parte visual. Eles sintetizavam a “montação” da indumentária clubber, com suas saias e calças coloridas, leggings, tênis sneaker e esportivos, pulseiras, colares, tic-tacs, piranhas e anéis, além de vernizes, maquiagens brilhantes, piercings, tatuagens tribais, cabelos em cortes à frente da moda ou em tons berrantes como o verde-limão e a rosa-choque. Em elementos siderais divertidos e coloridos como os de um cartoon da Hanna-Barbera e tipografia retrô anos 50, a capa de “World...” traz os três integrantes em roupas não menos avivadas e extravagantes mas, principalmente, destaca seus traços antropomórficos típicos: Miss Kier, uma vistosa mulher com os ares latinos da América miscigenada; Dimitry, cujo tipo eslavo em roupas fashion prenunciava a aderência russa ao capitalismo a partir de então; e Towa Towa, de estatura baixa e cabelos pretos lisos típicos de um oriental, o qual trazia para aquela arquitetura estética a cultura pop dos animes japoneses. Todos prontos para a balada!
Mas não se pense que se trata de qualquer festinha! Na “delicious party” da Deee-Lite, além da importância do traje (quanto mais espalhafatoso, melhor), havia também convidados ilustres. O lendário Bootsy Collins é um deles. Baixista de grupos icônicos da black music, como a banda de James Brown e o combo de George Clinton, a Parliament/Funkadelic – a quem Towa Towa faz referência em seu boné na capa do disco – Bootsy empresta não apenas seu estilo único de tocar e o visual de “cartum ambulante” (o qual inclui, fora os óculos esquisitões e não raro uma cartola idem, um sorrisão irresistível) como, tanto quanto, a presença de alguém da “velha guarda” naquele projeto. Como uma chancela para a nova geração. É ele quem comanda baixo e guitarra do funkão pra lá de suingado “Try me On... I’m Very You”, onde Miss Kier, aliás, dá um show de vocal.
Bootsy: velha guarda da black music dando aval para a nova geração
Bootsy volta a aparecer na pista em outro funk, a gostosa “Smile On”, mas desta vez acompanhado de outros convidados de pulseirinha vip com ele: os craques Maceo Parker, no sax, e Fred Wesley, além das cantoras Sahira e Sheila Slappy. Estas duas, aliás, não arredam pé do “queijão” em nenhum momento, sacolejando-se o tempo todo e fazendo o backing do disco inteiro, dando uma trégua apenas na brilhante “What is Love?” em que os DJ’s Dimitry e Towa homenageiam com muita propriedade a Kraftwerk, fazendo lembrar temas dos alemães como “Sex Object”, por causa da voz grave e sensual de Mike Rogers, mas também a sonoridade de coisas de “Computer World” e “The Man-Machine”.
A faixa título e “E.S.P.” mostram porque a Deee-Lite, principalmente na figura de Miss Kier, se tornou um ícone para a comunidade LGBTQ+. Uma ode ao hedonismo, à estética e ao amor. E o que dizer, então, de “Groove Is In The Heart”? Hit do disco, tornou-se um sucesso mundial, que estourou com clipe na MTV à época e fez com que a Deee-Lite tivesse seu maior reconhecimento, colocando o disco no 20º posto entre os mais vendidos. A música ficou entre as cinco primeiras no Hot 100 da Billboard dos EUA e do Reino Unido, bem como ocupou o 1º lugar na parada Hot Dance Club Play dos EUA. Não à toa. Resumo da proposta do trio, “Groove...” é ainda hoje uma referência quando se pensa em música alegre ou pra se dançar, tanto quanto uma “Stay in the Light” ou “YMCA”. Como não, aliás, entrar nessa com eles?! Pura energia boa. Sampler com a base de “Bring Down the Birds", de Herbie Hancock, o baixo saltitante de Bootsy, os metais de Maceo e Fred, o rap de Q-Trip e toda aquela galera ao fundo curtindo a balada.
Fecham “World...” as também ótimas "Who Was That?", um funk suingado cheio de “sampladelics relics” engendradas pelos DJ’s e um refrão pegajoso; e “Deep Ending”, acid house clássica que lembra, pelos acordes de teclados, Depeche Mode e New Order em seu uso menos convencional dos elementos eletrônicos, ora até num tom soturno herdado do gothic punk.
O HQ do encarte de "World Clique"
Porém, como toda balada animada, assim como começou, logo que raiou o dia, a rave da Deee-Lite se encerrou. O grande sucesso do disco de estreia da banda lhes renderia, inclusive, uma vinda ao Brasil para o Rock in Rio 1991. Mas ficou basicamente por aí. Soltariam apenas mais dois álbuns: o longo e inconstante "Infinity Within" (1992) e o derradeiro ”Dewdrops In The Garden” (1994), este último, praticamente já sem a principal cabeça compositiva da banda, o DJ Towa Towa, o qual começava a se aprumar para uma carreira solo deslumbrante agora rebatizado com o nome artístico pelo qual passaria a ser conhecido: Towa Tei. Diferenças e rusgas afastaram o trio cada um para seu canto. Dmitry, baseado atualmente na Berlim sem muros, segue trabalhando como DJ, compositor e produtor, remixando, inclusive, vários artistas, como Sinead O'Connor, Ziggy Marley, Nina Hagen e Ultra Naté. Além disso, seu conturbado relacionamento com Miss Kier inviabilizava totalmente a continuidade de qualquer projeto em comum. Ela, por seu turno, segue trabalhando agora em Londres como cantora e DJ, além de cumprir o importante papel de ativista da causa LGBTQ+, a qual ocupa posto de porta-voz. Uma perfeita drag queen em pele de mulher.
As portas da boate daquele improvável trio, que unia gente da América, a Europa e o Oriente, fechavam-se para receber outras e novas festas anos 90 afora. Se hoje é normal ver grupos como Black Eyed Peas e Fugees com integrantes de várias nacionalidades ou artistas identificados com a cultura queer, como RuPaul, Army of Lovers, Right Said Fred e Lady Gaga, isso não era comum naquele mundo pré-globalização da Deee-Lite. Eles, com alto astral e muita musicalidade, representaram o começo de uma era e transformaram para sempre a música pop, derrubando muros simbólicos e abrindo portas – e armários – para toda uma geração prestes a entrar no tão aguardado século XXI. Bastou darem um “clique”, para o “mundo” nunca mais ser o mesmo.
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O formato CD traz duas faixas não inclusas na edição original: a fantástica “Deee-Lite Theme”, parceria com Herbie Hancock, que prenuncia o que, principalmente, temas que Towa Tei faria em carreira-solo, como “Sound Museum”, de 1997. Além desta, “Build the Bridge”, cantada por Bill Coleman.
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Deee-Lite -"Groove Is In The Heart"
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FAIXAS: 1; “Good Beat” - 4:40 2. “Power Of Love” - 4:40 3. “Try Me On ... I'm Very You” - 5:14 4. “Smile On” - 3:55 5. “What Is Love?” - 3:38 6. ”World Clique” - 3:20 7. ”E.S.P.” - 3:43 8. “Groove Is In The Heart” (Deee-Lite/Herbie Hancock/Jonathan Davis) - 3:51 9. “Who Was That?” - 4:35 10. “Deep Ending” - 3:47 + Bônus (versão CD): - “Deee-Lite Theme” ((Deee-Lite/Hancock) - 2:08 - “Build The Bridge” - 4:32 Todas as composições de autoria de Deee-Lite, exceto indicadas