Fui com grande expectativa ver o
último filme do genial cineasta alemão Wim Wenders, “O
Sal da Terra” (França/Itália/Brasil, 2014), documentário
sobre Sebastião Salgado codirigido por seu filho, Juliano Ribeiro
Salgado. Além da indicação ao Oscar de Melhor Documentário
(que não levou, mas não me fez perder o interesse) e de ter como
tema o trabalho do grande fotógrafo brasileiro, a própria
assinatura de Wenders já me significa um bom indicativo.
Expectativa frustrada. Num filme
cujo conteúdo principal, a obra e a trajetória de Salgado, poderia
ser muito melhor explorado, os diretores derrapam num longa monótono
e comumente didático que não diz a que veio: nem pode ser
considerado uma biografia (até porque o protagonista ainda tem chão
pra correr), nem se configura como um documento poético-visual tal
qual Wenders já fizera em outros trabalhos nesse formato como “Pina”
(2011) e “Buena Vista Social Club” (1999). Além disso, o roteiro
desaproveita os próprios “ganchos” levantados durante a
narrativa de “improbabilidades controláveis” típica de
documentários, os quais poderiam direcioná-la a algo mais autoral e
criativo.
Suspeito que dois fatores tenham
influenciado para que “O Sal da Terra” tenha saído assim tão
“sem sal”. Primeiro, que Sebastião Salgado está vivo, e falar
sobre a vida-obra de pessoas que ainda estão pela tal Terra –
ainda mais quando altamente comprometidas com fatores sociais e
políticos e quando a pessoa é diretamente envolvida na produção
como neste caso – pode acarretar em interferências tanto positivas
quanto negativas. Aqui, na queda de braço, as negativas se
sobrepuseram. De bom, tem-se a riqueza de percepções do próprio
Sebastião Salgado analisando, relatando e comentando projetos e
fotos de sua autoria. No entanto, é impossível não cogitar a
autopreservação de quem provavelmente tema entrar de cabeça num
projeto com potencial de descortinar o que se quer e o que não se
quer mostrar. Com Wenders à frente, este desmascaramento tem grandes
chances de acontecer sem que o documentado o perceba conscientemente.
Quando ele vê, já foi pra ilha de edição. Um homem público como
Salgado, que guarda o status de maior em sua profissão no mundo e
cujos projetos dependem de instituições financeiras, empresas e
verba pública (inclusive, este filme), mesmo que ele não queira,
mesmo que seja inconsciente, não permite se expor de um jeito que o
discurso artístico o conduza.
Juliano filmando enquanto Sebastião fotografa.
Não digo com isso que haja má
índole nem “rabo-preso” da parte de Sebastião Salgado,
personalidade ciente de sua trajetória e de postura
filosófico-políticas bastante esclarecida. Tanto é fato que, em
“Revelando Sebastião Salgado”, outro documentário sobre ele (de
Betsie de Paula, de 2013), vários aspectos de sua vida não deixam
de ser conhecidos pelo espectador, como a rotina de trabalho, o papel
fundamental da esposa Lélia em sua vida e modus operandi e a
relação com o outro filho, Rodrigo, que tem Síndrome de Down. Em
“O Sal da Terra”, por exemplo, o relacionamento com o filho é
abordado de forma bastante superficial e nem se menciona que é Lélia
quem organiza seu arquivo de fotos e negativos, dois elementos que
denotam bastante da forma de ser de Sebastião. Um pouco por falta de
um direcionamento mais assertivo, um pouco pelo ritmo/conceito da
montagem, tudo é contado de forma (sono)lenta mas aproveitar essa
lentidão para um aprofundamento real. A questão parece-me, sim (e
aí entra o outro fator influenciador para a concepção vaga do
filme), que o dedo de Juliano trouxe uma amortização de aspectos
negativos tanto no sentido de preservação da imagem do pai quanto
de uma inaptidão técnica sua por trás das câmeras. Ao invés de
ter ajudado, a proximidade pai-filho parece trazer um complicador ao
projeto de Juliano, influenciando no roteiro. Ainda mais considerando
as vaidades familiares, incontroláveis em exposições tão grandes.
Não captei de cara, mas lembrei da entrevista prestada por Juliano
na entrega do Oscar, em que, numa mostra sabe-se lá de modéstia ou
autismo ele se refere ao “Sebastião Salgado” e não simplesmente
ao “pai”, já denotava esta má-resolução psicanalítica.
E onde entra Wim Wenders nisso?
Justamente neste bolo de comprometimentos e presunções. Chamado
para assumir a codireção – provavelmente pela constatação desta
inaptidão de Juliano a que me referi –, o alemão tentou, tentou,
mas não soube onde se colocar. São visivelmente dele os tais
“ganchos” que poderiam salvar o filme. Primeiro, na sua didática
germânica e poética, inicia o longa com um off no qual
disseca o termo “fotografia”. Um começo até óbvio que, para
não se tornar um jogral de ensino básico, dependeria de se
desenvolver esta didática de maneira a penetrar no âmago do objeto
foto: luz, escuro, ambiente, calor, frio, posição, emoção,
solidão. Expectativa frustrada novamente, pois a narrativa segue
para uma exposição cronológica dos projetos e viagens do fotógrafo
ao longo dos anos “curiosamente” selecionada a gosto da família
Salgado. Quem viu o outro documentário sobre Sebastião ou conhece
um pouco de sua carreira sabe que ele prefere, por exemplo, não
associar seu sucesso à famosa foto do atentado a Ronald Reagen, em
1981, quando seu trabalho ganhou definitivamente projeção
internacional.
A foto de Reagan nem é mencionada
em “O Sal da Terra”.
A outra “deixa” sugerida por
Wenders e desconsiderada é ainda mais perceptível e até simbólica
nessa relação cinema de arte X imagem institucional. Quando
o cineasta relata sobre o convite que recebeu para assumir o projeto
e começar a rodar, ele destaca na narração que, curiosamente, ao
mesmo tempo em que ele apontava a câmera para Sebastião Salgado, o
movimento inverso, por força do hábito de fotógrafo, também
acontecia. Aquilo supõe que o filme, a partir dali, versaria sobre a
profundidade simbólica da linguagem cinematográfica, em que o olhar
do cineasta, do protagonista e do espectador pudessem se confundir,
confluir e se complementar. “O que é foto?” “O que é
filme?” “Quem está documentando quem?” “O quanto importa o
movimento contínuo dos frames-fotos para uma significação real do
objeto do filme?” Questionamentos estimulantes para qualquer
obra cinematográfica.
Fotos-denúncia do fotógrafo feitas na Etiópia
Fantástico!... Não, pois
simplesmente a ideia é abandonada mais uma vez para retornar à
cômoda, isenta e simplória narração de Wenders e de Juliano (mais
de Wenders, diga-se) com incursões de depoimentos de Sebastião. Se
o filme seguisse pela lógica da discussão da linguagem de cinema,
justificaria, inclusive, a presença do/s diretor/es como
personagem/ns. Em outros documentários seus, Wenders optou ou por
uma espécie de “presença intrínseca”, como em “Quarto 666”
(1983), no qual entrevista cineastas como ele e debate o futuro de
sua profissão; “Buena Vista...”, em que a figura de Ry Cooder o
“substitui”; ou “Pina”, quando é totalmente
diretor/entrevistador, deixando a história se construir através dos
bailarinos e da presença imaterial de Pina. Todos obras-primas. Por
que será?...
No fim, coube a Wenders tentar dar
um ar autoral a “O Sal da Terra”, amarrando-o com offs,
depoimentos e muitas, mas muitas projeções de fotos. Até demais.
Muito sépia, muito esfumaçamento. Na condução, arriscou aplicar
uma cadência contemplativa para dar a sensação de apreensão do
tempo. Inútil, pois em todo o decorrer não se aprofundaram questões
como a necessidade da espera e/ou a preparação de um fotógrafo em
campo para extrair, às vezes, nenhum click. Supõe-se isso na
sequência do urso polar, mas se “descarta” a ideia também. O
resultado disso é um filme com bons momentos (principalmente, a
sequência sobre as tristes fotos da Etiópia) mas que cansa pela
lentidão e do qual ninguém sai empolgado da sala de cinema. Se
Wenders, que é Wenders, não teve condições de “levantar” o
filme, quem dirá Juliano. Como na vida, quando se atribuir uma
função para duas pessoas sem distinguir a que cada um será
responsável, nenhuma delas acaba por fazer algo por completo. Em “O
Sal da Terra” é assim: dois diretores, nenhum autor.
A codireção não é o problema.
Wenders já produzira assim e com sucesso, haja vista os belos “O Céu de Lisboa” (1994), em parceria com o português Manoel de
Oliveira, ou “Além das Nuvens” (1995), feito a quatro mãos com
mestre do cinema italiano moderno Michelangelo Antonioni. Quanto a
Juliano, até temia que o filme pudesse ter mais a “cara” dele e
menos a do parceiro, que poderia ter se associado de forma a dar uns
pitacos providenciais mas, respeitando o ambiente familiar, não
interferiria no resultado final – suposição minha que não se
confirmou. A questão é que não se criou um espaço real de atuação
nem para um, nem para outro.
Seja por influência ou não da
família, de Juliano ou do próprio Sebastião, “O Sal da Terra”,
com um substrato espetacular para que se compusesse um grande filme
que contivesse como temperos elementos instigantes e questionadores,
saiu um produto audiovisual “chapa branca”. Branco como sal em
pitadas esparsas e imperceptíveis ao paladar.
A imponente obra arquitetônica à beira da Baía da Guanabara
Só agora, pouco mais de um mês após sua inauguração, pude visitar o badalado e disputado Museu do Amanhã, localizado na revitalizada zona portuária do Rio, mais precisamente na Praça Mauá. Com enfoque no planeta Terra, o museu, de proposta autossustentável, expõe situações de modificação do planeta de toda ordem e de toda origem, sobretudo as causadas pelo homem e alerta para suas consequências imediatas e futuras. Sua exposição permanente, de circuito programado, começa com um impressionante vídeo de tirar o fôlego, exibido 360º, em alta definição, no interior de um globo onde os visitantes permanecem por aproximadamente 8 minutos. Depois disso, o visitante percorre os demais espaços livremente com uma série de mesas e telas interativas onde recebe informações diversas conforme o tema do espaço. Muito legal a visita, o espaço, entendo a proposta tecnológica e interativa do local, mas senti falta de algum espaço de arte, mesmo se tratando de um museu evidentemente científico. Algo dentro da proposta, como uma exposição de Sebastião Salgado, por exemplo, cuja obra tem foco antropológico e ambiental extremamente fortes; ou as esculturas naturais de Frans Krajcberg que se prestariam muito bem a uma análise artístico-ecológica. Mas o visitante não sairá frustrado pela ausência de uma obra de arte pois o museu, o edifício em si é a maior atração. Uma obra prima da arquitetura projetada pelo espanhol Santiago Calatrava, encantadora em cada detalhe, cada vão, cada espaço. Colocado à beira da Baía da Guanabara, o Museu do Amanhã tem a justa ambição de ser mais uma maravilha do homem a concorrer em beleza com as maravilhas da natureza que Deus gentilmente concedeu à cidade do Rio de Janeiro.
Abaixo algumas imagens da visita e do espaço:
O átrio de entrada
Um planeta Terra girando e em constante mudança
de projeções sobre os visitantes
O globo negro onde acontece a projeção de 360º
As costas da sala de projeção, já nas mesas interativas
Um dos grandes cubos que marcam cada fase da visitação.
Este destacando os rios.
Os impressionantes tótens de led em alta definição
Um dos painéis interativos.
Informação na ponta dos dedos
O interior de outro dos cubos com imagens dinâmicas e fascinantes
da fauna e da flora por todas suas paredes
Essa quarentena tá desorientando todo mundo, né? Então, o Música da Cabeça veio te salvar! Afinal, quarta-feira é dia do programa mais musical (e cerebral) da web. Não tem como errar. Assim como a gente não erra na playlist, que terá João Gilberto & Stan Getz, Fellini, The Crusaders & Randy Crowford, Herbie Hancock, Arthur Verocai e mais. No “Cabeção”, o genial Moondog e no “Música de Fato” o projeto de Sebastião Salgado em defesa dos índios brasileiros. Não te perde: se terça foi ontem e amanhã é quinta, então é sinal de que hoje, quarta, é dia de MDC, às 21h, na infalível Rádio Elétrica. Produção, apresentação e orientação temporal: Daniel Rodrigues.
"O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Tudo está na dicção límpida de Chico."
Caetano Veloso
EChico chega aos 80. Mais do que somente um aniversário ou uma mera contagem numérica, o fato de ser ele, Chico, a completar oito décadas de vida, diz muito sobre o Brasil. Um Brasil que, em algum momento, contrariando todas as expectativas negativas e detrações, deu certo. Uma nação colonizada, saqueada e profundamente escravagista que, naqueles anos 40 de seu nascimento, urbanizava-se a duras penas. Um mero exportador de matéria-prima, de traços rurais, que cedia ao populismo e perseguia contrários (entre eles, artistas e pretos). Uma sociedade convencida da falácia da Democracia Racial. Uma terra de revoltas e levantes, oprimida ora pela Política do Café com Leite, ora pela Política da Bombacha. Um Brasil violento, homicida, aporofóbico e injusto e de senso militarista, o mesmo que se conduziu ao poder e à barbárie por tantos tempo anos mais tarde.
Mas, no meio disso tudo, nasceu Chico. Caetano, contemporâneo, disse isso com a sapiência que a admiração lhe confere: "Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil". Do mundo, não sei. O que sei é que Chico concentra tudo que há de melhor num pais continental violento e dado à desgraça, mas, talvez por isso, pela necessidade de contrapor o que se é por destino, mágico e incomparável. Chico é isso: mágico e incomparável. Seja nas obras-primas às menores, independente da fase da carreira. Há uma regularidade sublime em sua obra, tanto na literatura, no teatro ou no cinema.
Na música, sua praia desde a adolescência (e pensar que esse admirador de Niemeyer queria ser arquiteto...), essa regularidade se expressa numa obra tão extensa quanto coesa e profundamente simbólica. Quando se fala em resistência da MPB nos Anos de Chumbo, de quem se lembra? E junto a “Coração de Estudante”, não é sempre “Vai Passar” que vem à memória quando se revive o histórico momento das “Diretas Já!”? Chico está embrenhado em nossa história como nação nestes 80 anos que vivemos junto com ele.
Em todas as épocas, Chico, seja o da “flor da idade” ou “o velho”, traduz em sua música o que há de melhor (ou de pior, traduzido da melhor forma) em nós. “As Cidades”, seu 28º álbum de estúdio, é um dos mais perfeitos exemplos. À época, já consolidado como escritor, o autor passava a cada vez mais rarear seus discos, geralmente intercalados, agora, por algum novo livro. Afora projetos esparsos, “Paratodos”, por exemplo, trabalho musical imediatamente anterior, havia 6 anos de lançamento. Neste ínterim, lançara o segundo romance, o celebrado “Benjamin”, de 1995. Assim, havia, além de grande expectativa para o que traria em um novo álbum de música, o questionamento se ele faria jus à mitologia. “Estará agora dando mais atenção à literatura?” “O homem das canções terá perdido a capacidade de inventar preciosidades como “Mulheres de Atenas” ou “Tatuagem”?” “Chico será ainda Chico?”
Resultado: 100 mil cópias vendidas. Disco de ouro. Ele provava que, sim, ainda era Chico. “As Cidades”, com arranjos e produção de Luiz Claudio Ramos e a marcante capa de Gringo Cardia, abre com a malemolente “Carioca”, uma declaração de pertencimento: "Cidade Maravilhosa, és minha". Samba sincopado marcado no piano, é uma tradução da Rio de Janeiro nada óbvia, pois abrangente, generosa, cronista. “O pregão abre o dia/ Hoje tem baile funk/ Tem samba no Flamengo/ O reverendo/ No palanque lendo/ O Apocalipse”. Música que, aliás, daria exemplo aos trabalhos subsequentes de Chico, com aberturas ou encerramentos dedicadas à sua cidade: “Subúrbio”, em “Carioca” (2006), e “As Caravanas”, de “Caravanas” (2017).
A belíssima “Iracema Voou”, de melodia delicada e letra ainda mais, redimensiona para os tempos modernos o mito indianista de José de Alencar. Que beleza da divisão e do tempo musical dos versos: “Tem saudades do Ceará/ Mas não muita”! O bonito tango rumbado “Sonhos Sonhos São” antecede a igualmente delicada “A Ostra e o Vento”, tema escrito para a trilha sonora do filme homônimo de Walter Lima Jr. de um ano antes. Uma joia. A voz infantil de Branca Lima em duo com Chico transmite a sensibilidade desta canção, capaz de fazer referências visuais ao cenário inóspito do filme, uma ilha de marinheiros apartada do mundo, e àquilo que estes elementos trazem de significado: a ostra, o afloramento da sexualidade feminina; o barco, o destino; o peixe, a fecundidade; o vento, o erotismo e a passagem do tempo.
Belezas e delicadezas são, aliás, uma marca de Chico. “Xote da Navegação”, bem posta logo em seguida de uma música tão marítima quanto sensorial, amplifica esse sensação noutra preciosidade do disco. Parceria com o maior discípulo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, este xote com ares de fado lusitano retraz o Nordeste profundo, denotando, como disse certa vez Tom Zé, “quão barroca é a alma sertaneja”. “Com o nome Paciência/ Vai a minha embarcação/ Pendulando como o tempo/ E tendo igual destinação/ Pra quem anda na barcaça/ Tudo, tudo passa/ Só o tempo não”. É ou não é o que de melhor uma língua viva pode oferecer – no caso, o nosso tão desvalorizado Português? Como com a faixa “Carioca”, “Xote...” serve de espelho para os próximos trabalhos que Chico faria, quando põe, a aproximadamente esta mesma etapa do repertório, o baião “Ode aos Ratos” (do disco “Carioca”), "Tipo um Baião" (de "Chico", 2011) e “Massarandupió” (de “Caravanas”).
Outra parceria histórica é com o violinista e compositor Guinga na ardente “Você, Você”, típica melodia guinguiana, de inusitados intervalos e formações de acordes, vocalises e complexa harmonia. Na letra exímia de Chico, ele manda versos interrogativos como: “Que roupa você veste, que anéis?/ Por quem você se troca?/ Que bicho feroz são seus cabelos/ Que à noite você solta?”
Se estamos falando de obras-primas, então vem outra: “Assentamento”. Extraída do projeto “Terra”, produzido por Chico juntamente com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 1997, é certamente uma das mais preciosas canções de todo o cancioneiro buarquiano. Resgatando a atmosfera de músicas antigas suas como “Fantasia” e “O Cio da Terra”, que carregam a temática das lutas fundiárias no Brasil, bem como a literatura de Guimarães Rosa, de quem declama os versos iniciais (“Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão/ contente com minha terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração”), “Assentamento” é um canto político e de esperança ao Movimento Sem-Terra. “Vamos ver a campina quando flora/ A piracema, rios contravim/ Binho, Bel, Bia, Quim/ Vamos embora”. A luta continua, companheiros.
vídeo de "Assentamento" do DVD "As Cidades Ao Vivo"
Dois belos sambas: “Injuriado”, em dueto com a irmã e referência no meio dos bambas Cristina Buarque, e outra antiga: “Aquela Mulher”, do repertório do filme “Ópera do Malandro”, de 1985, mas que, cantada à época pelo ator Edson Celulari e, logo depois, por Paulinho da Viola, nunca havia sido registrada na voz do seu próprio criador.
Mais uma fineza de música, “Cecília”, parceria com Ramos, antecede o final triunfal no chão onde Chico pisa com tanta emoção: a Estação Primeira de Mangueira. “Chão de Esmeraldas”, criada por ele e Hermínio Belo de Carvalho para o então recente projeto “Chico Buarque da Mangueira”, a música parece não só ter expressado o carinho de Chico pela escola como, pé quente em terreno brilhante, antevisto a vitória da Verde e Rosa após 11 anos no Carnaval de 1998 com Chico como tema.
Motivos para desacreditar no Brasil nestes ¾ de século não são poucos. Suicídio de Getúlio, Serra Pelada, Ditadura, facções criminosas, hiperinflação, RioCentro, roubo da taça, colarinho branco, Collor, Eldorado dos Carajás, Anões do Orçamento, Carandiru, Golpe de Dilma, Lava-Jato, Extrema-Direita, 8 de Janeiro... E o que falar de Marielle, Edson Luiz, Amarildo, Mãe Bernadete, Herzog, Stuart Angel, Chico Mendes?... Não é fácil ser brasileiro.
Mas Chico é sempre Chico. É sempre uma qualidade acima da média, a qualidade potencial de um povo. Por causa dele, “todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam”, diz Caetano. Chico é a Seleção de 70, as formas de Brasília, o oxigênio da Mata Atlântica, a batida de João, o traço de Tarsila, a sintaxe do Português, o baião de Gonzaga, o batuque do terreiro, a cintura da mulata. Chico materializa aquilo que podemos ser. E como é bom ser cidadão de um povo que tem como compatriota Francisco Buarque de Hollanda! Ou pode chamá-lo somente pelo apelido, que ele é gente como a gente. Essa gente.