Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta “Carandiru”. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta “Carandiru”. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Chico Buarque - "As Cidades" (1998)

 

"
O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Tudo está na dicção límpida de Chico."
Caetano Veloso

E Chico chega aos 80. Mais do que somente um aniversário ou uma mera contagem numérica, o fato de ser ele, Chico, a completar oito décadas de vida, diz muito sobre o Brasil. Um Brasil que, em algum momento, contrariando todas as expectativas negativas e detrações, deu certo. Uma nação colonizada, saqueada e profundamente escravagista que, naqueles anos 40 de seu nascimento, urbanizava-se a duras penas. Um mero exportador de matéria-prima, de traços rurais, que cedia ao populismo e perseguia contrários (entre eles, artistas e pretos). Uma sociedade convencida da falácia da Democracia Racial. Uma terra de revoltas e levantes, oprimida ora pela Política do Café com Leite, ora pela Política da Bombacha. Um Brasil violento, homicida, aporofóbico e injusto e de senso militarista, o mesmo que se conduziu ao poder e à barbárie por tantos tempo anos mais tarde.

Mas, no meio disso tudo, nasceu Chico. Caetano, contemporâneo, disse isso com a sapiência que a admiração lhe confere: "Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil". Do mundo, não sei. O que sei é que Chico concentra tudo que há de melhor num pais continental violento e dado à desgraça, mas, talvez por isso, pela necessidade de contrapor o que se é por destino, mágico e incomparável. Chico é isso: mágico e incomparável. Seja nas obras-primas às menores, independente da fase da carreira. Há uma regularidade sublime em sua obra, tanto na literatura, no teatro ou no cinema. 

Na música, sua praia desde a adolescência (e pensar que esse admirador de Niemeyer queria ser arquiteto...), essa regularidade se expressa numa obra tão extensa quanto coesa e profundamente simbólica. Quando se fala em resistência da MPB nos Anos de Chumbo, de quem se lembra? E junto a “Coração de Estudante”, não é sempre “Vai Passar” que vem à memória quando se revive o histórico momento das “Diretas Já!”? Chico está embrenhado em nossa história como nação nestes 80 anos que vivemos junto com ele.

Em todas as épocas, Chico, seja o da “flor da idade” ou “o velho”, traduz em sua música o que há de melhor (ou de pior, traduzido da melhor forma) em nós. “As Cidades”, seu 28º álbum de estúdio, é um dos mais perfeitos exemplos. À época, já consolidado como escritor, o autor passava a cada vez mais rarear seus discos, geralmente intercalados, agora, por algum novo livro. Afora projetos esparsos, “Paratodos”, por exemplo, trabalho musical imediatamente anterior, havia 6 anos de lançamento. Neste ínterim, lançara o segundo romance, o celebrado “Benjamin”, de 1995. Assim, havia, além de grande expectativa para o que traria em um novo álbum de música, o questionamento se ele faria jus à mitologia. “Estará agora dando mais atenção à literatura?” “O homem das canções terá perdido a capacidade de inventar preciosidades como “Mulheres de Atenas” ou “Tatuagem”?” “Chico será ainda Chico?”

Resultado: 100 mil cópias vendidas. Disco de ouro. Ele provava que, sim, ainda era Chico. “As Cidades”, com arranjos e produção de Luiz Claudio Ramos e a marcante capa de Gringo Cardia, abre com a malemolente “Carioca”, uma declaração de pertencimento: "Cidade Maravilhosa, és minha". Samba sincopado marcado no piano, é uma tradução da Rio de Janeiro nada óbvia, pois abrangente, generosa, cronista. “O pregão abre o dia/ Hoje tem baile funk/ Tem samba no Flamengo/ O reverendo/ No palanque lendo/ O Apocalipse”. Música que, aliás, daria exemplo aos trabalhos subsequentes de Chico, com aberturas ou encerramentos dedicadas à sua cidade: “Subúrbio”, em “Carioca” (2006), e “As Caravanas”, de “Caravanas” (2017).

A belíssima “Iracema Voou”, de melodia delicada e letra ainda mais, redimensiona para os tempos modernos o mito indianista de José de Alencar. Que beleza da divisão e do tempo musical dos versos: “Tem saudades do Ceará/ Mas não muita”! O bonito tango rumbado “Sonhos Sonhos São” antecede a igualmente delicada “A Ostra e o Vento”, tema escrito para a trilha sonora do filme homônimo de Walter Lima Jr. de um ano antes. Uma joia. A voz infantil de Branca Lima em duo com Chico transmite a sensibilidade desta canção, capaz de fazer referências visuais ao cenário inóspito do filme, uma ilha de marinheiros apartada do mundo, e àquilo que estes elementos trazem de significado: a ostra, o afloramento da sexualidade feminina; o barco, o destino; o peixe, a fecundidade; o vento, o erotismo e a passagem do tempo.

Belezas e delicadezas são, aliás, uma marca de Chico. “Xote da Navegação”, bem posta logo em seguida de uma música tão marítima quanto sensorial, amplifica esse sensação noutra preciosidade do disco. Parceria com o maior discípulo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, este xote com ares de fado lusitano retraz o Nordeste profundo, denotando, como disse certa vez Tom Zé, “quão barroca é a alma sertaneja”. “Com o nome Paciência/ Vai a minha embarcação/ Pendulando como o tempo/ E tendo igual destinação/ Pra quem anda na barcaça/ Tudo, tudo passa/ Só o tempo não”. É ou não é o que de melhor uma língua viva pode oferecer – no caso, o nosso tão desvalorizado Português? Como com a faixa “Carioca”, “Xote...” serve de espelho para os próximos trabalhos que Chico faria, quando põe, a aproximadamente esta mesma etapa do repertório, o baião “Ode aos Ratos” (do disco “Carioca”), "Tipo um Baião" (de "Chico", 2011) e “Massarandupió” (de “Caravanas”).

Outra parceria histórica é com o violinista e compositor Guinga na ardente “Você, Você”, típica melodia guinguiana, de inusitados intervalos e formações de acordes, vocalises e complexa harmonia. Na letra exímia de Chico, ele manda versos interrogativos como: “Que roupa você veste, que anéis?/ Por quem você se troca?/ Que bicho feroz são seus cabelos/ Que à noite você solta?”

Se estamos falando de obras-primas, então vem outra: “Assentamento”. Extraída do projeto “Terra”, produzido por Chico juntamente com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 1997, é certamente uma das mais preciosas canções de todo o cancioneiro buarquiano. Resgatando a atmosfera de músicas antigas suas como “Fantasia” e “O Cio da Terra”, que carregam a temática das lutas fundiárias no Brasil, bem como a literatura de Guimarães Rosa, de quem declama os versos iniciais (“Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão/ contente com minha terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração”), “Assentamento” é um canto político e de esperança ao Movimento Sem-Terra. “Vamos ver a campina quando flora/ A piracema, rios contravim/ Binho, Bel, Bia, Quim/ Vamos embora”. A luta continua, companheiros.

vídeo de "Assentamento" do DVD "As Cidades Ao Vivo"

Dois belos sambas: “Injuriado”, em dueto com a irmã e referência no meio dos bambas Cristina Buarque, e outra antiga: “Aquela Mulher”, do repertório do filme “Ópera do Malandro”, de 1985, mas que, cantada à época pelo ator Edson Celulari e, logo depois, por Paulinho da Viola, nunca havia sido registrada na voz do seu próprio criador.

Mais uma fineza de música, “Cecília”, parceria com Ramos, antecede o final triunfal no chão onde Chico pisa com tanta emoção: a Estação Primeira de Mangueira. “Chão de Esmeraldas”, criada por ele e Hermínio Belo de Carvalho para o então recente projeto “Chico Buarque da Mangueira”, a música parece não só ter expressado o carinho de Chico pela escola como, pé quente em terreno brilhante, antevisto a vitória da Verde e Rosa após 11 anos no Carnaval de 1998 com Chico como tema.

Motivos para desacreditar no Brasil nestes ¾ de século não são poucos. Suicídio de Getúlio, Serra Pelada, Ditadura, facções criminosas, hiperinflação, RioCentro, roubo da taça, colarinho branco, Collor, Eldorado dos Carajás, Anões do Orçamento, Carandiru, Golpe de Dilma, Lava-Jato, Extrema-Direita, 8 de Janeiro... E o que falar de Marielle, Edson Luiz, Amarildo, Mãe Bernadete, Herzog, Stuart Angel, Chico Mendes?... Não é fácil ser brasileiro.

Mas Chico é sempre Chico. É sempre uma qualidade acima da média, a qualidade potencial de um povo. Por causa dele, “todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam”, diz Caetano. Chico é a Seleção de 70, as formas de Brasília, o oxigênio da Mata Atlântica, a batida de João, o traço de Tarsila, a sintaxe do Português, o baião de Gonzaga, o batuque do terreiro, a cintura da mulata. Chico materializa aquilo que podemos ser. E como é bom ser cidadão de um povo que tem como compatriota Francisco Buarque de Hollanda! Ou pode chamá-lo somente pelo apelido, que ele é gente como a gente. Essa gente.

**********
FAIXAS:
1. "Carioca" - 2:43
2. "Iracema Voou" - 2:58
3. "Sonhos Sonhos São" - 3:15
4. "A Ostra E O Vento" - 3:29
5. "Xote De Navegação" (Chico Buarque, Dominguinhos) - 2:30
6. "Você, Você" (Chico Buarque, Guinga) - 2:52
7. "Assentamento" - 3:43
8. "Injuriado" - 2:29
9. "Aquela Mulher" - 2:22
10. "Cecília" (Chico Buarque, Luiz Cláudio Ramos) - 4:03
11. "Chão De Esmeraldas" (Chico Buarque, Hermínio Bello de Carvalho) - 4:03
Todas as canções de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

**********


Daniel Rodrigues

sábado, 26 de agosto de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial de 15 anos do ClyBlog - "Simple Pleasures", Bobby McFerrin (1988)



 

“Bobby McFerrin é um gênio. É muito legal você transformar uma coisa que não existe em coisas que existem. Essa é a função do artista para mim, e o Bobby McFerrin é um dos grandes artistas que existem”. 
André Abujamra


O Daniel Rodrigues me pediu pra eu escrever sobre um dos discos que eu gostaria de falar e um deles é o “Simple Pleasures”, do Bobby McFerrin. A primeira música, "Don't Worry, Be Happy", quando eu escutei, eu fiquei tão apaixonado, porque foi uma música que tocou muito nas rádios em 1988, e é muito legal. O arranjo, a harmonia, a melodia. É uma música muito fofa e muito bonita. Uma harmonia simples, maravilhosa. E dizem que essa foi uma das mais tocadas naquele ano e que, por isso, bateu um recorde mundial para uma música que não tem instrumentos. E é hiper pop! "Don't Worry, Be Happy”, para mim, me remete a muita alegria, felicidade, e dizem que as músicas que te fazem lembrar de coisas boas, fazem você lembrar de uma época boa da sua vida. O que não acontece com música triste - ou até uma música triste pode te lembrar coisa boa, né? 

A seguinte desse disco é “All I Want”. Eu cheguei a ir a dois shows do Bobby McFerrin,e fiquei impressionado, porque só tinha ele e um microfone no palco. É algo inacreditável! E ele tem um grave e uma extensão, uma tessitura de voz maravilhosa. E uma coisa que me impressiona muito nessa música é o contrabaixo que ele faz. Além de ser uma extensão muito grave, tem um timbre muito louco. Parece que tem uma distorção no baixo. Essa música é genial: “All I Want”.

Esta outra também tem essa coisa do grave, que é “Drive my Car”. McFerrin tem uma coisa dos harmônicos, que ele faz com a voz, no agudo, pois ele está cantando em falsete. Quando o homem não consegue cantar muito agudo, ele faz uma coisa chamada “falsete”. Só que o falsete do Bobby McFerrin é tão maravilhoso, que tem uns harmônicos inacreditáveis! Eu soube que o McFerrin sabe tocar clarinete, que é um instrumento que tem muito harmônico e uma extensão muito grande. Então, eu comparo a extensão vocal do Bobby McFerrin com a de uma clarineta. Essa, “Drive my Car”, é realmente uma bênção! E a batera, tudo que você escuta é tudo ele que faz com a voz e o corpo. Para a bateria, ele bate no peito para fazer o bumbo. É uma coisa muito maravilhosa. 

Bem, a próxima música é “Simple Pleasures”, que dá nome ao disco. Nesse disco inteiro, como ele gravou todas as vozes num overdub dele mesmo, ele faz uma coisa interessantíssima, que é a harmonia que ele faz para as coisas. É uma coisa muito louca, porque é muito natural. Mas com certeza, tem um estudo por trás de cada nota que esse cara canta. Outra coisa também é a interpretação dele. McFerrin é praticamente um ator quando canta, porque o timbre, a variação de colocação, o sotaque, enfim. Essa música é quase uma ópera.

A próxima música, "Good Lovin'", que me faz lembrar muito de quando eu fui para Nova York uma vez numa igreja evangélica e vi uma banda de gospel. Aquilo é uma coisa que faz ferver o coração de se ouvir! Essa música é mais ou menos isso: "Good Lovin'" é uma coisa de banda evangélica. E é muito louco, porque a única coisa que a gente precisa num lugar desses é um: "good lovin'", como a letra diz. Eu fico muito emocionado quando escuto sempre. Estou escutando e me sentindo feliz. Afinal, é muito legal você transformar uma coisa que não existe em coisas que existem. Essa é a função do artista para mim, e o Bobby McFerrin é um dos grandes artistas, um dos grandes compositores, um dos grandes músicos que existem. E dizem que ele agora é maestro também.

A seguinte faixa é “Come to Me”, que tem uma harmonização de quatro vozes! É muito inacreditável o que ele faz. Existe uma coisa em música que é fazê-la em bloco. Joe Pass fazia isso na guitarra, por exemplo. Como ele tocava muito sozinho, ele tocava toda a melodia e harmonia da música ao mesmo tempo. Essa música aqui é mais ou menos isso: McFerrin pega quatro vozes e canta inteiro e ainda faz harmonização junto. “Come to Me” é uma música que, para quem gosta de estudar harmonia, é realmente um é arroz, feijão, bife e batata frita.

"Susie-Q". Ele tem nessa música aquela coisa que eu falo de timbre. Tem um baixo sempre impressionante, mas tem uma questão de harmonização no timbre, que é inacreditável! Realmente é “chover no molhado” falar desse disco, porque é um disco que eu escuto há muito, desde 88. E ele ainda dobra uma voz em "Susie-Q", fazendo a voz do homem e da mulher numa oitava acima com falsete. É inacreditável, pois nessa época não tinham tantos recursos no estúdio para afinar voz - afinal, ele nem precisava afinar. É um presente ouvir esse disco.

“Drive”, a próxima música, ele faz um grave numa linha de baixo incrível. Chega a ser um walking bass, mas numa música pop. Também, ele faz uma harmonização com as vozes agudas em “Drive”. Praticamente se escuta ele dizer palavras no baixo, mas não têm palavras. Se você tira a cabeça, e fica imaginando que nesse disco não tem nenhum instrumento além da voz dele, e se você o ouve inteiro, você se fala: “não é possível!”. Ele transforma a voz dele em vários instrumentos. E ele canta “Drive” como a anterior, "Susie-Q": ele faz a voz aguda é a voz grave dobrado. E tem uma coisa de articulação também, pois não é muito fácil você dobrar a voz, ainda mais em oitava, assim, desse jeito. Essa música é foda!

Depois tem "Them Changes", que é maravilhoso também. Essa música tem novamente a questão da extensão. Tem alguns instrumentos, por exemplo, como eu já falei da clarineta, que vai de um grave até um agudo muito agudo. Tem uma brincadeira que a gente fala, que a clarineta é um instrumento alienígena, porque quando você toca oitava, não é a oitava que você está tocando: é a décima quinta, justamente para ter uma extensão maior. E o McFerrin tem uma extensão absurda! Nesta música ele tem o grave fazendo o baixo e depois ele dobra esse baixo com uma oitava acima. É outra inacreditável , que dá pra dizer que é uma música “instrumental”!

E a última de “Simple...” é "Sunshine of Your Love", que é um Jimi Hendrix, né? Ele imita uma guitarra na voz, mas é lindo, porque ele não imita para parecer o instrumento. Parece, sim, que o instrumento é que está imitando a voz dele, de tão lindo que é.


por A N D R É  A B U J A M R A


★★★★★★

clipe de "Don't Worry be Happy", dirigido por Drew Takahashi e estrelado por McFerrin, Robin Williams e Bill Irwin


★★★★★★

FAIXAS:
1. "Don't Worry, Be Happy" - 4:54
2.. "All I Want" - 2:56
3. "Drive My Car" (Lennon, McCartney) - 2:44
4. "Simple Pleasures" - 2:08
5. "Good Lovin'" (Rudy Clark, Artie Resnick) - 2:58
6. "Come to Me" - 3:38
7. "Susie-Q" (Eleanor Broadwater, Dale Hawkins, Stan Lewis) - 2:50
8. "Drive" - 3:58
9. "Them Changes" (Buddy Miles) - 3:55
10. "Sunshine of Your Love" (Pete Brown, Jack Bruce, Eric Clapton) - 3:43
Todas as composições de autoria de Bobby McFerrin, exceto indicadas


★★★★★★

OUÇA O DISCO:


★★★★★★


André Abujamra é um músico, ator, produtor musical, arranjador e diretor paulistano. Em 1986, junto com o músico e compositor Maurício Pereira, fundou a banda “Os Mulheres Negras”, a terceira menor big band do mundo. Tambem comandou os grupos Karnak, Vexame, Gork e Okê Arô, além da vasta carreira solo. Assinou a trilha sonora de mais de 75 trabalhos parra filmes em longa metragem para cinema, entre eles, "Carlota Joaquina", "Bicho de Sete Cabeças" e "Carandiru". Recebeu prêmios como Candango, Kikito, Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e Moliére, além de indicação ao Grammy Latino.


quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

************

50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 2 de junho de 2022

Milton, enfim, voou

 

Seu Chico, personagem de Milton em "Carandiru", de 2003
Dia desses conversava com um colega sobre a grandeza de alguns atores brasileiros que, não fosse o entrave cultural à língua portuguesa no mundo do entretenimento (ou a qualquer outro idioma que não o inglês), estariam voando alto mundo afora. Vários grandes ficaram apenas para “consumo interno” do brasileiro na tevê, no cinema ou no teatro. Alguns, tiveram em produções internacionais, como José Wilker, José Lewgoy e Grande Otelo, mas não despontaram internacionalmente. A exceção são Carmen Miranda, ícone, e Sônia Braga e Rodrigo Santoro, que se adaptaram ao idioma de fora. Fernanda Montenegro é também um caso que não foge à regra: vencedora de Globo de Ouro e concorrente ao Oscar falando português há 25 anos, nunca mais concorreu a algo deste vulto mesmo com excelentes trabalhos posteriores a “Central do Brasil”. Por quê? Seguiu falando somente (e suficientemente) o português.

Semelhante ocorreu com Milton Gonçalves, que faleceu no último dia 30, aos 88 anos. Lembro do policial que ele viveu em “O Beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco, em 1986, filme que deu o Oscar de Melhor Ator para o norte-americano John Hurt, com quem Milton contracena, contudo, sem dever em nada. Milton foi, sim, da altura de Hurt, Freeman, Hopkins, Lancaster, Hanks, Lee Jones. A diferença? O português.

Se no cenário internacional Milton foi um dos que quase alçou, em seu terreiro, contudo, voou alto. Foi uma das vozes negras mais importantes da dramaturgia brasileira em mais de 60 anos de carreira. Por esse protagonismo preto, para além de outros grandes atores brasileiros como ele, deixou uma marca insubstituível no teatro, na TV e no cinema. Este mineiro de Monte Santo teve importante atuação no Teatro de Arena de São Paulo, no Teatro Experimental do Negro de São Paulo, no Grupo Opinião, no Teatro dos Quatro e em outras companhias. Como ator de novelas e seriados, nem se fala! Embora pouco lembrado por isso, foi também foi o primeiro negro a dirigir uma novela na Globo – e não qualquer novela, mas sim o sucesso internacional da primeira versão de “A Escrava Isaura”, de 1976. Mas não só isso: esteve decisivamente em todos os momentos demarcatórios do cinema brasileiro: no neorrealismo dos anos 50 (“O Grande Momento”), no Cinema Novo (“Macunaíma”), no udigrudi (“O Anjo Nasceu”), na fase Embrafilme (“Eles Não Usam Black-Tie”), na primeira internacionalização (“O Beijo da Mulher Aranha”), na retomada (“Carandiru”) e na produção atual (“Pixinguinha: Um Homem Carinhoso”).

Dotado de espontaneidade e carisma, dominava a arte dramática com maestria, indo do pastelão ao melodrama com a naturalidade dos grandes. Interpretou textos dos maiores, de Guarnieri a Dias Gomes, de Steinbeck a Millôr. Sabia como tratar um texto. De todos os personagens que fez, de Zelão das Asas a Bráulio e Seu Chico, no entanto, um se destaca especialmente para mim: “A Rainha Diaba”, filme de Antonio Carlos Fontoura, de 1974. Espécie de blackexplotation à brasileira, o longa, centrado na atuação de Milton, nasceu do desejo do diretor de mostrar o submundo das drogas e da prostituição no Rio de Janeiro dos anos 70, com influências decisivas do teatrólogo Plinio Marcos – responsável pelo argumento – e do artista plástico Helio Oiticica. Como lembra o jornalista Márcio Pinheiro, trata-se de um filme livremente inspirado na vida de Madame Satã, porém com mais violência e menos romantismo. “’A Rainha Diaba’ é, em muitos aspectos, mais autêntico e biográfico do que o próprio filme que leva o nome do mitológico travesti da Lapa”, diz em uma postagem nas redes sociais. Milton dá vida a este personagem andrógeno, que põe pela primeira vez um negro LGBTQIA+ como protagonista de um filme no Brasil. E isso é muito.


Até o primeiro brasileiro num Emmy Internacional (prêmio ao qual concorreu como Melhor Ator Internacional, em 2006) ele foi quando entregou a estatueta de Melhor Programa Infantojuvenil ao lado da atriz norte-americana Susan Sarandon. Predileção pela estreia, como um ator que sobe ao palco renovado a cada noite de espetáculo.

Também tive, aliás, uma primeira – e única – vez com Milton. Uma ocasião em que o vi pessoalmente, a poucos metros. Estava no Rio de Janeiro, nos arredores da emblemática Cinelândia, acompanhado de minha esposa e de meu irmão numa tarde de agosto de 2018. Nós saímos de uma livraria e ele, provavelmente, de algum dos teatros daquele quadrante em busca de um dos infindáveis taxis do Rio. Durante os segundos de espera dele na calçada, pintou-me a dúvida: “Falo com ele?” Mas para dizer-lhe o quê? pensei. “Parabéns”? “Obrigado”? Minha hesitação momentânea impediu que achasse algo mais válido que isso e o taxi, obviamente, chegou. Ele embarcou e foi-se embora com toda sua importância e grandeza. Voou. Aliás, como há muito se ensaiava, seja como Zelão, que sobrevoou Sucupira, seja como o velho Chico, aprendiz das pipas no Carandiru. Eu fiquei na calçada, pés plantados, olhando para cima e sabendo que havia deixado escapar a oportunidade. Não agarrei suas asas. Depois vi que fiz o certo: deixei-o subir. Quantas asas ele já havia me dado sem saber para que eu, negro homem, um dia voasse também.


MILTON GONÇALVES
(1933-2022)



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 1 de março de 2021

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 2000

 

Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade. 

Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.

Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintasCentral do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.




01 - “O Invasor”, de Beto Brant (2001) - Para começar de vez a década, nada melhor que um filme marcante. O terceiro longa de Brant avança na sua estética orgânica e tramas que dialogam com a literatura (roteiro do próprio autor Marçal Aquino) para contar a história de três amigos sócios em uma empresa, que entram em crise entre si. Para resolver uma “questão”, contratam o matador Anísio (Paulo Miklos, impecável), mas acabam por comprar uma maior ainda. Não deu outra: abocanhou vários prêmios, entre estes Melhor Filme Latinoamericano em Sundance, Melhor Filme no Festival de Recife e vários em Brasília, entre eles direção, trilha sonora, prêmio da crítica e ator revelação para Miklos. 



02 - “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (01) - Sabe o caminho para as coproduções reaberto por Carla Camuratti e os Barreto na década anterior? Resultou, entre outras obras, no divertido e brilhante “O Xangô...”, baseado no best-seller de Jô Soares. A invencionice de contextualizar um thriller de Sherlock Holmes em plena Rio de Janeiro do final do século XIX dá muito certo na adaptação de Faria Jr., que equilibra muito bem atores estrangeiros (Joaquim de Almeida, Anthony O'Donnell, Maria de Medeiros) com craques brasileiros (Marco Nanini, Cláudio Marzo, Cláudia Abreu e o próprio Jô, que faz uma ponta). Produção de um nível como raras vezes se viu no cinema brasileiro até então. Vencedor de alguns prêmios no Brasil e no exterior, com destaque para a direção de arte de Marcos Flaksman e figurino da dupla Marilia Carneiro e Karla Monteiro. 



03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.



04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.




05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios  entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.


06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.




07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



08 - “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (02) - Quando Lírio Ferreira e Paulo Caldas rodaram “Baile Perfumado”, em 1996, já era o prenúncio de uma geração pernambucana que elevaria o nível de todo o cinema brasileiro poucos anos depois. O principal nome desta turma é Cláudio Assis. Dono de uma estética altamente própria e apurada, ele expõe como somente um recifense poético e realista poderia as belezas e as feiuras da sua cidade – nem que para isso tenha que extrair beleza da feiura. Texto e atuações impactantes, que dialogam com o teatro moderno e a escola realista. Injusto destacar alguma atuação, mas podem-se falar pelo menos de Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele e Leona Cavalli. Presente nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abraccine, ainda levou Brasília, CineCeará, Toulouse e o Fórum de Cinema Novo do Festival de Berlim. Mas os pernambucanos estavam apenas começando...



09 - “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (02) - A retomada do cinema brasileiro trouxe consigo velhos militantes, como Babenco e Cacá Diegues, mas fez um bem especial ao maior documentarista do mundo: Eduardo Coutinho. O autor do melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra Marcado para Morrer”, engrena uma série de realizações essenciais para o gênero, que se redescobre pujante e capaz num Brasil plural após uma década de redemocratização. Coutinho inicia sua trajetória no então novo século com esta obra-prima, pautada como sempre por seu olhar investigativo e sensível, que dá espaço para o “filmado” sem impor-lhe uma pré-concepção. Afinal, para que, já que o próprio ato de filmar exprime esse posicionamento? Melhor doc em Gramado, Havana, Margarida de Prata, APCA e Mostra de SP.


10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros. 



11 - “Estamira”, de Marcos Prado (04) - Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.


12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.



13 - "Santiago",
de João Moreira Salles (07) - O atuante empresário e banqueiro João Moreira Salles, desde muito envolvido com cinema como o irmão Waltinho, já havia realizado aquele que poderia ser considerada a sua obra essencial, "Notícias de uma Guerra Particular", de 1999. Porém, foi quando ele voltou sua câmera para si próprio que acertou em cheio. Diz-se um olhar interior, porém, quebrando-se a "quarta parede" de forma incomum e subjetiva, uma vez que o personagem principal não é ele mesmo, mas o homem que dá título ao filme: o culto e enigmático mordomo espanhol da abastada família Salles, que cuidara dele e de seus irmãs na idílica infância. Misto de memória, confissão, resgate sentimental, registro antropológico e, claro, cinema em essência. A locução sóbria mas presente do irmão Fernando, a estética p&b, as referências ao cinema íntimo de Mizoguchi e as lembranças de um passado irrecuperável dão noção da força metalinguística que o filme carrega. 
Vários prêmios e presença nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abracine.



14 - “Estômago”, de Marcos Jorge (07) - Aquela expressão "conquistar pelo estômago" talvez não se adapte muito bem a este peculiar filme que junta suspense, drama, comédia e certa dose de escatologia. A abordagem dada por Marcos Jorge ao criativo roteiro justifica o título ao pautar as relações e as atitudes pelo instintivo, pelo animalesco. Assim, comida, sexo, sangue e poder se confundem, reelaborando a ideia de quem conquista quem. Por falar em conquista, aliás, o cineasta estreou emplacando o filme brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior em 2008-2009, vencedor de 39 prêmios, sendo 16 internacionais.


15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.



16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.



17 - “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (2007) - O cinema gaúcho da primeira década do novo século não se resumiu à entrada da turma da Casa de Cinema ao círculo de longas nacional. Surgiam novos talentos imbuídos de ideias ainda menos tradicionais e renovadoras, como Gustavo Spolidoro. Em seu primeiro e marcante longa ele capta a intensidade e a veracidade de uma Porto Alegre ainda "longe demais das capitais", mas que, como toda metrópole, não para - literalmente. O filme, um exercício ousado de plano-sequência, tem até em seus “erros” técnicos qualidades que o alçam a cult, influenciando outros realizadores como Beto Brant e cenas independentes de cinema noutros estados brasileiros. Melhor Filme em Milão e em Lima, que deu Melhor Ator (Roberto Oliveira), e Prêmio Destaque do Júri em Tiradentes. Sabe os oscarizados "Birdman" e "1917". feitos em plano-sequência? Pois é: devem a "Ainda Orangotangos" mesmo que não saibam.




18 - “Meu Nome não É Johnny”, de Mauro Lima (08) - Outra joia do cinema nacional, filme que melhor aproveita o versátil Selton, total condutor da narrativa ao interpretar o junkie “curtidor”, mas profundamente depressivo João Estrella. A história real de sexo, drogas e rock n roll (e tráfico também) remonta um período de curtição lisérgica da juventude classe média carioca dos anos 80, ora aventura, ora comédia, como a própria história mostra, envereda para o drama. Tudo na medida certa. Filme de sequências impagáveis, como a briga na cadeia com os africanos e a entrega de cocaína na repartição pública. Além de Miami, ABC, ACIE e outros, levou pra casa uma mala cheia no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.



19 - “O Mistério do Samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque (08) - O gênero documentário algumas vezes veste-se de pompas antropológicas. Como a âncora Marisa Monte diz no disco que produziu da Velha Guarda da Portela 9 anos antes deste filme, registrar a obra desses nobres artistas do subúrbio é perpetuar uma parte da cultura popular quase em extinção. Parecia premeditar que, nos anos seguintes ao filme, morreriam sete integrantes do grupo, todos de adiantada idade e vida dura, semelhantemente com o que ocorrera com os membros da banda de outro doc parecido em natureza e grandeza: "Buena Vista Social Club" (Win Wenders, 99). Na hora certa, a dupla de diretores conseguiu por suas câmeras a serviço de uma história cheia de poesia e que conta-se por si. Memoráveis cenas dos pagodes na quadra da escola, algumas das mais emocionantes do cinema brasileiro. Seleção oficial de Cannes e Grande Prêmio Vivo em 2009.



20 - “Linha de Passe”,
de Walter Salles Jr. (08) - 
Waltinho é, definitivamente, dos principais nomes do cinema brasileiro moderno. Responsável por manter o então raro alto nível da produção cinematográfica do Brasil nos anos 90, emplacando o cult “Terra Estrangeira” e o primeiro Urso de Ouro em Berlim do País com “Central do Brasil”, nos anos 2000 ele já havia chegado ao máximo que um cineasta pode alcançar: sucesso em Hollywood. Porém, a vontade de contar histórias de nobres pessoas comuns o faz voltar à terra natal para realizar essa linda trama coral, tocante e reveladora, abordando algo por incrível que pareça não tão recorrente nos enredos justo do cinema brasileiro: o futebol. Não levou Palma de Ouro, mas foi aplaudido por nove minutos durante o Festival de Cannes, além de ganhar o de melhor atriz pela atuação de Sandra Corveloni. Parte dos méritos vai pra Fátima Toledo, que aplica seu método ao elenco com alta assertividade.




**********************

Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância: 

"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05);  “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho  (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07);  “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07);  “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).

Daniel Rodrigues