Coutinho e seu "Cabra Marcado para Morrer", 1º lugar absoluto entre os docs brasileiros |
Hirszman aparece com 3 títulos |
Filme sobre a Velha Guarda da Portela: preferência minha |
Clássico de Joaquim Pedro, presente nas duas listas |
Coutinho e seu "Cabra Marcado para Morrer", 1º lugar absoluto entre os docs brasileiros |
Hirszman aparece com 3 títulos |
Filme sobre a Velha Guarda da Portela: preferência minha |
Clássico de Joaquim Pedro, presente nas duas listas |
Os clássicos absolutos chegaram, entre eles, "O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme brasileiro a vencer um Oscar |
Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.
Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre os 40 melhores |
Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).
Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.
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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)
Com mediação da também colega de associação de críticos Kelly Demo Christ, Diretora de Comunicação do CCPA, pude, além de rever esta preciosa obra de Coutinho, debatê-la com o público presente, bastante interessado e, assim como eu, impressionado com a riqueza poética e artística do filme. O enredo é simples: 18 pessoas comuns selecionadas aleatoriamente através de anúncios em jornais relatam de frente para a câmera, num cenário com apenas uma cadeira para sentarem e cortinas escuras atrás, casos particulares relacionados a determinada música que lhes marcara a vida. Simples, contudo, é modo de dizer, pois é justamente dessa aparente simplicidade que Coutinho, hábil entrevistador e perscrutador da alma humana, extrai histórias quando não marcantes, ainda mais do que isso: impactantes e emocionantes.
Entre os aspectos que pude dividir com os presentes, um deles foi a visão de mundo de Coutinho, um marxista convicto que pautou sua obra - principalmente a documental, a qual passou a se dedicar exclusivamente partir dos anos 70 e pela qual ficou identificado - por um humanismo atravessado pela perspectiva da dialética como motor para o entendimento das relações de classe e, por isso, humanas. Esta característica, que surgiu com total potência em sua obra-prima, “Cabra Marcado para Morrer”, de 1983, ainda sob a égide da Ditadura Militar, se materializou em várias de suas realizações posteriores, principalmente a partir dos anos 90, quando se consolida de vez no documentário. Filmes como “Santo Forte”, “Moscou”, “Edifício Master” e “O Fim e o Princípio” carregam invariavelmente esta forma dual de enxergar o ser humano em sociedade, desvelando com uma sensibilidade ímpar sentimentos muito profundos por meio de uma investigação quase antropológica.
Em “As Canções”, valendo-se da máxima de que somente uma música é capaz de ter potência suficiente para guardar na memória sentimentos sublimes, este aprofundamento emocional se dá em vários momentos, seja nos tocantes depoimentos, seja nas interpretações das músicas (sim, cada pessoa canta pelo menos um pedaço da canção, mesmo não sendo cantores profissionais), seja no sensível trabalho de edição. A forma jornalística como o cineasta conduz as abordagens ganha, na montagem, traços “ficcionais”, que vão trazendo correlações, espelhamentos, divisões, coincidências.
trailer de "As Canções", de Eduardo Coutinho
O sentimento de abandono marital da platônica Sonia é o mesmo da inglesa Isabell e da sofrida Lídia, mas não que suas aparições se deem necessariamente numa sequência. Igual, viuvez, como nos relatos de Gilmar e de Ózio. Isso quando não se suscitam correlações ainda mais sutis: não seria tão fatal quanto pensar que, da forma como o militar João Barbosa confessa ter tratado a esposa ou a conturbação do relacionamento de Sílvia (mulher de olhar triste que encerra o filme noutra tocante fala) uma forma de morte também?
Diversos elementos que a obra de Coutinho nos leva a refletir, como o que pudemos fazer por algumas horas na sessão do Clube de Cinema. Um privilégio e um prazer.
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Daniel Rodrigues
Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade.
Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.
Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintas “Central do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.
03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.
04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.
05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.
06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.
07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".
10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros.
12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.
15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.
16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.
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Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância:
"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05); “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07); “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07); “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).
Daniel Rodrigues